VISIBILIDADES INVENTADAS: HIERARQUIAS NO CORPO FEMININO E

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VISIBILIDADES INVENTADAS: HIERARQUIAS NO CORPO FEMININO E A PRODUÇÃO DE PADRÕES DE BELEZA E FEALDADE EM FORTALEZA (1900-1940) Luciana Andrade de Almeida1 Resumo: As formas de modelar, representar, vestir ou despir, de proteger, de disciplinar e liberar o corpo feminino são impregnadas de cultura e história, evidenciando um processo nem sempre linear de transformações de demandas e investimentos sobre ele. A presente comunicação, que traz uma etapa da pesquisa em desenvolvimento no Doutorado em História da PUC-SP, problematiza a elaboração de padrões de beleza e fealdade articulada com os diferentes valores atribuídos a determinadas partes do corpo feminino. O estudo tem observado, em propagandas, fotografias e textos de revistas ilustradas e jornais da cidade de Fortaleza, transformações e permanências relacionadas ao desejo de ordenar o corpo feminino, definindo hierarquias entre rosto, braços, pernas, ventre e outras regiões. Tais critérios contribuem para enaltecer ou depreciar determinadas aparências, além de inspirar cuidados e visibilidades – algumas vezes inéditos – refletidos no consumo de produtos de beleza, artigos de cura, roupas e exercícios físicos. Nessa perspectiva, os padrões de beleza e fealdade não são considerados universais ou imutáveis; são percebidos como processuais, sociais e culturais. Palavras-chave: História do Corpo. Beleza/fealdade. Visibilidade. O processo de remodelação de Fortaleza, iniciado no século XIX, reelaborou simultaneamente a cidade e os corpos, regido pelas promessas de modernidade. Relacionada ao crescimento e à transformação de si e do mundo, a modernidade suscita, em linhas gerais, a busca incessante pela novidade, a crença na técnica e no progresso inevitável e também incertezas e ambiguidades no sentido de libertar e coagir ao mesmo tempo. Novos equipamentos e símbolos2 materializam o progresso e proporcionam aos habitantes da cidade diversas experiências de socialibilidade, visibilidade e movimento. Exigiam-se mais movimento e eficiência, mais higiene e aparências renovadas, a busca de um ideal de cidade se estendia ao desejo de um corpo ideal, saudável e limpo. O corpo, mesmo que poucas vezes seu nome seja dito (o presente-ausente de que fala David Le Breton), ganha mais espaço nos impressos, a começar pelo uso corrente de fotografias e ilustrações. As danças 1

Doutoranda em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil, com a pesquisa “Jogos de Aparências: Beleza e Fealdade em Fortaleza nas primeiras décadas do século XX (1900-1960)” sob orientação da Profª Drª Denise Bernuzzi de Sant’Anna. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Email: [email protected]. 2 Praças são embelezadas entre 1902 e 1903 (como as do Ferreira, a Marquês do Herval e a da Sé) e redimensionadas com a chegada dos automóveis (1909), o Theatro José de Alencar é construído (1910) – contemporâneo ao projeto de abastecimento de água e esgoto, que só é concluído em 1920 –, a luz e os bondes elétricos aparecem com a vinda da Ceará Tramway Light and Power (1913) e dois grandes cinemas chegam à cidade (Majestic e Moderno, de 1917 e 1922, respectivamente). Sobre o tema, consultar Ponte, 2001.

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aceleradas (como o Charleston, apreciado em especial pelos ricos), os esportes (com a difusão de métodos de trabalho corporal, como a ginástica sueca, instituída no final da década de 1910 nos grupos escolares), os banhos de mar, o aparecimento de produtos e toda uma sorte de discursos médicos e higienistas também passavam a circular nas publicações, indicando o crescente interesse e o valor, inclusive do ponto de vista comercial, que o corpo despertava. As novas sociabilidades convocavam de diferentes formas o corpo feminino. Há todo um ritual de aparição e de visibilidade, entendida aqui na perspectiva de Michel Foucault. A visibilidade não diz respeito somente à visão, mas ao que é possível de ser visto. Ele considera que os regimes do visível e de enunciação, em cada condição histórica, derivam de um complexo campo de forças (saberes e poderes) historicamente situado em composição com os modos de subjetivação (Cf. Foucault, 2002). Em outras palavras, “(...) a maneira de ver o corpo ou de expô-lo ao olhar, assim como as formas de definir suas zonas de sombra não cessam de variar ao longo da história e de acordo com os pressupostos de cada cultura” (Sant’Anna, 2003). A avaliação mais detalhada das aparências femininas pode ter sido promovida, em parte, por essa configuração que a cidade começa a adquirir. A fluidez pretendida nos deslocamentos, as praças, o teatro, os cinemas, as lojas que aos poucos ganham vitrines transparentes e outros espaços de convivência favorecem um constante emprego do olhar, que Le Breton define como “o sentido hegemônico da Modernidade” (2011, p. 161), mas também “da distância, da representacão e até mesmo da vigilância” (Le Breton, 2011, p. 163). É possível que a visibilidade tenha ajudado a criar uma série de necessidades, insatisfações e inquietações, até então inéditas, percebidas em anúncios e artigos analisados neste estudo, de jornais (O Nordeste, O Povo, Correio do Ceará), almanaques (Bristol, Almanaque Saúde da Mulher, Almanaque do Ceará) e revistas ilustradas (A Jandaia, Ba-Ta-Clan) que circularam em Fortaleza3. 3

O jornal O Nordeste, fundado pela Liga Católica em 1922, era lido pelo padre durante a missa e o único jornal conservador católico que contava com grande aceitação entre o círculo letrado. A primeira edição de O Povo saiu em 7 de janeiro de 1928 e seu nome foi escolhido pelos moradores de Fortaleza. Fundado por Demócrito Rocha, defendia “os interesses da sociedade contra as oligarquias dominantes” e por muito tempo seu slogan foi “O jornal das multidões”. O Correio do Ceará foi fundado em 2 de março de 1915 por Álvaro da Cunha Mendes, empresário do ramo gráfico. A partir de 1937 passou a ser integrante do Diários Associados. O Almanak (depois Almanaque) Illustrado de Bristol era uma publicação da empresa novaiorquina de produtos de beleza Lanman & KempBarclay & Co., fundada em 1808. O folheto, traduzido para o português, publicava calendário, festas religiosas, propagandas de medicamentos, conselhos médicos e materiais de leitura ligeira. Deixou de circular em dezembro de 1982. O Almanaque Saúde da Mulher, criado em 1906, era da empresa Daudt, que desenvolvia o tônico homônimo. A publicação fazia parte de uma estratégia de interagir com o público através de cartas, promoções e concursos. Circulou nacionalmente até 1974 e alcançou tiragens que chegaram a 1,5 milhão de exemplares. O Almanaque do Ceará (Almanach do Ceará Administrativo, estatístico, industrial e literário) foi editado de 1895 a 1962, trazendo informações de municípios, índices de estabelecimentos comerciais e uma parte voltada à literatura, entremeados por anúncios. Ba-Ta-Clan foi fundada em 1926 – começou custando $400, mas chegou a 1$000 – voltada ao público feminino, publicada aos sábados e de propriedade da Empreza

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Com o objetivo de articular a elaboração de padrões de beleza e fealdade com os valores atribuídos a determinadas partes do corpo feminino, a reflexão aqui apresentada desenvolve algumas observações sobre as demandas e os investimentos sobre ele, focalizando transformações e permanências relacionadas ao desejo de ordená-lo. Em sua maioria, os anúncios analisados se apresentam como porta-vozes de descobertas científicas, por vezes são modulados pelo olhar médico e parecem expressar um otimismo renovado a cada veiculação. A localização mais comum dos excertos aqui presentes é próxima às publicidades de remédios, de alimentos e de outros produtos de beleza e higiene, ocupando frequentemente a capa ou as páginas ímpares (mais prestigiadas) dos periódicos analisados. Sant’Anna desenvolve outras características fundamentais dos anúncios e apresenta algumas possibilidades de leitura: Eles [os anúncios] são em geral banais, repetitivos, frívolos e bastante ligados às oscilações da moda e aos interesses do mercado de produtos de beleza. E, portanto, oferecem elementos preciosos a quem analisa as moficações das aparências corporais. A leitura a partir de uma ordem cronológica possibilita detectar como se definem, se classificam e constróem as representações do corpo belo e também de seus contra-modelos, ou seja, os corpos julgados feios. São esses deslocamentos entre o belo e o feio que eles trazem a cada vez, são esses graus de vigilância que a mulher deve exercer sobre ela mesma que esses anúncios não cessam de ressaltar (SANT’ANNA, 1994, p. 71, tradução minha)4.

De fato, é provável que a multiplicação das imagens utilizadas nos anúncios e chichês de jornais e revistas, bem como a imobilidade dos clichês e retratos, tenha tornado mais minucioso o julgamento dos corpos femininos. Os novos percursos do olhar, combinados a uma série de convenções sociais e religiosas na Fortaleza do começo dos século XX, bem como a diversas permanências relacionadas ao mundo rural, propõem outros sentidos ao corpo e multiplicam as atenções sobre a pele, a harmonia das formas, a adequação dos gestos. Tanto a beleza como a fealdade não são pensadas aqui como essências não-históricas ou conceitos absolutos, mas situadas no tempo, culturalmente complexas e não necessariamente opostas, permeadas por diversas zonas de coação e liberdade. Nesses termos, beleza e feiúra não são

Cearense de Annuncios, com uma proposta quase exclusiva de propagandas. A revista A Jandaia, fundada em 1924, era voltada a arte, literatura e atualidades. De caráter mais frívolo, era publicada semanalmente e possuía um valor de capa de $500 a 1$500. 4 No original: “Elles [les rubriques] tendent à fonctionner comme porte-parole des dernières découvertes scientifiques sur la lutte contre le vieillissement et contre la laideur. Elles sont en géneral banales, répétitives, frivoles et très liées aux oscillations de la mode et aux intérêts du marché des produits de beauté. Et pourtant elles apportent des éléments précieux à ceux qui tentent d’annalyser les modifications des apparences corporelles. En la lisant à partir d’un ordre chronologique, il est possible de détecter comment on définit, on classe et on construit les representations du corps beau et aussi de ses contre-modèles, c’est-à-dire, les corps jugés laids. Car ce sont les déplacements entre le beau et le laid qu’elles portent à chaque fois, ce sont les degrés de vigilance que la femme doit exercer sur elle même que ces rubriques ne cessent de souligner” (Sant’Anna, 1994, p. 71).

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abordadas de forma dicotômica, mas compreendem um sentido de provisoriedade, com fronteiras que podem ser fluidas e incessantemente remodeladas. Ambas vão sendo julgadas de forma progressivamente mais qualificada, sem perder aquilo que guardam de sensível e de moral. É percebida, nesse sentido, a renovação de algumas longas permanências, a exemplo do imaginário cristão do enobrecimento da metade superior do corpo, especialmente das regiões da cabeça e do coração5. Também há um componente de gênero que pontua essa visibilidade, no caso do corpo feminino: “[A] construção histórica sobre as subjetividades do corpo feminino criou um conjunto de regras de como ser/tornar-se bela e, com isso, adquirir a ‘preferência’, sobretudo, masculina. A beleza, vista do ‘alto’, privilegiava a contemplação os olhos, testa, colo, seios, lábios” (Freitas, 2012, p. 148). Não por acaso, os cabelos e a tez são os locais mais visados pelos investimentos dos produtos de beleza. O cinema também teria potencializado as atenções para a região superior do corpo feminino, a partir dos anos 1920. A grande tela superdimensionou o rosto de uma forma jamais vista, destacando sua expressividade e legando aos “membros inferiores” um lugar de menor destaque. As estrelas eram feitas de luz na tela do cinema, mas também de um rosto liso e jovial, que parecia aglutinar desejos e anseios coletivos, tomadas de uma aura deificada. “O corpo é o rosto, é o que identifica e nos diferencia dos outros. Trata-se de um dos dados mais significativos da modernidade”, sentencia Le Breton (2011, p. 46). Ainda segundo o autor, “(...) o rosto é a parte do corpo mais individualizada, a mais singularizada. (...) O indivíduo não é mais o membro inseparável da comunidade, do grande corpo social; ele se torna um corpo exclusivamente seu” (2011, p. 66, grifos originais). Por isso, nada de marcas e relevos indesejados, que poderiam trair a uniformidade desejada da pele, fazendo-a escapar das normas. Com o passar dos anos, a exigência de uma rotina e de um tempo para si é cada vez maior. Outros produtos seriam somados às penteadeiras e banheiros, tornando mais complexo o processo de embelezamento da pele. “A senhorinha deseja ficar bella?”, instiga o anúncio. “Use a pasta. Use o sabonete. Use o pó de arroz. Use a agua de colonia. Use as loções e extratos. Use a brilhantina. Use o creme cutis. DULCE” (O Povo, 24 de fevereiro de 1928). A Pomada Onken, por sua vez, requeria massagens corporais antes de deitar, “no rosto, nos braços, no collo, nas mãos, no pescoço,

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Conferir, a esse respeito: MACEDO, José Rivair Macedo. A face das filhas de Eva - os cuidados com a aparência num manual de beleza do século XIII. História (Universidade Estadual Paulista - UNESP), vol. 17-18, 1998-1999, pp. 293314 e LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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fazendo desapparecer como por encanto as manchas, sardas, rugas, espinhas, por mais rebeldes que sejam” (O Nordeste, 5 de julho de 1928). Tratamentos com loções, cremes, pastas, sabonetes, sabões e águas de colônia operavam, assim, outras mudanças ainda mais complexas, em especial os toques e massagens que podem ter levado a novas formas de se relacionar com o corpo, estimulando percepções, sensações e, eventualmente, desejos e pudores. A fotografia de uma mulher com os seios totalmente desnudos exibia, no Almanach do Ceará para o ano de 1920, o “Antes de uzar a Pasta Russa”, desenvolvida pelo doutor G. Ricabal. O produto aumentaria “progressivamente o BUSTO da Mulher, dando FORMOZURA E ELEGANCIA. DESENVOLVE, FORTIFICA E AFORMOSEA os SEIOS Fazendo CRESCER E ENDURECENDO rapidamente por mais molles e cahidos que sejam !!! (grifos originais)”. Do lado oposto à primeira imagem, a fotografia de uma senhora com profundo decote, “Dois mezes depois do tratamento” (Almanach do Ceará para o ano de 1920, 1919). Igualmente presentes e duradouras eram as preocupações com os cabelos. O Almanaque Bristol trazia, a cada ano, um novo anúncio do Tônico Oriental. Na edição para o ano de 1902, caracterizava os cabelos como o “primeiro e indispensavel elemento da belleza na mulher. A que possue este precioso dom da Natureza deve cuidal-o como rico thesouro”, mantido sempre “macio, lustroso, abundante” (Almanaque Bristol 1902, 1901). Uma bela cabeleira poderia até mesmo compensar a falta de atributos no rosto, “quando a natureza não se lhe ha mostrado pródiga” (Almanaque Bristol para o ano de 1905, 1904). O mesmo anúncio associa a formosura dos cabelos fartos a um manto, símbolo de pureza e até mesmo de santidade. “A côr do cabello importa pouco; o que importa, e muito, é que tenha lustre, que seja copioso, comprido, macio, sedoso, que forme como uma especie da cascata ou catarata que, descendo da cabeça, se espalhe por hombros e espaduas cobrindo-os como manto natural”. Os cabelos, histórico símbolo de sensualidade e de uma mulher à vontade para receber o homem6, ganhava respeitosos ares de “manto” – que, certamente, não faria a cabeça das moças modernas que preferiam o corte à la garçonne... Nas décadas seguintes, os cuidados com os cabelos continuariam a ocupar vários espaços nos jornais, incluindo produtos peculiares aos olhos de hoje, como a “loção de petroleo medicinal” Petrol, para “perfumar, ondular, amaciar e conservar os cabelos” (Correio do Ceará, 5 de abril de 1929). As sensações, além dos benefícios estéticos e do avanço das fórmulas, seriam destaque nos anos seguintes: “Cuidar do cabello é dever de toda mulher que sabe sua missão principal - ser

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Sobre o tema dos cabelos femininos, conferir: PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

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encantadora. (...) seus cabellos adquirirão reflexos poeticos, seductores e a leveza das plumas”, prometia o anúncio de Royal Briar (Correio do Ceará, 2 de fevereiro de 1935, grifos meus). Pouco a pouco, tornam-se mais recorrentes, maiores e chamativos os anúncios de cremes dentais. A Pasta Colgate trazia argumentos ligados à aceitação social pela beleza, com uma grande ilustração do rosto de uma mulher: “Todos admiram o brilho do seu sorriso” (...) E ella é a preferida. Em toda a parte, atrahe a elite. Isto pela belleza e graça de seu sorriso, que descobre duas fileiras de lindos e brilhantes dentes” (Correio do Ceará, 3 de julho de 1929). Já o Kolynos, em 1935, buscava legitimidade na ligação com a “sciencia moderna”, informando que ela “descobriu que milhões de germens se accumulam nos dentes, formando manchas horríveis (...)” (Correio do Ceará, 9 de março de 1935). Mas era a pele que dividia as atenções com os cabelos nos anúncios encontrados – os dois tipos compõem a maioria deste corpus documental. Manchas, sardas e cravos eram os principais males a serem combatidos, além de correções no tom e na textura, segundo o material analisado entre 1900 a 1940. Alguns exemplos são o Creme Bella Aurora que, além dos problemas acima, servia para “rejuvenescer, embranquecer” (O Nordeste, 4 de janeiro 1934), ou o Aristiolino (Correio do Ceará, 14 de janeiro de 1935), um sabão líquido eficaz para lavar os cabelos e deixar a pele “alva, delicada, aveludada”, com mais de “36 differentes usos”, incluindo a eliminação de espinhas, manchas, cravos, caspas, ferimentos. A ideia era clara: “Não cultive um jardim em seu rosto. Não o deixe encher-se de cravos, espinhas e manchas”, destacava o anúncio da Pomada BORO-BORÁCICA, a ser aplicada “em massagens antes de deitar” (Almanaque Saúde da Mulher para o ano de 1937, 1936). Além dos benefícios estéticos, alguns produtos destinados à tez prometiam um certo prazer na aplicação, já nos anos 1920. O Creme Simon, de Paris, anunciado no Correio do Ceará, “é tão agradavel para o rosto como uma caricia. Não seca nem engordura (...) Ele tornará mais aderente o vosso pó... o PÓ SIMON” (4 de abril de 1929). Apesar de diversos, os argumentos geralmente convergiam para os limites do poder feminino de intervir na própria aparência, que era vista como um dom divino, da natureza (Cf. Sant’Anna, 1995). Sem excessos, a mulher poderia apenas cultivar, acentuar, realçar – jamais transformar. “A maquillage”, afirmava o anúncio da Royal Briar em 1935, “é a arte de auxiliar a natureza com sabedoria. A mulher intelligente escolhe um rouge fino que convenha á côr da sua cutis. O Rouge Royal Briar, de ATKINSONS, realça os encantos femininos, dando á epiderme o matiz e o avelludado de um pecego maduro” (Correio do Ceará, 31 de janeiro de 1935, grifos meus).

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As cores de uma mulher que usa rouge e outros produtos destoariam das figuras femininas austeras e matronais, vestidas de preto, presentes nas poucas fotografias dos jornais do século XIX em Fortaleza. Estas, ao contrário dos formais pares masculinos, praticamente desaparecem da imprensa no século XX, dando lugar às moças e às mulheres de aparência jovial. Delineia-se o desejo de alargar o tempo presente (a mocidade e, por conseguinte, a beleza), retardando o futuro (a velhice), elaborando-se através dos cuidados do corpo uma outra vivência do tempo. As fórmulas elaboradas para a pele vão adquirindo outras propriedades para atender a essa crescente demanda de rejuvenescimento, com destaque para o combate às rugas. O Creme Vindobona, produzido no Rio de Janeiro – mas com representante no Ceará –, “(...) não é simplesmente um cold-cream. Não é somente um creme de toucador. Elle é mais celebre. Penetra pela pelle, tonifica os tecidos cutaneos. As rugas, mesmo as mais profundas ao redor dos olhos e da bocca, se alisam por completo” (Correio do Ceará, 16 de março de 1935). Ainda a respeito das rugas, o anúncio do Leite Turco apontava causas e consequências: “Quando [as rugas] aparecem nas jovens, é porque levam vida sedentária. (...) Não se descuide, uma pele mal tratada prejudicará sua vida SOCIAL” (Correio do Ceará, 2 de julho de 1940, grifo original). Vale ressaltar que, para os homens, as permanências foram mais longas no que concerne às aparências. Por muito tempo, rugas, barba e cabelos brancos eram ostentados, pois remetiam ao poder e inspiravam respeito. “Mesmo os jovens procuravam tornar suas aparências mais velhas para representá-las como de austeridade e respeitabilidade” (Mattos, 2011, p. 138). O envelhecimento (ou, no caso deles, a “experiência”), era atrelado ao ganho de posições sociais e de prestígio. A variedade de textos, imagens e anúncios de produtos ligados ao embelezamento pode ter fornecido elementos para o olhar sobre o corpo, que sublinha determinados traços físicos para os elencar como os principais indícios de beleza ou de fealdade feminina. Características essas que, por sinal, são alvos frequentes dos produtos de beleza mais comuns nos impressos: D. Feia: não lhe deu um só encanto. Tem-nos ao corpo, feio e magro, aos cabellos, ralos e poucos, aos pés, grandes e largos, ao nariz, longo e recurvo, aos olhos baços e fundos, á bocca, rasgada e enorme ás faces, descoradas e murchas (BA-TA-CLAN, edição especial nº 5 de 1926, grifos meus.). Sou tão feia... Os meus cabellos negros seriam lindos se fossem dourados, se tivessem um pouco de ouro e um pouco de sol. (...) os meus olhos? Seriam bellos se tivessem a suavidade asul do firmamento (...) Mas a minha bocca? Essa bocca sem expressão, nem grande nem pequena, de labios finos. (...) E as minhas mãos? Tão feias... Longas, rudes, que só conhecem os apertos leaes, mãos sem unhas polidas, apenas terminando em pontas finas, riscadas de linhas bizarras com a linha da Vida pequenina e a do Destino partida ao meio (O POVO, 21 jan 1928, grifos meus).

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Em Fortaleza, a avaliação dos atributos de beleza enfatizava igualmente a parte superior do corpo feminino. Não raro, as fotos de misses e das vencedoras de outras competições – como o “Concurso de Olhos” ou “A mais bela cabeleira à la garçonne”, nos anos 1920 – eram fotografadas da cintura para cima – o que sugeria a avaliação da formosura do rosto, cabelos, braços e busto atrelada a atributos como a graça e a simpatia, além de um crivo moral mais ou menos implícito. Embora o domínio da cena fosse o rosto, o corpo inteiro conquistava espaço nas fotografias realizadas pelos estúdios e publicadas nas revistas a partir dos anos 1930. A diversidade de poses e enquadramentos representa as novas formas de explorar visualmente o corpo feminino. A atitude moderna exigia mais movimento e leveza, ressaltados pelas roupas de tecidos finos que revelavam um pouco mais, incluindo peles sem manchas, lisas, homogêneas, imaculadas. O anúncio do Racé (Laboratório Vindobona, do Rio de Janeiro), método para eliminar pelos das axilas, dos braços e também das pernas, foi um dos poucos encontrados que se referiam diretamente aos “membros inferiores”. Era ilustrado com o desenho de uma mulher de maiô e sandálias altas sentada de pernas cruzadas sobre um frasco do produto. “A mulher moderna o detesta [o pelo]”, afirma a peça. Sem odor nem ardor, o pó fino à base de vegetais devia ser polvilhado sobre a pele umedecida, formando uma pasta a ser removida minutos depois “com água clara”. “Depilar com Racé é mais rápido que enfeitar-se” (Correio do Ceará, 11 de março de 1935). A gordura também se tornava um perigo, conforme a silhueta vai sendo mais requisitada. É quando o modelo do corpo leve e energético, em linha, ultrapassa o antigo corpo pesado e acumulador de reservas. O anúncio do remédio Emagrina ia direto ao assunto: “O excesso de gordura (...) diminue a efficiencia do trabalho e prejudica a esthetica (uma senhora ou moça gorda tem menos attrativos)” (A Jandaia, 2 de julho de 1927). Eliminar as gorduras supérfluas também era o objetivo dos “banhos de Esbeltez SAROWAL”, que prometiam o emagrecimento após a imersão na banheira com o conteúdo de um saquinho do produto diluído na água. “Pode-se diminuir de um a dois kilos em cada banho (...) O corpo adquire maior flexibilidade e bem estar” (Correio do Ceará, 9 de março de 1935). Portanto, com um corpo (quase) inteiro exibido, as avaliações e a normatização que definiam quem era bela vão deixando de contemplar somente o rosto para se estenderem às formas e medidas dos braços, da cintura, dos quadris e das pernas.

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Ba-Ta-Clan, 28 de agosto de 1926.

O autor do artigo “Possue a leitora as medidas exactas para ser classificada uma verdadeira Venus?” lamenta que “(...) só se leva em conta, nessas provas, o bello palminho de rosto da eleita” e comenta que, nos Estados Unidos, uma terra de “extravagâncias e originalidades, que escandalizam o resto do mundo”, os concursos considerariam outros critérios mais detalhados e que envolviam toda a silhueta – mais precisamente, as medidas do corpo feminino. E mostra, reproduzindo o “clichê” da eleita “Miss America”, os números adequados que apontam para cada parte do corpo e trazem uma precisão de até três casas decimais. Com o salto alto, a altura é de 1,68m; pescoço, 0,34m; braço, 0,255m; busto, 0,82m; cintura, 0,67m, quadris, 0,95m; coxa, 0,60m; jarrete (panturrilha), 0,34m; tornozelo, 0,20m. “Pena é que em nossa patria as convenções sociaes não nos permittem realizar um concurso como esse”, finaliza o autor, contrariado, sem saber que tais mudanças seriam apenas uma questão de tempo. Contudo, os desenhos – e desejos – nem sempre estavam livres de contradições quando comparados às fotografias de mulheres “reais”. Abdômen saliente, pernas e braços roliços, que rivalizam com a “linha” sugerida pelos traços da pena, eram correntes mesmo entre as vencedoras de concursos de beleza, como a senhorita Lasthemia Villar, capa de A Jandaia.

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Capa. A Jandaia, edição 53, 20 de junho de 1925.

Nas mulheres, prevaleciam as formas arredondadas. Não só no desenho do corpo, mas no sorriso e nos cabelos – tudo eram curvas. Moles e delicados, os corpos femininos apareciam na maioria das vezes sentados ou deitados, transmitindo a sensação de uma certa imobilidade. Eloquentes, as imagens marcavam o papel social da mulher e, em boa parte dos exemplos, representavam o olhar masculino. É possível pensar que essas visões de mulheres “modernas” também poderiam evocar sentimentos de estranhamento ou reprovação, não necessariamente portadores das noções de religiosidade ou disciplina, em uma cidade que aspirava civilidade mas não havia se distanciado dos hábitos e referenciais ligados ao meio rural – no qual a relação com o corpo não o supõe ainda como um ente autônomo e livre diante da natureza e da comunidade. Observa-se, portanto, que os padrões estéticos e seus contra-exemplos eram modelados nos textos e anúncios analisados seguindo os preceitos da moda e da civilidade, associando expectativas de saúde, beleza e bem-estar em seus discursos. Nas visibilidades progressivamente ampliadas do corpo feminino – atravessadas por uma série de saberes médicos e poderes ligados ao olhar moralizante do masculino – inscrevia-se o desejo de normatizá-lo e torná-lo “útil”. A visão de fragmentos do corpo feminino que privilegia seus atributos mais ligados à conquista de um pretendente é recorrente nos anúncios analisados. Cabelos, dentes, cútis e pernas recebem atenções e cuidados cada vez mais específicos, sob argumentos que evocam o pertencimento social e a felicidade conjugal, entre a liberdade e o constrangimento. As numerosas imagens de mulheres sorridentes e sedutoras ajudam a naturalizar e a organizar a percepção acerca da figura feminina, vista como enfeite ou deleite masculino. As publicidades sobre os produtos vão

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tecendo o perfil do que a mulher deve ser – ou até sentir. Longe do “prazer desinteressado” de Kant (desenvolvido em sua Crítica da Faculdade do Juízo), a proposta de beleza veiculada nos jornais e revistas tinha a intenção de despertava desejos e se aproximava mais da noção de Stendhal, de uma “uma promessa de felicidade” – enquanto a feiúra condenava ao extremo oposto. Também é relevante reiterar os movimentos de aproximação e distanciamento que os anúncios de beleza operavam em relação ao modelo de corpo médico, também fortemente presente na imprensa, redesenhando uma silhueta voltada à moda e que não necessariamente valorizava as amplas formas e o útero fértil que asseguravam a reprodução humana. Disputado entre poderes e modelado nas tensões entre os diversos saberes e códigos de distinção, o corpo feminino vai sendo conhecido, cuidado e hierarquizado dentro de uma perspectiva moralizadora e permeável aos sabores do promissor mercado de recursos de beleza. Entre novas e antigas liberdades e contrições, o corpo da mulher deveria se consagrar como um grande emblema de beleza, saúde, civilidade e prestígio social na Fortaleza que ambicionava modernidade, nas primeiras décadas do século XX. Referências CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Org.). História do corpo: da revolução à grande guerra. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. Vols. 1, 2, 3. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2002. FREITAS, Idalina Maria Almeida de. A moral dos Corpos: desejos, dispositivos e subjetividades em Fortaleza (1910-1950). 2012. 225 fl. Tese de Doutorado – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo. LE BRETON, David. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011. MATOS, Maria Izilda Santos de. Cabelo, barba e bigode: masculidades, corpos e subjetividades. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 17, n.02 p. 125-143, 2011. NAHOUM-GRAPPE, Véronique. Les canons de la laideur. Communications, 60, 1995. p. 29-47. Disponível em: . Acesso em 3 de junho de 2012. PERROT, Philippe. Le corps feminin: Le travail des apparences: XVIII-XIX siècle. Paris: Editions du Seuil, 1984. PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: reformas urbanas e controle social (18601930). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.

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SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La Recherche de la beauté. Une contribution à l’histoire des pratiques et des représentations de l’embellissement féminin au Brésil – 1900 à 1980, Université Paris 7, 1994. __________. Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. __________. A insustentável visibilidade do corpo. Labrys, estudos feministas. n. 4. ago/dez de 2003. Disponível em: . Acesso em: 2 de julho de 2013. __________. Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no Brasil. In: Políticas do Corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. pp. 121-139. SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999. VIGARELLO, Georges. História da beleza. O corpo e a arte de se embelezar, do Renascimento aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. __________. Le corps redressé: Histoire d’un pouvoir pédagogique. Paris: Jean-Pierre Delarge, 1978. Invented Visibilities: hierarchies in the female body and the production of standards of beauty and ugliness in Fortaleza (1900-1940) Abstract: The forms of modeling, acting, dressing or undressing, to protect and to discipline, and liberating the female body are steeped in culture and history, showing a process which is not always linear of transformations of demands and investments upon it. This communication, which presents a stage in the development of a research of a PhD in History at PUC-SP, discusses the elaboration of standards of beauty and ugliness combined with the different values assigned to certain parts of the female body. The study has observed, in advertisements, photographs and texts in illustrated magazines and newspapers in the city of Fortaleza, aspects which have been changed or maintained in relation to the desire of ordering the female body, defining hierarchies between the face, arms, legs, belly and other areas. Such criteria contribute in praising or denigrating certain appearances, as well as inspiring care and visibilities - sometimes unheard of - reflected in the consumption of beauty products, healing items, clothes and physical exercise. From this perspective, the standards of beauty and ugliness are not considered universal or immutable; they are perceived as procedural, social and cultural. Keywords: History of the body. Beauty/ugliness. Visibility.

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