Nação, identidade e conflitos sociais na Nova República: o Plano Cruzado em perspectiva histórica
CHARLESTON JOSÉ DE SOUSA ASSIS* Introdução No Brasil, os anos 80 possivelmente representaram para os setores populares o pior momento de sua história, pois, pela primeira vez, o país convivia com taxas inflacionárias da ordem de três dígitos (chegando a quatro no início dos anos 90). Sabese que conquanto atinjam a todos, surtos inflacionários têm poder destrutivo efetivo sobre os mais pobres, daí as situações desesperadoras vividas por milhões de brasileiros naqueles anos. Diante desse quadro, a pressão social sobre o governo era enorme. Em especial, porque sobre o governo José Sarney recaíram as expectativas represadas desde os últimos anos da ditadura militar, cujo término foi marcado por dois momentos críticos, duas frustrações que, do ponto de vista político-social, foram extremamente duras (ao menos para a maioria da população): a derrota da emenda Dante de Oliveira e a agonia e morte de Tancredo Neves. Essas duas frustrações foram antecedidas por momentos de clímax, nos quais se acreditou, de alguma forma, que inauguravam uma nova era no Brasil. Após a morte de Tancredo, cuja agonia foi acompanhada pelo país durante três semanas, o desânimo se abateu sobre a população, entre outras coisas, porque as ações do novo governo (ou, como então se dizia, da Nova República) não surtiam efeito no sentido de mudança nos planos econômico e social. Some-se a isto o fato de que ocupava a cadeira presidencial o ex-presidente do PDS, que trabalhara para a derrota da emenda Dante de Oliveira. Pressionado a dar respostas à nação, o governo Sarney engendrou um plano econômico que visava colocar um ponto final na inflação e promover a retomada do desenvolvimento econômico, retraído desde fins dos anos 70 – o Plano Cruzado. No dia 28 de fevereiro de 1986, em cadeia de rádio e televisão, o presidente anunciou o plano ao país. Em determinado momento do pronunciamento, Sarney abandonou o texto do *
Doutorando em História Social (UFF) e professor da Universidade Salgado de Oliveira.
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discurso e improvisou. Pediu que cada cidadão se tornasse um “fiscal do presidente” (SARDENBERG, 1987: 295). Creio que a reação popular que se seguiu àquela mensagem precisa ser melhor pesquisada, dada sua instantânea, padronizada e repetida resposta. É emblemático que minutos depois Sarney fora informado por um funcionário do Palácio do Planalto que alguém ligara para lá denunciando remarcação de preços em um supermercado de Brasília (SARDENBERG, 1987: 295). No mesmo dia ocorreram outros acontecimentos semelhantes, como a depredação da loja Bob‟s no Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro, poucas horas após o anúncio (KOCHER, 1997, 224). Nos meses seguintes, milhares de “fiscais do Sarney” atormentaram a vida de proprietários e gerentes de supermercados, açougues, padarias e armazéns por toda parte, visando garantir o que consideravam justo: a manutenção do congelamento de preços. Nosso objetivo neste trabalho é refletir acerca deste fenômeno que envolveu tanto a esperança e a euforia em seu primeiro momento, quanto a decepção e a revolta da população ao final. Apesar de partir de reflexões propostas por autores como E.P. Thompson e B. Anderson, entre outros, em tese de doutorado que vem sendo orientada pela profa. Laura Maciel (Uff), esta comunicação, em especial, pretende refletir sobre o apaixonado envolvimento da população com o referido plano econômico estritamente na perspectiva do conceito thompsoniano de economia moral dos pobres, dado o formato de um trabalho desta natureza. Obviamente, a utilização de um conceito pensado originalmente para a Inglaterra “pré-industrial” exige uma série de cuidados, a começar pela demarcação original de sua utilização. O conceito para Thompson Em seu artigo “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII” (1998: 150-202), Edward Thompson demonstra preocupação com o emprego do termo motim, sobre o qual há muita polêmica nas ciências sociais. Em geral, em que pesem os esforços de historiadores como George Rudé, o termo vinha sendo utilizado com um sentido que ele nomeia como espasmódico. Em outras palavras, os pobres se revoltam porque têm fome. Portanto, de acordo com essa noção, os motins são puras reações inconscientes a carências de fundo eminentemente econômico, nos quais as pessoas reagem de maneira instintiva (THOMPSON, 1998: 150, 151).
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Com o objetivo de combater essa posição teórica da “escola espasmódica”, Thompson procura demonstrar que “é possível detectar em quase toda ação popular do século XVIII uma noção legitimadora” (THOMPSON, 1998: 152). Longe de afirmar que a fome ou mesmo o aumento dos preços eram responsáveis por revoltas populares, o autor de “Costumes em comum” defende que, adicionado a isto, deve-se ter em mente que o comportamento da multidão se baseava em valores consensuais entre as camadas populares, que integravam um universo cultural que discriminava práticas legítimas de ilegítimas no que diz respeito ao direito de acesso aos gêneros de primeira necessidade. Tal comportamento, por sua vez, tinha como fundamento uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres (THOMPSON, 1998: 167).
Diante disso, podemos compreender que a quebra do que ele chama de “pressupostos morais” fosse, tanto quanto a carência real de víveres, um motivo para a rebelião. Em seu esforço, busca evidenciar que as multidões “agiam segundo um modelo teórico consistente”, modelo esse que buscava obter vantagens explorando a postura paternalista dos “patrícios”, “extraindo dele todas as características que mais favoreciam os pobres e que ofereciam uma possibilidade de cereais mais baratos” (THOMPSON, 1998: 167). Após essa breve visita ao conceito em Thompson, é importante dar lugar ao seguinte questionamento: seria possível transpor o uso do conceito pensado para contexto e épocas tão distintas, quais sejam o século XVIII inglês e o final do século XX brasileiro? Acredito que a resposta resida nas próprias observações feitas pelo autor acerca dos usos que fizeram de “sua” economia moral dos pobres. As “economias morais” Ao que tudo indica, “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII” suscitou tanta polêmica quanto influenciou muitos historiadores em todas as partes a enxergar em toda reação popular a relações econômicas semelhantes às de uma economia de mercado uma noção de economia moral. Em um sentido mais geral, portanto, economia moral se confundiria com a noção de direito à subsistência por parte dos mais pobres em situações nas quais o “mercado” lhes impossibilita ou dificulta extremamente a sobrevivência.
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Sua resposta às críticas foi elaborada em “A economia moral revisitada” (THOMPSON, 1998: 203-266). Neste texto, explica que, de fato, em suas pesquisas, limitou o emprego do conceito “aos confrontos na praça do mercado a respeito do acesso (ou direito de acesso) aos “artigos de primeira necessidade” – aos gêneros essenciais”. (THOMPSON, 1998: 257). Se tomada isoladamente, esta fala realmente restringe o uso do conceito. Todavia, o mesmo adquire maior abrangência quando ele ensina que a questão não é apenas que seja conveniente reunir num termo comum o feixe identificável de crenças, usos e formas associados com a venda de alimentos em tempos de escassez, mas também que as profundas emoções despertadas pelo desabastecimento, as reivindicações populares junto às autoridades nessas crises e a afronta provocada por alguém a lucrar em situações de emergência que ameaçam a vida, conferem um peso “moral” particular ao protesto. Tudo isso, considerado em conjunto, é o que entendo por economia moral (THOMPSON, 1998: 257).
Ademais, é importante considerar também que Thompson admite que “o termo esteja à disposição de todo desenvolvimento que possa ser justificado” (THOMPSON, 1998: 257). Realmente, não parece se opor ao seu uso, pois nos informa que havia um debate em torno do conceito – que ele classifica como “altamente interessante” – desenvolvendo-se na África, na Ásia e na América Latina e em outras partes, com uma acepção que não era exatamente a sua. (THOMPSON, 1998: 261). Por fim, pode-se fazer a defesa do uso de um conceito a priori incapaz de explicar outra realidade baseando-se no fato de que há muitas décadas a ciência histórica compreende que existem situações históricas que “mantêm uma afinidade genérica com as demais surgidas de conjunções comparáveis” (THOMPSON, 2001:95). Na mesma linha, Eric Hobsbawm nos oferece um interessante exemplo disto quando nos fala acerca de movimentos camponeses de diversas regiões que apresentam um caráter semelhante e “altamente padronizado” (HOBSBAWM, 1998: 226-228). Pessoalmente, ainda que saiba que “toda experiência histórica é obviamente, em certo sentido, única” (THOMPSON, 2001:79), creio que o que o historiador dos movimentos populares procura compreender são atitudes que homens, coletivamente, tomam em determinadas situações. É de se esperar que quando as situações sejam análogas as respostas a elas também possam ser. Ou a História não é uma ciência humana.
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Plano Cruzado: um fenômeno, várias causas Em História, freqüentemente os fenômenos têm vários elementos que devem ser encaixados para chegarmos a uma explicação. A participação popular em apoio ao Plano Cruzado é um desses. Certamente, tanto os “fiscais” ativos do Sarney – os que nas ruas protestavam contra a remarcação de preços – quanto os passivos – os que em casa vibravam com as espetaculares prisões de proprietários e gerentes de estabelecimentos comerciais e que também integravam os 90% que aprovavam o governo (SINGER in SOLA, 1988:77) – aderiram ao congelamento de preços euforicamente porque, entre outras razões, já se encontravam irmanados por uma série de experiências comuns nas diversas esferas da vida social, tais como o desemprego, a inflação, o alto custo de vida, a vivência negativa da ditadura militar, as frustrações com a corrupção, o arrocho salarial etc. Adicionem-se ao acima descrito outros dois elementos e temos um ambiente propício para a ação coletiva: um sentimento nacionalista que criava a idéia de nação em oposição aos que considerava “estrangeiros” – como os políticos ligados ao regime militar, grandes empresários, banqueiros e outros – e o próprio efeito pedagógico das ações coletivas recorrentes desde o final dos anos 70, as quais tinham a capacidade de auto-alimentar o processo, engrossando cada vez mais as fileiras das ações/protestos populares. (ASSIS, 2007) Ditas estas coisas, examinemos o lugar da economia moral dos pobres na explicação do fenômeno em questão. Se, do ponto de vista mais global, a adesão entusiástica ao Cruzado pode ser encarada como um fenômeno no interior de um processo histórico ainda mais complexo, mas não restrito a questões de sobrevivência cotidiana, do ponto de vista particular pode ser visto como um fenômeno que se circunscreve – em primeira instância – a esse aspecto. Contudo, é bom que se ressalte que não foi sem razão que Edward Thompson se apropriou do termo “moral” para compreender situações dessa natureza. Ao recuperar a expressão setecentista “economia moral” (THOMPSON, 1998:256) procurou deixar bem claro que não se tratava de levar em consideração elementos puramente objetivos em suas pesquisas acerca dos pobres no século XVIII. Assim também entendemos quando da análise do comportamento dos setores populares durante a vigência do Plano Cruzado.
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Aspectos da experiência cotidiana dos brasileiros Registrada pela Fundação Getúlio Vargas desde que esta começou a medir os preços em 1945, a inflação foi descrita como o fenômeno mais antigo da economia brasileira. De acordo com o jornalista Carlos Alberto Sardenberg, todo brasileiro tinha vivência da inflação e dela “todo mundo entendia” O economista Edmar Bacha, por sua vez, chegou a afirmar que antes do Plano Cruzado estava “todo mundo com raiva da inflação. Tirando a inflação da frente dava para resolver mais tranqüilamente o problema fundamental de que há muito pobre e pouco rico”. (SARDENBERG, 1987:22). Francisco Carlos Teixeira da Silva (in LINHARES, 1996:347) também constatou que a população estava “cansada de mais de uma década de inflação incessante”. Não somente os acadêmicos percebiam o que a inflação impunha aos brasileiros. Na própria cultura popular não faltavam elementos que demonstravam a experiência do fenômeno inflacionário, bem como outros aspectos da realidade social do país. A música popular e a teledramaturgia de então podem nos oferecer interessantes exemplos das vivências que compartilhavam as pessoas comuns dos diversos aspectos negativos da realidade nacional, sejam do ponto de vista político, social ou econômico. Na ausência de espaço, utilizo cartas de populares encaminhadas à Assembleia Nacional Constituinte em 1986/7, nas quais se percebe muito nitidamente o quanto a inflação desordenava o cotidiano das classes populares. Elas evidenciam o sentimento popular de que a inflação era o pior dos males nacionais. Francisca Hélia de Freitas Urçulino, moradora de Freitas (CE), 15 a 19 anos de idade, escreveu: A minha sugestão é : - Que a inflação que está muito alta pudesse diminuir. Minha sugestão é que o salário aumentasse para todos, pois tem funcionários que recebem muito mais do que o seu próximo que trabalha até mais. Que através de um aumento salarial igualitário as pessoas não percebam o aumento da inflação.1
A também cearense Maria Roseli Morçal Moreira, de Trairi, 10 a 14 anos, moradora da zona rural, disse que “gostaria que baixasse a inflação do país. Para tanto é necessário uma assembléia de pessoas como Políticos, Estudantes, Professores, etc, afim de 1
Carta de Francisca Hélia de Freitas Urçulino à Assembleia Nacional Constituinte. Sugestões da população para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. ORIGEM: L001 DATA: 20/02/86 FORMUL: 020 DV: 9 TIPO: 10 31/10/86. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.
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discutirem como mudar a inflação do país”.2 A carta de Cidelton da Cunha Pinheiro, casado, 25 a 29 anos, morador de Santa Luz (PI) e renda de até um salário mínimo, traz uma interessante lista de realizações para a Constituinte, algumas delas, vinculadas à inflação e à sua própria experiência de privações com o salário mínimo (em verdade, uma experiência coletiva): Que na nova constituição traga muitas realizações boas: 1- Terra para quem trabalha e não tem. 2- Que o governo de condições ao pequeno trabalhador rural dando empréstimos com juros compatívies e não como está. 3- Que o salário mínimo com que muitos vegetam, seja suficiênte para viver. 4- Que os salários de todos os níveis de assalariados sejam reajustado de acordo com a inflação. 5- Que dê emprego pra quem não tem condições financeiras e tem capacidade e, não pra quem não necessita e não tem condições cultural. 6- Que haja trimestralidade ou a paralização dos preços dos objetos mais necessário utilizado pelo homen na sua vida.3
Na opinião de Marco Antonio Ribeiro de Freitas, de São João de Meriti (RJ), casado, 30 a 39 anos, a situação do Brasil era caótica. Segundo ele, para que o nosso país possa sair do caos em que se encontra, é preciso que primeiro se acabe com a corrupção nos serviços públicos. E que tome uma medida enérgica contra essa inflação astronômica. Agora uma mensagem, eu peço a Deus que a asembleia constituinte venha a ser composta por homens que estejam realmente com vontade de trabalhar pela nossa nação.4
Freitas defendia que duas medidas emergências deveriam ser tomadas: o fim da corrupção e da inflação que não sem razão ele nomeia como astronômica. Sua mensagem final evidencia que os políticos de então não tinham vontade de trabalhar pela nossa nação, uma vez que ele pede a Deus que a assembléia seja formada por pessoas com essa vontade. Castarina [Catarina?] A. dos Santos, de Telemaco Borba (PR), casada, com cinco filhos e marido desempregado, “queria que diminuisse a inflação aumentasse 2
Carta de Maria Roseli Morçal Moreira à Assembleia Nacional Constituinte. Sugestões da população para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. ORIGEM: L001 DATA: 20/02/86 FORMUL: 023 DV: 8 TIPO: 10 31/10/86. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.
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Carta de Cidelton da Cunha Pinheiro à Assembleia Nacional Constituinte. Sugestões da população para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. ORIGEM: L002 DATA: 20/02/86 FORMUL: 042 DV: 2 TIPO: 10 31/10/86. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.
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Carta de Marco Antonio Ribeiro de Freitas à Assembleia Nacional Constituinte. Sugestões da população para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. ORIGEM: L003 DATA: 20/02/86 FORMUL: 052 DV: 8 TIPO: 13 31/10/86. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.
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salário e fizesse casa para os assalariados”. 5 Igualmente reveladora é a forma como ela inicia seu texto: “Devido esta chance de poder lhe dizer o penso”. Ao que parece, brasileiros de diversas origens pensavam de modo semelhante sobre muitas coisas. Nascimento Gomes de Sousa, de Nazare (GO), casado, 30 a 39 anos, tinha dúvidas sobre a eficácia da futura Constituição para resolver os problemas do país (inclusive a inflação). Seu texto deixa evidencia a percepção das desigualdades sociais: Considerando a nova constituição, teremos uma nova república? considerando uma nova constituição, poderá baixar a inflação? Considerando a nova constituição, poderemos diminuir a divida externa? Considerando a nova constituição, os banqueiros, industriais, empresários e outros, que ganham mais de 200 milhões mensais e mordomias lembrarão, daqeles que /renda, de quem está com fome, em greve, os marginalizados etc?6
A adesão entusiástica ao Cruzado Tendo obtido um retrato das experiências sociais com a inflação em suas dimensões concreta e simbólica, necessitamos recorrer aos acontecimentos, uma vez que a história “é composta de episódios e, se não podemos adentrá-los, não podemos adentrar a história absolutamente”.(THOMPSON, 2001:133) Vejamos, então, episódios vinculados ao Cruzado. Como dito acima, a reação popular ao anúncio do Cruzado foi imediata. A partir daquele dia 28, multidões, portando a tabela de preços da SUNAB (Superintendência Nacional de Abastecimento) publicada diariamente nos jornais, se sentiram responsáveis pela causa pública (NEVES, 2002:407; RODRIGUES, 1992:46; SARDENBERG, 1987:270). O ministro da Justiça Paulo Brossard se disse impressionado com as manifestações populares: “Nunca imaginei que em apenas 24 horas se formasse uma onda gigantesca. Nunca vi nem soube de algo parecido na História do Brasil”.34 A magnitude assumida pela participação popular pareceu preocupar os editores da revista Veja, tanto que fizeram questão de publicar a seguinte
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Carta de Castarina A. dos Santos à Assembleia Nacional Constituinte. Sugestões da população para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. ORIGEM: L003 DATA: 20/02/86 FORMUL: 057 DV: 0 TIPO: 14 31/10/86. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.
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Carta de Nascimento Gomes de Sousa à Assembleia Nacional Constituinte. Sugestões da população para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. ORIGEM: L003 DATA: 20/02/86 FORMUL: 057 DV: 0 TIPO: 14 31/10/86. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.
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REVISTA VEJA, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 5. [sem grifo no original]
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pergunta dirigida ao ministro: “Estará surgindo um poder incontrolável e acima das instituições?”35 Uma das situações mais emblemáticas ocorreu em Curitiba (PR). Indignado com os preços acima da tabela em um supermercado, Omar Marczynski, declarou em alta voz, diante de dezenas de pessoas: “Em nome do presidente José Sarney eu fecho esse supermercado”.36 Mais surpreendente que ter conseguido – com o apoio dos demais – fechar o estabelecimento, é o fato de aquele indivíduo ter se apropriado da figura do presidente para fazê-lo. Contudo, não se tratou de situação isolada, mas de um fenômeno social, tanto que os próprios mentores do Cruzado achavam que “parecia demais, exagerada, a adesão popular” (SARDENBERG, 1987:295). Segundo a revista Isto É, era evidente “o otimismo de multidões que têm saudado e aderido ao presidente José Sarney”.38 Os “fiscais do Sarney” se tornaram tão populares que Jô Soares, então à frente do “Viva o Gordo”, um programa humorístico muito popular na Rede Globo, "criou a personagem “fiscala do Sarney”.39 Nos parece óbvio que há elementos “morais” envolvidos no fenômeno. Carlos Alberto Sardenberg pareceu ter percebido isto à época: A inflação parou instantaneamente, conforme as pessoas percebiam, com inédita alegria, a cada vez que iam aos supermercados. O povo de fato fazia festa nas ruas. E nos próprios supermercados, onde os fiscais do presidente, tomados de fervor patriótico, chegavam a cantar o Hino Nacional quando os gerentes curvavam-se às pressões e remarcavam os preços para baixo (SARDENBERG, 1987:295).
Lourdes Sola também oferece explicações não objetivas para o que estava ocorrendo no país: A adesão “plebiscitária” ao Cruzado, entretanto, contém outros ingredientes, até aqui negligenciados. Ela evoca o clima cívico das campanhas pelas eleições diretas de 1984, e também o das manifestações maciças por todo o país quando do enterro do Presidente Tancredo Neves (...) Com uma diferença crucial: dessa vez parecia romper-se a cadeia de frustrações e de experiências de anti-clímax que havia caracterizado a transição brasileira desde 1982. Com o Cruzado parecia inequívoca, na percepção da população, a nova fase – “mudancista” – do governo. (...) A julgar pelas evidências disponíveis nas pesquisas de opinião pública, por exemplo, o Plano adquiriu um significado mais complexo e profundo do que o de uma guerra contra a inflação (SOLA, 1988:43,44[sem grifo no original]). 35
Ibid., p. 6.
36
REVISTA VEJA, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 5.
38
REVISTA ISTO É, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 21.
39
REVISTA VEJA, São Paulo: 30 abr. 1986, p. 25.
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Ao que parece, o país estava mudando. Estava? É preciso cuidado na análise em momentos como esse, pois, às vezes, o fato de o historiador saber o que de fato ocorreu – o desfecho – se torna um elemento capaz de turvar sua compreensão do processo. Thompson estava ciente disso, tanto que nos adverte para o fato de que “é necessário fazer uma pausa, de tempos em tempos, para lembrar que o modo como as pessoas conceberam o seu tempo não é necessariamente o modo como ocorreram os acontecimentos à época” (THOMPSON, 1998:213). Sendo assim, devemos lembrar ao leitor que sim, para a maioria, estava. Imagine o impacto (e coisas como estas eram feitas para causá-lo) de uma pessoa comum assistir o diretor-superintendente da Polícia Federal Romeu Tuma dizendo, diante das câmeras de TV, que “qualquer cidadão tem o direito de prender em flagrante quem estiver violando os termos do decreto presidencial”. Muitos chegavam ao delírio ao verem empresários sendo presos, como Roberto Maksoud, dono do hotel cinco estrelas Maksoud Plaza, de São Paulo, detido em 4 de março por cobrar o preço do refrigerante acima da tabela.43 O que dizer do depoimento emocionado de um popular, após interdição de um supermercado, comentando que não era de lutar por seus direitos, pois “não queria bancar o palhaço, porque as denúncias davam em nada, mas agora isso acabou. Qualquer coisa, vou direto à polícia. O governo nos devolveu a dignidade”.44 Há outros exemplos emblemáticos. Em Porto Alegre, o presidente da Associação Gaúcha de Supermercados e proprietário de 13 supermercados na capital, foi punido com uma multa de 27 mil cruzados. Alertados por consumidores indignados, os fiscais apareceram na filial do bairro Cidade Baixa. Ali, o empresário “foi vaiado, quando tentava explicar-se aos fiscais, pela multidão de clientes acotovelados entre as prateleiras”.45 Em Ipatinga (MG), o gerente do Hipermercado Jumbo, Valtenir Viana, foi pego em pleno dia com a remarcadora de preços e também acabou na prisão.46 No Rio de Janeiro (RJ), um dos casos envolveu a remarcação de preços de um simples pote de geléia, que fez a popular Cláudia Helena da Silva Ramos reunir uma multidão de 150
43
REVISTA VEJA, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 23.
44
Ibid., p. 36.
45
REVISTA VEJA, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 23.
46
REVISTA ISTO É, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 20.
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clientes que varreu a loja em busca de outros produtos com preço acima da tabela.47 Destes, cerca de 80 foram à delegacia com dois carrinhos, lotados de produtos – a prova do crime. À imprensa, Cláudia declarou: “Não precisamos ter vergonha de conferir preços. Temos que brigar por cada centavo.48 Sintomaticamente, o cortejo recebeu aplausos por onde passou até a delegacia. Há poucos momentos em que a roda da História gira a favor das pessoas comuns. Guardadas as devidas proporções, parecia que isto estava ocorrendo. E as pessoas pareciam saber estar vivenciando um momento especial. Ao fechar um supermercado onde uma pessoa comum havia sido ofendida pelo gerente com uma série de palavrões por questionar o preço dos ovos dias antes, o delegado-regional da SUNAB no Recife (PE), Otávio Augusto Cavalcanti, declarou, muito aplaudido pelos consumidores: “Para mim não existe nem grande nem pequeno empresário e sim maior ou menor infrator”.49 Mamede Paes Mendonça, então proprietário de extensa rede de supermercados, que dizia não dormir “tranqüilo quando não vende barato”,50 foi objeto de troça do delegado regional da SUNAB em Salvador (BA), que afirmou: “Acho que ele então não está dormindo tranqüilo há um bom tempo”.51 O infortúnio dos ricos era percebido pelos pobres como uma espécie de justiça. Uma inédita – ou rara – inversão da ordem. Deferência, intimidação e violência: as multidões e as autoridades As autoridades exibiam um comportamento favorável à população, como vimos em exemplos anteriores. Nada mais compreensível, uma vez que as mesmas estavam cientes de que há uma espécie de “negociação entre forças sociais desiguais em que os mais fracos ainda têm direitos reconhecidos sobre os mais fortes” (THOMPSON, 1998:260). Assim, além de compreender este dado da realidade, digamos, mais propriamente “moral”, as autoridades necessitam operar sobre consensos, e não sobre permanente conflito com a maioria: 47
REVISTA ISTO É, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 35.
48
Ibid.
49
Ibid.
50
Ibid.
51
Ibid.
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Porém, uma vez mais, os distúrbios eram uma calamidade social que devia ser evitada mesmo a um custo alto. O custo podia ser o de encontrar um meio-termo entre o “preço econômico” elevado no mercado e o preço “moral” tradicional determinado pela multidão (THOMPSON, 1998:192).
Pronunciamentos e mesmo ações favoráveis de autoridades em situações como estas a favor da população também foram encontradas nos motins do século XVIII. E. P. Thompson recorre ao elucidativo exemplo de Lord Kenyon, presidente do Supremo Tribunal inglês, que se posicionou claramente contrário aos interesses capitalistas, quando defendeu que o atravessamento de mercadorias deveria continuar a ser um delito, pois “é uma medida essencial para a existência do país”. Segundo Kenyon, “quando as pessoas sabem que há uma lei a que recorrer, isso acalma suas mentes”, e acaba com a ameaça de “insurreição” (THOMPSON, 1998:211). A atitude acima não foi a única. Ao contrário, era um tipo de atitude muito comum, à semelhança (e guardadas as devidas proporções) das que vimos relativas ao Cruzado. Contudo, há gradações entre as diversas situações. Podemos vislumbrar que há as que possuem abrangência geral e as que operam localmente. O evento envolvendo Lord Kenyon, por exemplo, teve abrangência geral. Entretanto, como no Cruzado haviam as situações localizadas – algumas delas depois tornadas gerais pela cobertura jornalística – envolvendo a população, seus inimigos no mercado e a autoridade, nos protestos estudados por Thompson isso também era comum. Em 1795, por exemplo, ele descreve um motim em Seven Dials, onde um magistrado londrino se deparou com uma multidão demolindo uma padaria acusada de vender pão com peso indevido. Ao invés de repreender a multidão pelo ataque à propriedade privada ou coisa semelhante, o magistrado, ao constatar que o peso realmente estava incorreto, distribuiu todo o estoque de pão à multidão (THOMPSON, 1998:175). As demonstrações de algum tipo de deferência, gratidão ou respeito às autoridades por parte das pessoas comuns integram o teatro desse tipo de ação coletiva. Nessa perspectiva, torna-se possível compreender a “devoção” popular ao presidente José Sarney ou ao seu festejado ministro da Fazenda Dilson Funaro,56 bem como as 56
“Em todos os lugares por onde circulou desde a edição do pacote econômico de 28 de fevereiro – da Escola de Guerra Naval ao Congresso, auditórios o aplaudiram de pé”. REVISTA VEJA, São Paulo: 19 mar. 1986, p. 36; Por incrível que possa parecer, uma missa em prol da saúde de Funaro – que sofria de câncer linfático – atraiu 1000 populares a uma igreja em Curitiba [!]. As pessoas foram atraídas por um anúncio de jornal mandado publicar na Gazeta do Povo, que dizia: “Em intenção de vida longa ao Sr. Ministro Dilson Funaro”. Cf. ASSIS, op. cit., p. 153.
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demais autoridades presentes aos atos públicos de fechamentos de supermercados. Eles passaram a ser importante na medida em que sua atuação se ajustava ao sistema de valores da população. Nesse sentido, é verdade que podemos dizer que era como se tivessem deixado sua condição humana comum para figurar de modo especial no afeto popular, como espécies de heróis que subverteram a ordem em favor dos menos aquinhoados. No caso inglês, Thompson lembra o quanto era difícil reprimir uma multidão que alegremente gritava “Deus, Salve o Rei”. Não seria nesse sentido a famosa frase “em nome do presidente Sarney eu fecho esse supermercado”? Nada melhor que ter a Polícia a seu lado, sobretudo para uma população com experiência recente de violência policial contra os setores populares. Agora, a força policial estava ali para prender os ricos [!]. Creio que fazia todo sentido – se entendermos como estratégias que fazem parte da cultura política de então – a deferência a Sarney, a Funaro e até mesmo às autoridades que estavam presentes às interdições da SUNAB. Assim fica mais fácil entender os aplausos que recebiam as autoridades sempre que baixavam as portas dos estabelecimentos e colocavam a faixa que dizia: “Este estabelecimento foi interditado pela SUNAB por estar praticando preço acima do autorizado”.58 Como nos motins analisados por Thompson, a presença constante da população nos estabelecimentos comerciais se constituía em estratégia tanto para fazer acontecer quanto para manter as conquistas. Essa presença tinha o efeito de intimidar não somente os empresários mas também o governo, o mesmo ao qual a população demonstrava deferência para lembrá-lo o tempo todo de que lado ele deveria ficar. Fazendo analogia com as guerras, Thompson lembra o quanto a expectativa de motins, por si só, tem efeito sobre os que detêm (ou tem que proteger) a propriedade (THOMPSON, 1998:187). Naturalmente, é de se esperar que os últimos, tanto quanto possível, se esforcem por manter a paz social. Em alguns casos, ela pode – paradoxalmente – ser mantida fazendo-se uso da violência. Brasílio Sallum Jr. (in SOLA, 1988:136) explica que a acolhida popular do Cruzado foi tão avassaladora “que mesmo os setores empresariais prejudicados pelo congelamento não podiam expressar publicamente sua divergência, sob pena de reações contrárias até violentas”.
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REVISTA VEJA, São Paulo: 26 mar. 1986, p. 95.
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De fato, a violência existiu, como era de se supor, uma vez que o comércio em geral, afirmava ter necessidade de remarcar os preços. De acordo com reportagem de Veja, “em todos os Estados do país registraram-se não só manifestações de simpatia à coragem com que agora se enfrenta a inflação”. Em seguida, informou que no Rio de Janeiro, ocorrera “selvageria”, devido “ao descontentamento popular contra comerciantes que remarcavam seus preços covardemente”, depredando-se lojas.61 Por outro lado, é interessante observarmos que a repressão aos populares foi débil. Isto porque, como o próprio Thompson descobriu, a questão da ordem não era absolutamente simples. A inadequação das forças civis se combinava com a relutância em empregar a força militar. Os próprios oficiais tinham bastante humanidade, e estavam rodeados de muita ambigüidade quanto a seus poderes em confrontos civis, manifestando uma marcante falta de entusiasmo por esse “serviço odioso” (THOMPSON, 1998:188).
Há que se lembrar que os integrantes das forças policiais também compartilhavam dos valores (e da condição social) do restante da população pobre. Aliás, havia legitimidade em reprimir, por exemplo, uma manifestante em cuja carteira havia uma foto do ministro da Fazenda, como se fosse a de um namorado? Imaginemos o constrangimento causado ao governo se ela dissesse a um delegado, chorando, que não entendia porque houvera sido presa, pois estava ali fazendo cumprir o que o próprio governo determinara. E se, em seguida, sacasse a foto da carteira e repetisse as mesmas palavras que disse a um repórter de Veja: “Ninguém fez tanto por nós”.63 Me parece que a noção de estratégia nos auxilia a compreender esse comportamento popular, típico do Cruzado. Assim se explica o já citado “o governo nos devolveu a dignidade”.64 Vimos as diversas formas de intimidar serviam como recado tanto para o governo aliado quanto para o empresariado, que estava no pólo oposto. Entretanto, era de se esperar que os recados endereçados para os primeiros fossem, em certa medida, 61
REVISTA VEJA, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 21. Registre-se o fato da matéria atribuir como covardia a atitude de aumentar os preços, o que revela que o veículo estava a favor do grosso de seus leitores, que concordavam com as medidas. No limite, pode revelar que não era possível assumir posição diferente sem encontrar severa oposição por parte dos leitores, ainda que a revista quisesse defender posições mais liberais. O uso do termo selvageria para classificar a revolta parece encontrar na covardia dos comerciantes um adversário à altura. Assim, a revista não ficava mal com seus leitores, situados nos dois pólos do conflito. Embora tenha se colocado a favor do plano, não ficava bem – até por razões existenciais – apoiar o ataque à propriedade. [sem grifos nos originais]
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REVISTA VEJA, São Paulo: 19 mar. 1986, p. 36.
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Ibid., p. 36.
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sutis, ao passo que ao empresariado fossem bem diretos, como demonstraram exemplos anteriores. Um trecho de editorial do jornal O Estado de São Paulo, evidencia o quanto era realmente difícil para os defensores da economia de mercado se colocarem contra o congelamento de preços no Brasil de 1986: “Quando o povo tem prazer em exercer funções de polícia contra os comerciantes (na malhação do Judas, em Brasília, não se escreveu no boneco „os ricos‟?)”... (FONSECA, 1994:234). O recado aqui pode ter sido tão direto quanto os quebra-quebras ocorridos. Obviamente, a manutenção deste clima de animosidade interessava ao governo, pois desviava as atenções de sua ineficiência, e ao povo, que garantia sua liberdade – no interior de certos marcos – para continuar sua luta pela manutenção do congelamento. Interessava, portanto, ao governo, deixar bem claro de que lado estava. Nada que tenha escapado a Thompson, que observou esta postura na gentry, a qual obtinha com isso a grande vantagem de continuar no poder: “Mas é claro que tinham a intenção de produzir um efeito simbólico, eram uma demonstração para os pobres de que as autoridades agiam vigilantemente para defender seus interesses” (THOMPSON, 1998:160). Por outro lado, no
que diz respeito ao comportamento dos pobres, é freqüente “encontrar frases rebeldes, geralmente (suspeita-se) para gelar o sangue dos ricos com seu efeito teatral”. Quanto a isso, o exemplo da malhação do Judas é emblemático. Thompson adverte que não devemos examinar este tipo de motim em busca de “intenções políticas manifestas e articuladas, embora de vez em quando elas apareçam” (THOMPSON, 1998:193). Entretanto, há que ressaltar que se por um lado não podemos classificar as ações da multidão em termos de atividades políticas – partidária, sindical, estudantil etc. –, não significa que suas ações sejam apolíticas, muito pelo contrário. Ao agir coletivamente (ao lado do Estado ou contra o mesmo), os populares demonstram ter noção de que operam no campo da política e que, nessa acepção, fazem parte dela e/ou acreditam ter o poder de interferir na mesma. Considerações finais O congelamento de preços acabou da pior forma possível. E no pior momento possível. Em 21 de novembro de 1986, apenas seis dias após a consagradora eleição que garantiu estrondosa vitória ao PMDB,68 o governo Sarney, talvez acreditando que a 68
No dia 15 de novembro de 1986 a população havia dado ao PMDB a maior votação da história do país
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fantástica adesão que possuía fosse acrítica, cega, tomou medidas que fizeram com a inflação retornasse de maneira virulenta, sendo percebida pela população quase que imediatamente.69 Porém, nada disso impediu a fúria popular, por ocasião o ocaso do plano. As pessoas souberam tanto apoiar quando lhes parecia a melhor coisa a fazer, quanto protestar quando tudo ruiu, o que reforça a proposta de que a adesão foi eminentemente condicional. A partir dos violentos aumentos de preços de novembro de 1986 que desfizeram os pressupostos morais do Cruzado, entre os coros mais cantados pelas multidões em protestos, greves e quebra-quebras estava “O povo não esquece, Sarney é PDS”.73 Amargando enorme impopularidade, restou a José Sarney arrastar seu (des)governo até 1990, sob forte pressão popular, que nem mesmo os meios de comunicação foram capazes de arrefecer. Bibliografia CAMARGO, Aspásia e DINIZ, Eli. (orgs.). Continuidade e mudança no Brasil da Nova República. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1989. FONSECA, César Pinto. A imprensa liberal na transição democrática (1984-1987): projeto político e estratégias de convencimento. Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciência Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade de Campinas, 1994. 2 vol. HOBSBAWM, Eric John. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. KOCHER, Bernardo. A economia política dos preços. Brasil, 1964-1994. Tese de doutorado. Coordenação de Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, 1997. LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1996. NEVES, Guilherme Pereira et. al. Brasil: de terra ignota ao Brasil atual. Rio de Janeiro: Log On Editora Multimídia, 2002. SOLA, Lourdes (org.). O Estado da transição: política e economia na Nova República. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1988. SARDERBERG, Carlos Alberto. Aventura e agonia – nos bastidores do Cruzado. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. com 22 dos 23 estados, 44 das 49 cadeiras no Senado que estavam em disputa e a maioria em pelo menos 15 assembléias legislativas. Cf. ASSIS, op. cit., p. 23. 69
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SOLA, Lourdes. Choque heterodoxo e transição democrática sem ruptura: uma abordagem transdisciplinar. In: SOLA, op. cit., 1988, p. 17, 18. Jornal do Brasil: Rio de Janeiro, 1º jul. 1987. Caderno Cidade.
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THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______________. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organização: Antonio Luigi Negro, Sergio Silva. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2001.
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