CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

Fontes Franciscanas I e II (FFI-FFII) da Editorial Franciscana, Braga, 2005 e 1996. 2...

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

40 Editorial Franciscana BRAGA - 2011

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Ficha Técnica

Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org

Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 40 - 2011 Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice I — Estudos 1. Maria

Vitoria Triviño OSC O Livro que dá forma à vida claustral – A Regra de Santa Clara .............................................................. 5

2. Giovanna Cremaschi OSC A Formação inicial das irmãs Pobres: Desde Santa Clara até hoje .......................................................... 31 3. Papa Bemto XVI – Catequeses sobre três santas clarissas: Santa Verónica Juliani, Santa Catarina de Bolonha e Santa Catarina de Génova ...................................................... 49 II — Documentos Fr. José Rodriguez Carballo, Ministro geral da OFM Carta Circular no Oitavo Centenário da Fundação da Ordem das Irmãs Pobres de Santa Clara ...................................... 65 Fr. José Rodriguez Carballo, Ministro geral OFM Carta Circular no Quinto Centenário da aprovação da Regra da Ordem da Imaculada Conceição, de Santa Beatriz da Silva .................................................................. 71

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I — Estudos

O LIVRO QUE DÁ FORMA À VIDA CLAUSTRAL ‒ A REGRA DE SANTA CLARA ‒

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O LIVRO QUE DÁ FORMA À VIDA CLAUSTRAL ‒ A REGRA DE SANTA CLARA ‒ Prólogo*

No arquivo de um mosteiro há livros únicos: A Historia, Livro de Atas, de Defuntas, etc. Na biblioteca há muitos mais. Mas, o livro por excelência, o mais importante, o que está em todas as celas, é A REGRA. Temo-lo todas porque cada uma a recebe solenemente no dia de da profissão. Cada ordem tem a sua Regra e constituições diferentes. Isso faz com que uma clarissa não seja igual a uma carmelita, a uma concecionista ou uma beneditina. Entre nós há elementos comuns e elementos muito diversos. Tratarei da Regra de Santa Clara1: como anima a vida desde dentro, como dá forma, como dá estabilidade e mantém as chaves de renovação no tempo de mudanças. Serve também como uma homenagem à Dama Pobre ao celebrar os 800 anos da fundação. I. REGRA DE SANTA CLARA Santa Clara, como fundadora das Irmãs Pobres deu-nos uma Regra. A primeira e única regra, escrita por uma mulher, que a Igreja aprovou. É breve, tem doze capítulos e segue de perto a Regra bulada de S. Francisco2. Clara teve de lutar com firmeza para conseguir a aprovação (1252) e a Bula do Papa Inocêncio IV (1253), nas vésperas de morrer. O Papa define-a como “Regra da —————

* Agradecemos à irmã Maria Victoria Trivño, osc, este trabalho que preparou para um Simpósio que se realizou em setembro na Universidade da Rainha Cristina do Escorial e que nos confiou ainda antes de o ter apresenta. 1 Citaremos ao longo do artigo como RCl. As citações são feitas de acordo com as Fontes Franciscanas I e II (FFI-FFII) da Editorial Franciscana, Braga, 2005 e 1996. 2 “A forma de vida da Ordem das irmãs Pobres, que São Francisco institui é esta: observar o santo Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade” (RCl I, 1). 6

altíssima pobreza e da santa unidade”. O pergaminho original conserva-se no protomosteiro de Santa Clara, em Assis. A Regra guarda a sabedoria das coisas breves, a estrutura jurídica que dá estabilidade, e a chama profética da inspiração, que informa a vida e permite regenerar-se para atravessar as crises da história. Regra como base jurídica, que dá estabilidade A Regra define a natureza e finalidade de uma ordem ou congregação religiosa. Juntamente com as Constituições, constituem a base jurídica de uma ordem religiosa e dão-lhe estabilidade. Ordem de direito pontifício. A Ordem das Irmãs Pobres é de direito pontifício. Os conventos têm um governo autónomo3. A obediência ao Papa, segundo a Regra, estabelece-se através dos frades menores; seja directamente com o ministro geral, ou através do ministro provincial4. No início, franciscanos e clarissas tinham um mesmo Cardeal Protetor, instituição desaparecida que agora assume o Dicastério para a Vida Consagrada. Em Espanha, por causa da exclaustração do século XIX, os conventos perderam a união jurídica com a I Ordem. Estão sob o cuidado do ordinário, exceto um. O mesmo acontece em Portugal. As Constituições. Quando um grupo quer instaurar uma forma de vida religiosa, adopta uma regra5, elabora suas próprias constituições, e propõe-nas à aprovação da Igreja. Nas Constituições explica-se a Regra, a natureza, a forma da profissão e a finalidade da comunidade, adequando-a ao Código de Direito Canónico. A Regra é imutável. As Constituições podem ser revistas e adaptadas a novas situações. As mudanças submetem-se também à aprovação de Roma. Os votos. Na Regra, santa Clara estabeleceu os votos solenes perpétuos de castidade, obediência, e sem próprio, os mesmos dos frades menores. Assim se fez a distinção da profissão monástica de obediência, conversão de costumes e estabilidade. —————

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Código de D.C. 1983, Cânon 613 e 614. RCl I, 3; Constituições Gerais 1988, n. 121. 5 Ao inicio deu-se a santa Clara a Regra de São Bento e umas Constituições de inspiração cisterciense. Esta legislação não transmitia a sua forma de vida. Por isso elaborou e fez aprovar a sua própria rega. 4

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Nos institutos de vida consagrada faz-se profissão de votos simples perpétuos, que tornam ilegítimos os atos contrários. Nas ordens de vida claustral faz-se profissão pública de votos solenes, isto é, que anulam os atos contrários. A profissão religiosa é um ato de liberdade que nos coloca num estado de vida diferente. Na Idade Média significava um precedente do uso da liberdade e uma tensão para a vida futura. “A própria forma do voto, compromisso assumido num momento da vida e que obriga para o resto dos dias, manifesta a realização de uma nova forma de liberdade. A entrega não decide só o destino social – como ocorria com quem sendo livre se vendia na escravatura –, antes faz depender de seu cumprimento o destino eterno e pessoal. É a forma de realização mais excelente a que pode aspirar um homem cristão e medieval. Os votos são a forma com que o cristão medieval proclamava que os sujeitos têm uma origem mais radical que a sua genealogia física ou cultural. E que a liberdade – como regresso à origem, que é progresso em direção ao fim ou à sua posse –, não tem a sua forma mais radical quando a origem que se possui ao transmiti-la é física (mediante o exercício da sexualidade), nem é sociocultural (mediante a transmissão da propriedade no seu sentido mais amplio), mas uma origem imperecível, inédita, cuja sede é a “pessoa”6. Regra, forma de vida e chave profética Clara imprimiu na sua regra, com solenes exortações, a chave profética de sua forma de vida. Assim levanta as três “colunas” que sustentam a nossa espiritualidade: o primado de Deus, a altíssima pobreza e a santa unidade. À volta delas articula-se todo o resto: vocação, vida comunitária e missão. A chave profética impressa na Regra dá forma a quem a professa. O primado de Deus informa a vida contemplativa claustral, a oração litúrgica, a intercessão, o recolhimento para se dedicar com preferência às coisas do Senhor. “As irmãs que sabem ler, rezem o Ofício Divino segundo o costume dos Frades Menores, lendo-o sem canto. Por isso podem ter Breviários” (RCl 3,7). Ao estabelecer “a reza do breviário” não procura a solenidade das liturgias monásticas, mas uma forma simples para atender e saborear a Palavra. Desde o Vaticano II todos os religiosos rezam a Liturgia das Horas. —————

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Cf. MARÍN, H. A invención de lo humano. La géneses socio-histórica del individuo. Madrid 2007, p. 146 8

A RCl não assinala tempos de oração. “Atendam antes a que sobre todas as coisas devem desejar ter o Espírito do Senhor e a sua santa obra, orar sempre a Deus com um coração puro …” (RCl X, 9). Este é o critério: “Orar continuamente”. Sempre! É a palavra do Evangelho (Cf. Lc 21,36). Deixa também uma margem de liberdade para se dedicar a este exercício. O exemplo de santa Clara orante, dia e noite7, com a margem de liberdade que a Regra dá, multiplicou dom da vigília entre as suas filhas. São muitíssimas as clarissas que, até aos nossos dias, se entregaram à oração durante as horas do dia, e durante as noites. Esta aplicação conduz à evolução mística pela contemplação do Mistério de Cristo “Espelho da eternidade”,“… para que contemplando-O te transformes inteiramente na imagem da sua divindade”8. Muitas vezes, querendo informações sobre a nossa vida, nos perguntam pelo horário. Dizê-lo é inútil, dizê-lo é nada dizer. O ser para Deus não se mede por horas, é viver na sua Presença. Para Francisco, a alma é como um ermitão que vive sempre atenta a Deus na ermida do corpo: “a alma é o eremita que mora lá dentro para orar e contemplar o Senhor. Se a alma não consegue descobrir o silêncio e recolhimento interior da sua cela, de pouco aproveita ao religioso a outra cela, construída pela mão dos homens”9. Cada um leva dentro de si a Vida de Deus, e reflete-se na comunidade. Clara afirma-o desta maneira: “Creio firmemente que, pela graça de Deus, a alma fiel se torna a mais digna de todas as criaturas, mesmo maior que o Céu. Só a alma crente se transforma em sua mansão e seu trono pela caridade de que estão privados os ímpios. É a Verdade que o testemunha: Quem me ama será amado por meu Pai, Eu o amarei e viremos a Ele e faremos n’Ele a nossa morada” (Jo 14, 21. 23). Tal como a Virgem das virgens O trouxe materialmente no seu seio, assim também tu O podes trazer, sem dúvida alguma de maneira espiritual, no teu corpo casto e virginal, seguindo as suas pegadas, sobretudo a sua humildade e pobreza”10. O critério para a distribuição do tempo é o equilíbrio. A Liturgia das Horas é como o relógio que manda, “a programação fixa”. Por isso, basta procurar a combinação harmoniosa dos tempos que ficam entre as Horas canónicas, procurando tempos longos que dão serenidade à oração, à —————

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“Disse ainda a testemunha que a Mãe santa Clara era muito assídua à oração, de dia e de noite” Processo de Clara (PC) II, 9. 8 Terceira Carta de Clara (3CCl) 13. 9 LP, 80, 13-14. 10 3CCl 21-26. 9

fraternidade, ao trabalho e ao descanso. Eis o que Clara diz sobre a forma de trabalhar sem deixar de orar sempre: “As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se fiel e devotamente, depois da hora de tércia, num trabalho honesto e de utilidade comum. Façam-no de tal maneira que evitem a ociosidade, inimiga da alma, mas não apaguem o espírito da santa oração (1 Tes 5, 19) e devoção ao qual todas as demais coisas temporais devem servir” (RCl 7,1-2) Supõe que pelo exercício assíduo alcançamos o espírito da santa oração, ou união com Deus, e a santa devoção que “é a virtude que prepara e nos torna hábeis para toda virtude […] como o vento norte espalha as nuvens e deixa o céu sereno e limpo, assim a verdadeira devoção sacode da nossa alma toda a indolência e dificuldade, deixando-a hábil e desembaraçada para todo bem, porque esta virtude é de tal modo, que é um dom especial do Espírito Santo, orvalho do céu, socorro e visitação de Deus…”11. Por fim, por estranho que pareça, a RCl não impõe o silêncio. Somente de Completas a Tércia. Se a atenção está voltada para o Espírito do Senhor, haverá discernimento para saber quando convém falar. A altíssima pobreza leva ao abraço com o Filho de Deus na humildade, mansidão e desapropriação, até que “o amargo se transforma em doçura de alma e de corpo”12, até saborear, pela humildade e mansidão, “a doçura escondida que Deus reserva desde toda a eternidade àqueles que o amam”13. Aqui está a mística da pobreza clareana e franciscana: “Esta é a excelência da altíssima pobreza, que a vós, minhas irmãs caríssimas, vos constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus, fez-vos pobres das coisas temporais e enobreceu-vos de virtudes (Tig 2, 5). Seja esta herança que vos leve à terra dos vivos (Sl 141, 6). Apegai-vos bem a Ela, minhas queridas irmãs, e nenhuma outra coisa, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima Mãe, jamais queirais ter debaixo do céu” (RCl VIII, 4-6).

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S. PEDRO DE ALCÁNTARA. Tratado de la oración y meditación. Barcelona 1791, p. 215ss. 12 Testamento de S. Francisco (T) 3. 13 3CCl 14. 10

Proíbe terminantemente as possessões e rendas. “E tal como eu e minhas irmãs sempre nos empenhámos em guardar a santa pobreza que prometemos ao Senhor Deus e ao bem-aventurado Francisco, assim também as abadessas que me sucederem no ofício e todas as irmãs se sintam obrigadas a observá-la inviolavelmente até ao fim. Por isso, não possuam nem recebam por si ou por interposta pessoa, algum domínio ou propriedade ou alguma coisa que razoavelmente possa ser considerada como tal. Só podem ter aquela porção de terra que honestamente se achar necessário para o decoro e isolamento do mosteiro, a qual não poderá ser cultivada senão como horta, para satisfazer as necessidades da comunidade” (RCl VI, 10-14). A santa unidade no amor é essência da vida cristã. Dar testemunho dela na fraternidade, é missão para a irmã pobre, como exemplo e espelho. Sejam sempre solícitas em guardar umas com as outras a união da mútua caridade que é o vínculo da perfeição (cf. Col 3, 14)” (RCl X, 7). Clara fomenta a riqueza das relações humanas seguindo o esquema mãefilho. “Confiadamente manifestem uma à outra as suas necessidades; pois, se a mãe ama e cria com tanto amor a sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual amar e ajudar a sua irmã espiritual (1Tes 2, 7)” (RCl VIII, 156). Quer que a abadessa trate as irmãs como a serva a suas senhoras. E quer que as irmãs obedeçam à abadessa por amor, para tornar mais leve a sua carga. “Amando-vos umas às outras com o amor de Cristo, manifestai em obras o amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo, as irmãs se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e na mútua caridade ”14. Se há algum conflito entre as irmãs, Clara pede a reconciliação antes de ir apresentar a oferenda de louvor no coro. Assim podem orar com o coração puro. Não encontramos normas sobre a hospitalidade, característica das beneditinas, nem se faz alusão a tarefas pastorais. Estas três colunas são o âmago da RCl. Enquanto se guardar esta forma de viver os votos, a vida mantém-se firme. Se vacilam, o edifício cai em ruínas. No que diz respeito à espiritualidade, a Regra não perde atualidade. Mas há pontos disciplinares que se devem interpretar a partir da cultura que os inspirou, porque se trata de costumes ou instituições desaparecidas. —————

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TCL 59. 11

II. REGRAS PROPOSTAS À II ORDEM, DEPOIS DE SANTA CLARA Através da Cúria Romana, dez anos depois da morte de Clara de Assis, apareceram três regras propostas às clarissas. No século XIII a Santa Sé pretendia “orientar as diversas formas de vida religiosa feminina com normas bem definida e fortemente influenciadas pela tradição cisterciense, e submeter os cenóbios à Igreja de Roma; pretendia caracterizar o novo monaquismo com a prática de uma estreitíssima clausura… Tentou-se que este forte impulso regulador chegasse às numerosas comunidades femininas que nasceram o se estavam organizando à margem do monaquismo tradicional”15. A partir da Cúria romana pretendia-se uniformizar os novos movimentos de vida religiosa feminina, conduzindo-os para uma estrutura monástica. Não era prudente implementar a clausura sem assegurar a economia mediante rendas estáveis. Mas a opção de pobreza de Clara não admitia propriedade nem rendas. Aqui radica a tensão que acompanhou, até ao século XIX, a observância de RCl. Clara de Assis resistiu às propostas de Papa Gregório IX quando lhe ofereceu dispensa do voto para receber rendas. Uma das mais antigas companheiras declarou: “amava tanto a pobreza, que nunca se quis apropriar de nada, nem aceitou a posse de bens para si ou para o mosteiro. Interrogada sobre como sabia isto, afirmou que foi testemunha de como o senhor Papa Gregório, de santa memória, lhe pretendeu dar muitas coisas e comprar propriedades para o mosteiro e de como a madona Clara as rejeitou sempre com firmeza”16 Com efeito, o Papa, na visita ao convento de S. Damião fez ofertas a Clara: “Se temes pelo voto, nós dispensamos-te dele”. Mas Ela respondeu: “Santíssimo Padre, por nenhum preço quero ser dispensada de viver o seguimento de Cristo por todo o sempre”17 No século XIII, a autoridade eclesiástica “começou a considerar com extrema atenção o fenómeno da vida religiosa feminina e esforçou-se por orienta-la em vista a formas que poderíamos definir monásticas no sentido tradicional do termo. Se o processo se pode considerar já de alguma maneira consumado com a bula Periculoso de Bonifácio VIII (1298), com a qual a obrigação de estrita clausura era estendida a todas as monjas. Para chegar aí foi —————

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ALBERZONI, Pía. Clara de Asís y el franciscanismo feminino. Em “El Francisco de Asís y el primer siglo de la historia franciscana”. Oñate 1999, p.231. 16 PC I. Ir. Pacífica de Guelfucio, n 13; Ir. Benvinda de Perusa: “nem o Papa Gregório nem o Bispo de Óstia, a convenceram a aceitar propriedades”, n. 22. 17 Legenda de Clara (LCL) n. 14. 12

necessário o trabalho de um século. No princípio foi determinante a ação do Cardeal Hugolino de Ostia; mais incisiva foi depois da sua eleição para pontífice com o nome de Gregório IX… e na mesma linha Inocêncio e Alexandre, até Urbano IV. As intervenções dos pontífices determinaram uma mudança substancial… mas até à metade do século, estava em S. Damião de Assis a força não só exemplar, mas também a força institucional de Clara e sua comunidade a contrariar esta evolução, evitando que se aplicasse a todos os mosteiros de forma coerente e linear”18. As três Regras Depois da morte de Clara, em 11 de agosto de 1253, ficava como herança a Regra que conserva a sua espiritualidade e 110 conventos19 fundados na Europa. Depois da sua canonização seguiu-se um século de grande esplendor. Dez anos mais tarde havia três regras aprovadas propostas às clarissas. Esta era a situação: Regra de Santa Clara (RCl) dada à Ordem das Irmãs Pobres, aprovada por Inocêncio IV no ano de 1252 com bula do mesmo, em 1253. Regra de Isabel de França (RI) para as Irmãs Menores encerradas. Foi composta por S. Boaventura e aprovada por Alexandre IV em 1259 para o convento da beata Isabel20, em Longchamps. Em França, dez conventos professaram-na. Distingue-se da RCl na medida que espiritualiza e mitiga a pobreza, permite rendas e impõe uma clausura rígida. Regra Urbaniana (RU) para a Ordem de Santa Clara, composta pelo Cardeal Gaetano Orseni e S. Boaventura, aprovada por Urbano IV em 1263. Diferença entre RCl e RU A diferença principal entre ambas as regras está nos pontos muito importantes para a fundadora: o alcance do voto de pobreza; e a união jurídica com a Ordem de S. Francisco, que na RU passa ao Cardeal Protetor. Supõe a —————

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ALBERZONI, Pía. Clara de Asís y el franciscanismo… pp. 227ss. Em 1300 os mosteiros dependentes da I Ordem eram 413, ‒ 57 em Espanha ‒, com 15.000 clarissas. Não se contam os que estavam sob a obediência dos Bispos. Cf. OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las carisas a través de los siglos. Madrid 1972, pp. 4650; 67-70. 20 A beata Isabel era filha de Dona Branca de Castela, irmã do rei São Luís. 19

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opção entre o ideal evangélico da fundadora, ou o da vida monástica clássica, que assegura a economia com a possessão em comum. RCl Prescreve três votos solenes Não permite o dote Aceita aspirantes de qualquer condição social União jurídica com a OFM Silêncio de Completas a Tércia Proíbe propriedades e rendas Vestidos: túnica, véu e manto

RU Introduz o 4º voto de clausura Impõe o dote Governo do Cardeal Protetor Silêncio sempre Supõe propriedades e rendas Administradas por um síndico Introduz: Escapulário e touca Dormir vestidas

A RCl professa três votos solenes. A sua pobreza é a imitação de Jesus Cristo pobre e humilde. Supõe viver do trabalho e, se não for suficiente, recorrer à esmola. Não permite rendas o propriedades, nem em particular nem em comum. Convida a aspirante a dispor da sua herança livremente, antes de professar, e em nenhum caso pede dote. “Se alguém, por inspiração divina, vier ter connosco… Se for achada idónea, diga-se-lhe a palavra do Santo Evangelho que diz que vá e venda todas as suas coisas e as reparta pelos pobres (Mt 19, 21)... A abadessa e suas irmãs não ponham cuidados nos seus bens temporais, a fim de que Ela os distribua como o Senhor lhe inspirar.” (RCl II, 1-10) Num tempo de grandes diferenças sociais, quando as ordens monásticas somente recebiam mulheres nobres, Clara recebe aspirantes de qualquer condição social para viver em igualdade e santa unidade. RU prescreve um quarto voto, o da clausura. Mitiga a pobreza, de forma que o mosteiro possa ter possessões e rendas administradas por um síndico. As aspirantes devem levar dote. E quanto ao hábito, enquanto Clara se limita a prescrever: túnica, véu manto, a RU acrescenta o escapulário, a touca, o calçado, e como devem de dormir vestidas, etc. Com o tempo introduziu-se em alguns conventos de RU uma discriminação que muito contraria o espírito clareano e franciscano. Nos mosteiros de fundação real não admitiam: as que no procediam da nobreza; no Ultramar não admitiam as indígenas. 14

Atitude das clarissas em relação à RU Ao ser promulgada RU a situação foi a seguinte. O Cardeal Caetano Orsini teve muito interesse em que fosse aceite pelas clarissas. Com esse efeito encarregou o Visitador da Toscana frei Lotário, para que fizesse uma votação e o notificasse das razões dos votos contra. A votação realizou-se numa reunião de clarissas em Viterbo. O resultado conhece-se através da carta do Papa Clemente IV de 31 de maio de 1266: “Sorores Ordinis Sanctae Clarae venerunt Viterbium pro multarum terrarum Sororibus… sunt omnes in hoc proposito, quod tuam Regulam non recipiunt”21 (As irmãs da Ordem de Santa Clara reuniram-se em Viterbo vindas de muitas nações… foram unânimes no propósito de não aceitar a tua Regra). A promulgação da RU não foi um êxito, as clarissas da primeira hora estavam firmes no ideal da fundadora. Mas, a partir de Roma, a Regra seria dada a muitas fundações, sobretudo aos mosteiros fundados pela nobreza. Milhares de conventos ao longo de 800 anos, professaram e professam indistintamente RCl o RU. Assim conviveram sem tensões nem rupturas. Temos de reconhecer que nisto as nossas antepassadas foram exemplares. Muitos conventos sofreram de parte dos superiores religiosos e dos bispos. Muitas sofreram pressões até da parte de entidades civis, que se negaram a permitir fundações se não professavam a Regra Urbaniana, garantindo mediante rendas a estabilidade económica. As duas formas de vida, a original e a mitigada, conviveram durante séculos. Mas, por ocasião de algum acontecimento que motivava o fervor entre as clarissas, muitas comunidades urbanistas pediam a passagem à RCl. Assim aconteceu na celebração do VII centenário da morte de Clara (1953). O mesmo aconteceu no VIII Centenário de seu nascimento (1993/4). O primeiro historiador da II Ordem, P. Ignacio Omaecheverría ofm, escrevia no ano 1972: “A RU tornou-se obsoleta para o nosso tempo por tantas disposições próprias de épocas passadas”22. Chave das tensões à volta do voto de pobreza na RCl A profissão de RCl suscitou bastantes tensões nos ambientes da cúria, e nos ambientes franciscanos e civis, até finais do século XIX, quando o viver das —————

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BF VII, 82. Cit em OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las clarisas a través de los siglos. Madrid 1972, p 66 22 OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las clarisas…, p 66. 15

rendas era privilégio de poucos mosteiros. Os problemas surgiam ao equipararse as ordens mendicantes ao monaquismo tradicional. E não se chegou a um acordo porque a diferença está em dois pontos: um de inspiração evangélica, e outro social. A a inspiração evangélica: As comunidades monásticas inspiravam-se na primitiva comunidade cristã que punha em comum os seus bens. Por conseguinte, o voto de pobreza proibia a propriedade individual, mas não a propriedade comum. Foi o que a RU recuperou, dando uma passo atrás o que, distinguindo-se, assim, da RCl. As fraternidades mendicantes vão mais além ao inspirar-se na vida peregrina de Jesus. Pelo voto elegem não possuir nada individualmente nem em comum. É um verdadeiro risco, mas, a própria Clara exorta a viver como peregrinas: “As irmãs nada tenham de seu, nem casa, nem lugar, nem coisa alguma. Como peregrinas e estrangeiras (cf. Gem 23, 4; Sl 38, 13; 1 Ped 2, 11) servindo o Senhor em pobreza e humildade, com muita confiança, sejam enviadas a pedir esmola (74). E não devem ter vergonha, porque também o Senhor por nós se fez pobre neste mundo (2Cor 8, 9)” (RCl VIII, 1-2) A novidade do carisma franciscano foi superar a forma da vida monástica e eremitico-penitencial “enquanto estas se construíam sobre a forma da Igreja primitiva, as que seguem a nova experiência de Francisco não se inspiram na vida dos apóstolos, nem sequer na vida da primeira comunidade cristã, mas directamente sobre a vida que O Homem-Deus, Jesus Cristo, experimentou na terra. No texto legislativo de Clara isto é muito evidente: não se trata para Ela de estabelecer normas para as observar estritamente a fim de alcançar um ideal de perfeição, mas de definir una vocação grande, que é o encontro com a pessoa viva do Filho de Deus que “ se fez nosso caminho”23. É um abraço que se identifica com Jesus pobre, obediente e virgem. Opção social a partir da pobreza: O segundo aspeto, o social, compreende-se no contexto. O monaquismo cisterciense separa-se do mundo, é auto-suficiente. A vida mendicante, guarda a distância necessária para manter o recolhimento, mas não se isola do mundo nem se auto-abastece. Clara e suas irmãs renunciando ao dote, libertam-se de todo vínculo com suas nobres famílias, renunciando também a toda forma de poder, fazendo-se pobres pelo —————

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MONDONICO, Chiara Cristina, osc. Vida eremítica y carisma de las Órdemes Franciscanas. Em “Selecciones de Franciscanismo” n. 118, Valencia 2011, p. 94. 16

Reino. Depois, fizeram-se servas da Igreja com a sua intercessão e exemplo, transcendendo o temporal, fazendo do temporal um vínculo de caridade e simplicidade. A sua subsistência dependia do trabalho e da esmola. Pedir esmola não era um gesto ascético mas um intercâmbio, um gesto de pertença ao ambiente social. Isto significa um salto de liberdade muito além do tradicional, um benefício permitido aos varões mas muito difícil de conseguir por uma mulher. “… por paradoxal que pareça, os votos são na Idade Media a forma consumada de liberdade, o sinal da liberdade possível ao homem. Além disso, quando a ordem religiosa abandona a segurança do dote patrimonial que o constituía numa linhagem, configura-se ‒ ao menos concetualmente ‒ na primeira unidade social no sentido nitidamente protomoderno… que depende inteiramente da sua pertença social para subsistir. A esmola é na Idade Média o reconhecimento de dita pertença, mas é também a manifestação social da prevalência do fim…”24 Clara deixou-se arrebatar por esta opção evangélica clara e diferente. Não retém o dote patrimonial, nem o brilho da sua estirpe, antes se despoja como Jesus pobre e desnudo na cruz. III. REGRA E TRADIÇÃO, CAMINHOS DE RENOVAÇÃO Na trajectória de oito séculos, as Irmãs Pobres atravessaram grandes crises que não eram suas. Eram as crises do seu tempo, afetavam a sociedade, a política e a Igreja. Umas vinham por mão dos avatares da história como crises de desgaste; outras, mais profundas, marcavam uma mudança de época, e conduziam quase à extinção. Em linguagem bíblica diríamos que são momentos de poda, de juízo, em que se obscurece o céu e caem as estrelas. Não é o fim, mas é um momento de mudança, chame-se reforma, renovação ou regresso às fontes. Santa Clara, com intuição de fundadora, fez da aprovação da sua Regra o objetivo da sua vida. Na realidade a mudança revitalizadora para superar as crises com ganhos, sempre se conseguiu nas coordenadas do Evangelho /Regra/sinais dos tempos. O regresso às fontes leva à revisão e actualização das três colunas que sustentam nossa espiritualidade. Olhando à história pode-se constatar que as reformas impostas, programadas de fora por varões, causaram muito sofrimento e divisões. Efetivamente, quando promovida de dentre pelas próprias clarissas, deram fruto copioso. —————

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MARÍN, Higinio. La invención de lo humano… p. 148. 17

Reformas impostas de fora A decadência e relaxamento dos costumes na primeira grande crise que veio até à Idade Moderna, não começou na vida religiosa, mas na cúria romana pelo “secularismo dos papas renascentistas, da cúria romana secularizada e dos bispos afastados do labor pastoral. O que sucedia na Igreja repetia-se, a uma escala reduzida, em cada diocese e em cada instituto religioso”25. As clarissas, como as demais ordem claustrais, sofreram esta crise. As alterações no campo social, a extrema pobreza, levaram a situações não desejadas, e buscaram soluções que degeneraram em abusos. Os movimentos de reforma estenderem-se, formando um tecido complexo. Tratamos brevemente dos que foram promovidos por papas e reis de fora da vida claustral26. Partiam com a intenção de corrigir o que lhes pareciam abusos, no geral, mediante ordenações não inspiradas precisamente na observância da RCl. Todas foram deixando marcas em preceitos, mais ou menos oportunos, que se transformaram em costumes. Reforma de Bento XII, século XIV. As Constituições beneditinas de 1336. No artigo XXIX De monialibus seu minorissis, estabelecia a vida comum no refeitório e dormitório, limitava o número de monjas à quantia das rendas e impunha a clausura. As irmãs externas deveriam viver em clausura como leigas27. Nem todas se podiam identificar com as normas do Papa cisterciense. Há aqui um par de medidas contrárias a RCl que atentam contra a forma da pobreza e da unidade. Por exemplo, vincular às rendas o número de monjas. O problema era quando não havia renda, e havia problemas por ter de se pedir dispensa frequentemente para aumentar o número, quando subia a renda. E o pior foi introduzir a classe das leigas, em inferioridade de condições. Só cinco séculos depois se conseguiu acabar com tal diferença. Reforma de Eugénio IV, século XV. Promulgou 100 estatutos para as clarissas que obrigavam sob pecado grave. “Eugénio IV (1431-1447) encarregou o Geral Guilherme de Casale da reforma das clarissas. Este tentou uniformizar a ordem —————

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AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de la Provincia… p 245. Sobre a reforma: AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de as carisas en Cataluña en tiempo de los Reys Católicos. Collectanea Franciscana 27 (1957); Reforma de a Provincia Franciscana de la Corona de Aragón en tiempo de los Reys Católicos”. Estudios Franciscanos 71 (1970); GARCÍA ORO, J. El Cardenal Cisneros. Vida y empresas. Vol II. BAC. Madrid 1998. 27 GARCÍA ORO, José. El Cardenal Cisneros…, p. 199. 26

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na sua vida e denominações. Mas a variedade radical existente na constituição da Ordem nunca pode ser superada”28. Os 100 preceitos serviram mais para criar escrúpulos que para ajudar à santidade. Não tem nada a ver com o espírito de Clara que põe toda a força no essencial e deixa largueza em todo o resto. Reforma dos Reis Católicos. Começou em 1493 com autorização de Alexandre VI. Ensaiou-se no Reino de Aragão e depois em Castela. Vendo que não dava o resultado desejado com o apoio da hierarquia eclesiástica, encomendou-se ao Cardeal Frei Francisco Ximénez de Cisneros. Em 1497 pôs-se em marcha a reforma cisneriana. Ao obetivo de reforma anterior, clausura e vida comum, juntou-se: as ordenações da Reforma; e mudança de superior regular, de conventuais a observantes. Nomearam-se visitadores com plena autoridade para corrigir e impor sanções que, em muitos casos foram extremamente severas, levando a que a autoridade civil interviesse para proteger as monjas. A reforma causou muito sofrimento e escândalos. A partir da I Ordem, reforma da Observância. Os movimentos de reforma surgidos no seio dos franciscanos, conventuais, descalços e observantes, tiveram um eco notável nas clarissas. Todos em uníssono subiram pelo caminho da oração e do recolhimento até à mais alta mística que brilhou no Século de Ouro espanhol. No entanto a sequência dos passos institucionais dados pela Observância, nem sempre reflete esse esplendor espiritual. Extinguidos os conventos masculinos em Espanha, as clarissas foram postas sob a obediência da Observância, em 1517. Enquanto os mais fervorosos promoviam a observância de RCl, a maior parte professava a RU e as ordenações e preceitos acumulados no tempo passado. Tentativa vã de impor a RU. Na reforma da pobreza, os frades da Observância, limitavam-se a corrigir toda forma de propriedade individual. Além disso, no ano de 1518 vendo que alguns conventos não tinham estabilidade económica, o Geral Lichetto decretou, em Capítulo, não receber sob a sua obediência nenhum convento de clarissas que não professasse a RU e tivesse suficientes rendas fixas. Encontrou uma forte resistência nos mosteiros onde se professava a RCl, sobretudo nas descalças e coletinas, que por nada aceitavam a mudança da Regra nem a obrigação de ter rendas. Por fim os frades concordaram, em 1532, —————

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Cfr. GARCÍA ORO, José. El Cardenal Cisneros… p. 200. 19

em não se intrometer nos assuntos temporais das clarissas. Até 1674, o ministro provincial era visitador das religiosas de sua província. A história das clarissas, sobretudo nos séculos XIV-XVII, revela o heroísmo de muitas mulheres valorosas, que sofrerem grandes humilhações e dificuldades para permanecer fiéis à RCl. Umas suportaram pressões régias, outras das autoridades locais, e muitas de alguns frades. Constituições Gerais. Nos primeiros séculos, os conventos de clarissas tinham constituições próprias, diferentes. Em Espanha, além das constituições das descalças e coletinas, os patronos de algumas fundações faziam aprovar constituições particulares, estabelecendo peculiaridades segundo a sua devoção. À vista de tal variedade, os frades da Observância promoveram a unificação que terminou em 1639 com a promulgação das Constituições Gerais pelo Ministro Geral Juan Merinero29. Nesta recompilação não tomaram parte as clarissas. Na sua intenção de promover uma “maior observância e reform” os frades pretenderam o impossível: explicar e aplicar quatro regras diferentes, para três ordem diferentes, acumulando preceitos em 15 capítulos. As Constituições gerais actualizaram-se em 193030 para as clarissas de RCl e RU, por se tornarem obsoletas e para as ajustar ao Código de D.C. de 1917. Depois do Concilio Vaticano II, promulgado o Código de 1983, foram de novo revistas, sendo aprovadas em 198831. Verdadeira reforma no seio das clarissas nos séculos XV-XVII Duas são as grandes reformas promovidas pelo Espírito do Senhor, protagonizadas pelas mesmas clarissas, coletinas e descalças, que renovaram a II Ordem em Espalha, ma Idade Moderna. Consistiu em actualizar a RCl mediante constituições elaboradas pelas mesmas reformadoras. Adoptaram-se —————

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Constituciones Gerales para las religiosas clarisas, concecionistas e terciarias de S. Francisco de Asís. Dadas pelo Capítulo Geral de Roma no ano 1639. Orihuela 1885. No capítulo geral de maio de 1583, presidido pelo ministro geral Fr. Francisco de Gonzaga em San João dos Reis (Toledo), acordou-se em recompilar “as ordenações gerais antigas […] e outras diversas ordenações e os estatutos mais modernos, tirando e aumentando outros que pareceu ao dito capítulo geral ser conveniente para maior observância e reformação do estado monástico e religioso”. Carta preambulo. 30 Reglas y Constituciones Generales para las monjas de l Orde de Santa Clara. Vich 1934. 31 Reglas yConstituciones Generales de la Orden de las Irmãs Pobres de Santa Clara. Roma 1988. 20

desde o interior os meios para renovar com a força do primado de Deus, alcançando dimensões místicas, resgatando a forma de nossa pobreza, e a santa unidade. À sombra de novas fundações, sob sua influência, renovaram-se outros conventos já existentes. Houve mais focos importantes, como a Congregação de Tordesilhas32, e as que seguiram a reforma villacruciana, alcantarina, etc. Reforma coletina. Foi iniciada por santa Coleta de Corbié no ano de 1408 em Besançon terminando com a profissão da RCl e das suas próprias constituições. Fiel à mãe santa Clara, Coleta proíbe possessões e rendas, e não permite receber dotes. Acentua a santa unidade, quer que as irmãs se relacionem com naturalidade, não aceita diferença de classes, considera os cargos como ofícios de serviço. Impõe a clausura. Estreita relação com os frades menores que conquista para a sua reforma. Cada convento deve ter quatro frades Menores ao seu serviço, segundo Breve de Martinho IV (1417) Sobretudo, impulsionou a formação e promoção intelectual das irmãs, prescrevendo a leitura de bons livros e a criação de uma bela biblioteca em cada convento. Com estas medidas as coletinas renovam o primado de Deus, restauram a altíssima pobreza e edificam a santa unidade. É de notar que suprimiram a diferença de classes criada pelas Constituições de Bento XII (1436) A reforma coletina estendeu-se rapidamente. Entrou em Espanha pela Coroa de Aragão, Perpinhão e Gandia (1458). De Gandia saíram 33 fundações33. Foi uma renovação admirável. As Descalças. A reforma espanhola das Descalças foi iniciada por Marina de Vilaseca em 1499 com a Bula Inter universa de Inocêncio VII, no convento de Santa Isabel dos Anjos, em Córdoba. Vinte anos depois da fundação foi enviada pelo superior regular ao convento de Santa Maria de Jesus, de Sevilha, de onde se estenderam, fundando uma dezena de conventos34 que, por sua vez, fundariam outros. —————

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Cf. OMAECHEVERRÍA, I. Las clarisas a través…, p 107ss; GARCÍA ORO, J, O Cardemal Cisneros… p 204s. 216ss 33 VIZUETE, Carlos. As clarisas nazaremas. Na “A imagem devocional barroca. Cuemca, 2010, p. 59ss., Tábua 1, Traz as fundações da reforma coletina. Na Tábua 2, as fundações das descalças. 34 Córdoba 1491;Sevila 1520; Estepa 1599; Marchema em Santa Isabel, em Granada 1624; Ángel Custodio em Granada 1626; Jerez de la Frontera 1635;Ronda 1664; Cocentaina 1625; Sisante 1714. 21

A novidade das descalças era professar RCl sem as constituições coletinas, nem os 100 estatutos promulgados pelo Geral Guilherme de Casale a pedido de Santa Coleta. Dos “preceitos da regra que, segundo Eugénio IV, obrigavam sob pecado grave”, reteve somente os votos e o modo de eleger a abadessa no capítulo. Num tempo em que as normas se multiplicavam em excesso, a redução ao essencial prova a prudência da Irmã Marina. Estavam sob a obediência do Vigário ultramontano da Observância e dos Visitadores que ele nomeava. Gozavam dos indultos e privilégios da Ordem, excepto aqueles que podiam induzir ao relaxamento. Tinham faculdade para receber as clarissas urbanistas que quisessem professar a RCl. Cantavam matinas à meia-noite, vestiam o hábito azul-cinza de tecido grosseiro, toucas e véu de linho sem adornos, não podiam sair à roda sem licença nem deixar-se ver por estranhos. Perante as visitas cobriam o rosto com um véu espesso35. Eram medidas tidas como necessárias para evitar abusos. São detalhes que se generalizam e é bom conhecer quando, onde e por que nascem. Respirava-se um ambiente espiritual especial no convento de Santa Maria de Jesus de Sevilha. O movimento espanhol das descalças estendeu a sua força renovadora, sobretudo, em Andaluzia. Este espírito perene de renovação encarnou-se numa dezena de mulheres singulares. Podemos destacar M. Jerónimo da Assunção, de Santa Isabel dos Reis de Toledo, fundadora nas Filipinas. As suas companheiras chegaram à China. Esplendor dos séculos XVII-XVIII No Século de Ouro, a Ordem de Santa Clara teve a mais alta quota de expansão, em número e em fama de santidade. No ano de 1680 calcula-se que havia no mundo mis de 70.000 clarissas com 814 conventos sob a jurisdição dos frades Menores. Em Espanha, no ano 1587 havia 34.100 irmãs e 240 conventos. Em 1680 eram 315 os conventos, mais as 20 fundações de clarissas capuchinhas. Isto sem contar as de ultramar. Resplandeceu no Século de Ouro a experiência mística do silêncio, da oração, e do recolhimento. Os grandes mestres e místicos franciscanos estiveram muito próximos das clarissas. Deixou-se sentir o poder de intercessão. Mas também a projecção artística e literária. As nossas antepassadas deixaram composições musicais para órgão, pinturas e sobretudo escritos. Pequemos tratados de espiritualidade, relatos autobiográficas, poemas, —————

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Cf. dados em OMAECHEVERRÍA, I. As clarisas a través…, pp. 101-102; e CENTEMO Gloria. Monasterio de Santa Maria de Jesus. Sevilha 1996, pp.41ss. 22

cartas. Com o que se conservou e as biografias escritas por suas irmãs e confessores, hoje formamos a nossa “Biblioteca familiar”36. Se na reforma imposta se estreitava a clausura para impedir o trato abusivo com os seculares, as autênticas reformadoras acentuavam-na para restaurar o primado de Deus, fomentando a experiência de Deus na oração de recolhimento. A reforma imposta queria obrigá-las a viver de rendas. As verdadeiras reformadoras viveram com austeridade e simplicidade, defenderam com humilde e valentia a pobreza em particular e em comum como imitação e abraço a Cristo pobre. A reforma imposta retinha a obrigação do dote e permitia a presença de empregadas e leigas para o serviço. As verdadeiras reformadoras, em pobreza e humildade, corrigiam as desigualdades e, sem acepção de pessoas, tornavam verdadeira a santa unidade em fraternidade. No século XVIII continuou a expansão das clarissas em Espanha e na América. Mas os escritos dos finais de século vão perdendo criatividade mística, afectados pelo barroco. Preferência das clarissas pela RCl Não focamos a crise que se deu na entrada da Idade Contemporânea, que supôs um longo desgaste, mas que não foi tão profunda. As leis de exclaustração na Península Ibérica provocaram êxodos mais ou menos longos e dolorosos, enquanto os governos vendiam os conventos em hasta pública. As dificuldades vinham de fora, mas a vida religiosa estava forte e resistiu bem. Na hora da restauração reapareceram muitos conventos. Foi uma crise de desgaste que nos trouxe um grande bem: acabou com as rendas! Purificou a coluna da santa pobreza. Em meados do século XX muitos conventos passaram de RU a RCl, sem as rendas que o impedissem! Foi a homenagem à mãe santa Clara no VII Centenário de sua morte (1953) Também desta vez o impulso veio de dentre e ninguém de fora o questionou. Mas com a exclaustração, aconteceu que se perdeu a união jurídica com a I Ordem. Todos os conventos de Espanha e Portugal passaram à jurisdição do bispo diocesano por três anos. Renovou-se o prazo por outro triénio, e assem ficou por inércia. Na Espanha só um mosteiro tem superior regular, Vilarreal (Castellón), enquanto que na Itália há 61 conventos sob a jurisdição da Primeira Ordem. É um caso pendente, que devemos resolver com o tempo. —————

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Procurei dar o meu contributo em: TRIVIÑO, Mª. Victoria. Escritoras clarisas españolas. Antología. BAC, Madrid 1992. 23

Tendo presente o elenco, se aprecia a preferência das clarissas espanholas pela profissão da RCl, num sentido de fidelidade ao espírito da fundadora. Nos finais do século XX era esta a situação: Países Espanha Portugal Itália

Conventos 206 12 150

RCL 189 12 113

RU 25 37

O convite do Concílio Vaticano II aos religiosos de “voltar às fontes” confirmou o caminho começado. A vida deu uma volta e deixando para trás práticas que ficaram obsoletas, alimentamo-nos diretamente da Palavra de Deus, dos escritos dos fundadores, dos Padres da Igreja e da Liturgia. A vida claustral esteve muito protegida nesses anos e viveu uma primavera de graça. A celebração do VIII Centenário do nascimento de Santa Clara (1993/94) foi oportunidade para relançar a esplendorosa figura da fundadora, vivendo-se o ideal com muito entusiasmo. CONCLUSÃO Eis uma ordem de clausura, as Irmãs Pobres de Santa Clara, que caminharam, lutaram, viveram dias de esplendor, superaram as crises mais graves da história e já celebra 800 anos de fundação. A Regra elaborada pela Mãe e Mestra, santa Clara de Asses, é a luz que lhe da estabilidade na Igreja, que lhe dá forma com uma espiritualidade esponsal, obediente, amorosa, pobre e pura, que avança pela via da beleza, e a ilumina nos momentos em que o desgaste ou as crises a arrastam par a mudança para continuar a existir. A RCl inspira-se na nobreza do gótico, e essa transparência original transmite-se na veia secreta da tradição. Tive a graça de me relacionar com clarissas de muitos países, e experimentei os rasgos de família que nos fazem sentir, aspirar e até expressar-nos de forma semelhante. É uma experiência encantadora. A RCl dá unidade aos conventos espalhados pelo mundo, e em momentos cruciais faz aparecer novas mestras espirituais. Nas fachadas da vida claustral aparecem restos de culturas passadas, traços das reformas impostas de fora, diferenças impressas pela renovação interior, e por duas regras interpretadas por sucessivas constituições às quais se somaram múltiplas normas. Todas se referem por alguma razão a um tempo determinado. As crises são belas para desprender-se do velho e resgatar a 24

essência. O conhecimento da história passada é muito útil para distinguir o essencial. No terceiro milénio assistimos a uma crise que nos apanha numa rede e afeta todas as instituições, a família, a economia, a política, a Igreja, etc. Os seus efeitos pesam também sobre a vida claustral. Tudo foi anunciado há muito tempo: Que a vida contemplativa perdurará. O trabalho, uma vez mais, é atualizá-la atendendo aos sinais do tempo presente, e procurando pôr em dia as três colunas da Regra. Creio firmemente que também agora suscitará mestras que, com o espírito de Clara de Assis, iluminarão a renovação que o terceiro milénio está pedindo. Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

BIBLIOGRAFIA DOCUMENTOS Santa Clara de Asís. Escritos y fuentes biográficas. México, 1994. Constiteuciones Gerales para as religiosas carisas, concecionistas e terciarias de S. Francisco de Asís. Dadas por O Capíteulo Geral de Roma em O año 1639. OrihuEla 1885. Regla y Constituiciones Generales para as monjas de la Orden de Santa Clara. Vich 1934. Reglas y Constituciones Gerales de la Orden de las Hermanas Pobres de Santa Clara. Roma 1988. ESTUDOS ALBERZONI, Pía. Clara de Asís y el franciscanismo femenino. Em “El Francisco de Asís e ei primer seglo de la historia franciscana”. Oñate 1999 AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de la Provincia Franciscana de la Corona de Aragón en tiempo de los Reees Católicos”. Estudius Franciscanos 71 (1970) CENTEMO, Gloria. Monasterio de Santa Maria de Jesus. Sevilla 1996. COLL, J. Crónica Seráfica de la Santa provincia de Cataluña. Barcelona 1738. GARCÍA ORO, José. El Cardemal Cisneros. Vida y empresas, Vol II. BAC, Madrid 1993. MARÍN, Higinio. La invención de lo humano. A génesis socio-histórica del individuo. Madrid 2007 MONDONICO, Chiara Cristina, osc. Vida eremítica y carisma de as Órdenes Franciscanas. Em “Selecciones de Franciscanismo” n 118, Valencia 2011 OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las carisas a través de los siglos. Madrid 1972 S. PEDRO DE ALCÁNTARA. Tratado de la oración y meditación. Barcelona 1791, p 215s; Rialp. Madrid 1977, p 148; Col Tau. Ávila 1991 25

TRIVIÑO, Mª. Victoria. Escritoras clarisas españolas. Antología. BAC, Madrid 1992. - La Orden de Santa Clara em Cataluña. Em: “800 anes de franciscanisme”. “Qüestions Teològiques” 9. Facultat de Teología de Catalunea, Barcelona 2010Clarisas y Franciscanos catalanes hasta 1567. Em “Los Franciscanos Conventuales em España” II Congresso Internacional sobre Franciscanismo en la Península Ibérica (Barcelona 2005) Madrid 2006, pp 61-84. VIZUETE, Carlos. Las clarisas nazarenas. Em “L imagen devocional barroca”. Ed. de a Universidad de Castilla-La Mancha. Cuenca 2010, pp 45-62.

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A FORMAÇÃO INICIAL DAS IRMÃS POBRES: DESDE SANTA CLARA ATÉ HOJE Giovanna Cremaschi OSC1

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O texto corresponde a uma conferência pronunciada no Primeiro Congresso de Presidentes das Federações das Irmãs Clarissas, Assis, 2008. 27

A FORMAÇÃO INICIAL DAS IRMÃS POBRES: DESDE SANTA CLARA ATÉ HOJE Apresentamos a situação atual das Irmãs Pobres de Santa Clara que acolhem jovens decididas a seguir Cristo pobre e crucificado pelo caminho traçado por Francisco e Clara, partindo da Forma de Vida de Clara. Teremos em conta os contributos das ciências humanas, para depois considerar a mulher nas suas características humanas, cristãs e espirituais, privilegiando o que é típico do nosso carisma, uma vez que a nossa formação carismática franciscana e clareana não é um tema entre outros, mas constitui a seiva que unifica o caminho formativa. Trata-se de dar forma2 à mulher chamada a viver a vida cristã como irmã pobre. Não duvidamos de que a fraternidade é o lugar de formação por excelência3. E dentre dela, aquela que é encarregada de seguir mais de perto as jovens em formação, assume uma importância capital, sem excluir os contributos de outras pessoas, mesmo que não se coloquem no mesmo plano que a mestra.

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O termo formação deriva do latim: forma, que designa a imagem integral de um ser que chegou à perfeição e maturidade segundo a sua própria espécie, cf. G. POLICIA, G. ROCCA (ao cuidado), Dizionario degli istituti di perfezione IV, Paoline, Roma 1977, 121. O verbo informare, usado por Clara, que voltamos a encontrar no PC 1, 14, tem o sentido de dar forma, palavra muito querida a Clara, no sentido de modelo em quem se deve conformar, que em definitivo é Jesus Cristo. Por isso fala de forma de vida (RCL 1,1) e nunca de Regra, da forma da nossa pobreza (RCL 2, 14). Nesta linha de exemplaridade cada irmã está chamada a ser forma para as outras. TCL 19). 3 Na nossa sociedade que se expressa por imagens, são os exemplos de vida que podem convencer, e não as belas instruções. Isso não significa que não tenhamos de transmitir os fundamentos da nossa vida. 28

A MESTRA “A abadessa cuide de encontrar, entre as irmãs mais discretas4 do mosteiro, uma mestra5 para estas (jovens candidatas) e outras noviças, que as instrua diligentemente (diligenter) na santa vida comum (sancta conversatio) e nos bons costumes, segundo a forma da nossa profissão (RCL 2, 21-22; CCGG Art. 179.” Segundo a nossa forma de vida, devido à delicadeza da tarefa, a mestra é escolhida pela Madre. No entanto, é muito importante que as irmãs acolham a mestra designada para este trabalho e a ajudem na sua tarefa. A capacidade de discernimento é o talento exigido à mestra. A formação consiste em cuidar com amor a jovem irmã, acompanhando-a com respeito, em tudo o que concerne à nossa vida. A sancta conversatio (cf. TCL 56-57), a vida em comum na qual Clara e suas primeiras irmãs foram instruídas por Cristo e Francisco, é, para a mestra, o objetivo da formação e compreende todos os aspectos do nosso estilo de vida; consiste, concretamente, em acompanhar a jovem para a ajudar a encarnar o Evangelho na sua história e na sua pessoa, descobrindo o alcance dos gestos quotidianos. Trata-se, entre outras coisas, de introduzir as irmãs na Liturgia das Horas, não só ensinando-a simplesmente a manejar o breviário6, mas levando-a a descobrir a Liturgia das Horas como alimento da sua vida espiritual, como santificação do tempo e do lugar da comunhão fraterna. Para isso é necessário que compreenda cada vez melhor o sentido do Ano Litúrgico e descubra neste o caminho do seguimento de Cristo traçado pela Igreja. Deve ser introduzida na —————

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No texto latino encontramos discretioribus=mais discretas. Uma vez que no latim discretus é particípio passado do verbo discerno, permite perceber que a tradução mais exata é capacidade de discernimento. Na nossa forma de vida, encontramos o que hoje se considera a primeira tarefa da formação, particularmente necessária numa formadora, mas não só, também na abadessa, em cada irmã. É um elemento essencial. Toda a jovem em formação deve ser ajudada a fazer crescer as sua capacidades para levar a cabo um discernimento pessoal. 5 Em Francisco, por coerência evangélica, não encontramos o termo mestre.Esse nome só a Jesus Cristo. Clara emprega o termo tomado da tradição monástica, para colocar o acento no educar, no acompanhamento das que entram. 6 A espiritualidade do século XIX, considerava a “reza do breviário” como uma obrigação, e o mais importante era o pronunciar de todas as palavras e não o deixar-se penetrar no mais íntimo da Palavra rezada. Esta atitude é contra a tradição clareana que, como Francisco e Clara, fez do breviário uma fonte primordial da oração pessoal. A interiorização da Palavra transforma-a num tecido de escritos que se tornam em Evangelho vivido e testemunhado. Cf. A vita fraterna in conunitá, em EMCHRIDION VATICANUM 14, EDB Bolonha 1997, n. 20 (VF). 29

compreensão dos Salmos, não tanto através de um estudo sistemático, mas de um aprofundamento sério e meditado, com o fim de os integrar na vida. Os Salmos apresentam a Deus todos os sentimentos humanos e ensinam as diversas formas de oração: arrependimento, súplica, ação de graças, sede de Deus, louvor… Por outro lado, manifestam a relação com Deus como uma aliança, um pacto de amor entre Deus e seu povo, entre o Deus e a mulher que O busca. Assim se pode compreender o sentido da esponsalidade tão acentuada nas Cartas de santa Clara: o pacto de amor com Jesus Cristo pobre e crucificado, onde o seguimento se torna comunhão mística7. O Saltério ensina a espiritualidade dos pobres que confiam sem reservas no Senhor. Orando, somos introduzidos no seguimento do Pobre. Portanto, deve-se iniciar a jovem na oração mental8, ajuda-a a descobrir o sentido do silêncio9 como lugar do encontro com Deus. Pouco a pouco perceberá a urgência de não apagar “o Espírito da santa oração e devoção, às quais as demais coisas temporais devem servir”(RCL 7, 2; 1R 5, 2). A autenticidade das relações com Deus, que seja ser busca d’Ele orientada pelo Espírito e não um intimismo carregado de si mesmo, verifica-se na vida quotidiana. Na vida quotidiana entre as irmãs surge um impulso por uma liberdade interior que as torna independentes do juízo daqueles que as rodeiam e as torna capazes de dar o primeiro passo em direção aos outros. A relação fraterna prospera quando a pessoa não se coloca no centro, quando ajuda —————

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A jovem em formação será introduzida pouco a pouco nessa modalidade de seguimento, que está no coração da vocação das irmãs pobres, sem sentimentalismos e sem adulterar o alcance da radicalidade evangélica. Cf. CCGG. Art 56-59. 8 A oração é o lugar do encontro pessoal com o Deus. Cf. Vida Consagrada (VC) 15. Fundamenta-se nas leituras da missa do dia. Clara indica-nos na 2CCL 19-20; 4CCL 15-27. Seguindo as palavras de Clara podemos chegar a uma modalidade da leccio divina (termo e prática ausentes em Clara: olha (vide): leitura atenta do texto; medita (intuire): releitura lenta que faz penetrar o conteúdo até ao íntimo; contempla (contemplare): fixar o coração na Palavra, em silencio, com calma deixando que Deus fale ao coração em silêncio; que o coração se inflame na imitação (desederans imitari): deixar crescer em se a vontade de seguir a Cristo Jesus que finalmente se transforma: “Desta maneira o teu coração se inflame duma caridade cada vez mais forte, ó rainha do Rei celeste” (4CCL 27). É a força do amor, que da oração passa à vida, como dom de si às irmãs. Cf. CCGG Art. 56-59; VC 38. 9 O silêncio é um elemento essencial e constitutivo de uma relação autêntica com Deus Na forma de vida (RCL 5, 1-2) Clara não faz referência à tradição monástica. A referência ao silêncio aparece na Regra para os Ermitérios 3 e nas Constituições Pernarbornemses OFM 51; cf. FEDERAZIONE CHIARA D’ASSISI, Chiara d’Assisi e le sue fonte legislative I, Messaggero, Pádua 2003, 58. 30

espontaneamente a irmã, pois o nosso teor de vida (sancta converseo) se constitui ao mesmo tempo que a relação fraterna, o trabalho e todos os gestos quotidianos onde se aprende o estilo de vida pobre e nos ajuda ser cada vez mais irmãs10. A segunda tarefa da mestra está estreitamente ligada á primeira: formar para a honestidade dos costumes. Trata-se, com efeito, de uma maneira de atuar onde se dá a cada uma o que lhe corresponde, se cumpre com diligência aquilo que lhes foi encomendado, se é leal no falar, não se busca aparecer de uma maneira diferente do que se é e reconhece com tranquilidade ter-se equivocado, não se engana perante a própria consciência e perante as irmãs e se aprende a dar e a receber o perdão (RCL 9, 7-11). Tudo isto exige a liberdade interior, que nasce de um longo caminho de aceitação de si, como pecadoras amadas e perdoadas por um Pai misericordioso que cuida de nós. Para Clara, a honestidade, a coerência, é de suma importância, e diz respeito também à fidelidade da nossa pertença total ao Senhor, implicando a castidade e tudo o que firmemente prometemos. É, definitivamente, a atitude da mulher adulta e responsável. O CAMINHO DA FORMAÇÃO SEGUNDO A NOSSA FORMA DE VIDA “Se alguma, por inspiração divina, vier ter connosco (…) (RCL 2, 1).” Perante aquela que quer partilhar nossa vida, Clara salienta de imediato o elemento essencial: a inspiração, que vem do Espírito Santo, primeiro artífice do chamamento à vida segundo o Evangelho “no estado de perfeição a que te chamou o Espírito do Senhor”(2CCL 14). Na Segunda Carta, descobrimos que a perfeição é o seguimento de Cristo pobre até à nudez da cruz (2CCL 18-20; TCL 45); esse é o princípio (2CCL 11; TCL 78) sobre o qual se fundamenta uma vida como a nossa. Isto não quer dizer que a jovem que bata à porta do nosso mosteiro, tenha alcançado essa consciência. Efectivamente, o caminho de —————

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É a tríplice relação na qual se articula o caminho de formação: conversão a Deus; autenticidade da própria realidade de mulher; amar as irmãs com ternura de mãe (“Amai sempre a Deus, as vossas almas e as vossas irmãs” BCL 14); indica uma maturidade autêntica, sobretudo na dimensão fraterna. Se não se cresceu na aceitação de si mesmo e na relação com Deus que conduz à gratuidade e liberdade gozosa de filhos, as relações interpessoais estão enfermas. Para nós que vivemos sempre juntas, este ponto é particularmente crucial, até ao ponto de condicionar o caminho de uma fraternidade: reza-se juntas, mas os corações estão desunidos, surgem rivalidades e rancores e falta de diálogo… Cf. RCL 10, 6-7; CCGG Art. 150; VC 42. 31

discernimento (através dos encontros no locutório o seguindo outros modos adotados, como períodos de experiência no mosteiro11) cujo finalização não se deve apressar, além da observação da maturidade humana da jovem, da sua alegria de viver e de ser mulher, deve conduzir à verificação de um encontro autêntico com a pessoa de Jesus Cristo e às possibilidades de um crescimento nessa direção. Clara diz-nos também: “examine-a ou faça-a examinar com diligência acerca da fé católica e dos sacramentos da Igreja. E se ela crer todas estas coisas e as quiser professar com fidelidade e observar com firmeza até ao fim…” (RCL 2, 3-4). O exame preliminar de uma aspirante implica, hoje, ajudá-la a aprofundar a iniciação cristã, o conhecimento da Escritura e de outros aspetos. Não se trate de se lhe exigir erudição, mas de um crescimento na fé, uma fé que não é simplesmente adesão a umas verdades, mas confiança em Deus, abandono a Deus na oração e na vida quotidiana12. Clara, que raramente usa a palavra fé13, emprega habitualmente o verbo ver para designar a visão daquele que crê, referido primeiro ao caminho terrestre de Jesus, a quem Ela quer seguir, e depois, ao desígnio de amor ao Pai. Com efeito, é na sua própria vida, nos acontecimentos, nas circunstâncias, nas irmãs, que ela vê a ação de Deus e descobre o fio condutor da história da salvação à luz da Palavra que foi rezada. O crer que plasma a vida predispõe para a confesseo fidei, o testemunho, meta do seguimento de Cristo. Tudo isto se deve exigir como condição a uma aspirante à nossa vida. Àquela que começa a caminhar connosco, exige-se uma maturidade humana e espiritual proporcional á idade, ou pelo menos, uma vivência de fé que lhe permita não desorientar-se quando entra14. A aquisição —————

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Convinha refletir-se sobre se os diversos anos de prova exigidos em África às aspirantes que desejam abraçar a nossa vida, não deveriam ser introduzidos também noutras culturas, mormente na Europa. 12 Não se trata de um fideísmo fatalista, que não aceita assumir um acompanhamento, inclusivamente psicológico, para sarar as próprias feridas; e sublima tantos sofrimentos, atribuindo a sua causa aos outros, impedindo assim de viver o gozo da fé. 13 Clara só utiliza duas vezes o termo fé: RCL 2, 3; 3CCL 17. 14 Precisamente porque estamos numa sociedade onde existem mensagens contraditórias, não só no Ocidente, onde as mudanças culturais são vertiginosas, é necessário mais do que nunca ajudar a jovem que deseja caminhar connosco a ter fundamentos sólidos para poder superar o desconcerto que causam alguns dos nossos costumes e tradições que muitas vezes se tornam incompreensíveis para quem vem de uma mentalidade totalmente diferente. É necessário ajudá-las a descobrir o sentido dos pequemos gestos da nossa vida quotidiana. Os nossos gestos e costumes devem ter 32

progressiva de um compromisso para a vida, de uma fidelidade que se fundamenta na fidelidade a Deus, exige um passo sério de conversão. São estas as premissas que levarão a viver o testemunho cristão, que em si conduz ao martírio no âmbito da fraternidade. Àquela que vem ter connosco, deve-se perguntar se tem a vontade de viver a fé até ao fim, numa perspetiva que abarque toda a vida: uma constância difícil para quem é jovem. É uma firmeza que deve ser como que um impulso, como uma vontade de compromisso duradoiro; numa palavra, deve-se exigir seriedade àquela que quer pôr a fé no centre da sua vida e não é volúvel no essencial. É necessário ajudá-la a perceber a dimensão escatológica, uma visão da vida que não tem fim, não para fugir do presente numa submissão à fidelidade futura, mas para viver o momento presente como o máximo que se nos deu a viver, penhor de plenitude de vida superior, fundada sobre a Páscoa de Jesus Cristo que se converte no sentido do viver e do morrer (4CCL 23-32). Temos de ser inflexíveis sobre os requisitos essenciais. Parece claro, segundo a forma de vida, que a aspirante não seja de idade avançada, nem sofra alguma doença ou deficiência mental (RCL 2, 6). Da mesma forma, é necessário não aceitar candidatas demasiado jovens, que não podem ter plena consciência da sua condição de mulher, uma vez que não viveram a adolescência com as da sua idade e por isso continuam a ser adolescentes. O discernimento sobre a maturidade humana e afetiva deve ser rigorosa, uma vez que a nossa vocação não é uma vocação de massas. Não se entra no mosteiro para satisfazer aspirações pessoais, mas para uma missão de Igreja que se deve prosseguir acima de tudo15. ETAPAS DA FORMAÇÃO Avançamos no tema da formação escutando o testemunho pessoal de Clara: “Depois que o altíssimo Pai celestial, pouco depois da conversão do nosso bem-aventurado Pai São Francisco, se dignou iluminar-me o coração para que, seguindo-lhe o exemplo, fizesse penitência, segundo a luz da graça que o Senhor nos comunicou através da sua vida maravilhosa e da sua doutrina, prometi-lhe voluntariamente obediência juntamente com as poucas —————

sentido evangélico explicável também com palavras. Não basta dizer que sempre se fez assim; alguns costumes do século XIX que não fazem crescer o Reino, devem ser abolidos. 15 O mosteiro não é uma comunidade terapêutica. E para certas patologias é totalmente desaconselhado. 33

irmãs que o Senhor me tinha dado, logo depois da minha conversão” (TCL 2426). Com uma consciência que alcançou no final da sua vida, Clara ensina-nos as etapas fundamentais da resposta ao chamamento de Deus. 1. A iniciativa é do Pai. O chamamento é dom gratuito: à luz da graça. É importante partir da consciência de que a vocação nos foi dada pelo Pai, que confia na nossa pequenez de criaturas. Portanto, deve-se formar para a gratuidade, o reconhecimento e a alegria de serem filhas amadas16. Deve-se ajudar a descobrir as características pessoais do dom encarnado numa mulher concreta. A auto-estima, reconhecer a beleza concedida pessoalmente a cada uma, aprender a amar-se sem narcisismos, aceitando os próprios limites, sem desprezar o dom de Deus considerando-se incapazes, constitui um aspeto importante no processo formativo. Clara acrescenta: O Pai dignou-se iluminar meu coração17, benevolência gratuita para a visão da fé pela luz do Espírito Santo. A nossa espiritualidade é mais do coração que da inteligência (sem a excluir). Isto deve-se ter presente no caminho da formação. 2. Fazer pemitência: O objeto da iluminação é o caminho da conversão que começa na fé do Evangelho e nos leva à transformação daquele que quer viver segundo a forma do santo Evangelho (TCL 14). A formação é um caminho que dura toda a vida e no qual os anos de formação criam as bases. A mudança de mentalidade, o deixar a mentalidade do mundo e assumir a do Evangelho, implica todos os aspetos da nossa vida18. 3.Obediência a Francisco: Clara compreende o chamamento de Deus pela mediação de Francisco. Promete-lhe obediência, entrando na primitiva fraternidade, e aprende a viver o Evangelho com a mesma intuição carismática. A relação com Francisco e com os irmãos Menores não é um simples corolário da nossa vida, Clara corrobora esta obediência em 1252 (RCL 1, 4), quando a —————

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Clara mostra-se cheia de gozo (3CCL 4. 9-10), vive no gozo do Espírito (4CCL 7). É uma alegria que tem a sua origem em Deus e que se consolida com o facto de estar bem n’Ele e consigo mesmo. 17 O coração, no sentido bíblico, é a sede da vontade, das decisões, é o lugar onde se adere à fé. 18 A irmã Filipa de Gislério conta assim a sua vocação: “referiu que a sua vocação se deveu á influência de Santa Clara que a fez meditar em como Nosso Senhor Jesus Cristo suportou a paixão e morreu na Cruz para salvação da humanidade. Foi esta mensagem que a sensibilizou e a levou a fazer penitência juntamente com ela.” Tornase claro que o encontro com Jesus Cristo na sua Páscoa conduz à atitude de conversão que abraça a vida e dura a vida toda. Cf. CCGG Art 83-84. 34

evolução rumo à instituição tinha transformado a simplicidade das origens, tendo gerado uma estrutura diferente tanto para os irmãos como para as irmãs. Insiste em acentuar a unidade do carisma, que deve ser visível na formação19. Tendo em conta estes elementos essenciais, continuamos com os critérios da forma de vida. “Se for achada idónea, diga-se-lhe a palavra do Santo Evangelho que diz que vá e venda todas as suas coisas e as reparta pelos pobres” (RCL 2, 8). O Evangelho é guia da vida: começa-se a vivê-lo quando se abandonam os bens materiais. A saída da vida secular exige hoje uma salto maior que no passado. Se o caminho do discernimento conduziu a realizá-lo com a convicção pela união ardente com o pobre Crucificado20, a formadora deve estar atente para não adulterar a radicalidade evangélica. Convém que esta seja vivida pelas irmãs, pessoal e comunitariamente, porque de contrário acaba-se por manipular o Evangelho, segundo a mentalidade consumista atual21. O tempo de postulantado, que tem por objetivo a experiência gradual da nossa vida, deve ajudar a fortalecer a vontade e a capacidade de não colocar no centre os próprios gostos e necessidades. A jovem que começa com toda a sua fragilidade, leva consigo o desejo de responder a esse amor de Deus que descobriu e que em parte experimentou. O caminho que conduz à unidade interior, de onde provém a paz da alma, deve estimular ao mesmo tempo espírito e o corpo. A dimensão corporal é a modalidade concreta da nossa existência e a sua harmonia não se realiza através de um vida cómoda, com a qual se corre o risco de se pôr a si mesmo no centre das suas atenções. Clara apresenta o aspeto da virgindade22, não como um puro dado físico, mas como —————

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Se esta dimensão não se realiza na vida de fraternidade concreta, ficará como uma simples teoria. Cf. CCGG Art. 121. 20 2CCL 13; CCGG Art. 5. O desejo não é um vago sentimentalismo, mas uma paixão do coração que busca Deus, abandonando tudo o que não é Ele. Clara vive a Páscoa como centro e ensina-nos a enraizar-nos n’Ela desde o princípio do caminho. No fim da vida, o desejo volta a ser ardente (4CCL 29; CCGG Art. 7. 21 Desta maneira, acontecerá que a jovem encontre mais bens e comodidades do que em sua própria casa (não só no ocidente). Por isso, não é assim que ajudamos, pois o coração não se fortalece nas opções e não distingue o único necessário. 22 “…escolhendo um esposo de linhagem mais nobre, o Senhor Jesus Cristo, que guardará imaculada e incólume a vossa virgindade” (1CCL 7). Esta é a primeira passagem em que Clara trata o assunto. Depois parece evidente que a virgindade é um dom quotidiano, que vem d’Aquele que o deu. Está, pois, indissoluvelmente ligado á 35

algo que vai além da castidade. Trata-se de viver o próprio corpo com a consciência de uma beleza recebida para se transformar em dom de amor. É um caminho através do qual a mulher, em comunhão com Cristo, faz seu o dom integral ao Pai e aos irmãos, no caráter específico de ser mulher. O corpo também é o templo do Espírito, por isso é chamado a escutar as suas inspirações para que “… com o auxílio do Senhor, Lhe devolvamos, multiplicado, o talento que nos confiou” (TCL 18). Clara fala “… do empenho que devemos pôr em realizar, de alma e corpo, os mandamentos de Deus” (TCL 18). Recordando a sua experiência entre os leprosos, Francisco afirma: “… o que me parecia amargo tornou-se para mim em doçura de alma e de corpo” (T 3). Não se exige à irmã pobre de hoje as penitências corporais excessivas de Clara. Mas está sempre chamada a saber controlar os gostos. Por exemplo, deve ter uma relação sadia com os alimentos (RCL 3, 8). Uma mulher pobre por amor, deve encontrar o sentido da sobriedade e da ação de graças pelo pão de cada dia. Estes não são componentes marginais da nossa pobreza, porque a sua autenticidade verifica-se no quotidiano, no qual a alimentação é um dos aspetos. Se tomarmos a sério a nossa forma vida, damo-nos conta de que Clara, assim como Francisco, escolheu a forma de vida que os identificava com os últimos da sociedade do seu tempo23. O início de noviciado é assinalado com a tomada do hábito dos pobres, escolhido pelo Filho de Deus que “… desceu ao seio da Virgem Maria e apareceu desprezível, desamparado e pobre neste mundo” (1CCL 19). Por isso Clara suplica: “Por amor do santíssimo e dilectíssimo Menino envolto em pobres panos e reclinado no presépio e de sua santíssima Mãe, admoesto, suplico e exorto as minhas irmãs que se vistam com trajes pobrezinhos” (RCL 2, 25). A lógica da encarnação deve estar muito presente na formadora, para ajudar a jovem a não transformar essa lógica num sentimentalismo vago em relação ao Menino Jesus. Do que se trata é de acolher essa lógica de vida, vivendo a própria maternidade na gratuidade do dom. Por isso, deve assumir-se de maneira consciente, a essência constitutiva da mulher, feita para ser o seio da vida, para que através do seguimento de Cristo, pobre e humilde, consiga leválo espiritualmente, com a força do Espírito no seu corpo casto e virginal. —————

pobreza (13), ainda mais, para pertencer sem reservas a Deus em Jesus Cristo. Se introduzimos a virgindade na formação, mostrando o seu sentido mais profundo, ela pode também ser compreendida por uma jovem de hoje. Cf. CCGG Art 26. 23 Estamos chamadas a interpelarmo-nos sobre como vivemos esta dimensão e que mensagem transmitimos às irmãs em formação, à Igreja e à sociedade. 36

Clara acrescenta: “A partir deste momento não lhe é permitido deixar o mosteiro a não ser por motivo evidente, útil, razoável e aceitável” (RCL 2, 13). A frase deve ser lida comparando com a regra dos irmãos (“E de modo algum lhes será lícito depois, sair desta religião… (2R 2, 12”), pelo que podemos deduzir que o primeiro significado é a exigência da perseverança. Efetivamente, inclui também uma vida centrada na comunhão mística com Cristo e, por isso, adopta um género de vida estável, num determinado lugar, de onde se deduz a clausura desejada pela Igreja. A opção de uma vida contemplativa, onde tudo se orienta para a busca, a escuta, o louvor, a contemplação de um Deus trinitário em Jesus com a operação do Espírito Santo, implica também para nós a clausura, embora a vida contemplativa não se esgote nesta última. Por isso, é necessário evitar dois riscos opostos: Por um lado, a relativização da clausura (que não é a totalidade da nossa vida) pode ter como consequência o abandono de elementos essenciais da forma de vida, como a renúncia a tudo o que, mesmo sendo bom, não se orienta para a busca de Deus; aqui se englobam os compromissos e atividades incompatíveis com a nossa opção de vida, porque são demasiado absorventes e implicam numerosas saídas; até as compras se podem converter numa busca de comodidade; o excesso de encontros no locutório, os telemóveis, também favorecem a extinção do Espírito… Por outro lado, a rigidez na primazia da clausura que deriva da mentalidade trindentina, não de santa Clara, conduz que se dê demasiada importância às estruturas e se traduza concretamente em turvação da mente e do coração. O contato com os acontecimentos da Igreja e do mundo forma parte do nosso estilo de vida. Por isso, deve-se formar para o uso crítico dos meios de comunicação, e a viver os contatos no locutório como uma oportunidade de dar testemunho evangélico24 (o que não é o mesmo que fazer sermões moralizantes) e recebê-lo da pessoa que nos visita, sem buscar evasivas ou compensações para a imaturidade afetiva25.

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CCGG Art. 125. Algumas limitações na clausura durante o noviciado podem ser formativas, com a condição de que estejam realmente fundamentadas e assumidas como um meio crescimento na vida centrada unicamente em Deus. As formadoras devem ter muito presente que o viver encerradas pode causar regressão na jovem, caso a clausura se converta em dependência em relação a tudo, sem espaço de responsabilidade pessoal, sem confrontação com os problemas concretos das pessoas.

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O noviciado é a iniciação à vida fraterna, mais especificamente à vida segundo a forma vivendi26, dada por Francisco. O noviciado deve conduzir a sentir-se cada vez mais filhas de Deus Pai que nos ama com ternura de mãe, para se abandonar cada vez mais à sua Providência, que nasce também da escuta e das mediações humanas, na alegria de sentir-se amadas tal como somos, mesmo naquilo que em nós não é tão amável. Ao mesmo tempo, o noviciado deve conduzir à experiência da pertença total das escravas: como Maria, deve deixar-se converter cada dia pela Palavra, para a encarnar e aderir à vontade do Pai. O sermos esposas do Espírito Santo, leva-nos de novo a Maria. Francisco afirma que nos fizemos como Maria; Por isso, na vida quotidiana devemos crescer na docilidade ao Espírito, tal como Maria. Na formação deve dar-se muito espaço “… a que sobre todas as coisas devem desejar ter o Espírito do Senhor e a sua santa operação” (RCL 10,9). O Espírito é o artífice da comunhão mística com Cristo, que nos converte em ouvintes da Palavra, acolhe o Corpo e Sangue do Senhor, e dá-nos a capacidade de ver o bem que Deus realiza em nós, nas irmãs, na Igreja e no mundo. A sua santa operação purifica de tudo o que nos afasta de Deus, ilumina para conhecer a Deus, isto é, para fazer a experiência d’Ele, para viver a nossa realidade de filhas amadas e ingratas, para ver os sinais da sua presença na vida quotidiana; faz-nos arder no fogo do amor, capacita-nos para seguir as pegadas de Jesus Cristo e introduznos na comunhão trinitária27. É o espírito quem nos chama a viver a perfeição do Santo Evangelho, que é Jesus Cristo28. É necessário ajudar as noviças a entrar nas Cartas de Clara, que facilmente nos encantam. As núpcias de Cristo que as Cartas cantam, são o seguimento de Jesus pobre e crucificado, a radicalidade evangélica que as Cartas propõem de maneira decidida. Estas devem ser acompanhadas pelas Exortações de Francisco, onde melhor se explica o sentido do seguimento que é caminho de Sabedoria. Desta forma, as noviças são introduzidas no caminho do ascetismo, do qual não podem prescindir e que para nós significa um deixar-se progressivamente expropriar pelo Espírito, centrado na sabedoria do Crucificado, que se transforma em sabedoria quotidiana, numa pobreza que —————

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RCL 6, 3-4: este texto oferece a síntese trinitária e mariana de uma vida contemplativa, de seguimento evangélico e de comunhão. 27 CO 50-52; cf. 3CCL 21-23; VC 36. 28 O Espelho de Clara é a Sabedoria encarnada na nossa condição humana (3CCL 12; 4CCL 14. 18-26). A pobreza cantada na Primeira Carta é justamente a Sabedoria (1CCL 15-17). Não é por acaso que no Evangelho, o discurso sobre a pobreza pela qual se abandona tudo, está inspirada nos livros sapienciais (3CCL 6-79. CCGG Art. 9. 34. 38

abraça todas as dimensões da vida, sem descuidar a pobreza efetiva, sem a qual não se propõe, nem se vive um caminho espiritual, mas algo abstrato e artificial29. Este caminho de sabedoria harmoniza-se muito bem com um programa de crescimento humano, que conhece a luta para se libertar de si mesmo, a concentração narcisista sobre si mesmo, a desconfiança, o sentimento de culpa pelo pecado pessoal, etc. O processo formativo deve ser acompanhado por um aprofundamento dos Evangelhos, dos Profetas e do Êxodo30. Uma vez que a Páscoa é o coração da nossa espiritualidade, a formação deve orientar-se para o Crucificado ressuscitado, o Cristo pobre de Clara, descobrindo cada vez mais como a celebração eucarística, ao introduzir-nos no mistério, nos capacita para “oferecermo-nos como hóstia santa e agradável a Deus” (Ro 10, 7)31. É na passagem da celebração à vida que se concretiza diariamente o seguimento de Cristo. É aqui que se introduz a iniciação à vida fraterna (RCL 10. 6), vivendo nos pequemos gestos o sim e a gratidão da celebração eucarística. Por essa razão, o noviciado de uma só noviça é muito problemático, porque não existe confrontação com as colegas. Faltam as condições concretas para vivenciar um amor que não seja só de palavras e faça ver como é necessário sair do centro de si mesma, para se dar conta das suas reações e da falta de liberdade que a motiva, para aprender a colaborar em atividades realizadas em comum, para descobrir que a capacidade de diálogo é muito diferente das muitas palavras se poderiam dizer. Quando chega o momento da profissão, é necessário que a noviça compreenda o sentido do seguimento de Cristo na nossa vida, começando por se deixar desposar pelo Espírito em fraternidade; que tenha feito uma certa experiência de obediência, não só no que se pede cada dia, mas também nos pedido específicos da parte de quem orienta, demonstrando a consciência de saber decidir por imesma e ao mesmo tempo a capacidade de aceitar o pensamento daquela que nesse momento exerce o serviço de Mãe ou de mestra —————

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Clara fala da pobreza e da humildade: aquele que é pobre não é presunçoso, pois sabe que tudo recebeu como dom do dador de todos os bens, e é consciente da sua própria pequenez (que não é o mesmo que falta de autoestima), cf. CCGG Art.36), que se manifesta na relação fraterna, onde não se teme o juízo e se acolhe a outra como dom na relação concreta. Todo o processo de kénosis de Cristo é vivido por Clara em clave de pobreza (TCL 45-47). 30 CC GG Art. 75. 31 Cf. 2CCL 10; CC GG Art.12; VC 95. 39

ou de outra irmã com quem trabalha, unindo-se assim à obediência de Jesus32. A alegria de viver também deve manifestar-se no cansaço do caminho. No final do tempo de provação, a noviça será recebida em obediência. Esta a síntese do sentido da profissão para Francisco e Clara, que também falava da forma da nossa pobreza (RCL 2, 14). A obediência é o cume da pobreza porque implica a renúncia ao que é mais próprio e imprescindível da pessoa: a sua vontade. Devemo-nos centrar novamente sobre este ponto: por um lado, porque renunciamos por amor a Deus ao nosso querer (RCL 10, 2), na disponibilidade radical de aderirmos à obediência; por outro lado, devemos ter muito claro que não renunciamos à inteligência33. Estamos chamadas a ser mulheres adultas, conscientes do que prometemos, que pesam e buscam o bem, que têm ideias às quais são capazes de renunciar oferecendo-as a Deus e cumprindo a obediência. A simples dependência pode esconder infantilismo, delegação das próprias responsabilidades, sinal de carência afetivas, procurando fazer tudo o que desejamos mas com a cobertura da Madre. É necessário também valorizar a dimensão do serviço, tão típico de Clara, e que exige à Madre e às irmãs a atitude de Cristo que lava os pés, em total doação de si. Assim, a obediência anda ligada harmoniosamente com a corresponsabilidade de agir juntas, de decidir juntas, de transmitir a fé e a coerência evangélica nas opções que devem tomar. Se tudo isto se pratica realmente na comunidade, a jovem professa o aprenderá no contacto diário com as irmãs e o capítulo conventual se converterá para ela numa escola de unidade no amor mútuo (RCL 10, 7). Também a teologia da vida consagrada se deverá entender a partir da vida de Clara e de Francisco, uma vez que se trata de viver o Evangelho de uma maneira que está para além das teorias. Com as irmãs de votos temporários, devemos evitar o excesso oposto: a- Abandona-as totalmente aos trabalhos comunitários, sem lhes dar tempo para o estudo e aprofundamento, nem para se poderem confrontar com a mestra das professas, esquecendo que estão em tempo de formação. b-Transforma esse período em tempo académico em estudos de carácter universitário. Recordemos o que Francisco nos ensina na Exortação 7. As nossas irmãs em formação estão chamadas à missão de tornar visível a Cristo humilde e pobre na atualidade. A sua formação deve ter em —————

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Deve ter-se cuidado em não considerar como respeito à pessoa o “fazer o que se quer”, enquanto que a busca de seguranças conduz a confiar-se em lideres de quem se depende cegamente. 33 Ex 3. 40

atenção esta resposta, que deve dar a partir da sua maturidade como mulher. Não esqueçamos, a este respeito, as exigências da forma de vida: “E as que não sabem letras não cuidem de as a prender” (RCL 10, 8), que nos remete para o primado do Espírito Santo. Trata-se de aprender com a vida, aprofundando a Escritura, a teologia, a patrística, orientadas a conhecer melhor a tradição em que Francisco e Clara se inseriram e descobri a nossa história para compreender como chegamos ao presente. No geral os nossos mosteiros ainda se ressentem da espiritualidade do século XIX: renascidos depois da extinção da vida religiosa, assumiram um estilo de vida observante, devocional e centrada na clausura. Considero muito importante o conhecimento das nossas santas, das místicas trinitárias centradas em Jesus Cristo que no seu tempo encarnaram a vivência do Evangelho. Seus escritos espirituais ajudam-nos no crescimento interior, muito mais que o recurso a outras espiritualidades. Não devemos precipitar o momento da profissão solene. Exige-se à irmã que chega a este momento a consciência da sua incapacidade de viver esta vida confiando só nas suas forças e, ao mesmo tempo, a confiança na fidelidade a de Deus, que já experimentou no processo formativo. A irmã deve sentir que pode entregar com gozo sua pequenez nas mãos d’Aquele que é o único Omnipotente34. O processo de maturidade humana pode exigir mais de três anos para chegar a essa paz interior que consiste em confiar-se ao Pai celeste e à fraternidade. Até agora seguimos as etapas da formação tradicional, talvez devamos dar mais importância às pessoas que aos prazos jurídicos. Seria desejável uma prática semelhante à da Igreja oriental: o passo à etapa seguinte no processo formativo realiza-se quando a irmã está preparada, e não porque transcorreram os anos estabelecidos para essa etapa. Dessa maneira o seu sim lhe dará a força para seguir as pegadas de Jesus na vida quotidiana. Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

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CO 9. 41

PAPA BENTO XVI — Catequeses sobre três santas clarissas: Santa Verónica Juliani, Santa Catarina de Bolonha e Santa Catarina de Génova

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SANTA VERÓNICA JULIANI Hoje, gostaria de apresentar uma mística que não é da época medieval; trata-se de Santa Verónica Juliani, monja clarissa capuchinha. O motivo é que no próximo dia 27 de Dezembro se celebra o 350° aniversário do seu nascimento. Città di Castello, lugar onde ela viveu durante muitos anos e faleceu, assim como Mercatello — sua cidade natal — e a diocese de Urbino, vivem este acontecimento com alegria. Verónica nasceu precisamente no dia 27 de Dezembro de 1660 em Mercatello, no vale do Metauro, filha de Francesco Juliani e Benedetta Mancini; é a última de sete irmãs, das quais outras três abraçarão a vida monástica; é-lhe conferido o nome de Úrsula. Aos sete anos perde a mãe, e o pai transfere-se para Piacenza como superintendente das alfândegas do ducado de Parma. Nessa cidade, Úrsula sente crescer em si o desejo de dedicar a vida a Cristo. O apelo faz-se cada vez mais urgente, a tal ponto que, com 17 anos, entra na estrita clausura do mosteiro das Clarissas Capuchinhas de Città di Castello, onde permanecerá durante toda a sua vida. Ali recebe o nome de Verónica, que significa «verdadeira imagem» e, com efeito, ela tornar-se-á deveras imagem de Cristo Crucificado. Um ano depois, emite a solene profissão religiosa: começa para ela o caminho de configuração com Cristo através de muitas penitências, grandes sofrimentos e algumas experiências místicas ligadas à Paixão de Jesus: a coroação de espinhos, as bodas místicas, a ferida no coração e os estigmas. Em 1716, com 56 anos, torna-se abadessa do mosteiro e é reconfirmada nesta função até à sua morte, ocorrida em 1727, depois de uma dolorosíssima agonia de 33 dias, que culmina numa profunda alegria, a tal ponto que as suas últimas palavras foram: «Encontrei o Amor, o Amor deixouse ver! Esta é a causa do meu padecimento. Dizei-o a todas, dizei-o a todas!» (Summarium beatificationis, 115-120). Em 9 de Julho deixa a morada terrena para o encontro com Deus. Tinha 67 anos, 50 dos quais transcorridos no mosteiro de Città di Castello. É proclamada Santa no dia 26 de Maio de 1839 pelo Papa Gregório XVI. Verónica Juliani escreveu muito: cartas, relatórios autobiográficos e poesias. Todavia, a fonte principal para reconstruir o seu pensamento é o seu Diário, iniciado em 1693: vinte e duas mil páginas manuscritas, que abrangem 44

um arco de trinta e quatro anos de vida claustral. A escrita flui espontânea e contínua, não há cancelamentos ou correcções, nem sinais de pontuação ou distribuição da matéria em capítulos ou partes, segundo um desígnio previamente estabelecido. Verónica não queria compor uma obra literária; aliás, foi obrigada a escrever as suas experiências pelo Padre Girolamo Bastianelli, religioso dos Filippini, de acordo com o Bispo diocesano Antonio Eustachi. Santa Verónica tem uma espiritualidade acentuadamente cristológicoesponsal: é a experiência de ser amada por Cristo, esposo fiel e sincero, e querer corresponder com um amor cada vez mais comprometido e apaixonado. Nela, tudo é interpretado em clave de amor, e isto infunde-lhe uma profunda serenidade. Tudo é vivido em união com Cristo, por amor a Ele, e com a alegria de poder demonstrar-lhe todo o amor de que a criatura é capaz. O Cristo ao qual Verónica está profundamente unida é aquele que sofre na paixão, morte e ressurreição; é Jesus no gesto de se imolar ao Pai para nos salvar. É desta experiência que deriva também o amor intenso e sofredor pela Igreja, na dúplice forma da oração e da oferenda. A Santa vive nesta perspectiva: reza, sofre e procura a «santa pobreza» como «expropriação», perda de si (cf. ibid., III, 523), precisamente para ser como Cristo, que se entregou inteiramente a si mesmo. Em cada página dos seus escritos, Verónica recomenda alguém ao Senhor, corroborando as suas preces de intercessão com a oferta de si em cada sofrimento. O seu amor dilata-se a todas «as necessidades da Santa Igreja», vivendo com ansiedade o desejo da salvação de «todo o universo» (Ibid., III-IV, passim). Verónica clama: «Ó pecadores, ó pecadoras... todos e todas, ide ao Coração de Jesus; ide à lavanda do seu preciosíssimo Sangue... Ele espera-vos com os braços abertos para vos abraçar» (Ibid., II, 16-17). Animada por uma caridade fervorosa, ela presta atenção, compreensão e perdão às irmãs do mosteiro; oferece as suas orações e os seus sacrifícios pelo Papa, pelo seu bispo, pelos sacerdotes e por todas as pessoas necessitadas, inclusive pelas almas do purgatório. Resume a sua missão contemplativa com estas palavras: «Não podemos ir pregando pelo mundo, para converter as almas, mas somos obrigadas a rezar incessantemente por todas aquelas almas que ofendem a Deus... de modo particular com os nossos sofrimentos, ou seja, com um princípio de vida crucificada» (Ibid., IV, 877). A nossa Santa concebe esta missão como um «estar no meio», entre os homens e Deus, entre os pecadores e Cristo crucificado. Verónica vive de modo profundo a participação no amor sofredor de Jesus, convicta de que o «sofrer com alegria» é a «chave do amor» (cf. ibid., I, 45

299.417; III, 330.303.871; IV, 192). Ela evidencia que Jesus padece pelos pecados dos homens, mas também pelos sofrimentos que os seus servos fiéis tiveram que suportar ao longo dos séculos, no tempo da Igreja, precisamente mediante a sua fé sólida e coerente. Ela escreve: «O seu Pai eterno fez-lhe ver e sentir, nessa altura, todos os padecimentos que deviam suportar os seus eleitos, as suas almas mais amadas, ou seja, aquelas que teriam beneficiado do seu Sangue e de todos os seus sofrimentos» (Ibid., II, 170). Como diz de si o Apóstolo Paulo: «Agora alegro-me nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, pelo seu corpo que é a Igreja» (Cl 1, 24). Verónica chega a pedir a Jesus para ser crucificada com Ele: «Num instante — escreve — vi sair das suas santíssimas chagas cinco raios resplandecentes; e todos vieram ao meu redor. E eu via estes raios tornar-se como que pequenas chamas. Em quatro delas havia os pregos; e numa a lança, como que de ouro, inteiramente abrasada: e trespassou-me o coração, de um lado para o outro... e os pregos trespassaram-me as mãos e os pés. Senti uma grande dor; mas, na mesma dor, eu via-me a mim mesma, sentia-me inteiramente transformada em Deus» (Diário, I, 897). A Santa está convencida de participar antecipadamente no Reino de Deus mas, ao mesmo tempo, invoca todos os Santos da Pátria bem-aventurada para que venham em sua ajuda no caminho terreno da sua doação, à espera da bemaventurança eterna; esta é a aspiração constante da sua vida (cf. ibid., II, 909; V, 246). Em relação à pregação dessa época, centrada não raro na «salvação da própria alma» em termos individuais, Verónica mostra um forte sentido «solidário», de comunhão com todos os irmãos e irmãs, caminho rumo ao Céu, e vive, reza e sofre por todos. As realidades penúltimas, terrenas, ao contrário, embora sejam apreciadas em sentido franciscano como um dom do Criador, são sempre relativas, inteiramente subordinadas ao «gosto» de Deus e sob o sinal de uma pobreza radical. Na communio sanctorum, ela esclarece a sua doação eclesial, assim como a relação entre a Igreja peregrina e a Igreja celeste. «Todos os Santos — escreve — estão lá em cima mediante os méritos e a paixão de Jesus; mas para tudo quanto nosso Senhor realizou, eles cooperaram, de tal modo que a sua vida foi inteiramente ordenada, regulada pelas (suas) mesmas obras» (Ibid., III, 203). Nos escritos de Verónica encontramos muitas citações bíblicas, às vezes de modo indirecto, mas sempre claras: ela revela familiaridade com o Texto sagrado, do qual se nutre a sua experiência espiritual. Além disso, há que revelar que os momentos fortes da experiência mística de Verónica nunca estão separados dos acontecimentos salvíficos, celebrados na liturgia, onde ocupam um lugar particular a proclamação e a escuta da Palavra de Deus. Portanto, a 46

Sagrada Escritura ilumina, purifica e confirma a experiência de Verónica, tornando-a eclesial. Mas por outro lado, precisamente a sua experiência, alicerçada na Sagrada Escritura com uma intensidade excepcional, guia a uma leitura mais profunda e «espiritual» do mesmo Texto, entra na profundidade escondida do texto. Ela não só se exprime com as palavras da Sagrada Escritura, mas também vive realmente destas palavras, que nela se tornam vivas. Por exemplo, a nossa Santa cita com frequência a expressão do Apóstolo Paulo: «Se Deus é por nós, quem será contra nós?» (Rm 8, 31; cf. Diário, I, 714; II, 116.1021; III, 48). Nela, a assimilação deste texto paulino, esta sua grande confiança e profunda alegria tornam-se um acontecimento completo na sua própria pessoa: «A minha alma — escreve — foi unida à vontade divina, e eu estabeleci-me verdadeiramente e fixei-me para sempre na vontade de Deus. Parecia que nunca mais me iria afastar desta vontade de Deus, e voltei a mim com estas palavras específicas: nada me poderá separar da vontade de Deus, nem angústias, nem penas, nem dificuldades, nem desprezos, nem tentações, nem criaturas, nem demónios, nem obscuridades, nem sequer a própria morte, porque na vida e na morte, desejo inteiramente, e em tudo, a vontade de Deus» (Diário, IV, 272). Assim, temos também a certeza de que a morte não é a última palavra, estamos fixos na vontade de Deus e assim, realmente, na vida para sempre. Verónica revela-se, em particular, uma testemunha corajosa da beleza e do poder do Amor divino, que a atrai, permeia e inflama. É o Amor crucificado que se imprimiu na sua carne, como na de São Francisco de Assis, com os estigmas de Jesus. «Minha esposa — sussurrava-me Cristo crucificado — sãome preciosas as penitências que fazes por aqueles que estão em desgraça diante de mim ... Depois, tirando um braço da cruz, fez-me sinal que me aproximasse do seu lado ... E encontrei-me nos braços do Crucificado. Não posso descrever aquilo que senti naquele momento: queria estar sempre no santíssimo lado» (Ibid., I, 37). É também uma imagem do seu caminho espiritual, da sua vida interior: estar no abraço do Crucificado e assim permanecer no amor de Cristo pelos outros. Também com a Virgem Maria, Verónica vive uma relação de profunda intimidade, testemunhada pelas palavras que um dia ouve Nossa Senhora dizer, e que ela cita no seu Diário: «Fiz-te repousar no meu seio, recebeste a união à minha alma e por ela, como que em voo, foste levada diante de Deus» (IV, 901). Santa Verónica Juliani convida-nos a fazer crescer, na nossa vida cristã, a união com o Senhor no ser pelos outros, abandonando-nos à sua vontade com 47

confiança completa e total, e a união com a Igreja, Esposa de Cristo; convidanos a participar no amor sofredor de Jesus crucificado pela salvação de todos os pecadores; convida-nos a manter o olhar fixo no Paraíso, meta do nosso caminho terreno, onde viveremos juntamente com muitos irmãos e irmãs a alegria da plena comunhão com Deus; convida-nos a nutrir-nos quotidia— namente da Palavra de Deus para aquecer o nosso coração e orientar a nossa vida. As últimas palavras da Santa podem considerar-se a síntese da sua apaixonada experiência mística: «Encontrei o Amor, o Amor deixou-se ver!». Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2010

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SANTA CATARINA DE BOLONHA Numa recente catequese falei de santa Catarina de Sena. Hoje gostaria de vos apresentar outra santa, menos conhecida, que tem o mesmo nome: santa Catarina de Bolonha, mulher de vasta cultura, mas muito humilde; dedicada à oração, mas sempre pronta a servir; generosa no sacrifício, mas cheia de alegria no acolhimento da cruz com Cristo. Nasceu em Bolonha a 8 de Setembro de 1413, primogénita de Benvenuta Mammolini e de Giovanni de' Vigri, patrício rico e culto de Ferrara, doutor em leis e leitor público em Pádua, onde desempenhava funções diplomáticas para Niccolò III d' Este, marquês de Ferrara. As notícias sobre a infância e a adolescência de Catarina são escassas e nem todas são certas. Vive a infância em Bolonha, na casa dos avós; ali é educada pelos parentes, sobretudo pela mãe, mulher de grande fé. Transfere-se com ela para Ferrara com cerca de dez anos e entra na corte de Niccolò III d' Este como dama de honra de Margherita, filha natural de Niccolò. O marquês está a transformar Ferrara numa cidade esplendorosa, chamando artistas e letrados de vários países. Promove a cultura e, embora a sua vida não seja particularmente exemplar, cuida muito do bem espiritual, da conduta moral e da educação dos súbditos. Em Ferrara, Catarina não se ressente dos aspectos negativos, que muitas vezes a vida de corte comportava; goza da amizade de Margherita e torna-se a sua confidente, enriquecendo a sua cultura: estuda música, pintura e dança; aprende a poetizar, a escrever composições literárias e a tocar violão; torna-se perita na arte da miniatura e das transcrições; aperfeiçoa o estudo do latim. Na futura vida monástica valorizará muito o património cultural e artístico adquirido nesses anos. Aprende com facilidade, com paixão e com tenacidade; mostra grande prudência, modéstia singular, graça e gentileza no comportamento. Contudo, uma característica distingue-a de modo absolutamente claro: o seu espírito está constantemente dirigido para as realidades do Céu. Em 1427, com apenas 14 anos, também após alguns acontecimentos familiares, Catarina decide deixar a corte para se unir a um grupo de jovens mulheres provenientes de famílias nobres que viviam em comum, consagrandose a Deus. A mãe, mulher de fé, consente, embora tivesse outros projectos para ela. 49

Não conhecemos o caminho espiritual de Catarina antes desta escolha. Falando em terceira pessoa, ela afirma que entrou ao serviço de Deus «iluminada pela graça divina (...) com consciência recta e grande fervor», solícita noite e dia à santa oração, comprometendo-se em conquistar todas as virtudes que via nos outros, «não por inveja, mas para agradar mais a Deus, em quem tinha posto todo o seu amor» (Le sette armi spirituali, VII, 8, Bolonha 1998, p. 12). São notáveis os seus progressos espirituais nesta nova fase da vida, mas são também grandes e terríveis as provas, os sofrimentos interiores, sobretudo as tentações do demónio. Atravessa uma profunda crise espiritual, até ao limitar do desespero (cf. ibid., VII, pp. 12-29). Vive na noite do espírito, provada também pela tentação da incredulidade em relação à Eucaristia. Depois de sofrer muito, o Senhor consola-a: numa visão, concede-lhe um conhecimento claro da presença eucarística real, um conhecimento tão luminoso que Catarina não consegue expressar com palavras (cf. ibid., VIII, 2, pp. 42-46). No mesmo período, uma prova dolorosa abate-se sobre a comunidade: surgem tensões entre quem quer seguir a espiritualidade agostiniana e quem está mais orientado para a espiritualidade franciscana. Entre 1429 e 1430 a responsável do grupo, Lucia Mascheroni, decide fundar um mosteiro agostiniano. Catarina, ao contrário, com outras escolhe vincular-se à regra de santa Clara de Assis. É um dom da Providência, porque a comunidade habita perto da igreja do Espírito Santo, anexa ao convento dos Frades Menores que aderiram ao movimento da Observância. Assim, Catarina e as companheiras podem participar regularmente nas celebrações litúrgicas e receber uma assistência espiritual adequada. Têm também a alegria de ouvir a pregação de São Bernardino de Sena (cf. ibid., VII, 62, p. 26). Catarina narra que, em 1429 — terceiro ano da sua conversão — vai confessar-se a um dos Frades Menores que ela estimava, realiza uma boa confissão e pede intensamente ao Senhor que lhe conceda o perdão de todos os pecados e da pena a eles ligada. Deus revela-lhe em visão que lhe perdoou tudo. É uma experiência muito forte da misericórdia divina, que a marca para sempre, dando-lhe novo impulso para responder com generosidade ao imenso amor de Deus (cf. ibid., IX, 2, pp. 46-48). Em 1431 tem uma visão do juízo final. A cena assustadora dos condenados impele-a a intensificar orações e penitências para a salvação dos pecadores. O demónio continua a atacá-la e ela confia-se de modo cada vez mais total ao Senhor e à Virgem Maria (cf. ibid., X, 3, pp. 53-54). Nos escritos, Catarina deixa-nos algumas notas essenciais deste combate misterioso, do qual sai vitoriosa com a graça de Deus. Fá-lo para instruir as suas irmãs de hábito e aquelas que tencionam percorrer o caminho da perfeição: quer alertar contra as 50

tentações do demónio, que muitas vezes se esconde sob aparências enganadoras, para depois insinuar dúvidas de fé, incertezas vocacionais e sensualidades. No tratado autobiográfico e didascálico As sete armas espirituais, Catarina oferece a este propósito ensinamentos de grande sabedoria e de profundo discernimento. Fala em terceira pessoa, citando as graças extraordinárias que o Senhor lhe concede, e em primeira pessoa para confessar os próprios pecados. Do seu escrito transparece a pureza da sua fé em Deus, a profunda humildade, a simplicidade de coração, o ardor missionário e a paixão pela salvação das almas. Delineia sete armas de luta contra o mal, contra o demónio: 1. ter o cuidado e a solicitude de realizar sempre o bem; 2. acreditar que sozinhos nunca poderemos fazer algo verdadeiramente bom; 3. confiar em Deus e, por amor a Ele, jamais ter medo da batalha contra o mal, quer no mundo, quer em nós mesmos; 4. meditar com frequência sobre os acontecimentos e as palavras da vida de Jesus, sobretudo a sua paixão e morte; 5. recordar-se que devemos morrer; 6. ter fixa na mente a memória dos bens do Paraíso; 7. ter familiaridade com a Sagrada Escritura, trazendo-a sempre no coração para que oriente todos os pensamentos e toda as obras. Um bonito programa de vida espiritual, também hoje, para cada um de nós! No convento, não obstante fosse habituada à corte de Ferrara, Catarina desempenha funções de lavadeira, costureira, padeira e encarregada de cuidar dos animais. Faz tudo, até os serviços mais humildes, com amor e pronta obediência, oferecendo às irmãs de hábito um testemunho luminoso. Com efeito, ela vê na desobediência aquele orgulho espiritual que destrói todas as outras virtudes. Por obediência aceita o cargo de mestra das noviças, não obstante se considere incapaz de desempenhar tal função, e Deus continua a animá-la com a sua presença e os seus dons: com efeito, é uma mestra sábia e apreciada. Em seguida confiam-lhe o serviço do locutório. Custa-lhe muito interromper com frequência a oração para responder às pessoas que se apresentam à grade do mosteiro, mas também desta vez o Senhor não deixa de a visitar e de lhe estar próximo. Com ela, o mosteiro é cada vez mais um lugar de oração, de oferta, de silêncio, de cansaço e de alegria. Quando faleceu a abadessa, os superiores pensam imediatamente nela, mas Catarina impele-as a 51

dirigir-se às Clarissas de Mântua, mais instruídas nas constituições e nas observâncias religiosas. Contudo, poucos anos depois, em 1456, pede-se ao seu mosteiro que crie uma nova fundação em Bolonha. Catarina preferiria terminar os seus dias em Ferrara, mas o Senhor aparece-lhe e exorta-a a cumprir a vontade de Deus e ir a Bolonha como abadessa. Prepara-se para o novo compromisso com jejuns, disciplinas e penitências. Parte para Bolonha com dezoito irmãs de hábito. Como superiora é a primeira na oração e no serviço; vive em profunda humildade e pobreza. Quando termina o mandato do triénio de abadessa, é feliz por ser substituída, mas depois de um ano deve retomar as suas funções, porque a nova eleita ficou cega. Apesar do sofrimento e das graves enfermidades que a atormentam, ela desempenha o seu serviço com generosidade e dedicação. Ainda por um ano exorta as irmãs de hábito à vida evangélica, à paciência e à constância nas provas, ao amor fraterno, à união com o Esposo divino, Jesus, para preparar deste modo o seu dote para as bodas eternas. Um dote que Catarina vê no saber compartilhar os sofrimentos de Cristo, enfrentando com serenidade as dificuldades, angústias, desprezos e incompreensões (cf. Le sette armi spirituali, X, 20, pp. 57-58). No início de 1463 as enfermidades agravamse; reúne as irmãs de hábito pela última vez no Capítulo, para lhes anunciar a sua morte e recomendar a observância da regra. Por volta do fim de Fevereiro é provada por fortes sofrimentos que já não a deixarão, mas é ela que conforta as irmãs na dor, assegurando-lhes a sua ajuda inclusive do Céu. Depois de ter recebido os últimos Sacramentos, entrega ao confessor o escrito As sete armas espirituais e entra em agonia; o seu rosto faz-se bonito e luminoso; olha ainda com amor para quantas a circundam e expira docemente, pronunciando três vezes o nome de Jesus: é o dia 9 de Março de 1463 (cf. I. Bembo, Specchio di illuminazione. Vita di S. Caterina a Bologna, Florença 2001, cap. III). Catarina será canonizada pelo Papa Clemente XI no dia 22 de Maio de 1712. A cidade de Bolonha, na capela do mosteiro do Corpus Domini, conserva o seu corpo incorrupto. Caros amigos, santa Catarina de Bolonha, com as suas palavras e com a sua vida, é um forte convite a deixar-nos guiar sempre por Deus, a cumprir quotidianamente a sua vontade, embora muitas vezes não corresponda aos nossos desígnios, a confiar na sua Providência que jamais nos deixa sozinhos. Nesta perspectiva, santa Catarina fala connosco; à distância de muitos séculos, ainda é muito moderna e fala à nossa vida. Como nós, ela sofre a tentação, padece as tentações da incredulidade, da sensualidade, de um difícil combate espiritual. Sente-se abandonada por Deus, encontra-se na obscuridade da fé. Mas em todas estas situações apoia-se sempre na mão do Senhor, não O deixa, 52

não O abandona. E caminhando de mãos dadas com o Senhor, percorre a via recta e encontra o caminho da luz. Assim, diz-nos também a nós: coragem, também na noite da fé, mesmo em muitas dúvidas que possam existir, não deixa a mão do Senhor, caminha de mãos dadas com Ele, crê na bondade de Deus; assim é caminhar pela vida recta! E gostaria de ressaltar outro aspecto, o da sua grande humildade: é uma pessoa que não quer ser alguém ou algo; não deseja aparecer; não quer governar. Deseja servir, cumprir a vontade de Deus, estar ao serviço dos outros. E precisamente por isso, Catarina era credível na autoridade, porque se podia ver que para ela a autoridade era precisamente servir o próximo. Peçamos a Deus, por intercessão da nossa santa, o dom de realizar o programa que Ele tem para nós, com coragem e generosidade, para que somente Ele seja a rocha sólida sobre a qual se edifica a nossa vida. Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2010

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SANTA CATARINA DE GÉNOVA

Hoje gostaria de vos falar de outra santa que tem o nome de Catarina, depois de Catarina de Sena e Catarina de Bolonha; falo de Catarina de Génova, conhecida sobretudo pela sua visão sobre o purgatório. O texto que descreve a sua vida e o seu pensamento foi publicado na cidade da Ligúria em 1551; ele é dividido em três parte: a Vida propriamente dita, a Demonstração e declaração do purgatório — mais conhecida como Tratado — e o Diálogo entre a alma e o corpo (cf. Livro da Vida admirável e da doutrina santa, da beata Catarina de Génova, que contém uma útil e católica demonstração e declaração do purgatório, Génova, 1551). O redactor final foi o confessor de Catarina, o sacerdote Cattaneo Marabotto. Catarina nasceu em Génova, em 1447; última de cinco filhos, ficou órfã do pai, Giacomo Fieschi, ainda em tenra idade. A mãe, Francesca di Negro, dispensou-lhe uma válida educação cristã, a tal ponto que a maior das duas filhas se tornou religiosa. Com 16 anos, Catarina foi concedida como esposa a Giuliano Adorno, um homem que, depois de várias experiências comerciais e militares no Médio Oriente, tinha regressado a Génova para casar. A vida matrimonial não foi fácil, também devido à índole do marido, apaixonado pelo jogo de azar. Inicialmente, a própria Catarina foi induzida a levar um tipo de vida mundana em que, contudo, não conseguia encontrar a serenidade. Depois de dez anos, no seu coração havia um profundo sentido de vazio e de amargura. A conversão teve início a 20 de Março de 1473, graças a uma experiência singular. Tendo ido à igreja de são Bento e ao mosteiro de Nossa Senhora das Graças para se confessar, ajoelhou-se diante do sacerdote e «recebeu — como ela mesma escreve — uma chaga no coração, de um imenso amor de Deus», com uma visão tão clarividente das suas misérias e dos seus defeitos e, ao mesmo tempo, da bondade de Deus, que quase desmaiou. Foi tocada no coração por este conhecimento de si mesma, da vida vazia que ela levava e da bondade de Deus. Desta experiência derivou a decisão que orientou toda a sua vida, expressa com estas palavras: «Basta com o mundo e com os pecados» (cf. Vida admirável, 3rv). Então Catarina fugiu, suspendendo a Confissão. Voltou para casa, entrou no quarto mais escondido e chorou prolongadamente. Naquele 54

momento, foi instruída interiormente sobre a oração e adquiriu a consciência do imenso amor de Deus por ela, pecadora, uma experiência espiritual que não conseguia expressar com palavras (cf. Vida admirável, 4r). Foi nessa ocasião que lhe apareceu Jesus sofredor que carregava a cruz, como é frequentemente representado na iconografia da santa. Poucos dias depois, foi ter com o sacerdote para finalmente realizar uma boa confissão. Aqui teve início aquela «vida de purificação» que, durante muito tempo, lhe fez sentir uma dor constante pelos pecados cometidos e que a impeliu a impor-se penitências e sacrifícios para demonstrar o seu amor a Deus. Neste caminho, Catarina foi-se aproximando cada vez mais do Senhor, até entrar naquela que é denominada «vida unitiva», ou seja, uma relação de profunda união com Deus. Na Vida está escrito que a sua alma era orientada e ensinada interiormente só pelo dócil amor de Deus, que lhe concedia tudo aquilo que ela precisava. Catarina abandonou-se de modo tão total nas mãos do Senhor que chegou a viver, durante cerca de vinte e cinco anos — como ela escreve — «sem o intermédio de qualquer criatura, instruída e orientada unicamente por Deus» (Vida, 117r-118r), alimentada sobretudo pela oração constante e pela Sagrada Comunhão recebida todos os dias, o que não era comum na sua época. Só muitos anos mais tarde o Senhor lhe concedeu um sacerdote que cuidasse da sua alma. Catarina hesitava sempre em confiar e manifestar a sua experiência de comunhão mística com Deus, sobretudo pela profunda humildade que sentia diante das graças do Senhor. Foi só a perspectiva de dar glória a Ele e de poder favorecer o caminho espiritual de outros que a levou a narrar aquilo que se verificava nela, a partir do momento da sua conversão, que é a sua experiência originária e fundamental. O lugar da sua ascensão aos vértices místicos foi o hospital de Pammatone, a maior estrutura hospitalar genovesa, da qual foi directora e animadora. Portanto, não obstante esta profundidade da sua vida interior, Catarina vive uma existência totalmente activa. Em Pammatone foi-se formando ao seu redor um grupo de seguidores, discípulos e colaboradores, fascinados pela sua vida de fé e pela sua caridade. O próprio marido, Giuliano Adorno, foi conquistado por ela, a ponto de abandonar a sua vida desregrada, de se tornar terciário franciscano e de se transferir para o hospital, para oferecer a sua ajuda à esposa. O compromisso de Catarina no cuidado dos doentes continuou até ao fim do seu caminho terreno, a 15 de Setembro de 1510. Desde a conversão até à morte, não houve acontecimentos extraordinários, mas dois elementos caracterizaram toda a sua existência: por um lado a experiência mística, ou seja, a profunda união com Deus, sentida como uma união esponsal e, por outro, a assistência aos enfermos, a organização do hospital e o serviço 55

ao próximo, especialmente aos mais necessitados e abandonados. Estes dois pólos — Deus e o próximo — preencheram totalmente a sua vida, transcorrida praticamente entre as paredes do hospital. Estimados amigos, nunca devemos esquecer que quanto mais amarmos a Deus e formos constantes na oração, tanto mais conseguiremos amar verdadeiramente quantos estão à nossa volta, quem está perto de nós, porque seremos capazes de ver em cada pessoa o Rosto do Senhor, que ama sem limites nem distinções. A mística não cria distâncias em relação ao outro, não cria uma vida abstracta, mas sobretudo aproxima do outro, porque se começa a ver e a agir com os olhos, com o Coração de Deus. O pensamento de Catarina sobre o purgatório, pelo qual ela é particularmente conhecida, está condensado nas últimas duas partes do livro citado no início: o Tratado sobre o purgatório e o Diálogo entre a alma e o corpo. É importante observar que, na sua experiência mística, Catarina jamais tem revelações específicas sobre o purgatório ou sobre as almas que ali estão a purificar-se. Todavia, nos escritos inspirados pela nossa santa, é um elemento central, e o modo de o descrever tem características originais em relação à sua época. O primeiro traço original diz respeito ao «lugar» da purificação das almas. No seu tempo, ele era representado principalmente com o recurso a imagens ligadas ao espaço: pensava-se num certo espaço, onde se encontraria o purgatório. Em Catarina, ao contrário, o purgatório não é apresentado como um elemento da paisagem do interior da terra: é um fogo não exterior, mas interior. Este é o purgatório, um fogo interior. A santa fala do caminho de purificação da alma, rumo à plena comunhão com Deus, a partir da própria experiência de profunda dor pelos pecados cometidos, em relação ao amor infinito de Deus (cf. Vida admirável, 171v). Ouvimos sobre o momento da conversão, quando Catarina sente repentinamente a bondade de Deus, a distância infinita da própria vida desta bondade e um fogo ardente no interior de si mesma. E este é o fogo que purifica, é o fogo interior do purgatório. Também aqui há um traço original em relação ao pensamento do tempo. Com efeito, não se começa a partir do além para narrar os tormentos do purgatório — como era habitual naquela época e talvez ainda hoje — e depois indicar o caminho para a purificação ou a conversão, mas a nossa santa começa a partir da própria experiência interior da sua vida a caminho da eternidade. A alma — diz Catarina — apresenta-se a Deus ainda vinculada aos desejos e à pena que derivam do pecado, e isto torna-lhe impossível regozijar com a visão beatífica de Deus. Catarina afirma que Deus é tão puro e santo que a alma com as manchas do pecado não pode encontrar-se na presença da majestade divina (cf. Vida admirável, 177r). E também nós sentimos como estamos distantes, como 56

estamos repletos de tantas coisas, a ponto de não podermos ver Deus. A alma está consciente do imenso amor e da justiça perfeita de Deus e, por conseguinte, sofre por não ter correspondido de modo correcto e perfeito a tal amor, e precisamente o amor a Deus torna-se chama, é o próprio amor que a purifica das suas escórias de pecado. Em Catarina entrevê-se a presença de fontes teológicas e místicas das quais era normal haurir na sua época. Em particular, encontra-se uma imagem típica de Dionísio, o Areopagita, ou seja, aquela do fio de ouro que liga o coração humano ao próprio Deus. Quando Deus purifica o homem, liga-o com um fio de ouro extremamente fino, que é o seu mor, e atrai-o a si com um afecto tão forte, que o homem permanece como que «superado, vencido e totalmente fora de si». Assim, o coração do homem é invadido pelo amor de Deus, que se torna o único guia, o único motor da sua existência (cf. Vida admirável, 246rv). Esta situação de elevação a Deus e de abandono à sua vontade, expressa na imagem do fio, é utilizada por Catarina para manifestar a obra da luz divina nas almas do purgatório, luz que as purifica e eleva aos esplendores dos raios fúlgidos de Deus (cf. Vida admirável, 179r). Queridos amigos, na sua experiência de união com Deus os santos alcançam um «saber» tão profundo dos mistérios divinos, no qual o amor e o conhecimento se compenetram, a ponto de ajudarem os próprios teólogos no seu compromisso de estudo, de intelligentia fidei, de intelligentia dos mistérios da fé, de aprofundamento real dos mistérios, por exemplo daquilo que é o purgatório. Com a sua vida, santa Catarina ensina-nos que quanto mais amamos a Deus e entramos em intimidade com Ele na oração, tanto mais Ele se faz conhecer e acende o nosso coração com o seu amor. Escrevendo acerca do purgatório, a santa recorda-nos uma verdade fundamental da fé, que se torna para nós um convite a rezar pelos defuntos, a fim de que eles possam chegar à visão beatífica de Deus na comunhão dos santos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1032). Além disso, o serviço humilde, fiel e generoso, que a santa prestou durante toda a sua vida no hospital de Pammatone, é um exemplo luminoso de caridade para todos e um encorajamento especialmente para as mulheres que oferecem uma contribuição fundamental para a sociedade e a Igreja com a sua obra preciosa, enriquecida pela sua sensibilidade e pela atenção aos mais pobres e necessitados. Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011

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Documentos

1- VIII CENTENÁRIO DA FUNDAÇÃO DA ORDEM DAS IRMÃS POBRES. Carta de Fr. José Rodriguez Carballo, Ministro geral da Ordem dos Frades Menores 2- QUINTO CENTENÁRIO DA APROVAÇÃO DA REGRA DA ORDEM DA IMACULADA CONCEIÇÃO, DE SANTA BEATRIZ DA SILVA. Carta de Fr. José Rodriguez Carballo, Ministro geral da Ordem dos Frades Menores

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DOIS NOMES, DOIS FENÓMENOS, DUAS LEGENDAS: FRANCISCO E CLARA VIII CENTENÁRIO DA FUNDAÇÃO DA ORDEM DAS IRMÃS POBRES. CARTA DE FR. JOSÉ RODRIGUEZ CARBALLO, MINISTRO GERAL DA ORDEM DOS FRADES MENORES

Queridas Irmãs Pobres: “O Senhor vos dê a paz!” No dia 16 de abril inauguramos solenemente em Assis, em comunhão com todas as filhas de Santa Clara espalhadas pelo mundo inteiro, as celebrações do VIII Centenário da conversão de Clara de Assis e da fundação da Ordem das Irmãs Pobres. Tal acontecimento iniciou com a celebração das primeiras Vésperas do Domingo de Ramos, presidida pelo bispo de Assis, D. Domenico Sorrentino, na Catedral de S. Rufino. Em seguida fez-se uma peregrinação até à Porciúncula, Santa Maria dos Anjos, onde a jovem Clara, tendo abandonado “casa, cidade e família”, se refugiou para consagrar-se ao Senhor “diante do altar de Maria” (cf. LCL 8), e abraçar a forma de vida que Francisco lhe mostrara (cf. TCL 5), e que mais tarde o Papa Inocêncio IV abençoou, aprovando a Regra da Ordem das Irmãs Pobres. A peregrinação, da qual participou um grande número de Irmãos Franciscanos, de Religiosas e Religiosos, assim como numerosos leigos, passou pelos lugares onde as Irmãs Pobres conservam e transmitem o propósito de vida de Clara: o Proto-mosteiro, o Mosteiro de S. Quirico e o de Santa Coleta. Este foi realmente um momento cheio de emoção diante do acontecimento do qual se fazia memória: a consagração de Clara, com o corte dos cabelos feito pelo próprio Francisco, e a fundação das Irmãs Pobres; emoção favorecida e intensificada pela peregrinação noturna desde Assis até Santa Maria dos Anjos, animada por cantos e pela leitura de textos da vida de Clara e 60

de seus Escritos, e iluminada pelas luzes trémulas das tochas, assim como pela prolongada permanência diante da Porciúncula, onde a “Mãe das misericórdias” gerou a Ordem dos Irmãos Menores e a das Irmãs Pobres (cf. LSC 8). Diante da Porciúncula, em nome de todos, dei graças ao Pai das misericórdias por ter inspirado Francisco a viver segundo a forma do santo Evangelho (cf. TCL 14) e por ter chamado Clara a deixar-se seduzir pelo “mais belo dos filhos dos homens” (2In 20), a ponto de dirigir a Ele, constantemente e para sempre, sua “mente, alma e coração” (2In 20). Ao mesmo tempo dei graças a Ele pelas inumeráveis Irmãs Pobres que, nestes 800 anos de história, tentaram seguir Cristo segundo a forma de vida vivida por Clara de Assis, cumprindo-se deste modo a profecia do Papa Alexandre IV que, ilustrando o carisma da “mulher nova” do vale de Espoleto, falou de “uma árvore alta, voltada para o céu, com abundantes ramos, que no campo da Igreja produzia suaves frutos e em cuja sombra, agradável e amiga, acorreram muitas discípulas de fé de todas as partes, e ainda hoje acorrem para degustar os frutos” (BCL 31). De fato, na ocasião da morte de Clara já havia na Itália 115 mosteiros e fora da Itália, 50. No início do século XIV eram 413 mosteiros. Hoje os mosteiros no mundo inteiro são cerca de 1000, com quase 15.000 Irmãs, todas nascidas da plantazinha de Francisco. O significado de uma celebração As celebrações, que vão de 16 de abril de 2011 a 11 de agosto de 2012, querem ser um tempo favorável para reavivar a memória daquilo que aconteceu há 800 anos, para propor de novo a espiritualidade desta mulher extraordinária e, sobretudo, para redescobrir a atualidade da mensagem da senhora Clara. Reavivar a memória. Por aquelas “mulheres – grita Francisco enquanto repara a igrejinha de São Damião – se dará glória ao nosso Pai celeste em toda a santa Igreja” (TCL 14). Talvez nem Francisco mesmo era totalmente consciente de que a forma de vida abraçada por Clara haveria de ser suporte do ministério petrino e alimento para a missionariedade da Igreja, como escreveu o Papa Gregório IX à plantazinha de Francisco e às Irmãs Pobres de São Damião em 1228. A vida de Clara, “sob a guia de Francisco – escrevia João Paulo II – não foi eremítica, embora seja contemplativa e conventual”. Alexandre IV, na Bula de canonização, já afirmava: “Clara calava, porém sua fama gritava”. Sim, sua fama gritava pela exemplaridade evangélica, capaz de levar a Cristo aqueles que estavam no mundo; de ser sustentáculo dos membros vacilantes; gritava por seu grande coração, que abraçava toda a criatura, mesmo a mais humilde e 61

esquecida, porque estava marcada pela benevolência do Criador (cf. BC 4-5; 3In 8; PC 7. 12). Propor de novo a espiritualidade de Clara. Na mensagem às Irmãs Pobres, na conclusão do I Congresso Internacional das Presidentas das Federações OSC, se fazia a proposta de três anos de preparação para estas celebrações com aprofundamento dos seguintes temas: vocação (2009), contemplação (2010), pobreza (2011). Sim, escolhestes um modo sério para preparar-vos para a celebração do VIII Centenário. Indicastes um caminho preciso para reapropriar-vos da espiritualidade que sustenta a vossa vida e para repropor de novo a todos a “alma” de Clara. De minha parte, como vosso irmão e servo, tentei ajudar-vos neste caminho de aprofundamento com as cartas que vos escrevi em 2008, 2009 e 2010 por ocasião da festa de nossa Irmã Clara. Redescobrir a sua mensagem. Evidentemente sua mensagem deverá interpelar em primeiro lugar a vós mesmas que escolhestes seguir a Cristo segundo o “espelho e exemplo” de Clara de Assis. Na Carta que a Conferência dos Ministros gerais da I Ordem e da TOR vos escreveu na data de 2 de fevereiro de 2011, entre outras coisas, se diz: “Que queremos celebrar juntos: a recordação de uma Regra ou a memória da história de Deus convosco perpetuada no tempo e que ainda hoje desperta paixão em vós para ‘observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de próprio e em castidade? Como fazer vir à luz, em sua inteireza, a forma de vida que torna visível e credível a todos que ‘o Filho de Deus se fez para nós o Caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo’?” (TCL 5) Como podeis ser ainda hoje na Igreja e para a Família Franciscana memória viva daquilo que todos nós, como batizados, estamos chamados a viver?” Pelo que me toca, estou plenamente convencido de que o fascínio de Clara reside na vida evangélica que abraçou; e o que a sustentou durante 40 anos na clausura de um mosteiro tem sido o Evangelho. Tendo fugido de casa e descoberta a via indicada por Francisco, Clara focaliza a forma de vida das Irmãs Pobres em “observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo” (RC 1, 2). É isto o essencial que desvela o segredo da “juventude” de Clara e sua capacidade de ser um ponto de referência para a Igreja e para o mundo de hoje. Queridas Irmãs, narrai-nos com a vida o que contemplais e tocais do Verbo da vida, contido no Evangelho. Dizei-nos, com vossa existência, que Deus ainda hoje é amor, sempre e para todos. 62

25° aniversário do espírito de Assis É providencial: o VIII Centenário coincide com a celebração do 25° aniversário do espírito de Assis. A experiência evangélica de Francisco e de Clara fez com que João Paulo II tivesse escolhido Assis para cumprir aquele famoso gesto histórico: o encontro dos Responsáveis do mundo para orar pela paz. Deste gesto nasceu o que depois se tornou conhecido como espírito de Assis. Nós, Franciscanos e Franciscanas, nascemos em Assis, porém não podemos considerar o espírito de Assis como uma glória de família, e sim como um convite urgente para oferecer nossa contribuição e nosso serviço na construção de um mundo mais pacífico. E vós, Irmãs Pobres, tendes muito a oferecer, pois a mensagem de Francisco e Clara – como disse João Paulo II em Assis em 1993–, pode ser sintetizada “em três palavras evangelicamente atuais: pobreza, paz e oração”. E continua dizendo o Papa: “pobreza e paz… constituem duas exigências da mensagem de Cristo, válida mais que nunca para o mundo de hoje”. E conclui, por assim dizer, com a Mensagem para a jornada mundial da paz de 1993: a “pobreza evangélica é a fonte da paz”. Com tudo isso não se quer encobrir a complexidade dos problemas, nem negar a urgência de profundas mudanças. Simplesmente se quer dizer que a civilização do amor não surgirá se não se remete ao centro de nossas cidades e de nossos canteiros a “catedral”, se não se tem a coragem de ser pobres, para ser livres e entrar no “claustro” com a Senhora Pobreza, para entender em modo novo “os segredos das coisas” e sua alegre resposta às necessidades dos homens. Conclusão Nós, os Irmãos Menores, e vós, Irmãs Pobres, não podemos nunca esquecer um fato: “Um único e o mesmo Espírito tirou deste mundo os irmãos e aquelas senhoras pobrezinhas” (2Cel 204). Fomos gerados pelo mesmo Espírito que inspirou Francisco e Clara como viver o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Sim, segundo uma feliz expressão de João Paulo II em 1982, não é possível “separar estes dois nomes: Francisco e Clara. Estes dois fenómenos: Francisco e Clara. Estas duas lendas: Francisco e Clara”. De fato, ambos manifestaram o primitivo ideal franciscano, na complementaridade entre o ir de Francisco e de seus Irmãos e o estar de Clara e das Irmãs. Trata-se, então, de saber conjugar autonomia e reciprocidade. Será isto que buscaremos fazer no I Congresso Internacional das Presidentas das Federações da OSC e dos Assistentes nos dias 5 a 12 de fevereiro de 2012. 63

Neste momento desejo somente renovar, também em nome de todos os meus Irmãos, o compromisso solicitado por Francisco de ter sempre diligente cuidado e especial solicitude por vós, Irmãs Pobres (cf. RC 6, 3-4). Desejo concluir esta breve Carta para a festa de Santa Clara de 2011, voltando ao anoitecer do dia 16 de abril do corrente ano e renovando de novo os mesmos augúrios com os quais concluí minha homilia naquela especial circunstância: que o VIII Centenário da consagração de Santa Clara e da fundação da Ordem das Irmãs Pobres seja um momento de graça, para que as filhas de Santa Clara conheçam e vivam sempre melhor sua vocação e sejam sinal no mundo de um Deus que é amor; para que os Frades Menores intensifiquem as relações fraternas com as Irmãs Pobres; para que todos vejam em Clara um “espelho e um exemplo” de adesão a Cristo, nosso único Senhor e Salvador. “Que o Senhor esteja sempre convosco e oxalá estejais vós também sempre com Ele” (BEC 16). Roma, 15 de julho de 2011 Festa de São Belaventura, Doutor da Igreja Fr. José Rodriguez Carballo, ofm Ministro geral, OFM

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“PERMANECEI NO MEU AMOR” (Jn 15, 9) QUINTO CENTENÁRIO DA APROVAÇÃO DA REGRA DA ORDEM DA IMACULADA CONCEIÇÃO, DE SANTA BEATRIZ DA SILVA. CARTA DE FR. JOSÉ RODRIGUEZ CARBALLO, MINISTRO GERAL DA ORDEM DOS FRADES MENORES Paz e Bem Chegados ao final de este ano jubilar, a nossa alma está possuída por um sentimento de nostalgia semelhante ao que experimentamos no dia de santa Beatriz, quando a hora da tarde apaga nos claustros os ecos da festa. Os dias têm o seu ocaso, mas o amor não tem ocaso. Os jubileus têm o seu fim, mas permanece o espírito que os justificou. Nesta hora de nostalgia por um jubileu que termina, quero fixar o olhar sobre o essencial da vossa vida, o que vem de longe, porque é de sempre e está chamado a permanecer. Perseveranças que fazem Igreja A Igreja é una, e o que se disse dela quando dava os primeiros passos depois do Pentecostes, repetiu-se sempre, hoje também, quando o Espírito de Deus a está levando para um mundo novo. Da primeira comunidade de homens e mulheres que aceitaram a palavra da pregação e se batizaram, diz-se nos Atos dos Apóstolos: “Perseveravam no ensino dos apóstolos, na comunhão, na fração do pão e na oração” (At 2, 42). Isso mesmo se deve poder dizer dos que formam neste tempo último a única Igreja de Cristo. 65

Perseveravam no ensino dos apóstolos Considerai o inefável de vossa fé. Com palavras pobres aproximamo-nos no credo à fonte que eternamente “mana e corre, embora seja noite”: “Creio em Deus, Pai todo-poderoso… Creio em Jesus Cristo, seu único filho… Creio no Espírito Santo”. Confessamos o indizível de Deus, porque seu silêncio se fez palavra no mistério de Cristo Jesus. Por isso, se tu, irmã concecionista, queres saber de Deus, se queres entrar na obscuridade de seu mistério, sentada aos pés do Senhor, escuta como Maria a sua palavra (cf. CCGG OIC, 40). O desejo de conhecer o que necessitas para viver, te levará a apegar-te com força à palavra de quem te ensina a começar. “Maria conservava todas estas coisas em seu coração” (Lc 2, 51). Faz do teu coração, irmã concecionista, a casa da Palavra do amado do teu coração. A tua busca é expressão de teu amor: “No meu leito, durante a noite, buscava o amor da minha alma; buscava e não o encontrava. Levantar-me-ei e rondarei pela cidade, pelas ruas e pelas praças, buscarei o amor de minha alma” (Cant 3, 1-2). Porque amas, buscas. Porque amas, perseveras em buscar. Buscar é a condição de todos os crentes. É a tua condição, irmã concecionista. A perseverança no ensino dos apóstolos é a tua primeira forma de busca na noite, é a tua primeira forma de “rondar pela cidade” para encontrar o amor da tua alma. A palavra do ensinamento apostólico que acolhida e professada te leva a Cristo, é o vínculo primeiro que te une aos demais para formar com eles o único corpo de Cristo. Perseveravam na comunhão A “comunhão” é a forma específica de reação que a fé estabelece entre os que crêem em Cristo. A “comunhão” refere-se ao que é comum aos crentes: uma fé, um batismo, um mediador, um Espírito, um só Deus e Pai, um só coração, uma só alma. A “comunhão” não é o teu, mas o de Deus em ti: é graça, é dom, é prenda de amor, é fruto da entrega de Cristo. Contempla, e verás brotar com força ali donde nós tínhamos posto só divisão, pecado, violência, morte. Contempla Cristo crucificado. Ele diz: “Pai, 66

perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34), e ali mesmo, um criminoso injustiçado acolhe-se a uma graça que não conhece e, antes de entrar no paraíso que se lhe promete, entra em comunhão de verdade com quem lho promete. Ali mesmo, um centurião, “ao ver o ocorrido, dava a Deus, dizendo: «Realmente, este homem era justo»” (Lc 23, 47). Sem o Crucificado não é possível esta comunhão. Sem aquela entrega não é possível esta reconciliação. Sem aquele amor não é possível esta graça (cf. CCGG OIC, 95). Pela graça da “comunhão” se vai realizando um mundo novo, na comunidade eclesial nascida do lado de Cristo, o que a Palavra encarnada nos havia revelado acerca da comunhão que é Deus. Se a perseverança na escuta da Palavra é teu modo de buscar o que amas, a perseverança na comunhão é o teu modo de abraçá-lo quando o encontrares. Perseveravam na fração do pão Dado que a comunhão na qual deves perseverar nasce da Páscoa de Cristo, só a poderás manter se perseverar na fração do pão, na Eucaristia, memória da obra da salvação que se consumou no Mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo Jesus. No sacramento da Eucaristia partimos o pão que nos une a todos no corpo de Cristo. Na Eucaristia santificamos o cálice da nossa ação de graças, que nos une a todos no sangue de Cristo. A Eucaristia é o sacramento da vida entregada de Jesus de Nazaré, é o sacramento de seu amor até ao extremo, um amor que, por ser sem medida, faz um só corpo, de quem éramos não só muitos, mas também divididos (cf. CCGG OIC, 75). Este admirável sacramento que chamamos “fracão do pão” ou Eucaristia, sendo memória da Páscoa de Cristo, é mistério em que, para nos dar vida, está escondida, a “eterna fonte” que é Deus mesmo: “Aquela eterna fonte está escondida neste vivo pão que nos dá vida embora seja noite. Aqui se está chamando as criaturas, e desta água sacia, mesmo às escuras, porque é de noite. Aquela viva fonte que desejo, neste pão de vida eu a vejo, mesmo sendo noite” (João da Cruz). 67

Pela Eucaristia entramos na vida da Trindade Santa, na divina comunhão, para ser filhos de Deus no Filho único de Deus. Perseveravam nas orações Uma vez que tudo é graça – a palavra da pregação, a comunhão fraterna, a Páscoa do Senhor, e a eucaristia que celebramos em seu memória –, tudo deve ser humildemente pedido e por tudo temos de dar humildemente graças. Perseveranças concecionistas Queridas: Em comum com os demais religiosos, tendes como norma de vida o seguimento de Cristo. Essa é vossa regra suprema. Mas a família religiosa que tem a sua origem na experiência carismática de santa Beatriz de Silva, deve cultivar com amor perseveranças próprias, que são como que seus sinais de identidade: A contemplação do mistério da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria, e o empenho por imitar e reproduzir as suas virtudes. Contempla sempre o que sempre queres honrar És de Cristo, irmã concecionista; mas quiseste fazer a tua consagração a Deus por Cristo “em honra da Conceição Imaculada de sua Mãe”. Terás de conhecer, por tanto, o que queres honrar; e terás de contemplar o que necessitas conhecer. Olha tua Mãe com um olhar comprazido de Deus sobre a sua própria obra; olha-a com o olhar do anjo da anunciação; olha-a no coração da Trindade Santa, e olha a Trindade Santa no coração de tua Mãe. Olha tua Mãe com os olhos e o amor de Jesus, olha-a com a fé da Igreja, olha-a com a admiração do irmão Francisco de Assis: “Salve, Senhora, santa Rainha, santa Mãe de Deus, Maria virgem feita Igreja” (SVM, 1). Se consideras o que Maria recebeu na sua Imaculada Conceição, entras num mistério de plenitude de graça, de formosura, de bênção (cf. CCGG OIC, 48). Se consideras o amor de onde tudo procede, o amor que todo se dá, entrarás num abismo de transparente gratuidade. No mistério da Imaculada Conceição da Virgem Maria contemplas o que, pela graça, tu começaste a ser na Igreja, e o que, pela graça, a Igreja há-de ser um dia em plenitude. 68

Poderás fazer tuas, irmã concecionista, as palavras do cântico da Virgem Maria: “A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (Lc 1, 46-47). Mas, não só deves permanecer na contemplação da grandeza de Deus na Virgem Maria, na virgem Igreja, na tua vida virginal; terás de contemplar também, ao mesmo tempo, a pequenez da escrava do Senhor, a debilidade da Igreja e a tua pequenez de crente. A fé te ajudará a iluminar, desde a Virgem Maria, o teu mundo e a tua noite, as tuas inquietações e o teu sofrimento, as tuas alegrias. E a experiência da tua condição, da tua vida, da tua pequenez, te ajudará a penetrar no mistério da pequenez de Maria de Nazaré. Imita o que contemplaste. O hábito que vestes, irmã concecionista, recorda em cada um de seus elementos, a vocação a que foste chamada, a obra da graça de Deus em ti. O Senhor quis que tua vida imitasse o mistério da Virgem Imaculada, e chamou-te à pureza da alma e do corpo, a um desposório de amor com o Rei do céu, a levar em teu coração a Mãe do Rei, a imitar a sua conduta inocentíssima, a seguir pelo caminho da humildade que tudo aceita, e da obediência que tudo entrega a seu Senhor. Se imitas o que contemplas em tua Mãe do céu, a brancura exterior de teu vestido evocará a formosura da obra de Deus na tua vida. Mais além das nossas perseveranças: A vida em Deus Aquele foi um dia de experiência mística. “João estava com dois dos seus discípulos e, fixando-se em Jesus que passava, disse: «Este é Cordeiro de Deus». Os dois discípulos ouviram suas palavras e seguiram Jesus. Jesus voltou-se e, ao ver que o seguiam, perguntou-lhes: «Que buscais?». Eles responderam-lhe: «Rabi, onde vives?». Ele disse-lhes: «Vinde e vede». Então foram, viram onde vivia e ficaram com ele aquele dia” (Jn 1, 35-39). Nós temos de traduzir “onde vives?”, mesmo que o evangelista escrevesse “onde permaneces?”. Mas não queria, irmãs, que a necessidade de entendermos melhor quando falamos, nos privasse de penetrarmos na luz do mistério quando contemplamos. Pois Jesus, que “vive” num lugar, permanece – vive – sempre em Deus. Naquele outro dia de revelações assombrosas, o Senhor disse a Filipe: “Quem me viu, viu o Pai… Não crês que eu estou no Pai e o Pai está em mim?” (Jn 14, 9-10). Depois disse a Judas, o irmão de Tiago: “O que me ama guardará 69

a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele a nossa morada” (Jn 14, 23). E a todos os discípulos: “Como o Pai me amou, também eu os amei; permanecei no meu amor” (Jn 15, 9). Já sabes, irmã, onde deves de permanecer, onde deves de viver: no amor com que Cristo te amou, amor que ele comparou com o amor do Pai a seu Filho único. A tua casa é o amor com que Deus te ama. Conclusão Encerra-se o ano jubilar da aprovação da Regra da Ordem de a Imaculada Conceição. Permanece a forma de vida que ficou recolhida e aprovada nas palavras da Regra. Permanecei no amor. O Senhor vos abençoe e vos conceda a sua paz. Roma, 15 de julho de 2011 Festa de São Boaventura, Fr. José Rodriguez Carballo, ofm Ministro geral OFM

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