Oftalmologia - Vol. 35: pp.355-359
Comunicações Curtas e Casos Clínicos
Mucormicose Rino-Cerebral: Caso Clínico e Revisão de Literatura Maria Antónia Costa1, Rita Falcão Reis1, Mariana Seca1, João Queirós1, Maria Céu Pinto2, Maria Araújo2 1Interna Complementar, Serviço de Oftalmologia, Centro Hospitalar do Porto 2Assistente Hospitalar Graduada, Serviço de Oftalmologia, Centro Hospitalar do Porto
[email protected] Apresentado na forma de Comunicação Livre no 53º Congresso Português de Oftalmologia
RESUMO A Mucormicose é uma infecção fúngica agressiva, que geralmente afecta indivíduos imunocomprometidos. A órbita, seios perinasais e cérebro são frequentemente atingidos. Os autores relatam o caso clínico de uma mulher de 47 anos, sob corticoterapia, cujo diagnóstico precoce e os tratamentos médico e cirúrgico agressivos não foram capazes de evitar o seu desfecho fatal.
SUMMARY Mucormycosis is an aggressive fungal infection that usually occurs in association with immunocompromised states. Orbit, perinasal sinus and brain are typically affected. We report a case of a patient, 47 years old, behind corticotherapy. The early diagnosis and the agressive medical and surgical treatments weren´t enough to avoid the dead of the patient.
INTRODUÇÃO A mucormicose é uma forma de sinusite aguda invasiva causada por um fungo da classe dos Mucorales.1 Trata-se de uma infecção rapidamente progressiva que geralmente afecta indivíduos imunologicamente deprimidos. Se não tratada, é rapidamente fatal. A mucormicose atinge classicamente a mucosa nasal com invasão secundária dos seios perinasais, órbita e cérebro.2 Os organismos responsáveis pela infecção são membros da família Mucoraceae, ordem dos Mucorales, classe dos Zygomycets. São saprófitas frequentemente encontrados no solo, material vegetal em decomposição e nos indivíduos saudáveis nos tubos respiratório e digestivo. A sua distribuição é ubiquitária.3
As formas clínicas de apresentação da mucormicose são: a forma rino-cerebral, pulmonar, gastrointestinal, do sistema nervoso central (SNC), subcutânea e a forma disseminada. A forma de mucormicose rino-cerebral (MRC) é a mais comum destas formas e é subdividida em três tipos: rino-maxilar, rino-orbitária e rino-orbito-cerebral.4,5 No entanto, esta classificação da MRC tem pouco interesse prático, uma vez que a terapêutica é semelhante, independentemente da extensão. O tratamento desta situação deverá ser agressivo, atendendo ao seu carácter letal, e envolve o tratamento da causa subjacente (como a cetoacidose diabética ou a neutropenia), a terapêutica antifúngica apropriada e o desbridamento cirúrgico dos tecidos envolvidos.3-7 Vol. 35 - Nº 4 - Outubro-Dezembro 2011 |
355
Maria Antónia Costa, Rita Falcão Reis, Mariana Seca, João Queirós, Maria Céu Pinto, Maria Araújo
O prognóstico da MRC é geralmente sombrio e está relacionado com o tempo de diagnóstico e início do tratamento.3
CASO CLÍNICO Doente do sexo feminino, 47 anos, com antecedentes de glomerulonefrite membrano-proliferativa há três meses, medicada com prednisolona 65 mg/dia. Negava outros antecedentes patológicos relevantes. A doente foi observada no Serviço de Urgência de Otorrinolaringologia e Oftalmologia do Hospital de Santo António – Centro Hospitalar do Porto, com quadro de secreções nasais pútridas e de cor preta, hiposmia e epistáxis de pequeno volume (esta última desde há dois meses). Referiu também múltiplos episódios de hiperémia conjuntival, secreções oculares purulentas e visão turva à esquerda desde a última semana. A doente não apresentava febre, vómitos ou sinais de défice neurológico focal. À observação por oftalmologia foi registada proptose à esquerda, edema palpebral, quemose, limitação dos movimentos oculares e defeito pupilar aferente relativo. Foi feito um diagnóstico preliminar de celulite orbitária que levou à requisição de um exame de imagem [Tomografia Computorizada (TC) cerebral, orbitária e perinasal]. A TC (Figura 1) revelou espessamento dos tecidos das paredes dos seios: maxilar, etmoidal e frontal esquerdos bem como opacificação dos mesmos com extensão do processo inflamatório para a parede inferomedial da órbita. Não foram encontrados abcessos nem sinais de erosão óssea; não apresentava atingimento intracraniano aparente. Foi feita colheita de secreções nasais e orbitárias para estudo microbiológico. Esse estudo, mais tarde, revelou-se positivo para fungos e Pseudomona aeruginosa. Os exames laboratoriais de rotina incluindo o hemograma, a glicemia, a ureia sanguínea e as creatininas sérica e urinária estavam dentro dos limites normais. O teste HIV-ELISA teve resultado negativo. No dia de admissão e após colheita de secreções iniciou, em regime de internamento, Ceftazidima e Anfotericina B 1.5 mg/Kg/dia; e foi submetida a cirurgia, com o objectivo de remover o tecido necrótico visível. Foram removidas grandes quantidades de tecido necrosado, sem que houvesse hemorragia. O resultado da intervenção foi a exérese completa do septo nasal, parede medial do seio maxilar, porção anterior do etmóide e pele do nariz e sobre o malar esquerdo. (Figuras 2 e 3). Nessa cirurgia estiveram presentes as equipas cirúrgicas de urgência dos serviços de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia Maxilo-Facial. 356
| Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia
Fig. 1 | Corte coronal (pré-operatório) mostrando importante assimetria facial com aumento das partes moles junto à órbita esquerda.
Fig. 2 e 3 | Per-operatório (1ª cirurgia) com úlcera e necrose nasal e orbitária.
Mucormicose Rino-Cerebral: Caso Clínico e Revisão de Literatura
No fim da cirurgia não foi deixado tecido necrótico visível. No exame anatomo-patológico foi encontrada “mucosa revestida por epitélio respiratório com processo inflamatório tendo no meio hifas septadas” - com o diagnóstico final de zigomicose. Menos de 24h depois, o surgimento de novo tecido necrótico sobre o malar e frontal esquerdos obrigou a nova exploração cirúrgica (Figura 4) que revelou extensão à órbita esquerda, olho esquerdo, seio frontal esquerdo, seio maxilar esquerdo, palato duro e cavidade oral. Realizou-se então uma exenteração e maxilectomia parcial, junto com a remoção da pele e tecidos subcutâneos subjacentes. (Figura 5, 6 e 7) A doente acabou por falecer seis dias após a segunda cirurgia com enfarte e necrose do tronco cerebral.
Fig. 5 | Pós-operatório (2ª cirurgia) – exenteração orbitária e maxilectomia parcial.
Fig. 4 | Per-operatório (2ª cirurgia) – novo tecido necrótico sobre o palato duro.
DISCUSSÃO A mucormicose pode envolver os pulmões, o sistema nervoso central e a pele mas é seguramente melhor conhecida a sua apresentação rino-cerebral, que geralmente tem como ponto de partida a mucosa nasal e os seios perinasais e eventualmente se pode estender para a órbita e cérebro. Embora os agentes responsáveis possam ser isolados nas fossas nasais de pacientes saudáveis, eles podem tornar-se patogénicos em doentes com comprometimento imunológico ou metabólico. São factores de risco conhecidos a Diabetes Mellitus mal controlada, em especial a tipo I, as neoplasias do foro hematológico, a síndrome de imunodeficiência
Fig. 6 e 7 | Corte axial e coronal após a 2ª cirurgia. Vol. 35 - Nº 4 - Outubro-Dezembro 2011 |
357
Maria Antónia Costa, Rita Falcão Reis, Mariana Seca, João Queirós, Maria Céu Pinto, Maria Araújo
humana adquirida, as queimaduras graves, a malnutrição, as doenças renais e a imunossupressão iatrogénica após transplantação de órgãos.4-9 A nossa paciente sofria de doença renal sob terapêutica com corticoterapia. Estão descritos alguns casos desta infecção em doentes sem nenhum factor de risco predisponente.5-10 De notar que apesar da patologia renal de base, a doente estava bem controlada, com creatininas sérica e urinária normais. A MRC inicia-se com a colonização da mucosa nasal. Em indivíduos imunocompetentes, a resposta fagocítica à colonização previne a infecção; já em indivíduos imunodeprimidos a resposta é subóptima e ocorre a germinação. As hifas dos Mucorale têm especial preferência por artérias e pelo sistema linfático. Também podem invadir nervos, tecido gordo e ossos, sendo os músculos geralmente poupados. A angioinvasão pelas hifas produz uma reacção fibrinóide, que leva à produção de um rolhão de fibrina e fungos conhecido por “mucor thrombi”. Este é responsável pela oclusão das artérias, levando à isquemia, enfarte e consequente formação do tecido preto necrótico, que recobre pele e mucosas e que é característico da MRC. A isquemia favorece a acidose tecidular, que por sua vez é ideal para o crescimento de fungos.9 A infecção dissemina-se rapidamente aos seios perinasais e à órbita, podendo continuar através do etmóide e dos vasos orbitários até ao crânio.9 Na nossa paciente, as manifestações nasais e orbitárias ocorreram praticamente ao mesmo tempo (admissão), embora houvesse história de epistaxis de pequeno volume com dois meses de evolução. As manifestações intracranianas ocorreram durante o internamento. Da revisão da literatura encontramos a febre como o sinal precoce mais frequente (44% dos casos), seguido de ulceração nasal ou necrose, edema periorbitário ou facial e diminuição da acuidade visual (todos estes ocorrendo em 33% dos casos).10-11 Em fases mais tardias a lesão necrótica nasal ou sobre a mucosa oral é o sinal mais frequente (80%).11 O diagnóstico histológico da mucormicose baseia-se no achado de hifas não septadas ou com poucas septações, ao contrário, por exemplo, do Aspergillus, em que a sua hifa é mais estreita e septada com um ângulo de 45º.1 No nosso caso, antes do resultado da biopsia dispúnhamos já do estudo microbiológico das secreções nasais e orbitárias, que auxiliaram o diagnóstico. A TC é o exame de imagem mais apropriado para acompanhamento da evolução de pacientes com suspeita de sinusite fúngica. Para avaliar as alterações precoces da doença, tais como alterações nos vasos (trombose da artéria carótida e do seio cavernoso), o melhor método é a ressonância 358
| Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia
magnética, com ou sem gadolínio. Ela é também o melhor meio de estudo de eventual extensão intracraniana.15 O tratamento da MRC passa por uma abordagem combinada: terapêutica médica e cirúrgica, associada à correcção do problema de base, se possível. A cirurgia deve ser realizada logo que o diagnóstico seja feito. Diversos procedimentos estão descritos na literatura, desde o desbridamento simples da mucosa necrótica; cirurgia de Caldwell-Luc; maxilectomia medial; etmoidectomia e esfenóidectomia; e maxilectomia radical com exenteração orbitária.4 Quer a abordagem endoscópica, quer a abordagem a céu aberto são válidas assim como a cirurgia num só tempo ou em vários tempos.4 A abordagem endoscópica requer sempre, no pré-operatório, tomografia computorizada para identificar exactamente a extensão do processo infeccioso, pois, dependendo da sua extensão, se não for possível a remoção completa por via endoscópica, é preferível a realização da cirurgia via aberta para o desbridamento completo. Assim, em casos avançados em que há comprometimento da fissura pterigomaxilar ou envolvimento da órbita, fissura orbitária inferior, fossa temporal e inferotemporal e boca cavidade bucal, o desbridamento cirúrgico tradicional a céu aberto deve ser realizado.17 Como não há nenhum estudo que comprove que a exenteração orbitaria aumenta a sobrevida, o olho só deverá ser removido quando há sinais de trombose da artéria oftálmica, necrose do ápex da órbita ou invasão orbitária, como no caso da nossa paciente.4 No entanto, Qingli et al15 relataram um caso de mucormicose rino-cerebral com trombose da artéria oftálmica e artéria ciliar nasal posterior no qual não realizaram exenteração da órbita, mas obtiveram um bom resultado clínico final. O tratamento médico preconizado é a Anfotericina B, na dose 1.0-1.5 mg/Kg/dia durante semanas a meses, dependendo da resposta clínica e da severidade dos efeitos secundários (sendo a nefrotoxicidade, o principal).3-5,7,8 A introdução de Anfotericina, segundo alguns autores, tem favorecido a sobrevida dos pacientes portadores de mucormicose2-5 Formas menos tóxicas de Anfotericina, como a forma lipossomal, em dispersão coloidal e em complexo lipídico podem ser mais seguras.13 Leenders et al. realizaram um estudo multicêntrico randomizado comparando a eficácia da Anfotericina B lipossomal e a Anfotericina B não lipossomal, e encontraram resultado superior naqueles pacientes tratados com a primeira delas.14 Outras modalidades terapêuticas promissoras parecem ser a oxigenioterapia hiperbárica7 e a Anfotericina B nebulizada.11-12 O oxigénio hiperbárico aumenta a tensão de oxigénio nos tecidos doentes que, em estudos in vitro, sugere ter uma acção fungoestática.16
Mucormicose Rino-Cerebral: Caso Clínico e Revisão de Literatura
A maior parte das séries apresenta mortalidade de 50% quando não existem manifestações intracranianas, aumentando para 90% se houver envolvimento do SNC.9 No nosso caso, apesar do diagnóstico precoce, da condição metabólica de base estável, de um tratamento médico e cirúrgico atempados e agressivos, não foi suficiente para evitar o desfecho fatal da doente.
BIBLIOGRAFIA 1. W.A. Schell, Histopathology of fungal rhinosinusitis, Otolaryngol. Clin Northam. 33 (2000) 251-279. 2. T. Akoz, B. Civelek, and M. Akan, Rhinocerebral mucormycosis: relate of two cases, Ann. Plast. Surg. 43 (1999) 309-312. 3. S.Tryfon, I. Stanopoulos, E.Kakavelas, et al., Rhnocerebral mucormycosis in a patient with latent diabetes mellitus: a case report, J. Oral. Maxillfac. Sur. 60 (2002) 328-330. 4. K.L. Paterson, M. Wang, R.F. Canalis, E. Abemayor, Rhinocerebral mucormycosis: evolution of the disease and treatment options, Laryngoscope 107 (1997) 855-862. 5. P. Rouppi, A. Dietz, E. Nikanne, et al., Paranasal sinus mucormycosis: a report of two cases, acta Otolaryngol. 121 (2001). 6. J.H. Damante, R.N. Fleury, Oral and rhinoorbital mucormycosis: a case report, J. Oral Maxillofac. Surg. 56 (1998) 267-271. 7. R.G. Hendrickson, J. Olshaker, O. Duckett, Rhinocerebral mucormycosis: a case of a rare, but deadly disease, J. Emerg. Med 17 (1999).
8. B.J. Ferguson, Mucormycosis of the nose and perinasal sinuses, otolaryngol. Clin. North Am. 33(2000) 349-365. 9. J.E: Gregory, A. Golden, W. Haymaker, Mucormycosis of the central nervous system: a report of three cases, Bull. Johns Hopkins Hosp. 73 (1943) 405-414. 10. A. Dell Valle Zapico, A. Rubio Suarez et al., Mucormycosis of the sphenoid sinus in an otherwise healthy patient. J. Laryng. Otol. 110 (1996) 471-473. 11. R. A. Yohai, J. D. Bullock, A. A. Aziz, R.J. Market, Survival factors in rhino-orbital-cerebral mucormycosis, Surv. Ophthalmol. 39 (1994) 3-22. 12. P.Raj, Successful treatment of rhinocerrebral mucormycosis by a combination of aggressive surgical desbridement and the use of systemic liposomal amphotericin B and local therapy with nebulized amphotericin – a case report. J. Laryngol.Otol.112 (1998) 367-370. 13. M. D. Strasser. Rhinocerebral mucormycosis. Theraphy with amphotericin B lipid complex. Arch. Intern. Med. 156 (1996) 337-339. 14. Leenders AC, Daenen S, Jansen RL et al. Liposomal amphotericin B compared with amphotericin B deoxycholate in the treatment of documented and suspected neutropenia – associated invasive fungal infections. Br J Haematol 1998; 103: 205-12. 15. Qingli L, Orcutt JC, Seifter LS. Orbital mucormycosis with retinal and ciliary artery occlusions. Br J Ophthalmol 1989; 73: 680-3. 16. Couch L, Theilen F. Rhinocerebral mucormycosis with berebral extension successfully treated with adjunctive hyperbaric oxygen. Arch Otolaryngol 1988 114: 791-4. 17. Alobid I, Bernal M, Calvo C, Vilaseca I, Treatment of rhinocerebral mucormycosis by combination of endoscopic sinus desbridement and amphotericin B: Am J Rhinol 2001; 15:327-31.
Vol. 35 - Nº 4 - Outubro-Dezembro 2011 |
359