A Linguagem Regional – Popular no Nordeste do Brasil

A LINGUAGEM REGIONAL – POPULAR NO NORDESTE DO BRASIL: ASPECTOS LÉXICOS Maria do Socorro Silva de Aragão Universidade Federal do Ceará INTRODUÇÃO...

6 downloads 349 Views 68KB Size
A LINGUAGEM REGIONAL – POPULAR NO NORDESTE DO BRASIL: ASPECTOS LÉXICOS Maria do Socorro Silva de Aragão Universidade Federal do Ceará INTRODUÇÃO Os estudos lingüísticos no Nordeste têm se destacado em determinadas áreas, em momentos diferentes. Assim, tivemos uma fase da Dialetologia e Geografia Lingüística e uma fase, atual, da Sociolingüística, cada uma dessas fases abordando aspectos específicos da análise lingüística da Língua Portuguesa, desde o fonético-fonológico, ao léxico e ao morfossintático. De alguns anos para cá tem surgido uma nova onda de estudos dialetais e sociolingüísticos com enfoque no aspecto léxico, mais precisamente na publicação de dicionários, vocabulários e glossários de falares regionais nordestinos, começando pela Bahia, com o do baianês, passando por Alagoas, com o do alagoanês, por Pernambuco, com o do pernambuquês, pelo Ceará, com o do cearês e pelo Piauí, com o do piauiês. Essa tendência atual segue uma tradição começada por Pereira da Costa (1937) com o Vocabulário pernambucano; Leon Clerot (1959), com o Vocabulário de termos populares e gírias da Paraíba; Raimundo Girão (1967) com o Vocabulário Cearense; Horácio de Almeida (1979) com o Dicionário popular paraibano; Raimundo Nonato (1980) com o Calepino potiguar - gíria riograndense; Tomé Cabral (1982) com o Dicionário de termos e expressões populares; Leonardo Mota (1982) com o Adagiário brasileiro e Florival Seraine (1991) com o Dicionário de termos populares - registrados no Ceará. Uma das características dos novos dicionários, vocabulários e glossários é que seus autores não são lexicógrafos ou lingüistas. São pessoas com outras formações profissionais: jornalistas, engenheiros, médicos, folcloristas ou pessoas curiosas que resolveram listar e publicar, em forma de dicionário, palavras e expressões populares que, crêem eles, são típicas daquele estado específico. Este trabalho faz uma rápida análise da estrutura desses dicionários, vocabulários e glossários regionais nordestinos. 1. LÉXICO, SOCIEDADE E CULTURA Ao se estudar a língua, os contextos socioculturais em que ela ocorre são elementos básicos, e, muitas vezes, determinantes de suas variações, explicando e justificando fatos que apenas lingüisticamente seriam difíceis ou até impossíveis de serem determinados, pois, no dizer de BARBOSA (1981:158): “Língua, sociedade e cultura são indissociáveis, interagem continuamente, constituem, na verdade, um único processo complexo...” No caso específico do léxico, esta afirmação é ainda mais verdadeira pois toda a visão de mundo, a ideologia, os sistemas de valores e as práticas socioculturais das comunidades humanas são refletidos em seu léxico. Ainda segundo BARBOSA (1993:1): “... o léxico representa, por certo, o espaço privilegiado desse processo de produção, acumulação, transformação e diferenciação desses sistemas de valores.” Para se apreender, compreender, descrever e explicar a “visão de mundo” de um grupo sócio-lingüístico-cultural, ou de um grupo de especialistas ou profissionais, o objeto de estudo principal são as unidades lexicais e suas relações em contextos.

O lingüista francês MATTORÉ ao estudar a sociedade francesa viu a política social, o jornalismo, as artes e os esportes através do que chamou palavras-chave, as que exprimem, numa sociedade, uma idéia, um ser, um sentimento que a sociedade reconhece como modelo, e as palavras-testemunho, como elementos em função das quais se hierarquiza e se coordena a estrutura da comunidade. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Todo ato ou todo objeto ideológico é sempre acompanhado, comentado, analisado, glosado por discurso, na medida em que a ligação que une linguagem e pensamento é uma ligação de unicidade. O discurso é determinado pelas condições sócio-históricas de sua produção, do mesmo modo que os objetos ou as formações ideológicas são condicionadas por pertencerem a um corpo social no momento de sua história. O léxico (dicionário, vocabulário, glossário), enquanto descrição de uma cultura, está no seio mesmo da sociedade, reflete a ideologia dominante mas, também, as lutas e tendências dessa sociedade. Assim, como vimos, não se pode estudar a língua sem relacioná-la com a sociedade e a cultura nas quais o falante está inserido. 2. OS DICIONÁRIOS, VOCABULÁRIOS E GLOSSÁRIOS REGIONAIS NORDESTINOS Vistos os aspectos regionais e sociais da linguagem, as relações entre léxico, cultura e sociedade e sua formalização lexicográfica em dicionários, vocabulários e glossários, surge a questão que divide os especialistas: os chamados dicionários regionais, são dicionários, são vocabulários ou são glossários? Se tomarmos a posição de MULLER-BARBOSA (1994), os consideraríamos vocabulários, uma vez que suas unidades se constituem norma no falar de um estado ou região e de uma classe definida socioculturalmente. Esta afirmação pode levar a outras discussões e maiores especificações, porém, para nosso objetivo, continuaremos a usar o termo dicionário, que é o utilizado pelos autores dos “dicionários regionais” que iremos analisar. O Brasil é tido como um país-continente, com diferenças regionais e socioculturais imensas e, por isso mesmo, a língua portuguesa, em nosso país, apresenta uma diversidade bastante significativa, tanto regional quanto social, especialmente em relação ao léxico. Essa diversidade muitas vezes é característica de um estado específico, outras vezes se estende para toda uma região, e é nesse aspecto que vamos ver como se comportam os dicionários regionais populares da região nordestina. Analisamos oito dicionários: da Bahia, de Alagoas, de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, do Ceará, do Piauí e do Maranhão. Desses, dois são mais tradicionais, o da Paraíba, de Horácio de Almeida, historiador e dicionarista e o do Rio Grande do Norte, de Raimundo Nonato, cronista riograndense do norte. Os outros seis são mais novos: o da Bahia, de Nivaldo Sariú; o de Alagoas, de Elza Cansanção Medeiros, jornalista e militar, ex-combatente na Itália; o de Pernambuco, de Bertrando Bernardino, engenheiro, o do Ceará, do engenheiro Marcus Gadelha, o do Piauí, do jornalista Paulo José Cunha e o do Maranhão, de Domingos Vieira Filho. Esses têm nomes de baianês, alagoanês, pernambuquês, cearês e piauiês, palavras criadas pelos autores para se referir aos falares desses estados. • Apenas o do Ceará e o da Bahia não apresentam exemplos ou abonações, os demais vêm com contextos que esclarecem melhor o conceito;

• Deles, apenas o da Paraíba tem a categoria ou classe gramatical das palavras e expressões; As palavras e expressões vêm na forma como são faladas e não na ortografia • padrão. Muitas vezes, estão numa transcrição quase fonética, como em arrudiar, (arrodear) balai (balaio), caboco (caboclo); Os verbos não vêm na forma infinitiva, e os nomes não vêm no masculino • singular, como de praxe nos dicionários; • Os dicionários de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Piauí são de médio porte; os da Bahia, Alagoas, Ceará e Maranhão são pequenos, do tipo livro de bolso; • Os da Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Maranhão têm um caráter mais sério, lingüístico e mesmo lexicográfico. Os da Bahia, Ceará, Piauí e Pernambuco são mais descontraídos, de gozação, sem qualquer preocupação lexicográfica. 2.1. Exemplos de formas comuns em alguns dicionários Abestado - abobalhado, bobo, otário, idiota. (CE, PI). A PB, BA e PE apresentam a variante abestalhado. Aurélio Buarque registra como brasileirismo a forma abestalhado. Aperreado - irritado, agastado, angustiado, contrariado, afobado, atormentado, cheio de preocupações.( AL, PB, CE, PE).O MA apresenta a variante Avexado. Aurélio Buarque registra como brasileirismo. Arre-égua - interjeição que pode significar qualquer coisa, a depender do tom de voz e da ocasião: alegria, irritação, surpresa, enfado, contrariedade.(CE) Há ainda as variantes Ai-égua (AL), Arre-lá (PI), Arre-Elza e Arre-ema (CE). Aurélio Buarque registra apenas a forma arre, para designar cólera, enfado. Assanhada - moça exibida, saliente, namoradeira, avoada, fogosa, espevitada, sem compostura, sem termos de gente. (AL, RN, PB, PE). Há, também, o conceito de despenteada. Aurélio Buarque registra como brasileirismo (2) irrequieto, buliçoso, turbulento, e como familiar (4) erótico, namorador. Dar fé - perceber, observar, dar por si, reparar, tomar tento. (PB, RN, CE, PI).Aurélio Buarque não registra. Descansar - dar à luz, parir, ter filho. (BA, AL, PB, RN, CE, PI). Aurélio Buarque registra como brasileirismo. Gastura - indisposição estomacal, enjôo, náuseas, sensação de fome, sensação desagradável produzida pelo tato, audição ou ao sabor. (BA, AL, PE, PB, RN, CE, PI, MA).Aurélio Buarque registra como brasileirismo. Inticar - ter prevenção ou má vontade contra alguém, implicar, provocar, ficar de marcação. (BA, AL, PB, RN, PI). Aurélio Buarque registra como provincianismo lusitano e açoriano, forma enticar. 2.2. Exemplos de formas específicas de alguns dicionários 4.2.1. Dicionário do Baianês

™Abafa banca - espécie de picolé caseiro ™Arabaca - carro velho ™Bibiano - lamparina

4.2.2. Dicionário de Alagoanês Abaferro – trabalho intenso Bulutrica – algo incompreensível Cafinfa – pessoa impertinente,ranzinza

4.2.3. Dicionário de Pernambuquês

™Alfenim - pessoa de modos delicados ™Buruçu - confusão ™Ferrolho - homem fiel a uma mulher 4.2.5. Calepino Potiguar

™Café de parteira – café frio, choco ™Dizer missa – encher o tempo com conversa fiada ™Espingarda – concubina, amancebada 4.2.7. Dicionário do Piauiês

™A caldo de pinto – chateado, irritado ™Cismar da boneca – teimar ™Furupa – farra, algazarra

4.2.4. Dicionário Paraibano Acender a venta – farejar vantagens Bacalhau – mulher alta e magra Caixa dágua – cachaceiro, beberrão 4.2.6. Dicionário do Ceares Carne de tetéu - pão duro Chapéu de touro – chifre Fuampa – mulher da vida 4.2.8. Dicionário do Maranhão Agafe - alfinete de segurança Lençol - mau pagador Maranha - lábia, falácia

3. CONCLUSÃO Pela rápida análise que realizamos nos oito dicionários regionais do Nordeste, pode-se concluir que as palavras e expressões consideradas de cada um desses estados, na realidade a grande maioria é encontrada, também, nos demais estados do nordeste. Das treze palavras analisadas, apenas três não são registradas no Aurélio, as demais são registradas como brasileirismo, dessas, apenas três são registradas como brasileirismos do Norte e/ou do Nordeste e apenas uma diz que é uma forma popular. Uma pesquisa mais aprofundada poderá nos dá uma visão melhor do que se pode considerar léxico regional nordestino e léxico de linguagem popular brasileira e não apenas léxico nordestino. Isto poderá ser mais um caminho para comprovar uma de nossas hipóteses ao trabalharmos com linguagem regional/popular, ou seja, para nós as diferenças diatópicas não são muito significativas. O que é mais marcante, são grandes diferenças diastráticas no léxico da língua portuguesa do Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Horácio de. Dicionário popular paraibano. Campina Grande: Grafset, 1984. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. A linguagem regional popular na obra de José Lins do Rego. João Pessoa: FUNESC, 1990. _____ et al. Glossário aumentado e comentado de a Bagaceira. João Pessoa: A União, 1984. BARBOSA,M.A. O léxico e a produção da cultura: elementos semânticos. I ENCONTRO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DE ASSIS. Anais. Assis; UNESP, 1993. _____. Dicionário de língua, vocabulários técnico-científicos, glossários: estatuto semânticosintáxico das unidades-padrão. Estudos Lingüísticos XXIII. Anais de Seminários do GEL, v. I . São Paulo: 1994. BERNARDINO, Bertrando. Minidicionário de pernambuquês. 2ª ed. Recife: Bagaço, 1996.

CLEROT, L.F.R. Vocabulário de têrmos populares e gíria da Paraíba ( Estudo de glotologia e semântica paraibana). Rio de Janeiro: s.ed. 1959. CUNHA, Paulo José. Grande enciclopédia internacional de piauiês. s.n.t. GADELHA, Marcus. Dicionário de cearês. Fortaleza: Multigraf, 1999. GARCIA. Tarcísio. Dicionário do ceares.As palavras, as expressões e como usá-las. Fortaleza: Livro Técnico.2000. GIRÃO, Raimundo. Vocabulário popular cearense. Fortaleza: UFC, 1967 GONÇALVES, J.R. Pequeno vocabulário popular do Maranhão.São Luís: s.ed.,s.d. INÁCIO FILHO, José. Vocabulário de termos populares do Ceará. Etimologia e tradições. Fortaleza: Livro Técnico, 2001. LARIÚ, Nivaldo. Dicionário de baianês. Salvador: s.ed.1991. MEDEIROS, Elza Cansanção. Dicionário de alagoanês. Maceió: UFAL, 1997. NAVARRO, Fred. Dicionário do nordeste. 5000 palavras e expressões. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. NONATO, Raimundo. Calepino potiguar- gíria riograndense. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1980. PEREIRA DA COSTA, F.A. Vocabulário pernambucano. Revista do Instituto Archeológico, Histórico e Geográphico Pernambucano - Separata do volume XXXIV. Recife: Imprensa Oficial, 1937. PONTES, Carlos G. Super dicionário de ceares. Fortaleza: Livro Técnico, 2000. SERAINE, Florival. Dicionário de termos populares - registrados no Ceará. Fortaleza: Stylus, 1991. VIEIRA FILHO, Domingos. A linguagem popular do Maranhão. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1979.