DA DATILOGIA Á VISOGRAFIA: UMA TRAJETÓRIA DE DESCOBERTAS
Áurea de Santana Bueno (UFMT/PIBID/CAPEs/CNPQ) –
[email protected] Claudio Alves Benassi (UFMT/PPGEL) –
[email protected]
Resumo: O processo de aquisição da leitura e da escrita é assunto que demanda inúmeras discussões, por vezes polêmicas. Estas são maiores ainda quando se trata da escrita de sinais (ES). Assim, neste artigo apresenta-se a VisoGrafia como uma proposta de ES em fase de implantação/divulgação, idealizada pelo pesquisador Claudio Alves Benassi em sua tese. Objetiva-se neste trabalho divulgar a VisoGrafia como uma possibilidade viável de ES por ser a que melhor representa os sinais pela sua imageticidade; disseminar conhecimentos, cientificamente comprovados, a respeito da ES, a fim de amenizar discussões pautadas no senso comum; esclarecer que datilologia não é escrita de sinais. Em seu aspecto metodológico trata-se de uma pesquisa bibliográfica e experimental com relatos de experiências. Busca-se ressaltar a importância da aquisição da ES pelos sujeitos visuais1 na premissa de que o aprendizado da ES: contribui para o desenvolvimento cognitivo desses sujeitos (STUMPF); representa inúmeros benefícios na vida dos visuais, variando do simples fato de poder registrar os sinais à construção da autonomia possibilitando-os serem não apenas protagonistas, mas autores da própria história (BARRETO; BARRETO); alfabetizar em língua de sinais compreende o domínio da codificação (escrita) e decodificação (leitura) dos sinais (BENASSI) e não apenas o aprendizado de sinais isolados desprovidos de contextualizações e desvincualados das regras gramaticais, desestruturando tanto a língua oral quanto a língua de sinais. Espera-se que por meio dos conhecimentos compartilhados neste trabalho, profissionais, acadêmicos e usuários da língua de sinais despertem para a necessidade do aprendizado também da ES. Palavras-chave: Aquisição da leitura e da escrita. Escrita de sinais. Sujeitos Visuais.
1 Introdução O processo de aquisição de leitura e de escrita é assunto que demanda inúmeras discussões, às vezes até polêmicas. Sabemos que inúmeras são as compreensões sobre esse assunto, haja vista, o conceito de alfabetização vem sendo ressignificado ao longo da história. Contudo, os resquícios de entendimento enraizado perpassam gerações perpetuando equícovos conceituais em qualquer área de conhecimento. Quando se trata da alfabetização dos visuais as polêmicas são maiores ainda. Esses têm o seu direito à educação negligenciado e o seu direito à aprendizagem tolhido ao serem privandos de serem alfabetizados em sua língua natural, a Língua de Sinais (LS). E quando isso acontece, surgem novos agravantes como: aquisição tardia da língua, ensino facetado em razão de ser apenas a modalidade sinalizada, ensino de sinais isolados desvinculados da gramática da LS. E quanto a escrita? Essa está longe de ser realidade no cotiano dos visuais.
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Termo adotado para referir às pessoas surdas ou com deficiência auditiva. Para Duarte (2016), este termo é o mais adequado porque exprime o potencial linguístico dos sujeitos visuais os quais apreendem o mundo de forma visual, enquanto que o termo surdo vem carregado de estigmas, historicamente construído, que além de denotar a valoração pejorativa dos sujeitos, ressalta a sua deficiência biológica e não o seu potencial linguístico, como é o caso do termo ouvinte.
Assim, neste artigo apresenta-se a ES como direito e possibilidade de uma educação de fato inclusiva para esses sujeitos. Todavia, o foco deste trabalho volta-se para ES – VisoGrafia – uma proposta de ES em fase experimental, idealizada pelo pesquisador Claudio Alves Benassi em sua tese, no prelo. Objetiva-se divulgar a VisoGrafia como uma possibilidade viável de ES e como uma escrita que melhor representa os sinais por ser tão imagética quanto a língua; disseminar conhecimentos, cientificamente comprovados, a respeito da ES para que perpassem os limites da academia e produzam efeitos positivos que revertam em benefícios na vida dos visuais e na transformação da sua realidade; amenizar discussões pautadas no senso comum e esclarecer que datilologia não é escrita de sinais. Em seu aspecto metodológico trata-se de uma pesquisa bibliográfica e experimental com relatos de experiências. Ressalta-se a importância da aquisição da ES na premissa de que o aprendizado dessa escrita contribui para o desenvolvimento cognitivo dos visuais (STUMPF); representa inúmeros benefícios na vida individual e em comunidade (BARRETO; BARRETO); alfabetizar em LS compreende o ensino-aprendizagem da escrita e da leitura dos sinais (BENASSI) e que esse ensino-aprendizagem precisa ser contextualizado e não dissociado da gramática da língua. Espera-se que por meio dos conhecimentos compartilhados neste trabalho, profissionais, acadêmicos e usuários da LS despertem para a necessidade do ensino-aprendizagem da língua em sua plenitude compreendendo que a aquisição da leitura e da escrita dos sinais precisa acontecer concomitantemente, pois cada modalidade – sinalizada e escrita – possui especificidades diferentes que contribui para o desenvolvimento cognitivo dos aprendizes da língua, em especial dos visuais por ser sua língua nativa. 2 Uma breve recapitulação sobre as ELS Nesta seção apresento três ELS: a SignWriting (SW), a Escrita das Língua de Sinais (ELiS) e a VisoGrafia. Contudo, discorrerei sobre a SW e a ELiS de forma resumida apenas para situar os leitores deste artigo. O destaque maior vai para a VisoGrafia, pois um dos objetivos deste trabalho é apresentar essa ES como a mais nova possibilidade de grafar os sinais de qualquer LS. Embora, não seja tão recente o conhecimento da ELS ainda é bastante limitado, pois falta ser difundido até mesmo no meio acadêmico, tendo em vista que apenas graduandos de Letras-Libras têm conhecimento de sua existência, porém mesmo para estes o entendimento é bem superficial em virtude da ínfima carga horária (32h) contemplada pela grade curricular do curso, pois não possibilita ao professor ministrar conteúdos mais aprofundados e nem
desenvolver atividades que consolidem a construção de conhecimento sobre ES pelos estudantes. Contudo, se o professor fizer uso de uma boa didática é possível que desperte o interesse de seu educando por mais conhecimentos, os quais não foram possíveis de serem construídos durante a disciplina devido à sua insuficiente carga horária. Conforme Barros (2015) a SW é um sistema de ES desenvolvido pela norte-americana Vallerie Sutton em 1974. O SW dispõe de um visograma composto por 666 visografemas2, só de configuração de mão (CM), sem contar os demais parâmetros e os diacríticos3, característica essa que vem de encontro com o princípio da economia na ES, além de representar a complexidade no aprendizado da ES (Benassi et. al., 2016). O Sistema Brasileiro de Escrita das Língua de Sinais – ELiS nasceu da estratégia que Mariângela Estelita Barros usou para fazer suas anotações a fim de mobilizar os sinais aprendidos para posteriores consultas. A dificuldade em fazer as representações pictográficas dos sinais fez com ela transformasse em códigos as representações dos sinais, assim em 1997, nasce a ELiS como proposta de ELS e, em 2008, Barros defende a tese como “proposta teórica e verificação prática” o que vem consolidar a ELiS como possibilidade de registro da LS sem mediação de outra língua, ferramenta de fundamental importância na alfabetização de crianças visuais. Barreto e Barreto (2012) reportam às pesquisas de Stumpf e afirmam que,
a escrita de sinais ajuda a desenvolver a percepção do surdo quanto à língua de sinais de seu país. As experiências da autora no ensino da escrita de língua de sinais no Brasil e na França evidenciam que as crianças se apropriam com muita facilidade deste sistema e que, desde as primeiras aulas, escrevem sinais em sua língua materna sem passar pela escrita da língua oral (p. 45).
Se levarmos em conta que o SW não é uma das ES mais fáceis de se aprender e as pesquisas da autora já comprovam tal fato, podemos apostar em melhores resultados no caso de uma ES que apresente menor complexidade. Nesse sentido, a ELiS apresenta a vantagem de possuir duas características presentes na língua oral do nosso país, é alfabética e linear. Na ELiS, conforme a criadora do sistema, os símbolos/letras usados para grafar os sinais (visografemas) totalizam-se 95 visografemas que se subdividem em quatro grupos: CD (10), OP (06), PA (35) e M (44). Conforme autora, os 10 visografemas de CD são suficientes para que combinados entre si possam representar todas as configurações de mãos (CM) que
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Termo referente às formas gráficas que representam os elementos visuais necessários para a grafia dos sinais em qualquer LS (BARROS, 2015). 3 Refere-se aos signos gráficos que combinados aos visografemas possibilitam uma diferenciação na transcrição de determinado fonema (Dubois, J. et al., 2001 apud Barros, 2015).
variam de uma língua para outra, podendo ultrapassar a casa da centena em uma única LS. Esses combinados com os demais visografemas mais os diacríticos constituem o sistema completo da ELiS, o que possibilita a escrita de qualquer LS de forma linear que por convenção e funcionamento da escrita estabelece uma ordem alfabética.
2.1 Os caminhos da VisoGrafia: do sonho à realidade Martha’s Vineyard é uma ilha localizada na costa nordeste dos Estados Unidos da América onde foi registrada uma espécie de surdez hereditária, ali todos – surdos e ouvintes – falam a LS (SACKS, 2010). Este fato parece-me um sonho, mas não o é, segundo relato de Oliver Sacks em seu livro “Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos”. Esse fato histórico me fez pensar na sensação que senti desde o momento do meu primeiro contato com ES. Da mesma forma, a meu ver, a VisoGrafia (Escrita Visogramada das Línguas de Sinais) pode ser comparada a Martha’s Vineyard, uma realidade que parece um sonho. Escrita essa que se encontra em seu estágio de divulgação, pois já passou do campo da abstração do pensamento para concretização do idealizado. Essa forma de grafar sinais foi idealizada, criada, testada, aprovada e vem conquistando o interesse de acadêmicos, pesquisadores e profissionais da área do ensino de LS. O sonho dessa ES nasceu das inquietações do pesquisador Claudio Alves Benassi quando ele se inseriu no mundo LS. Diante disso, Benassi foi se adentrando nesse mundo e aprofundando seus conhecimentos na área, o que lhe direcionou para a carreira docente no ensino da Libras. Nessa direção, outras demandas foram surgindo exigindo dele uma formação específica (pós-graduação latu senso em Libras, em 2013) que fez com ele abraçasse também a pesquisa na área da Libras. Segundo relato do pesquisador, em 2014, logrou êxito sendo contratado como professor substituto na Universidades Federal de Mato Grosso (UFMT), os conhecimentos que ele tinha do SW oportunizou-o a ministrar a disciplina de ES a qual levou-o a aprendizagem da ELiS. Todavia, em sua experiência como professor percebia que a aprendizagem dos estudantes não avançava a contento e que eles se demonstravam seduzidos pela imageticidade do SW. Apesar da relutância, mas pensando no excessivo número de caracteres do SW e na complexidade de sua grafia, assim como na abstração da ELiS em que a grafia dos sinais nada tem a ver com a visualidade da língua, surge então uma luz no fim do túnel.
Assim, nasce pouco a pouco, a VisoGrafia, numa espécie de “fecundação” entre o SW e a ELiS como uma proposta de ES que possibilita a codificação/escrita dos sinais de forma lógica e visual, assim como a decodificação/leitura.
2.2 Estrutura da VisoGrafia Nessa empreitada de criação depois de muitas pesquisas teóricas e práticas os resultados foram positivos e permitiram o aprimoramento do sistema de escrita. Vale lembrar que inicialmente o visograma era composto por 64 visografemas e à medida que foi sendo aperfeiçoado visando a economia da escrita e diminuir a complexidade do ensinoaprendizagem da ES foi tornando cada vez mais eficaz. Pensar na eficácia do sistema de escrita fez com que o autor-pesquisador da VisoGrafia orbitasse entre incessantes pesquisas, experiências pessoais e ensino da escrita para visuais e ouvintes a fim de comprovar a aplicabilidade e viabilidade da escrita que culminaram na efetivação da VisoGrafia. A seguir (fig. 1) apresenta-se na íntegra a estrutura completa desse visograma categorizando os visografemas em seus respectivos grupos/parâmetros da LS. Figura 1 – Composição do visograma atual da VisoGrafia
Configura ção de dedo
Polegar
Demais dedos Orientação de palma Ponto de articulação Movimento de braço
Fonte: http://www.visografia.com/visogramaatual/
Assim sendo, o atual visograma da ES VisoGrafia conta com uma estrutura composta por 35 visografemas/letras que associados aos diacríticos (usados também para representarem
as ENM) possibilitam grafar qualquer LS. As imagens abaixo apresentam-se a estrutura completa dos diacríticos categorizando-os em seus respectivos grupos. Figura 2 – Os diacríticos (CM, Lo e PA) da VisoGrafia atualizados
Fonte: http://www.visografia.com/diacriticosatual/
Figura 3 – Os diacríticos de movimento da VisoGrafia atualizados
Fonte: http://www.visografia.com/diacriticosatual/
A respeito das pontuações o sistema da VisoGrafia usa as mesmas da escrita oral, com exceção do ponto final e dois pontos os quais permanecem o mesmo usado na ELiS. Contudo,
o sistema conta com um diferencial, o ponto de ironia, usado para marcar a expressão de ironia presente também na LS. Observe o quadro abaixo: Figura 4 – Os sinais de pontuação da VisoGrafia atualizados
Fonte: http://www.visografia.com/estrutura/
O texto a seguir é apenas um exemplo da possibilidade e viabilidade da ES VisoGrafia que já se encontra em seu estágio de implantação/divulgação. Figura 5 – Exemplo de texto escrito em VisoGrafia
Fonte: Editado manualmente no programa PowerPoint pelo pesquisador-criador da escrita Claudio Alves Benassi (2017).
Traduzindo o texto da página anterior temos a seguinte afirmação: A escrita de sinais é muito importante porque contribui para o desenvolvimento cognitivo dos visuais.
Como muito bem exemplificado a ES possibilita ao sujeito visual o registro do seu pensamento estruturado na LS. De acordo com Benassi, “o visual se desenvolve cognitivamente melhor em sua L1, a Libras e que a sua L2, a LP na modalidade escrita, atua de forma complementar no processo de alfabetização” (no prelo, p. 05). Dessa forma, a ES constitui para os visuais uma ferramenta que os oportuniza a se expressarem livremente em sua L1, visto que eles pensam de acordo com as estruturas internas de sua língua natural, assim como os ouvintes estruturam seu pensamento na língua oral. Todavia, aqueles não são contemplados na aprendizagem da ES e precisam fazer uso da LP para registrar as suas diferentes formas de comunicação e expressão, considerando que o ensino da escrita, em nosso país, prioriza apenas a LP. 3 Alfabetização de crianças visuais: que alfabetização é essa? De antemão vale lembrar que os visuais têm ganhado visibilidade social e vêm ocupando cada vez mais lugares de direitos que a sociedade sempre ignorou. Esse fato por si só causa uma mobilização social, no sentido de que não podemos mais ignorar a existência desse público com necessidades e peculiaridades tão distintas, principalmente, no âmbito da educação. Neste cenário o discurso da educação inclusiva é tão presente, mas não efetivo. O termo inclusão ganhou visibilidade a partir da Declaração de Salamanca (1994). Contudo, o conceito de inclusão ainda hoje está vinculado ao conceito de integração. Este diz respeito à inserção dos ditos “diferentes” em um espaço de convivência incomum que foca atendimento às necessidades de espaços físicos. Aquele consiste em atender os sujeitos de forma holística compreendendo e considerando suas necessidades para além de adequações estruturais de espaços físicos, sem problematizar as implicações que advém dessa inserção. Na inclusão dos visuais tem um agravante, pois não se concebe nesta inclusão escolar o aprendizado da sua língua como fator de desenvolvimento. Na verdade, este direito lhe é tolhido, visto que ao serem inseridos na escola regular lhes apresentam primeiramente, quando não unicamente, uma segunda língua (L2), a Língua Portuguesa (LP). Se pensarmos que para que os visuais sejam incluídos, o aprendizado de LS deve-se constituir em primeiro plano, podemos afirmar que essa inclusão não se consolidou até hoje. Haja vista, a alfabetização das crianças visuais não acontece na sua língua natural (L1). Estas têm um contato tardio com a L1 e quando acontece no tempo ideal acontece de forma fragmentada, pois o ensino da modalidade escrita não está associado às necessidades dos sujeitos. Na verdade, nem a modalidade sinalizada ainda se efetivou como prática curricular dos sistemas educacionais brasileiro.
Conforme Benassi (2016), alfabetizar em LS não se difere da alfabetização em LP a qual compreende a modalidade leitura e escrita. E o que vem acontecendo comumente é o ensino de sinais isolados não só da escrita, como também do contexto, da gramática e desprovidos de significados. Stumpf (2005, apud BARRETO; BARRETO, 2012) apresenta dois aspectos fundamentais evidenciadas em crianças visuais que foram alfabetizadas com ES os quais não foram observados naquelas alfabetizadas em língua oral. O primeiro é o aspecto afetivo – a criança sente-se feliz em ver que sua língua é valorizada e que pode ser escrita possibilitandoas compartilhar conhecimentos entre si, isso faz com elas desenvolvam uma autoestima aumentando também o seu interesse pelo aprendizado. O segundo é o aspecto de evolução na aprendizagem, ou seja, o tempo de aprendizagem da criança reduz de maneira considerável, ampliando seu léxico de forma que se sentem estimuladas pela possibilidade da autonomia em suas produções. 3.1 Os benefícios do aprendizado da ES para os visuais e comunidade surda Segundo Barreto; Barreto, “até hoje a origem da escrita é um mistério”, eles afirmam que a história da humanidade pode ser dividida em antes e depois da escrita” (2012, p. 32). De fato, o advento da escrita trouxe grandes transformações para a história da humanidade, de tal forma que, embora a escrita tenha surgido bem depois da oralidade, aos poucos ela conquistou um nível de superioridade. Marcushi (2007) em sua obra “Da fala para a escrita” defende que oralidade e escrita devem caminhar no mesmo patamar de igualdade na tentativa de desmitificar o velho pensamento de que há uma supervalorização da escrita em detrimento da oralidade. Para o pesquisador, a dicotomia é a perspectiva que categoriza as duas modalidades: fala e escrita, numa visão dicotômica, divergente é hierarquizada na qual a escrita assume a hegemonia da valorização e a fala da discriminação, que para o autor, esses critérios de classificação estão mais relacionados a fatores socioculturais subjetivos do que a critérios linguísticos. No entanto, situação inversa ocorre na LS, pois nesta a escrita ainda não conquistou lugar de privilégio. Fatores como o desconhecimento sobre a ES, a rejeição dela pelos próprios usuários da língua, falta de profissionais capacitados para o ensino dessa modalidade, a supervalorização da língua oral-auditiva em detrimento da língua viso-espacial, a não legitimidade da LS (aqui no Brasil), entre outros fatores socioculturais envolvidos. Diante de tais problemáticas a criança visual se encontra limitada entre o pensamento e a comunicação
em LS, sem possibilidades de estruturar seu pensamento por meio da ES como acontece com a criança ouvinte. Conforme elucida Capovilla:
Na alfabetização, é ensinado à criança ouvinte fazer codificação e decodificação fonológica. Nesta fase é muito comum a criança escrever como ela fala. Este aprendizado permite à criança ouvinte desenvolver seu pensamento estruturado em palavras (CAPOVILLA et al., 2006 apud BARRETO; BARRETO, 2012, p. 32).
Por outro lado, já podemos vislumbrar pequenas mudanças neste quadro, tendo em vista que tem se levantado discussões, pesquisas e cada vez mais pessoas têm se movimentado em busca de conhecimentos sobre esta temática, as questões referentes aos visuais e a comunidade visual já saiu do anonimato e a cada dia vem conquistando adeptos que têm se despertado para garantir os direitos dos visuais. A exemplo disso, Barreto; Barreto contribuem com um levantamento das aplicações da ES ressaltando a importância e contribuições desse aprendizado na vida dos sujeitos visuais e da sua comunidade. Esses autores apresentam diversas funções da ES reunidos a partir de pesquisas disponíveis em sites, blogs e estudos de diversos estudiosos do tema, dentre eles Capovilla (2001, 2006), Nobre (2011), Silva (2009), Stumpf (2005), Sutton (1999, 2003). Dessa forma, eles elencam os seguintes benefícios: permite ao surdo expressar-se livremente, mostrando a fluência da língua de sinais, ao contrário da língua oral; aumenta o status social da língua de sinais quando mostra que o surdo tem uma escrita própria; ajuda a melhorar a comunicação; contribui com desenvolvimento cognitivo dos surdos estimulando seu pensamento e facilitando sua aprendizagem; mostra as variações regionais da Libras, enriquecendo-a; permite aprender outras línguas de sinais; auxilia a pesquisa das línguas de sinais; pode ser usada na construção de dicionários e glossários diretamente em língua de sinais; é mais prática do que a gravação de uma sinalização em vídeo, pois permite escrever e ler textos em língua de sinais em qualquer lugar, basta papel e lápis; pode ser usada em qualquer disciplina escolar ao universitária: geografia, matemática, ciências etc.; preserva a língua de sinais registrando a história, cultura e literatura surda, através de roteiros de teatros, poesias, histórias, contos, humor etc.; pode ser usada por professores para ensinar a língua de sinais e sua gramática para iniciantes e também pelos próprios aprendizes de língua de sinais para relembrar o que foi estudado em sala de aula com muito mais eficácia e praticidade do que desenhos ou anotações em português; auxilia os tradutores intérpretes de Libras na preparação para a interpretação e também no registro de novos sinais aprendidos; permite também que o aluno surdo faça anotações enquanto assiste a uma aula, palestra etc. e não fique apenas como expectador; torna mais fiel a transcrição de sinalizações em corpus vídeo por pesquisadores, do que o uso de glosas da língua oral como em [EU IR CASA P-
E-D-R-O], além do que, torna sigilosa a identidade do sinalizador – o que não acontece na utilização de vídeos, onde o sinalizador, muitas vezes já é conhecido, fator que pode influenciar as análises (BARRETO; BARRETO, 2012, p. 49-50).
Apesar de extensa, a lista acima não encerra todas as possibilidades de uso da ES. Mas já nos fornece subsídios consistentes para compreendermos a importância do aprendizado desse sistema de escrita, não apenas para os visuais, pois todos que tenham interesse em se desenvolver linguisticamente na LS precisa desse conhecimento, sem sombras de dúvidas.
4 Experimentando a VisoGrafia Considero pertinente relatar como se deu a minha experiência com a ES, em especial a VisoGrafia. Assim, neste tópico busco de forma concisa compartilhar essa experiência que, a meu ver, foi de extrema importância no meu processo de formação docente para o ensino da Libras como L1 e L2 pela UFMT. Em 2016 me graduei em Pedagogia por esta universidade. Após um mês estava matriculada no curso de Letras-Libras/UFMT. Todavia, foi no curso de Pedagogia que tive o primeiro contato com LS, mas até então desconhecia a existência da ES. Apesar de já ter concluído a disciplina Libras de 60 horas de carga horária ofertada pela grade curricular desse curso e de ter concluído outros módulos de Libras em outras instituições. Desde o meu primeiro contato com a LS algo de envolvente aconteceu entre a língua e eu, fato que de uma ou de outra forma foi me seduzindo para estar em busca de novos caminhos rumo a esse conhecimento. Sendo assim, minhas inquietações foram me conduzindo até que finalmente, consegui uma professora que aceitou o desafio de me orientar na área de alfabetização de crianças visuais e ouvintes em Língua Portuguesa (LP), pois como futura pedagoga essa era a questão que ecoava em meus pensamentos. Esse foi o princípio de grandes desafios e descobertas. No decorrer da elaboração da minha pesquisa tive a oportunidade de conhecer professores que foram fundamentais para concretização da minha pesquisa de final de curso. Foi em uma de nossas conversas que jamais me esquecerei que tive a surpreendente revelação de que existia uma escrita que possibilitava escrever os sinais da LS. – Nooossa! – Como assim, escrever sinais? – Datilologia? – Não, datilologia não é escrita de sinais! Fiquei estarrecida! Tinha até baixado uma fonte que escreve as palavras usando a datilologia, na ingenuidade de acreditar que se tratava de escrever sinais. Por vezes, criei alguns mecanismos a fim de registrar sinais que aprendia nos cursos, por exemplo, tentava
desenhar a forma da mão e descrever o passo a passo da realização do sinal, muitas das vezes a tentativa era frustrada, pois não tinha conhecimento para ser fiel nas descrições e como a memória é falha acabava perdendo os sinais. Diante dessa novidade e do pouco tempo que me restava para concluir meu trabalho meu primeiro impulso foi eliminar o tópico que se tratava de alfabetização em LS. Mas fui impedida de fazer isso, por um professor que tive a grata satisfação de conhecer nesta ocasião. Este me ofereceu o apoio necessário para que eu vencesse o desafio que estava posto à minha frente. Mal sabia eu que ele também seria o responsável por me fazer apaixonar pela ES, muito menos que estava diante de um pesquisador apaixonado pela ES. Bem, a saída foi correr atrás do prejuízo por meio de leituras sobre a temática, somada às orientações desse professor, desde então. Finalmente, concluí com êxito a minha pesquisa, mas a sede por novos conhecimentos permaneceu. Isto me levou a ingressar de imediato em outra graduação, depois de relutar um pouco, no equívoco de que fazer outra graduação não seria andar para frente. Todavia, a vontade de continuar neste novo caminho que me surgiu foi mais forte e decide pelo novo curso, Letras-Libras. Ao ingressar nesse curso com especificidades tão diferentes da Pedagogia muitas descobertas têm me acontecido, tenho vivenciado experiências bastante significativas não só para minha formação, como também para vida em sociedade. As disciplinas do curso são voltadas para educação de alunos visuais, pois atuaremos como professores no ensino de Libras como L1 e L2, dessa forma o curso nos habilita para atender a demanda desse público com necessidades educativas específicas. Para tanto, o ensino deve contemplar estratégias didáticas com foco na visualidade dos sujeitos. Pensando minimamente nessa peculiaridade dos visuais a grade do curso oferta a disciplina Escrita de Sinais com uma carga horária de apenas 32 horas. Obviamente, que esse pequeno tempo destinado ao ensino da ES não nos habilita para o ensino de ES, considerando que para isso os conhecimentos de outras disciplinas são imprescindíveis, o que nem sempre é possível. Contudo, essa disciplina me oportunizou o contato mais direto com a ES – VisoGrafia. Até então meu contato com a ES tinha sido apenas por meio de leituras e pesquisa para realização do meu Dossiê (antes do curso de Letras-Libras). Nessa época, foi um conhecimento raso, só a nível de descoberta da ES. Depois, já cursando o Letras-Libras tive a oportunidade de pesquisar e estudar para apresentação de um seminário na disciplina: Fonética e Fonologia da Libras, no qual o professor indicou que eu ficasse com o tema ELiS.
Dessa vez, já tive a alegria de ler e escrever alguns sinais menos complexo, mas já significou muito para mim. Esse fato, a possibilidade de escrever e ler sinais, me despertou para o aprendizado da ES. Para minha sorte, a próxima disciplina seria ES na qual o professor nos blindou com o ensino da VisoGrafia. Esta eu conhecia por cima porque fui inserida num grupo de WhatsApp de alunos que participavam de um curso de extensão da escrita VisoGrafia que eu não pude cursar. Participar no anonimato das discussões sobre a escrita, acompanhar as dúvidas dos alunos e ver as explicações do professor me possibilitaram começar a entender e ler essa ES. Fui me encantando com a escrita a cada vez que eu conseguia ler e aprender um sinal que eu não conhecia, ficava maravilhada com a descoberta. Isso só foi possível porque a VisoGrafia possui um diferencial das outras ES que eu considero de extrema relevância. Ela é tão imagética quanto a LS. Esta característica faz da VisoGrafia a escrita que melhor representa os sinais quando grafados. É um sistema de escrita que exprime a lógica dos sinais nos mínimos detalhes considerando todos os parâmetros da LS: CM, OP, Lo, Mv e ENM. Dessa forma, o aprendizado da VisoGrafia também ganha em sua eficácia, pois o sistema é o que possui o menor número de visografemas e diacríticos que somado à sua característica imagética possibilita ao aprendiz uma rápida assimilação do sistema e aquisição da escrita. Mas como nem tudo são flores e nenhum aprendizado acontece desvinculado de outro e é um processo somatório, precisa-se conhecimentos mais aprofundados da gramática, da fonologia, da morfologia da LS, assim como Estudos Qualificativos dos Visemas (EQV)4, entre outros conhecimentos que viabilizem alcançar o domínio pleno dessa ou de qualquer outra ES. Certamente, tenho um longo caminho a percorrer em busca dos conhecimentos indispensáveis para o domínio da ES, mas no pequeno percurso que já trilhei posso garantir que o aprendizado da VisoGrafia já foi um diferencial na construção do meu conhecimento e no meu desenvolvimento linguístico.
5 Considerações finais
4
É o ramo da linguística das Línguas de Sinais que estuda a natureza física-visual da produção e da percepção dos visemas na articulação das línguas de sinais (BENASSI, no prelo).
As reflexões advindas deste trabalho e de outras leituras relacionada à ES somadas às falas das pessoas com as quais comento sobre o assunto, visuais e ouvintes, me levam a concluir que três fatores são os principais responsáveis pelo entrave no processo de desenvolvimento da LS em suas modalidades, sinalizada e escrita. O primeiro fator que considero refere-se ao estado de comodismo compartilhados tanto pelos visuais quanto pelos ouvintes, ambos se recusam a ver e fecham os olhos e a mente negando-se a interferirem na realidade que se emerge a cada vez mais em favor daqueles, historicamente, desfavorecidos. O segundo fator é o estado de vitimismo em que se encontra os visuais em nome desse desfavorecimento histórico. O terceiro é o estado de omissão dos nossos governantes e responsáveis pelas políticas educacionais como um todo. Os dois primeiros casos, salvo uma pequena parcela que tem se mobilizado na luta pela transformação social e cultural, contribuem para a perpetuação do terceiro fator. Dessa forma, o problema acaba por constituir um círculo vicioso. Estes se omitem porque ideologicamente lhes são favoráveis manter e naturalizar esse círculo. Contudo, temos caminhado em busca dessa transformação tão necessária. Parece-me um trabalho de formiga no sentido de que o efeito da luta individual demora a surtir efeito. Mas, ainda análogo às formigas que não descansam enquanto não tem o seu objetivo cumprido, precisamos continuar. Assim, a partir desse trabalho, busco formar um “formigueiro” de disseminadores da ES, em especial a VisoGrafia, a fim de que a nova geração não só de visuais, mas especialmente deles, sejam alcançados por esse conhecimento tão necessário para o desenvolvimento da sua autonomia. Dessa forma, vale ressaltar a necessidade e a importância da divulgação desse conhecimento, a fim de que surjam cada vez mais pesquisas e estudos sobre o tema que despertem o interesse dos estudantes, profissionais e usuários da LS, levando-os a refletirem sobre a necessidade da aquisição da leitura e da escrita dessa língua.
Referências
BARRETO, Madson; BARRETO, Raquel. Escrita de Sinais sem mistérios. Belo Horizzonte: Ed. Do autor, 2012. BARROS, Mariângela Estelita. ELiS – Escrita das Línguas de Sinais: proposta teórica e verificação prática. 2008.199 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. _______. Os visografemas. ELiS: sistema brasileiro de escrita das línguas de sinais. Porto Alegre: Penso, 2015. p. 21-79.
BENASSI, Claudio Alves. Configuração manual e alfabeto manual de Machado e Benassi. A primeira monografia de pós-graduação lato senso do Brasil em ELiS. In.: Revista Diálogos: linguagens em movimento. Ano II, N. I, 2014. ______. Formação de docentes para o ensino de Escrita das Línguas de sinais (ELiS). Anais do II Círculo de Estudos de Escrita das Línguas de Sinais e da I Mostra de Estudos de Libras. Cuiabá: CODIMUS, 2016. ______. O despertar para o outro: entre as Escrita de Língua de Sinais. No prelo. BENASSI, Claudio Alves; DUARTE, Anderson Simão; SOUZA, Sebastiana Almeida; PADILHA, Simone de Jesus. VISOGRAFIA: uma proposta de escrita para as línguas de sinais, 2016. VI CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: literatura, cidade e cultura popular. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016. 1343p. Disponível em https://www.academia.edu/30908256/VISOGRAFIA_uma_proposta_de_grafia_para_as_l% C3%ADnguas_de_sinais. Acesso em 22 jun. 2017. DUARTE, Anderson Simão. Metáforas Criativas: processo de aprendizagem de ciências e escrita da língua portuguesa como segunda língua pelo estudante visual (surdo). Tese doutorado, REAMEC, 2016. FERREIRA, Lucinda. Por uma gramática de língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2007. SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos; tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.