AS ARTES INDÍGENAS E A DEFINIÇÃO DA ARTE

Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011. 143 AS ARTES INDÍGENAS E A DEFINIÇÃO DA ARTE Fabricio Vaz Nunes1...

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AS ARTES INDÍGENAS E A DEFINIÇÃO DA ARTE Fabricio Vaz Nunes1 [email protected]

Resumo O artigo aborda as perspectivas da História da Arte sobre as artes indígenas em suas correlações com as concepções contemporâneas e as teorias institucionais da arte. Palavras-chave: Arte indígena; Estética – século XX; Teoria institucional da arte. Abstract The article approaches the perspectives of Art History over Brazilian native arts, in its correlations with contemporary notions and the institutional theories of art. Keywords: Indian Art; Aesthetics – the twentieth century; Institutional Theory of Art.

Em qualquer livro de história da arte brasileira, encontraremos um capítulo dedicado à “arte indígena”. Mas a consideração de certos objetos produzidos por culturas que não possuem o conceito de “arte” da mesma forma como nós o entendemos, como “arte”, apresenta variados problemas. Para nós, “arte” (no sentido mais tradicional) é uma atividade ligada à produção de um certo tipo de objetos que têm como principal função a de serem contemplados; esta contemplação ocorre, preferencialmente, em locais separados e específicos, distantes das interferências do mundo cotidiano. O museu e a galeria são ambientes limpos, silenciosos, onde as obras de arte podem ser apreciadas da forma que se considera a mais adequada à sua função maior, que é a contemplação estética. Quando falamos de “arte indígena”, porém – ou de “artes indígenas”, termo mais adequado por atentar para a imensa variedade de estilos e manifestações que cabem na definição −, as coisas são completamente outras. Isso porque, se a considerarmos em relação ao seu “habitat” natural, os objetos das assim chamadas “artes indígenas” não “funcionam” da mesma forma que a arte com que estamos hoje acostumados, ou seja, a arte ocidental, que nasce a partir da experiência européia. As dificuldades presentes no tema já eram claras a Ulpiano Bezerra de Meneses, em seu capítulo da História Geral da Arte no Brasil organizada por Walter Zanini: A primeira dificuldade no desenvolvimento do tema deste capítulo é a própria definição de seu objeto. É preciso evitar noções associadas ao fenômeno artístico na civilização ocidental, em que a produção intencional (ou a “conversão” de produção originada de outro contexto), a circulação e o consumo de certos bens obedecem a tal especificidade, que é possível falar em categorias como objetos artísticos, 1

Professor de História da Arte da Escola de Música e Belas Artes do Paraná – EMBAP e doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.

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artista, colecionador de arte, marchand e assim por diante. Dentro dessa perspectiva, é totalmente inadequado presumir uma atividade artística para as culturas primitivas e, portanto, tentar identificar uma classe de produtos de arte ou buscar especialização na sua manufatura. Por outro lado, remeter, como solução alternativa, todos e quaisquer fenômenos formais relevantes, nessas culturas, a um contexto cerimonial e a conteúdos simbólicos é praticar outra forma de reducionismo que nada pode esclarecer (MENESES in ZANINI, 1983, p. 21).

O problema, portanto, remete à forma como definimos arte e como podemos, então, falar de artes indígenas para a produção de povos que não têm nenhuma relação com a prática social que designamos com este termo. Não se pode negar, porém, que a contemplação de variados produtos e artefatos indígenas (sem falar da pintura corporal, da dança, da música etc.) revela evidentes qualidades formais de beleza, equilíbrio e elaboração formal que são típicas daquilo que chamamos “arte” – especialmente para a sensibilidade moderna, mais inclinada a reconhecer a artisticidade da produção das sociedades ditas “primitivas”. Por outro lado, reconhecer algo como “arte” também possui um sentido de qualificação positiva, de atribuição de importância, de forma que muitas vezes a compreensão da arte das sociedades “primitivas” tem algo de um mea culpa da cultura ocidental, condescendente e paternalista com relação a culturas que sofrem um processo de dissolução frente ao domínio econômico e cultural do “homem branco”. Invertendo as posições e deixando a culpa de lado, é preciso admitir que incluir algo no universo da arte também é exercer uma forma de dominação: uma borduna cerimonial Wayana, com suas evidentes qualidades de inventividade e execução formal, só se torna “arte” (no nosso sentido) depois de fazer parte de uma exposição ou de um livro de história da arte. Originalmente, ela não tem nada a ver com este universo que inclui a figura do artista, do colecionador, do crítico de arte, do espaço expositivo do museu ou da instituição: ela vem de um mundo completamente diferente. Ao tomar este objeto como um objeto artístico, ele passa a fazer parte de um mundo nosso, em que as nossas categorias estão em funcionamento: em outras palavras, considerar as artes indígenas como “arte” sem maiores problematizações é um reducionismo simplista, que esconde uma forma de colonização e domínio benevolente. Outro reducionismo para o qual Ulpiano nos alerta é considerar toda a produção visualmente relevante (“bela”, digamos) dos povos indígenas apenas do ponto de vista da sua significação cerimonial ou simbólica – pois isso não explica, também, o porquê desta produção ser visualmente relevante, ou bela. Transferindo esta abordagem para a arte ocidental, é como se alguém falasse da pintura de um determinado período e lugar apenas do ponto de vista dos complexos cerimoniais de que ela participa: do ritual da vernissage, da visita ao museu, do processo de escolha por parte do colecionador e das relações sociais entre comprador, marchand e artista, entendidas como uma série de rituais sociais que

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envolvem adulação, argumentação e troca econômica. É um ponto de vista válido, mas reducionista, porque não contempla o objeto artístico como tal. A consideração das artes indígenas traz à tona, portanto, uma problemática relacionada à forma como entendemos e operamos com o conceito de arte. Para vários antropólogos, o grande diferencial é o fato de que, entre os povos indígenas inexiste uma esfera específica de objetos que possuem uma função exclusivamente estética, ou seja, existem apenas para serem contemplados (cf. MELATTI, 1993, p. 163). O “objeto estético”, ou seja, o objeto cuja única função é, supostamente, servir à contemplação, é uma invenção ocidental que veio se formando a partir do Renascimento e se constitui positivamente no século XVIII (DIAS in AGUILAR, 2000, p. 40): neste processo, a arte veio deixando, progressivamente, de assumir outros papéis que não o de proporcionar a contemplação estética, tornando-se arte autônoma. Nas sociedades indígenas não existe uma arte “autônoma”, que só serve para ser contemplada, como percebeu o professor Ulpiano: Parece-nos que, nestes casos todos, a deficiência principal esteja em se considerar uma categoria à parte de objetos – definidos precisamente como objetos artísticos. Entre outros inconvenientes, cumpre apontar o estabelecimento de funções unívocas para objetos ou categorias de objetos. Ora, a transposição de significados e usos, detectada pelas relações de contexto, ou a associação freqüentemente comprovada, de objetos de “valor estético” a usos não só cerimoniais e ideológicos, mas também econômicos e tecnológicos, invalida tal postura. Assim, um machado de pedra é tanto um utensílio para o trabalho agrícola, p. ex., quanto uma oferta funerária, o que se explica apenas pelo contexto, sem o qual a significação efetiva do objeto é irrecuperável (MENESES in ZANINI, 1983, p. 21).

Ulpiano introduz, aqui, a questão do contexto, fundamental para a definição tanto da arte indígena como da arte no sentido mais tradicional. É possível pensar numa definição de “arte” como uma atividade que cria uma série de objetos que, ao circular dentro de determinados contextos, passam a ser considerados “especiais”: nos contextos do ateliê do artista, do museu, da galeria de arte, estes objetos são admirados, analisados, fotografados, comercializados a preços que superam em muito o seu mero valor material. Uma “aura” de sacralidade os envolve: então, eles tornam-se “arte”. Num certo sentido, arte é aquilo que as pessoas, ou ao menos um certo grupo de pessoas, acredita ser arte; esta definição – que é a essência da chamada teoria institucional da arte, que discutiremos ao longo deste trabalho – é verdadeira, embora possa soar cínica e desencantada. Afinal de contas, no contexto da arte contemporânea, se alguém convencer as pessoas certas de que qualquer coisa é arte – absolutamente qualquer coisa, como seus próprios excrementos dentro de uma lata – esta coisa passa a ser arte. Por outro lado, por razões internas ao circuito artístico, se hoje um jovem artista resolver tentar convencer as “pessoas certas” de que seus excrementos enlatados são arte, não terá sucesso, pelo simples fato de que alguém já fez isso antes (o italiano Piero Manzoni, em 1961).

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Para a teoria institucional, existe um “mundo da arte”, composto por artistas, críticos, galeristas, jornalistas, professores e estudantes de arte, que é quem define o que é arte ou não é, de forma mais ou menos coletiva. Esta noção surgiu a partir das considerações de Arthur Danto em seu célebre texto The artworld (1964), em que ele afirma que certos objetos são considerados “arte” em razão da existência de uma teoria artística, que justifica, através da história e da filosofia, a consideração de um objeto qualquer – como a Fonte de Duchamp, um mero urinol de louça – como arte (cf. DANTO, 2005, p. 17). Voltando às culturas indígenas, entre elas não existe este contexto específico que define o que é arte e o que não é; não existe uma “teoria da arte” em sentido estrito; em outras palavras, entre as culturas indígenas, não há um “mundo da arte”, porque não há a arte como atividade diferenciada da produção de objetos “úteis”. Quem entende a “arte indígena” como “arte”, portanto, não são “eles” – somos nós. Se o estudo das artes indígenas faz pensar na problemática definição da arte tal como a entendemos, por outro lado revela a questão inversa, que indaga acerca das razões pelas quais existe esta necessidade de se considerar a produção dos povos indígenas – como de outros povos, igualmente distantes da experiência artística européia − como arte. Em outras palavras, os povos indígenas não precisam da nossa definição de arte, nem da nossa teoria e história da arte, para embasar a sua produção artística; somos nós que, por alguma razão, precisamos incluir seus artefatos, canções, danças e pintura corporal, com seu alto grau de elaboração formal e seus significados culturais específicos, no nosso universo artístico. A discussão que aqui desenvolvemos tem como ponto de partida a suposição de que o “mundo da arte” ocidental, de raiz eurocêntrica, incorpora os produtos indígenas carregados de qualidades formais e simbólicas, qualidades que chamamos de estéticas, também para definir, justificar e recolocar em perspectiva a nossa própria atividade artística. Uma abordagem possível da arte indígena é fornecida pelo antropólogo Darcy Ribeiro: Que é arte índia? Com esta expressão designamos certas criações conformadas pelos índios de acordo com padrões prescritos, geralmente para servir a usos práticos, mas buscando alcançar a perfeição. Não todas elas, naturalmente, mas aquelas entre todas que alcançam tão alto grau de rigor formal e de beleza que se destacam das demais como objetos dotados de valor estético. Neste caso, a expressão estética indica certo grau de satisfação dessa indefinível vontade de beleza que comove e alenta aos homens como uma necessidade e um gozo profundamente arraigados. Não se trata de nenhuma necessidade imperativa como a fome ou a sede, bem o sabemos; mas de mas de uma sorte de carência espiritual, sensível, onde faltam oportunidades para atendê-la; e de presença observável, gozosa e querida, onde floresce (RIBEIRO in ZANINI, 1983, p. 49).

Assim, as expressões artísticas indígenas provém diretamente da sua vida diária e cotidiana: não existe uma esfera separada para os objetos ditos belos, mas sim “criações voltadas para a perfeição formal, cuja fatura, desempenho ou simples apreciação lhes dá gozo, orgulho e alegria.” (RIBEIRO in ZANINI, 1983, p. 49) Ainda de acordo com Darcy

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Ribeiro – que não disfarça a sua admiração pelas culturas indígenas −, a perfeição buscada na confecção dos objetos de uso supera, em muito, o que seria necessário para a sua simples função. Isso significa que a “função efetiva” e a “função estética” se confundem: a perfeição buscada na realização dos objetos ditos “úteis” também é de ordem formal-visual; daí que, para Ribeiro, toda a produção de objetos por parte dos índios seja artística, pois “o que caracteriza a arte índia, entre as artes, é este modo generalizado de fazer todas as coisas com uma preocupação primacialmente estética” (RIBEIRO in ZANINI, p. 50). Esta característica da produção indígena – a equiparação entre o valor de utilidade e o valor estético – também explicaria, segundo ele, o seu conservadorismo: uma flecha de caça, por exemplo, precisa ser executada de acordo com certas características funcionais bastante precisas para que funcione efetivamente: não há espaço, na execução desta ferramenta, para inovações formais que eliminariam a sua função prática. As transformações, assim são muito lentas, quase imperceptíveis: predominam então os valores de perfeição prática e tradição formal, em quase todas as manifestações formais indígenas. Darcy Ribeiro tem o bom senso, porém, de perceber o quanto a percepção do objeto de fabricação indígena é percebido como “arte” por parte do observador externo: do antropólogo, do etnólogo – e, por extensão, por parte do historiador da arte. É de se perguntar, nesta altura, se não seria um valor cultural nosso a idéia de coisa artística. Não seria isso uma espécie de supervalorização que atribuímos a algumas criações? Entre nós é nítida a diferença entre objetos pretensamente únicos, criados por especialistas, dentro da categoria de coisas destinadas às coleções privadas ou a museus e tudo que se destina ao uso corrente. No mundo indígena ela existe para o etnólogo que olha, reconhece e colhe os objetos „artísticos‟; não tanto para os índios que os têm e os usam junto com todos os outros. Esclareça-se aqui que, apesar de usá-los conjuntamente, os índios apreciam distintivamente os espécimens que atendem melhor aos requisitos formais de perfeição de cada gênero e melhor expressam o padrão tradicionalmente prescrito, como também reverenciam muito as pessoas que conseguem fazê-lo com tamanha perfeição. Mas ninguém pensaria lá em colecionar objetos artísticos. (...) O artista índio não se sabe artista, nem a comunidade para a qual ele cria sabe o que significa isto que nós consideramos objetos artístico. O criador indígena é tão-somente um homem igual aos outros, obrigado como todos às tarefas de subsistência da família, de participação nas durezas e nas alegrias da vida e de desempenho dos papéis sociais prescritos de membro da comunidade. É, porém, homem mais inteiro, porque além de fazer o que todos fazem, faz algumas coisas notoriamente melhor que todos (RIBEIRO in ZANINI, p. 50).

Darcy Ribeiro vê a arte índia como uma atividade profundamente integrada na vida cultural, sem que isso defina uma esfera diferenciada, específica de atividade ou pensamento. A arte flui ali de uma cultura homogênea, como um componente dela, harmonizado com todos os outros, por um longuíssimo esforço de integração recíproca. Um componente co-participado por todos os membros da comunidade que porta e fecunda aquela cultura, inclusiva sua arte. É uma arte mais comunal que individual, em cujo seio o artista nem sequer reivindica para suas obras a condição de criações únicas e pessoais. Sendo apenas genuínas, elas constituem reiterações de elementos pertencentes à comunidade, tão dela que expressam mais sua tradição do que a personalidade do próprio artista (RIBEIRO in ZANINI, p. 51).

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Assim, ele define três funções elementares para os produtos indígenas, com suas peculiares características estéticas: a de diferenciar o mundo dos homens regidos pela conduta cultural que se constrói a si mesma, do mundo dos bichos comandados por impulsos inatos, inevitáveis e incontroláveis; a de diferenciar aquela comunidade étnica de todas as outras, proporcionando um espelho em que ela se vê e se contrasta com a imagem etnocêntrica que tem de outros povos; cumpre, ainda, a função de dar aos homens coragem e alegria de viver num mundo cheio de perigos, mas que pode ser melhorado pela ação dos homens (RIBEIRO in ZANINI, p. 52).

Mas, por outro lado, ele não se preocupa em definir o que seja “arte” em geral. Para José Braga Fernandes Dias, curador da exposição Artes Indígenas na Mostra do Redescobrimento Brasil 500 anos, realizada em 2000, esta despreocupação é comum entre os antropólogos (DIAS in AGUILAR, 2000, p. 38). Esta afirmação deve ser matizada, levando-se em conta a forma como a antropóloga Lux Vidal define e problematiza a “visão antropológica” do objeto artístico: De acordo com uma visão antropológica, afirma-se que o processo estético não é inerente ao objeto: está ancorado na matriz da ação humana. É possível, então, afirmar que o fenômeno estético é feito, digamos, de experiências em tom qualitativo. O produtor, a platéia e o objeto interagem dinamicamente, cada um contribuindo para a experiência, que é, ao mesmo tempo, estética e artística. Cabe perguntar até que ponto esses valores são culturalmente condicionados e até que ponto são algo humanamente mais universal. De modo geral, para a antropologia interessa o culturalmente definido sem que, no entanto, descartem-se as possibilidades de investigação a partir de conceitos elaborados pela psicologia, pela teoria da comunicação ou pela estética (VIDAL,1992, p. 281),

Perceba-se que não se trata de um desinteresse pela problemática da definição da arte, mas por um ponto de vista que privilegia o “culturalmente definido”, ou seja, pela relação da arte com o conjunto da cultura humana. Assim, se as artes indígenas são ao mesmo tempo práticas, funcionais e estéticas; se são ordenação do mundo, sistema de significação simbólica, indicação de status, transmissão de conhecimento e realização estético-formal, isso efetivamente não é um problema, do ponto de vista antropológico. A arte é entendida como uma prática social entre outras, e a sua indiferenciação das demais esferas da atividade humana é mais incentivo do que empecilho para o seu estudo. Essa indiferenciação permite compreender ainda melhor os elementos culturais que constituem o homem enquanto ser social, histórico e cultural em sentido pleno e uno; para a sociedade ocidental, por outro lado, deve-se constituir um “campo” específico da artisticidade, relativamente desvinculado (ou que se crê desvinculado) das demais atividades e interesses humanos – é o chamado “campo artístico”, termo com o qual o sociólogo Pierre Bourdieu indica esse conjunto de práticas, discursos, indivíduos e funções envolvidos na instituição “arte”.

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Voltamos, portanto, aos postulados de Danto, que a rigor excluiriam a arte indígena – esta arte sem artworld e sem teoria “artística” − e que também deram origem à chamada teoria institucional da arte. Uma das respostas às suas formulações é a de Morris Weitz, de que José António Braga Fernandes Dias faz uso no catálogo da exposição Artes Indígenas, por ocasião da Mostra do Redescobrimento, em 2000: Morris Weitz (1978) escreve: “O problema com que se deve começar não é ‘o que é arte?’ mas ‘que espécie de conceito é arte?” Quer dizer: “arte” não é uma classe de objetos existentes no mundo para serem identificados e circunscritos, mas uma categoria do nosso pensamento e da nossa prática. Arte é um conceito, e não um fenômeno, e, como todos os conceitos, transforma-se e muda (DIAS in AGUILAR, 2000, p. 38).

Segundo Weitz, não há condições para uma definição da arte, e os seus exemplos só podem ser associados por uma “semelhança de família” (DICKIE, 1969, p. 253), empregando um termo derivado da filosofia de Wittgenstein. Weitz, na verdade, afirma que o conceito “arte” é um “conceito aberto”, cuja definição filosófica mais estrita está fadada ao fracasso (WEITZ, 1956). Na interpretação de Dias, as ideias de Weitz expressas em seu artigo O papel da teoria na estética sofrem uma distorção, flagrantemente contraditória: primeiro ele afirma ser a arte “uma categoria do nosso pensamento e da nossa prática”, e depois afirma que “arte é um conceito, e não um fenômeno”. Como pode algo ser simultaneamente uma prática e um conceito? E como pode a arte não ser um fenômeno, já que a própria definição de fenômeno é a de algo que sucede, algo que muda e se transforma? A confusão irresolvida que Dias faz entre prática e conceito é, a meu ver, o grande problema das considerações contemporâneas sobre a arte, assim como de muitas poéticas de tendência “conceitual”, e que vamos buscar resolver a seguir – sem perder de vista as suas conseqüências para as considerações sobre as artes indígenas. Digamos de forma taxativa: a arte não é um conceito: é uma prática, e como prática, é uma geradora de uma série de fenômenos. Falar de “conceito de arte” é algo diverso de falar de arte no sentido prático, material, factual: com o conceito, buscamos englobar uma diversidade de manifestações dentro de um mesmo instrumento lógico. Dizer que “arte é um conceito” é como dizer que “cadeira é um conceito”: certamente o termo “cadeira” é um conceito, mas uma cadeira real não é um conceito – é um objeto. Por outro lado, a própria noção de “conceito”, tão frequentemente invocada na teoria artística contemporânea, também não existe fora da esfera prática, pois um conceito não existe fora de um enunciado, ou seja, o conceito faz parte de um ato comunicativo: essa é a grande lição de Bakhtin para a filosofia da linguagem, que de certa forma ressoa em Wittgenstein quando ele afirma que “o significado é o uso”. Os conceitos não são absolutos, pois não existem fora de práticas discursivas, de situações concretas de uso dos signos e de intercâmbio entre falantes. Quando nós,

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ocidentais, falamos em “arte”, estamos, afinal de contas, falando com alguém, ou seja, entrando em um processo comunicacional que se dá de forma efetiva e concreta, em tempos e espaços específicos dentro da realidade social. O discurso sobre a arte é uma prática social, assim como a teoria artística é uma prática comunicacional, formada pela conversa no museu, na galeria, no boteco, como também pelos textos jornalísticos, críticos, pelos artigos acadêmicos ou por meras opiniões expressas verbalmente. Esta discursividade que envolve o fenômeno artístico não deixa de existir entre os índios, para quem as práticas que chamamos artísticas possuem uma série de termos específicos que definem e estabelecem categorias, valores, assim como mitos fundadores que definem a razão de ser da sua intensa atividade formadora. A pintura corporal do Wayana, por exemplo, configura uma verdadeira ordenação do mundo: Essa ordenação possui como objeto primordial o ser humano, o único capaz de mudar sua decoração corporal, o qual se adapta às mudanças temporais básicas de sua vida social: o cotidiano e o ritual. Os demais seres do universo estão condenados a uma única e perpétua ornamentação, referida sob o termo timiriké “provido de sinais”. Cada um desses domínios é representado paradigmaticamente por um ente cuja pintura corporal identifica a si e a sua categoria. Assim, o pontilhado representa o couro malhado das onças e igualmente o domínio da natureza; os triângulos referem-se às borboletas e ao mundo dos espíritos; o listrado representa a “cobra-grande” enquanto representação do arco-íris e o reino do sobrenatural. O pontilhado, os triângulos e o listrado permitem visualizar e memorizar o mapa cosmológico e conferem requinte estético à ornamentação, visto que constituem as unidades mínimas de significado e que preenchem os campos vazados da decoração dos artefatos (VELTHEM in VIDAL, 1992, p. 54).

Os motivos decorativos são denominados mirikut e estão associados à sua mitologia; assim, a título de exemplo, os tuluperê mirikut são os motivos da “cobra grande” e aparecem em todo tipo de objeto funcional. Outros motivos, relacionados ao xamanismo (iorok imirikut, “motivos dos espíritos”) não são considerados como uma decoração, mas como uma forma de comunicação entre o aprendiz e os espíritos. Já aqueles ligados à guerra (urinuntop imirikut) estão ligados a seres que representam, miticamente, os guerreiros, com a onçapintada (kaikui) e o gavião (piá) (VELTHEM in VIDAL, p. 58). A simples existência destes termos indica como, mesmo em um contexto em que o “exclusivamente estético” inexiste, existe um discurso, um pensamento sobre a produção que podemos chamar de artística. Em outras palavras, não há uma teoria artística, mas isso não significa que os Wayana não conversem sobre aquilo que nós chamamos de arte. É precisamente na indiferenciação entre a esfera do estético e as demais esferas da atuação e do pensamento humano que reside a chave para compreendermos a razão pela qual o nosso discurso estético precisa das artes indígenas. Sobre a pintura corporal dos Kayapó-Xikrin, a antropóloga Lux Vidal (1992, p. 144) afirma: “a pintura possui função essencialmente social e mágico-religiosa, mas também é a maneira reconhecidamente estética

(mei)

e

correta

(kumrem)

de

correspondência entre o ético e o estético”.

se apresentar.

Estabelece-se

aqui

uma

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Articulando as dimensões ética e estética da sociabilidade humana, a pintura corporal assume um papel fundamental na construção de uma consciência individual e coletiva: Exige-se muito tempo e prática para o domínio da técnica de aplicação correta dos desenhos do corpo. O produto final é uma obra de arte culturalmente orientada, na qual o ideal está relacionado à perfeição da técnica e ao prazer estético intimamente ligado a um sentimento de valorização pessoal e grupal (VIDAL, 1992. p. 147).

O papel conferido à produção artística nas sociedades indígenas torna problemáticas as definições da teoria institucional, mesmo na sua melhor formulação, a do filósofo norteamericano George Dickie, que a partir das questões propostas por Danto, e contra a nãodefinição de Weitz, busca restabelecer a possibilidade de uma fórmula lógica que seja capaz de abranger todas as formas de produção artística: “A work of art in the descriptive sense is (I) an artifact (II) upon which some society or some sub-group or a society has conferred the status of candidate for appreciation”2 (DICKIE, 1969, p. 254). O problema, aqui, reside nos termos “artefato” e “apreciação”. De saída, “artefato” elimina completamente as obras performáticas, como a dança e o teatro, como também a pintura corporal. O problema seria facilmente resolvido com a substituição de “artefato” por “fenômeno sensorial intencionalmente produzido”; mas o principal problema da definição de Dickie é a sua esquiva em definir o significado de “apreciação”. Certamente existem tipos diferentes de apreciação, e um destes tipos é a apreciação estética. Uma bandeja de doces possui certamente o status de “candidato à apreciação” por parte de uma sociedade ou de um subgrupo de uma determinada sociedade – o das pessoas que gostam de doces −, mas não é objeto de apreciação artística, pelo menos enquanto não for parte de uma obra de arte contemporânea e exposta como tal. O que a cuidadosa definição filosófica de Dickie não faz é captar a realidade prática e efetiva da realização artística, que inclui tanto a prática no sentido técnico e tecnológico, quanto a prática produtiva de objetos ou de fatos performáticos; assim como a prática da fruição artística − da apreciação estética. O interessante é que para que tudo isso exista em qualquer realidade social simplesmente não é necessário que o “conceito de arte” exista. O “conceito de arte” é nosso: é ocidental e de raiz européia, e se o utilizamos para falar de coisas produzidas por outras culturas que não possuem este conceito, é porque nossa própria definição de arte necessita incluir outras formas de se conceber a atividade artística, em que as práticas sociais que envolvem a produção e a apreciação de objetos ou fenômenos estéticos não são separadas do conjunto da realidade cultural da sociedade. A 2

"Uma obra de arte, no sentido descritivo é (I) um artefato (II) ao qual alguma sociedade ou algum subgrupo ou alguma sociedade conferiu o estatuto de candidato à apreciação” (Trad. do Editor).

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“arte autônoma” é uma construção ocidental que se volta continuamente para formas artísticas não-autônomas como para um “Éden perdido”, para usar a expressão de Lux Vidal (1992, p. 13). Os exemplos, principalmente no período moderno, de influências e incorporações de elementos das culturas “primitivas” na produção artística são numerosos: é o caso da arte negra para Picasso, como da arte indígena para os modernistas brasileiros. A remissão a uma dimensão estética que existe em continuidade com o conjunto da vida humana foi destacada também por Mário Pedrosa, oportunamente citado por Dias: A arte dessas culturas não é uma arte de contemplação, mas ativa, participante, coletiva, e não substitui nada, em nenhuma das suas manifestações. Não é representação de uma imagem, mesmo da realidade, porque é a própria realidade, ou uma das fontes de recreação dessa realidade. (...) Tal função é, hoje, talvez, o elemento que mais fascina a sensibilidade dos meios artísticos contemporâneos. Ao início do século (aos cubistas, expressionistas...), o que os abalou foi a vitalidade plástica, a beleza formal daquelas imagens (...). Hoje, as artes das culturas primitivas (...) exercem fascínio sobre a sensibilidade moderna pelo que significavam, pela ação que exerciam (...). A arte negra continua a valer para nós com todas as suas eminentes qualidades estéticas e formais. Mas o que o artista de hoje procura é uma equivalência entre a sua atitude, o seu trabalho, e a atitude e trabalho do artista negro e do artista caduceu (Kadiweu), nos seus respectivos contextos sociais (PEDROSA apud DIAS in AGUILAR, 2000, p. 40).

É, portanto, a possibilidade de uma arte que faça parte efetiva do real, da constituição de uma consciência cultural simultaneamente individual e coletiva, que nos motiva – que motiva esta instituição chamada “arte ocidental” − à apreciação e à inclusão da produção indígena como “arte”, em sentido pleno e efetivo. As conquistas da modernidade, assim como as transgressões da arte contemporânea, viveram e vivem sob a constante ameaça da sua exclusão do conjunto da realidade social: é o outro lado da moeda da autonomia artística, materializada, tantas vezes, em obras e discursos teóricos feitos por especialistas para especialistas. Esta afirmação não implica uma defesa de formas artísticas mais facilmente aceitáveis pelo grande público – a arte moderna, aliás, notabilizou-se pelo repúdio à aceitação “fácil” e pacífica das suas criações – mas sim em uma tomada de postura crítica com relação à suposta autonomia artística erigida em conceito absoluto, que tem como efeito colateral a especialização, o elitismo cultural e o isolamento intelectualista da arte. Este é o perigo das poéticas contemporâneas que se voltam exclusivamente para questões como a problemática do circuito artístico e as definições filosóficas e conceituais da arte. O estudo das artes indígenas – como também o das artes das civilizações não-ocidentais –, em sua contraposição com a teoria artística contemporânea, faz lembrar que a grande questão não é o lugar que a arte e a teoria artística ocupam no “mundo da arte”, mas que lugar elas ocupam no mundo real.

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REFERÊNCIAS DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2005. DIAS, José António Braga Fernandes. Arte, arte índia, artes indígenas. In AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento: artes indígenas. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000. DICKIE, George. Defining art. American Philosophical Quarterly, vol. 6, n. 3, p. 253-256, Chicago, jul. 1969. Disponível em . MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. 7. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993. MENESES, Ulpiano Bezerra de. A arte no período pré-colonial. In ZANINI, Walter (Org.). História geral da arte no Brasil – v. 1. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. RIBEIRO, Darcy. Arte índia. In ZANINI, Walter (Org.). História geral da arte no Brasil – v. 1. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. VIDAL, Lux. Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel; Editora da Universidade de São Paulo; FAPESP, 1992. VELTHEM, Lucia Hussak van. Das cobras e lagartas: a iconografia Wayana. In VIDAL, Lux. Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel; Editora da Universidade de São Paulo; FAPESP, 1992. WEITZ, Morris. O papel da teoria na estética. Trad. Célia Teixeira. Disponível em: . [Originalmente publicado em The Journal of Aesthetics and Art Criticism, XV, p. 27-35, Filadélfia, 1956.]