O Planejamento e a Gestão das Cidades em uma Perspectiva

70 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V,n" 8, pp. 67-100,janJjuD., 2000 Em meio a essas tendências, o "desenvolvimento urbano sustentável"...

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o PLANEJAMENTO

E A GESTÃO DAS CIDADES EM UMA PERSPECTIVA AUTONOMISTA

Marcelo

Lopes

de Souza"

The planning and management of cities from an autonomist perspective . explicit discussion of the practical means In this paper urban development to achieve an autonomous society. As is defined in relation to collective and autonomy is not an all-or-nothing matter; individual autonomy. As proposed by it is necessary to transform the Cornelius Castoriadis, autonomy is the ability of an individual to shape his/her philosophical notion of autonomy imo a scientific concept whicb can function as life freely, and on the basis of equal a criterion for lhe evaluation of planning opportunity; and lhe possibility given lo itself and of public policies. This paper a group to govem itself without externai tries to make more operational the idea oppression from other groups iculturaiiy of autonomy by discussing indicators of or politically defined] or from as well as the interference from above {oppressive and . urban development potentialities and problems of Brazilian exploitative structures; metaphysically"politicized planning ". The viewpoint of defined laws and norms). the author is that instruments and Castoriadis' contribution to criticai theory is a fundamental one for practices of urban planning and management shruld be evaluated, first, it provides a radical departure from both and foremost, for their capacity lo capitalism conservatism and Marxism. What it does not provide, however; is an support autonomy.

Introdução: ilusões e desafios a prop6sito da renovação do planejamento e da gestão urbanos Há três décadas fala-se sobre a "crise do planejamento urbano". Aquilo a que se imputa a causa dessa crise tem variado conforme o observador; sempre houve, porém, esperança de que o paciente se recuperasse de sua • Professor do Departamento de Geografia da UFRJ e pesquisador do CNPq. O autor deseja agradecer a Demóstenes Andrade de Moraes e Pablo Ortellado por sua leitura crítica de uma versão anterior deste artigo.

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enfermidade - e receitas de cura não faltaram. Correntes renovadoras tentaram ora injetar mais cientificidade e "racionalidade" no planejamento (systems planning; rational view approach', ora mais democracia e pluralismo (a exemplo do "planejamento advocatício?", ora mais humanismo e "senso de comunidade" (no estílo de Jane Jacobs", ora mais sustentabilidade ecológica (corrente atual do "desenvolvimento urbano sustentãvel'": Mesmo dentro ou nas vizinhanças da esfera de influência do pensamento marxista, onde durante os anos 70 e 80 a reação predominante ao planejamento, da parte de sociólogos e geógrafos urbanos, foi uma recusa generalizante e uma infantíl ojeriza à própria palavra, surgiram tentativas de reciclar o planejamento urbano: é o caso, particularmente, do "planejamento politizado" (expressão de RIBEIRO e CARDOSO [1990]) ou "alternativo", inspirado pelo ideário brasileiro da Reforma Urbana, e dos "novos planos diretores" dele derivados, desenvolvidos a partir de fins dos anos 80. No entanto, toma-se a cada dia mais evidente que o destino desses esforços de renovação ou reconversão acabou sendo o de frustrar, em maior ou menor medida, os seus protagonistas, na proporção exata das suas expectativas. O planejamento regulatório convencional enfraqueceuse gradualmente na esteira do debilitamento do welfare state e, em países (semi)periféricos como o Brasil, da débâcle do "Estado desenvolvimentista". Embora o planejamento regulatório não tenha desaparecido por completo, um outro tipo de planejamento, associado por BRINDLEY et ai. (1989), em seu estudo sobre a experiência inglesa durante o governo Thatcher, a três variantes específicas (trend planning; leverage planning e privatemanagement planning), e visto por HARVEY (1989) como um componente do estilo de governança urbana por ele denominado de entrepreneurialism ("empresarialismo" ou "empreendedorismo"), vem emergindo, sendo hoje hegemônico em muitos lugares. O planejamento empresarialista representa, em larga medida, uma negação "pela direita" do planejamento regulatórioc1ássico - para muitos o planejamento por excelência. Já não se trata mais, nesse planejamento empresarialista, e diversamente do regulatório, de - conforme denunciaram os sociólogos e geógrafos marxistas a partir do começo da década de 70 - servir indiretamente e a longo prazo o status quo capitalista, ainda que, eventualmente, 1 Uma boa discussão desses dois enfoques - algumas vezes confundidos inadvertidamente pode ser encontrada em TAYLOR (1998). 2 Ver, por exemplo, DAVIDOFF (1973). J Ver,de Jane Jacobs, o clássico The Deatb and Life 01 Great American Cities (J ACOBS, 1972). 4 Bons exemplos desse enfoque são STREN et ai. (orgs.) (1992), WHITE (1994) e SATTERTHWAITE (1997).

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Em meio a essas tendências, o "desenvolvimento urbano sustentável" não é mais do que uma resposta tímida e, em última instância, inócua. No fundo, a sua versão hegemônica não é outra coisa que uma tentativa de "atualização ecológica" do padrão capitalista de "desenvolvimento" urbano (vide, para uma exposição menos sintética do argumento, SOUZA [1998]). Se a idéia-força central do planejamento urbano regulatório convencional era e é simplesmente a modernização do espaço urbano (complementada por outras idéias-força como ordem, racionalidade etc.), no "desenvolvimento urbano sustentável" a idéia-força central passa a ser uma espécie de modernização combinada com proteção ambiental. Basta ver que, para o mainstream da corrente do "desenvolvimento sustentável" em geral (a começar pelo Relatório Brundtland [COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1988]), longe de se problematizar o modelo social capitalísta, tem-se o crescimento econômico, de maneira simplista, na conta de um remédio imprescindível, sem o qual a pobreza não poderá ser mitigada. Cabe salientar, a respeito da pobreza e dos conflitos sociais, que eles são, via de regra, examinados pelos sustentabilistas com o auxílio de categorias vagas, devendo-se a preocupação com a pobreza parcialmente à sua usual característica de ser um fator de degradação ambientaL Viciado na origem por essa tensa mistura de ecocentrismo e acriticismo perante a essência do modelo social capitalista, o "desenvolvimento urbano sustentável" não avança para além de apelos morais, recomendações técnico-tecnológicas e uma aposta na sobrevivência de um Estado de tipo keynesiano, capaz de regular a expansão urbana e investir na preservação do meio ambiente. De sua parte, o chamado New Urbanism, surgido nos Estados Unidos no final da década de 80, não passa de uma alternativa conservadora aos suburbs, forma de assentamento de baixa densidade típica do entorno das grandes cidades .americanas, normalmente elitizada e que reúne moradias unifamiliares, complexos de apartamentos, shopping centers e conjuntos de escritórios. Inspirado em padrões urbanísticos de antes da Segunda Guerra Mundial, o New Urbanism "procura reintegrar os componentes da vida modermesmo sociedades tribais e grupos de caçadores e coletores "planejam" sua vida e suas atividades). Como bem exprimiu Carlos Matus: "{s]e planejar é sinônimo de conduzir conscientemente, não existirá então alternativa ao planejamento. Ou planejamos ou somos escravos da circunstância. Negar o planejamento é negar a possibilidade de escolher o futuro, é aceitálo seja ele qual for." (MATUS, 1996, tomo I, p, 14) Além disso, o próprio Estado capitalista, não sendo um mero "comitê executivo da burguesia", mas sim uma "condensação de uma relação de forças entre classes e frações de classe" (POULANTZAS, 1985:147), como admitiram marxistas mais sofisticados, pode ser redirecionado para servir de plataforma para alguns avanços sociais e polftico-pedagógicos.

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Em meio a essas tendências, o "desenvolvimento urbano sustentável" não é mais do que uma resposta tímida e, em última instância, inócua. No fundo, a sua versão hegernônica não é outra coisa que uma tentativa de "atualização ecológica" do padrão capitalista de "desenvolvimento" urbano (vide, para uma exposição menos sintética do argumento, SOUZA [1998]). Se a idéia-força central do planejamento urbano regulatório convencional era e é simplesmente a modernização do espaço urbano (complementada por outras idéias-força como ordem, racionalidade etc.), no "desenvolvimento urbano sustentável" a idéia-força central passa a ser uma espécie de modernização combinada com proteção ambiental. Basta ver que, para o mainstream da corrente do "desenvolvimento sustentável" em geral (a começar pelo Relatório Brundtland [COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1988]), longe de se problematizar o modelo social capitalista, tem-se o crescimento econômico, de maneira simplista, na conta de um remédio imprescindível, sem o qual a pobreza não poderá ser mitigada. Cabe salientar, a respeito da pobreza e dos conflitos sociais, que eles são, via de regra, examinados pelos sustentabílistas com o auxílio de categorias vagas, devendo-se a preocupação com a pobreza parcialmente à sua usual característica de ser um fator de degradação ambiental. Viciado na origem por essa tensa mistura de ecocentrismo e acriticismo perante a essência do modelo social capitalista, o "desenvolvimento urbano sustentável" não avança para além de apelos morais, recomendações técnico-tecnológicas e uma aposta na sobrevivência de um Estado de tipo keynesiano, capaz de regular a expansão urbana e investir na preservação do meio ambiente. De sua parte, o chamado New Urbanism, surgido nos Estados Unidos no final da década de 80, não passa de uma alternativa conservadora aos suburbs, forma de assentamento de baixa densidade típica do entorno das grandes cidades .americanas, normalmente elitizada e que reúne moradias unifamiliares, complexos de apartamentos, shopping centers e conjuntos de escritórios. Inspirado em padrões urbanísticos de antes da Segunda Guerra Mundial, o New Urbanism "procura reintegrar os componentes da vida moder-

mesmo sociedades tribais e grupos de caçadores e coletores "planejam" sua vida e suas atividades). Como bem exprimiu Carlos Matus: "[sle planejar é sinônimo de conduzir conscientemente, não existirá então alternativa ao planejamento. Ou planejamos ou somos escravos da circunstância. Negar o planejamento é negar a possibilidade de escolher o futuro, é aceitálo seja ele qual for." (MATUS, 1996, tomo I, p. 14) Além disso, o próprio Estado capitalista, não sendo um mero "comitê executivo da burguesia", mas sim uma "condensação de uma relação de forças entre classes e frações de classe" (POULANTZAS, 1985:147), como admitiram marxistas mais sofisticados, pode ser redirecionado para servir de plataforma para alguns avanços sociais e político-pedagógicos.

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na - habitação, local de trabalho, fazer compras e recreação - em bairros de uso misto, compactos, adaptados aos pedestres, unidos por sistema de tráfego" (CONGRESS OF NEW URBANISM, 1999). Pouco crítico em relação ao mercado, o New Urbanism sequer pode ser visto como um legítimo descendente do planejamento regulat6rio clássico, tendo, na verdade, mais afinidade com o comunitarismo à la Jane Jacobs; de fato, trata-se de uma vertente "neotradicionalista". Entre as correntes com pretensões reformistas que deslancharam nos anos 90, o "planejamento politizado" ou "alternativo" brasileiro, derivado do ideário da Reforma Urbana, parece ser o que mais avançou, apesar dos pesares. O debate anglo-saxão, tão orgulhoso de si mesmo, permanece circunscrito a opções nada convincentes, como um "planejamento comunicativol colaborativo" possuidor de um discurso ambíguo, embalado por um sonho de construção de amplos consensos e subestimador da profundidade das contradições sociais e de suas implicações políticas,' e um "planejamento rawlsiano" ainda limitado ao terreno das propostas e discussões teóricas e não menos ambíguo, em decorrência da fraqueza crítica de sua base metateórica (a Teoria da Justiça de John Rawls)." Quanto às experiências concretas, o quadro não é mais entusiasmante: o community planning e os esquemas usuais de "participação popular" no planejamento urbano no Reino Unido são, o mais das vezes, simplesmente consultivos; nos EUA, Clarence Stone admitiu que exemplares do tipo de regime urbano progressista que ele denominou de 1 Exemplares representativos desse "planejamento comunicati vo/colaborativo", que reclama a "Teoria do Agir Comunicativo" de HABERMAS (1981,1990) como fonte de inspiração, são HEALEY (1995, 1996, 1997, 1998) e INNES (l995). Observe-se que sem o estabelecimento da redução de desigualdades e da crescente democratização da gestão das cidades como prioridades, a apologia de um "planejamento colaborativo" fundamentado na comunicação (HEALEY, 1997, 1998) é, para dizer o mínimo, presa fácil para uma instrumentalização conservadora. Ou bem o propósito da "colaboração" é evitar a violência e a superação de preconceitos entre os distintos grupos de interesse no contexto de um estilo de governança que encara uma maior justiça social como a mais alta prioridade, ou bem "colaboração" não é nada mais que um sonho de harmonia irrealista, o qual contribui para a estabilização de um estilo de governança que serve, acima de tudo, aos interesses dos grupos dominantes. Ressalve-se, porém, que não seria inteiramente justo culpar Habermas por essa fraqueza; ele sabe, provavelmente muito melhor que a maioria dos "planejadores comunicativos", que a existência de um agir e uma racionalidade comunicativos têm como premissas liberdade e eqüidade. H Um representante dessa vertente é Shean McCONNEL (1995). Deve-se salientar que a teoria da justice as faimess de RAWLS (l972) carece de imunização apropriada contra certas facetas da heteronomia estrutural, como divisões de classe em uma sociedade capitalista. Como outros autores (por exemplo, DANIELS [1975]) já evidenciaram, a teoria de Rawls justifica determinadas desigualdades econômicas e pressupõe uma subestimação da extensão em que essas desigualdades minam ou impedem o exercício da liberdade.

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"devotado à expansão de oportunidades para a classe desprivilegiada" (devoted to /ower class opportunity expansion) "são largamente hipotéticos" (STONE, 1993:20). A comparação acima não pretende sugerir, todavia, que a experiência brasileira seja um mar de rosas; muito longe disso. Os "novos planos diretores" da cepa do "planejamento politizado" brasileiro têm tropeçado em muito mais obstáculos do que previa a maioria de seus inspiradores." O planejamento social-reformista vem, aos poucos, sendo esmagado pelo peso de tudo aquilo que tem subestimado por força de um certo resíduo tecnocrático ("tecnocratismo de esquerda" [SOUZA, 1998]): da crise dos movimentos sociais urbanos à fragilidade técnica da maioria das prefeituras, da cultura política não-participativa à força de inércia do tecnocratismo enraizado nos quadros técnicos das administrações municipais. Em contrapartida, a importância dos planos e dos instrumentos de planejamento alternativos tem sido grandemente exagerada, especialmente em virtude da escassez de análises mais exigentes das condições sociais (econômicas, culturais e institucionais) de exercício do poder local. Curiosamente, esse planejamento alternativo, caracterizado por uma objeção ao vício racionalista de se trabalhar com uma cidade ideal em detrimento da confecção de instrumentos adequados ao enfrentamento dos problemas da cidade real, com suas situações de informalidade e mesmo ilegalidade, tem apresentado uma certa carência de realismo no que tange à sua leitura da viabilidade de se conquistar uma Reforma Urbana com base em planos diretores. De que adianta, por exemplo, elencar os municípios onde as leis orgânicas ou planos diretores preconizam a aplicação de instrumentos progressistas sob os ângulos da coibição da especulação imobiliária, da redução da segregação residencial e da democratização da gestão urbana (IPTU progressivo, "solo criado", contribuição de melhoria, fundo de desenvolvimento urbano etc.), sem que se proceda a uma avaliação em profundidade da forma como os instrumentos estão previstos e estão (se é que estão) sendo efetivamente implementados nos municípios considerados'I!" De todo modo, quando se começa a perceber a verdadeira dimensão do desafio. a falta de um referencial metateórico (político-filosófico e ético) adequado tem conUma advertência a esse respeito havia sido já feita em SOUZA (1993). Vide RIBEIRO (1995), onde foram sumariados os resultados de uma pesquisa que examinou as leis orgânicas e os planos diretores dos 50 municípios brasileiros mais populosos. Embora o trabalho deixe perceber que há disparidades entre as legislações no que toca à consistência, isso foi insuficientemente explorado no material publicado, cujo tom permanece por demais otimista. Uma análise um pouco mais madura e cautelosa dos resultados da mesma pesquisa está contida em CARDOSO (1997). 9

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denado vários analistas à desorientação ou mesmo a uma postura derrotista, uma vez que a realidade tem sido madrasta: não é fácil descobrir vitórias incontestes colhidas pela línha social-reformista.'! O panorama é. por conseguinte, pouco animador, no que concerne à existência de alternativas viáveis. Essa situação é, contudo, facilmente explicável. As fundações materiais e institucionais do velho planejamento regulatório (a saber, um Estado com uma capacidade no mínimo apreciável de regular e investir) vão aos poucos se esfarelando, o que deixa o terreno livre para que se vá desenhando um planejamento empresarialista que, por contraste, quase deixa seu antecessor com uma aura de progressista; entrementes, a intelligentsia de esquerda nada consegue produzir a não ser soluções técnicas sustentadas por um referencial metateórico desfibrado. desinteressado em conceber algo para além dos limites postos pela fórmula constitucional da "função social" da propriedade privada (cf. Art. 182 da Constituição Federal de 1988 [CONSTITUIÇÃO DO BRASIL, 1999]) e incapaz de propiciar um embasamento interpretativo arrojado da dinâmica sócio-espacial no Brasil urbano. A dimensão técnica, por assim dizer, e a despeito da linhagem crítica de que descendem os "planejadores politizados", é explorada sem uma correta contextualização, pautada em um exame profundo das relações sociais. Sem disposição para atualizarem o velho discurso pseudo-revolucionário de rejeição niilista do planejamento, mas também desprovidos de um horizonte político-filosófico que lhes permita oferecer uma resposta a um só tempo contundente e realista ao quadro de aguçamento de contradições, os planejadores social-reformistas arriscam-se a uma crescente irrelevância. As tarefas técnicas e os obstáculos políticos de curto e médio prazos não devem obscurecer a visão no que toca aos desafios estruturais, de longo prazo; tampouco devem asfixiar o reconhecimento pleno de que a discussão dos instrumentos de planejamento precisa se dar nos marcos de uma análise densa e realista dos problemas locais, nacionais e globais. Tomando o Brasil urbano como exemplo - pois, se o enfoque advogado neste trabalho tem uma aplicabilidade muito mais ampla, de outra parte é para o Brasil que se voltam as preocupações mais imediatas do autor - e considerando também a escala 11 O projeto de lei do Plano Diretor do município de São Paulo, preparado durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992), é um documento tecnicamente muito bem elaborado, a ponto de ter servido de modelo para muitos outros planos progressistas pelo Brasil afora (cf, DIÁRIO OFICIAL DO MUNICfPIO DE SÃO PAULO, 1991); não obstante, isso não impediu a Câmara Municipal de rejeitá-lo. A experiência de Angra dos Reis, bastante citada na literatura (ver GUIMARÃES e ABICALlL, 1990; GUIMARÃES, 1997), foi, de sua parte, uma vitória apenas parcial. O Plano Diretor do município do Rio de Janeiro, votado em 1992 e razoavelmente progressista (cf. CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO, 1992), acabou tendo a esmagadora maioria de seus instrumentos não regulamentada até hoje.

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internacional e sua dinâmica, é imprescindível examinar intensamente problemas típicos de um país capitalista semiperiférico, como uma democracia representativa frágil e viciada por uma cultura política autoritária, além de outros tantos obstáculos, menos ou mais específicos: apatia e desmobilização no interior da sociedade civil. mediocridade dos partidos políticos de esquerda, dificuldades financeiras dos municípios etc. Todos esses aspectos necessitam ser integrados em benefício de avaliações estratégicas e táticas pragmáticas e ousadas ao mesmo tempo. Só assim poder-se-á falar de uma concepção de planejamento e gestão urbanos verdadeiramente alternativa em relação às abordagens que dão suporte ao modelo social capitalista. A perspectiva autonomista apresentada e discutida ao longo deste artigo pretende possuir as credenciais para desempenhar esse papel, e é disso que se tentará persuadir o leitor nas páginas que seguem.

1. Autonomia e perspectiva autonomista Para os leitores que não estão familiarizados com a Filosofia de Cornelius Castoriadis, a expressão "perspectiva autonomista" decerto soa intrigante e enigmática. Com o fito de se evitarem desde já mal-entendidos, faz-se mister, portanto, oferecer um conjunto de esclarecimentos acerca do conteúdo de alguns termos-chave, precedidos por breves comentários sobre a obra de Castoriadis. Cornelius Castoriadis, nascido em 1922 em Istambul no seio de uma família grega, cresceu e educou-se em Atenas. A guerra civil em que a Grécia mergulha, após a Segunda Guerra Mundial. determinará sua saída do país rumo à França em 1945, país onde desenvolverá uma das mais fecundas obras filosóficas do século XX e onde permaneceu até sua morte, em 1997. Formado em Direito, Economia e Filosofia, dono de uma imensa erudição que abrangeria ainda campos como a Lingüística e a Psicanálise, Castoriadis foi, inicialmente, sobretudo um militante de esquerda. Ligado ao trotskismo em meados dos anos 40, momento em que já iniciara uma crítica implacável do totalitarismo stalinista, ele abandona o movimento trotskista em 1948, ano em que funda, ao lado de outros ex-militantes, a lendária revista e o grupo homônimo Socialisme ou Barbarie. No decorrer dos anos 50 e 60 Castoriadis se afasta mais e mais do próprio marxismo, até a ruptura definitiva em meados da década de 60. De acordo com Castoriadis, as democracias representativas ocidentais são, na realidade, "oligarquias liberais", as quais encarnam um gap estrutural entre uma minoria de poderosos (os dirigentes) e uma maioria de cidadãos ordinários (os dirigidos): esferas decisórias são largamente fechadas à partici-

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pação do público, O déficit de accountability democrática é gigantesco, a informação que é trazida ao conhecimento das massas é não raro filtrada e mesmo manipulada e o Estado garante a reprodução da ordem econômica e política existente por meio de seu monopólio legal da violência (vide, entre outros trabalhos: CASTORIADIS, 1999). Dirá, a esta altura, um marxista: "até aí, nenhuma novidade". Deveras. A questão é que o marxismo, aos olhos de Castoriadis, não foi capaz de propor uma alternativa convincente ao capitalismo e à democracia representativa. No marxismo, a resistência contra a desigualdade estrutural na distribuição da riqueza gerada pela sociedade deu ensejo a uma crítica das relações de produção capitalistas, mas tipicamente não originou qualquer objeção às forças produtivas associadas ao modo de produção capitalista. O desenvolvimento da humanidade necessariamente deveria incluir a utilização do legado tecnológico do capitalismo, o qual, em si mesmo, haveria de ser reputado como positivo. O grande e verdadeiro problema seria que essa. tecnologia se encontraria gerida por mãos erradas e de um modo errado (em proveito de poucos e não de todos) - problema esse que a classe trabalhadora, guiada pelo Partido Comunista, iria se encarregar de resolver, ao promover a revolução que poria fim à divisão de classe e à exploração do trabalho pelo capital. Mesmo a propósito das relações capitalistas de produção e da "superestrutura" que colabora para a sua manutenção, a alternativa marxista foi muito limitada, sob um ângulo libertário; as respostas à questão da organização da produção em uma sociedade "socialista" permaneceram repletas de deficiências e contradições, e doutrinas e estratégias como o "centralismo democrático" leninista e a idéia de um "Estado socialista" estabelecido por meio de uma "ditadura do proletariado" revelaram a dimensão autoritária do marxismo mesmo antes da entrada em cena do stalinismo. Como Castoriadis mostrou, todos esses problemas são sintomas da presença de "significações imaginárias sociais?" capitalistas no pensamento marxista, inclusive, em certa medida, já no pensamento do próprio Marx (CASTORIADIS, 1975; 1978; 1985). Sob o ângulo político-filosófico, o ápice da multifacetada obra intelectual de Castoriadis foi uma seminal contribuição para a "refundação" da democracia: a (re)colocação e lúcida defesa do projeto de autonomia. Nessa emprei12 "Significações imaginárias sociais" correspondem a um conceito que desempenha um papel central na obra filosófica de Castoriadis. Ele não admite nem ser reduzido ao conceito marxista de ideologia ("falsa consciência") nem propriamente ser empregado como sinônimo do amplo conceito antropológico de cultura; tampouco podem as significações imaginárias sociais ser vistas como representando meramente "imaginação" (no sentido de irrealidade). Significações imaginárias sociais são muito reais em sua efetividade; elas correspondem aos valores societais nucleares (crenças, mitos, visões de mundo ...) que fornecem um "sentido" para o mundo de cada sociedade particular e modelam a psiquê dos indivíduos (vide CASTORIADIS, 1975).

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tada ele se deixou inspirar tanto pela herança grega clássica no que conceme à democracia direta quanto pela experiência do movimento operário, notadamente a experiência dos conselhos operários e o debate em tomo da auto gestão da produção pelos trabalhadores, a propósito do que autores anarquistas e mesmo um "comunista conselhista" como PANNEKOEK (1975) já haviam dado uma relevante contribuição anteriormente. O grande mérito de Castoriadis foi o de ter sustentado, com uma coerência ímpar, duas frentes de batalha simultaneamente: ao mesmo tempo em que apontou, com uma acuidade muito superior à dos teóricos do empowerment da sociedade civil e da maior democratização do sistema político sob o capitalismo (como FRIEDMANN [1992] e HELD [1996]), os limites estruturais da moderna democracia representativa, refutou o marxismo teoricamente e denunciou-o politicamente como tendo se convertido em uma nova ideologia a serviço da opressão de uma minoria sobre uma maioria. Especificamente no que diz respeito à herança grega clássica, decerto que Castoriadis reconhecia que à democracia antiga faltou o necessário componente universalista, ingrediente introduzido no Ocidente muitos séculos mais tarde; ele não subestimava a escravidão e o status social inferior das mulheres como sendo os calcanhares-de-aquiles da pális (CASTORIADIS~ 1996a: 192-3). Não obstante essa restrição, a Grécia clássica assistiu não somente ao "co-nascimento" da Filosofia (ou seja, o questionamento lúcido e explícito da tradição) e da política (isto é, a deliberação explícita sobre, assim como o lúcido esforço de modificação das leis, normas e instituições), mas, sobre essa base mesma, igualmente ao nascimento da democracia e, mais amplamente, da autonomia (CASTORIADIS, 1986b; ver, também, 1986ae 1996c). A idéia de autonomia engloba dois sentidos inter-relacionados: autonomia coletiva, ou o consciente e explícito autogovemo de uma sociedade dada, o que depreende garantias político-institucionais, assim como uma possibilidade material efetiva (o que inclui o acesso a informação suficiente e confiável) de igualdade de chances de participação em processos decisórios relevantes no que toca aos negócios da esfera pública; e autonomia individual, isto é, a capacidade de indivíduos particulares de realizarem escolhas em liberdade, com responsabilidade e com conhecimento de causa (o que, obviamente, depende tanto de circunstâncias estritamente individuais e psicológicas quanto de fatores políticos e materiais). Mais que interdependentes, autonomia individual e coletiva são, com efeito, os dois lados de uma mesma moeda. O inverso da autonomia, a heteronomia, corresponde a uma situação onde as leis (latissimo sensu) que regem a vida de uma coletividade são impostas a alguns, via de regra a maioria, por outros, via de regra uma minoria, nos marcos de uma assimetria estrutural de poder, de uma separação institucionaJizada entre dirigentes e dirigidos.

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Uma sociedade autônoma, enfim, é uma sociedade que se "auto-institui" sobre os fundamentos da liberdade tanto em relação a constrangimentos de ordem metafísica (por exemplo, leis e normas fundadas em dogmas religiosos), que bloqueiam a lucidez e transferem parcelas de responsabilidade pela condução da vida social das motivações e do agir humanos para uma esfera transcendente ("vontade de Deus", "karma" etc.), quanto em relação à opressão política (CASTORIADIS, 1975; 1983; 1986b; 1990b; 1996c; 1997). Não se deve, porém, confundir a sociedade autônoma visada pelo projeto de autonomia com uma sociedade "perfeita", um "paraíso terreno", no estilo da mítica "sociedade comunista" preconizada pelo marxismo. Uma sociedade basicamente autônoma significa, isso sim, uma sociedade onde a separaçãoinstitucionalizada entre dirigentes e dirigidos e a opacidade e mutilação da esfera pública que disso derivam foram abolidas. A esse respeito, a seguinte passagem constitui um esclarecimento lapidar: Uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou leis justas para sempre. Uma sociedade justa é uma sociedade onde a questão da justiça permanece constantemente aberta, ou seja, onde existe sempre a possibilidade socialmente efetiva de interrogação sobre a lei e sobre o fundamento da lei. Eis aí uma outra maneira de dizer que ela está constantemente no movimento de sua auto-instituição explícita. (CASTORIADIS, 1983:33; grifo do próprio Castoriadis) Para Castoriadis, a despeito da rica experiência do movimento operário e das importantes lições extraídas de sua história, a nenhuma classe ou grupo deve ser atribuído um privilégio absoluto no que conceme à tarefa de construir uma sociedade mais justa e autônoma. Superar a exploração de classe, desafio que remete em primeiro lugar à esfera da produção, foi considerado por ele como algo de crucial, mas não necessariamente como mais importante que o enfrentamento de outros desafios, tais como a opressão de fundo étnico ou de gênero e a natureza anti-ecológica do capitalismo. Conseqüentemente, ele dedicou grande atenção à contribuição política dos "novos movimentos sociais", ao mesmo tempo em que rejeitava uma perspectiva estreita do conflito social e da dominação, incapaz de enxergar além da "luta de classes" e de valorizar devidamente questões não diretamente ligadas à esfera da produção (CASTORIADIS, 1985). A autonomia é, para o autor do presente artigo, considerada como o princípio e parâmetro central para a avaliação de processos e estratégias de mudança sócio-espacial - o que inclui a promoção do desenvolvimento urbano por meio do planejamento e da gestão. Sem embargo, para que possa ser

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efetivamente útil para fins concretos no âmbito da pesquisa empírica, bem como da avaliação de políticas e estratégias, a idéia castoriadiana de autonomia precisa ser desdobrada e detalhadamente articulada com outros ingredientes da problemática da mudança social positiva. O próprio Castoriadis não se ocupou dessa tarefa, concentrado que estava em um patamar muito mais geral -:- o desbravamento filosófico da questão da autonomia. Entretanto, revestir o projeto de autonomia de um maior apelo prático, naturalmente que sem emasculálo, é uma tarefa imprescindível tanto sob o ângulo da pesquisa científica empírica como sob o ângulo da prática política, uma vez admitido que a conquista da autonomia não é uma questão de "tudo ou nada" (como se se tratasse de confundir a mudança social com o momento dramático da "revolução" em sua acepção marxista e leninista, tudo O mais sendo irrelevante ou puro diversionismo), mas sim um processo histórico complexo.

2. Parametrizando o desenvolvimento urbano A rigor, esta seção bem poderia chamar-se "parametrizando o desenvolvimento sócio-espacial". Realmente, trata-se, aqui, de fornecer indicações que permitam conferir maior operacionalidade ao conceito de desenvolvimento sócioespacial formulado e discutido pelo autor em trabalhos anteriores (SOUZA, 1996; 1997a; 1997b; 1998) - o qual tem por fundamento, precisamente, a idéia e o projeto de autonomia -, em um nível adequado às necessidades de estudos científicos empíricos, assim como do desenho pormenorizado de estratégias de intervenção, isto é, de planejamento e gestão. Ademais, estratégias de âmbito municipal, tais como as consignadas nas leis de planos diretores, não devem perder de vista que, mesmo em municípios onde as atividades agrárias são economicamente pouco importantes ou mesmo residuais, sua importância social pode ser assaz significativa. Impõe-se, principalmente, a necessidade de se encontrarem mecanismos apropriados de proteção a cinturões verdes e estímulo à agricultura periurbana, potencialmente tão importantes para o abastecimento das cidades; isso demanda uma grande atenção para com uma problemática, a da esterilização maciça de solos agricultáveis a reboque da especulação imobiliária e da expansão urbana, onde os espaços urbano e rural se acham entrelaçados. O alcance da essência da discussão metodológica que se segue é. por conseguinte, geral, e não restrito ao espaço urbano, posto que as preocupações imediatas do autor, sua experiência de trabalho e o assunto deste texto vinculam-se todos. basicamente, ao meio citadino.

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2.1. Constructos, princípios e parâmetros

A autonomia (levando em conta, conjuntamente, a autonomia individual e a coletiva, as quais, como já se disse, são os dois lados da mesma moeda) possui tanto um valor instrumental quanto um valor intrínseco. O valor instrumental da autonomia refere-se à liberdade para fazer coisas; já o seu valor intrínseco diz respeito ao prazer do exercício da liberdade como um valor em si mesmo.

De um ponto de vista operacional, propõe-se que a autonomia seja entendida, em virtude de sua importância, como um parâmetro subordinador. O papel preeminente atribuído à autonomia explica-se à luz do pressuposto de que o caminho democraticamente mais legítimo para se alcançar mais justiça social e uma melhor qualidade de vida é quando os próprios indivíduos e grupos sociais específicos definem os conteúdos concretos e estabelecem as prioridades com relação a isso. Por isso é que a defesa da autonomia pode e deve ser, ademais, tida como um princípio básico. Registre-se, ainda, que a defesa da autonomia, para ser eticamente válida como princípio libertário, deve ser assumida por cada um não apenas para si. mas para todos os indivíduos; a maximização da autonomia de alguns indivíduos ou grupos em detrimento de outros não passa de egoísmo e corporativismo, o que só reforça a heteronomia ao nível da sociedade. Justiça social e qualidade de vida são consideradas. aqui, como parâmetros subordinados (subordinados à autonomia enquanto parâmetro) mutuamente complementares. Por que complementares? Porque uma maior liberdade efetiva para todos, embora configure um aumento de justiça social, não se traduzirá, necessariamente, em um melhor desempenho de alguns ou muitos fatores de qualidade de vida; por seu turno, um aumento de qualidade de vida apenas ou principalmente para os mais privilegiados em uma sociedade heterônoma muito menos é defensável, de um ponto de vista autonomista. Em tempo: subordinarjustiça social e qualidade de vida, como parâmetros, à autonomia, não equivale a pô-las no mesmo plano. Se a autonomia tem a ver com o controle democrático dos processos decisórios e com a ausência de opressão, é evidente que a justiça social deriva da autonomia, ou é dela uma instância. O mesmo não se pode dizer da qualidade de vida, pois a igualdade política e um processo decisório livre e transparente não conduzem, por si sós, obrigatoriamente, a bons resultados. Não obstante, embora uma melhor qualidade de vida não seja. diversamente da justiça social genuína, propriamente derivada do princípio de defesa da autonomia, não é ilógico pretender subordinar a qualidade de vida à autonomia, ainda que de modo sutil e indireto. Afinal, conquanto melhorias de qualidade de vida, assim percebidas pelos pró-

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prios indivíduos, não sejam incompatíveis com um modelo social heterônomo, não se deve perder de vista que, em tais circunstâncias: 1) quanto menor for a autonomia individual, mais difícil será a satisfação de diversas necessidades humanas; 2) a heteronomia constatável no plano coletivo sabota, incessantemente, a possibilidade de uma qualidade de vida substancialmente melhor para a maioria da população, a despeito das ilusões imbecilizantes disseminadas por uma ideologia exaltadora da modernização e do consumismo. Acresce que cada um desses dois parâmetros subordinados deve ser visto como estando vinculado, por vocação, a uma esfera diferente da vida social. A justiça social está relacionada com a esfera pública, que é a esfera do debate e da deliberação legislativos e em tomo da administração dos negócios da coletividade - debate e deliberação essas que, em uma sociedade autônoma, hão de se dar em consonância com o princípio da maior igualdade efetiva possível de condições para participação nas tomadas de decisão como na ecclesia da pôlis grega clássica, a assembléia dos cidadãos -, ao passo que a qualidade de vida, da mesma maneira que "felicidade", remete fundamentalmente à esfera privada - ao oikos dos gregos, isto é, à casa, à família -, pois a definição e a percepção do que seja qualidade de vida pode variar de indivíduo para indivíduo (isto, evidentemente, em que pese o fato de que as preferências e possibilidades dos indivíduos são influenciadas e condicionadas por processos e instituições situados no nível da sociedade). Observe-se, ainda, que, em uma verdadeira democracia, a justiça social dirá respeito também a uma outra esfera, a esfera privada/pública, que é aquela da discussão pública informal e do estabelecimento de contratos privados - simbolizada, na pólis democrática, pelo espaço da ágora, misto de mercado e local de reunião (ver, sobre a clara distinção entre essas três esferas da vida social em uma democracia autêntica CASTORIADIS, 1996c). Conquanto justiça social e qualidade de vida sejam ambos parâmetros substantivos, eles são, porém, ao mesmo tempo constructos extremamente abstratos. Isso significa dizer que, só com a ajuda deles, pouco se pode fazer para conferir ao enfoque autonomista do desenvolvimento urbano maior operacionalidade, capaz de revelar satisfatoriamente a sua utilidade para a análise de processos sociais e a avaliação de propostas de intervenção. Destarte, justiça social e qualidade de vida devem ser tratados como parâmetros subordinados gerais, os quais necessitam ser especificados. Essa complementação é lograda desdobrando-se cada um dos dois parâmetros subordinados gerais em parâmetros subordinados particulares. Exemplos de parâmetros subordinados particulares associados à justiça social são o nível de segregação residencial, o grau de desigualdade socioeconômica e o grau de oportunidade para participação cidadã direta em processos decisórios relevantes. Exemplos

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de parâmetros subordinados particulares associados à qualidade de vida são aqueles relativos à satisfação individual em termos de saúde, educação etc. Por fim, podem ser identificados parâmetros singulares, que representam uma singularização, conforme as circunstâncias temporais e espaciais concretas, dos parâmetros subordinados particulares. A forma como o comportamento de um determinado parâmetro subordinado particular poderá ser avaliado, no âmbito de uma dada cultura ou sociedade, em relação a um certo grupo ou conjunto de grupos sociais, em um determinado espaço e em um dado momento histórico, exige uma concretude ainda maior que aquela permitida pelos parâmetros particulares. Tanto os particulares quanto os singulares são relativos às circunstâncias, mas os singulares, por serem menos abstratos (são, de fato, fundamentalmente concretos), variarão mais que os particulares. Ambos, particulares e singulares, não devem ter seu conteúdo definido "de cima para baixo", mas sim pelos próprios indivíduos, direta ou indiretamente, sobre os fundamentos da autonomia como princípio. Não caberá ao analista especificar os parâmetros particulares e singulares válidos para a avaliação de uma situação concreta sem, de alguma forma, levar em conta, ainda que criticamente, a vontade dos indivíduos e grupos envolvidos, especialmente por meio de inquéritos. Em um contexto menos acadêmico e mais político, os resultados de

esquemas de participação popular no planejamento e na gestão urbanos, onde os cidadãos possam manifestar suas preferências e deliberar de acordo com elas, bem podem substituir os surveys para fins de definição ou calibragem de parâmetros. 13 2.2. A questão da hierarquia de objetivos e parâmetros Existe uma relação hierárquica entre os parâmetros? É possível falar de desenvolvimento s6cio-espacial quando houver ganhos relativos aos parâmetros subordinados sem que haja ganhos quanto aos parâmetros subordinadores (por exemplo, menos poluição ou menos pobreza sem maior liberdade)? Considerando-se o desempenho de alguns parâmetros particulares e singulares específicos, sim, é possível. No entanto, com muitas ou muitíssimas reservas, pois se trata de um ganho não defensável quando se alargam os horizontes analíticos (longo prazo e grande escala). O que significam melhorias materiais coexistin13 É lógico que isso não autoriza a concluir que os pesquisadores devem abrir mão de meditarem sobre as condições e os fatores que influenciam a justiça social e a qualidade de vida na cidade. Por exemplo, a reflexão do urbanista Kevin LYNCH (1994) sobre o que ele denominou as cinco "dimensões de performance" do espaço urbano (vitality, sense, fit, access e control) é especialmente estimulante para um esforço de discussão daquilo que se está a chamar, aqui, de parâmetros subordinados particulares.

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do com uma tutela política das elites sobre o restante da sociedade? Significam "alimentar melhor o cavalo": os homens são "melhor tratados", "melhor adestrados" ou ainda "acariciados" no âmbito de relações heterônomas. Assim encarados os indivíduos são, por conseguinte, "animalizados", ao serem tratados à maneira de bichos de estimação ou animais de trabalho. Ou, para usar uma analogia menos chocante: os indivíduos são infantilizados, conseqüência natural de qualquer tutela. Daí não ser razoável postular que haja um desenvolvimento sócio-espacial pleno ou autêntico se o melhor desempenho de alguns parâmetros subordinados particulares, notadamente os basicamente relativos à esfera privada. não se faz acompanhar por melhorias do desempenho de outros parâmetros subordinados particulares, diretamente dependentes do que se passa na esfera pública (instituições garantidoras ou não de significativa justiça social). e, no limite, por melhorias no desempenho do parâmetro subordinador. Daí. também, ser importante o pesquisador manter o seu senso crítico, ao mesmo tempo em que se recusa a subir, com arrogância, no pedestal dos experts, com o seu "discurso competente"!": ele deve ser capaz e ter a coragem de alertar para a ilusão e as armadilhas de melhorias em alguns parâmetros em detrimento de outros, mesmo que isso o leve a ir contra a opinião corrente. Um complemento imprescindível dessas ponderações é que a eficiência econômica e os objetivos econômicos em geral não devem ser considerados fins em si mesmos. A eficiência econômica é. para o autor deste trabalho, meramente um meio a serviço do aumento da justiça social e da melhoria da qualidade de vida - e somente no caso de realmente contribuir para esses fins é que a eficiência econômica poderá ser, a partir de uma perspectiva autonomista. considerada como moralmente aceitável. Isso contrasta vivamente com a ideologia economicista do desenvolvimento capitalista, onde objetivos econômicos como crescimento, modernização tecnológica e do espaço urbano e ganhos de eficiência passam a ser perseguidos, ao frigir dos ovos, como fins em si mesmos - o que se coaduna com a satisfação dos interesses econômicos e não-econômicos dos grupos dominantes, mas não do restante da sociedade. 2.3. Escalas de avaliação É possível e necessário construir escalas de avaliação dos parâmetros. mesmo que sejam apenas escalas ordinais - o que, de fato, será quase sempre o caso, dado que a natureza da grande maioria das variáveis que podem vir a ser utilizadas para se medirem constructos relevantes como "poder" e "se1. Ver,

sobre a questão do "discurso competente", (CHAU1. 1982).

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gregação" não se presta a uma mensuração em sentido estrito, com base em escala de razão ou intervalo. A mensuração dar-se-á no nível dos parâmetros subordinados particulares ou dos singulares. Esses parâmetros funcionarão como indicadores, os quais serão elaborados em face de situações concretas e para atender a objetivos determinados. Uma boa dosagem entre comparabilidade (permitida no nível dos parâmetros particulares com o sacrifício da concretude e o risco da excessiva abstração) e aquilo que os alemães chamam de Wirklichkeitsiihnlichkeit, ou semelhança com a realidade (tanto maior quanto mais concreto for o plano de análise), deverá ser buscada. De toda sorte, importa ressaltar que o procedimento metodológico presentemente advogado é o oposto de uma construção apriorística de indicadores pretensamente universais (como renda per capita, índice de Desenvolvimento Humano [IDHJ e outros, independentemente de suas diferenças quanto à riqueza e ao alcance): o que ora se defende é uma construção de indicadores tão próxima quanto possível da realidade dos contextos valorativos de culturas e grupos sociais específicos, solução que é cientificamente a mais correta e eticamente a mais legítima (ética autonomista). Assim, a especificação dos parâmetros subordinados deve ser encarada não como uma tarefa somente para intelectuais e especialistas em planejamento, mas sim como uma tarefa coletiva ao nível da sociedade mais ampla. De toda maneira, mesmo recusando uma construção apriorística dos indicadores, alguns comentários preliminares a respeito do grau de oportuni-

dade para participação cidadã direta em processos decisórios relevantes podem ser oferecidos aqui. De uma parte, a oportunidade para a participação direta na tomada de decisões que afetam a regulação da vida coletiva pode ser entendida como sendo um dos parâmetros subordinados particulares. De outra parte, contudo, ela merece um lugar especial entre os parâmetros particulares, uma vez que corresponde a uma "tradução" direta do coração mesmo da autonomia em um patamar mais concreto, no qual mensurações em escala ordinal são factíveis. Esse parâmetro admite ser operacionalizado com a ajuda da clássica "escada da participação popular" de Sherry ARNSTEIN (1969). O esquema de Arnstein compreende oito categorias, correspondentes a situações diferentes caracterizadas por um nível crescente de abertura do Estado à participação popular direta (daí a expressão "escada", ladder) que vão da pura e simples manipulação dos indivíduos e grupos por parte do Estado (primeiro "degrau" da "escada") ao controle cidadão (último "degrau"). Para Arnstein, apenas as três categorias que representam as partes mais altas da "escada", vale dizer, parceria, delegação de poder e controle cidadão, constituiriam uma autêntica participação. As três categorias intermediárias tapaziguamen-

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to, consulta e informação) não passariam de expressões de pseudo-participação, enquanto que as duas categorias inferiores (manipulação e terapia) nada mais seriam que manifestações explícitas de autoritarismo e tecnocratismo. As três categorias superiores correspondem aos marcos político-institucionais onde se pode, efetivamente, ter a esperança de que as soluções de planejamento e gestão possam ser encontradas de modo fortemente democrático; já as três categorias inferiores representam a arrogância do "discurso competente" em sua forma pura. As situações representadas pelas categorias intermediárias diferem daquelas representadas pelas inferiores muito mais na forma que no conteúdo, pois a cooptação, a ilusão de participação e as concessões limitadas expressas pelo simples apaziguamento, consulta e informação são manifestações evidentes de uma sociedade heterônoma. Sem dúvida, embora seja útil como um referencial preliminar, o esquema de Amstein não prescinde nem de refinamentos posteriores, nem de uma expansão, uma vez que a manipulação pelo Estado e o "controle cidadão" possível nos marcos de uma sociedade capitalista não representam os extremos imagináveis em matéria de, respectivamente, heteronomia e autonomia (escravidão e totalitarismo, de um lado, e uma sociedade fundada sobre os princípios de democracia direta, transparência e igualdade efetiva de oportunidades, de outro, é que correspondem aos extremos do espectro sociopolítico). Além do mais, não se deve perder de vista que um controle cidadão pleno exige, em última análise, muito mais que uma transformação política na escala local; no sentido castoriadiano de autonomia, faz-se mister uma transformação social muito mais profunda, impossível de ser alcançada apenas dentro do raio de ação político, econômico e cultural de uma cidade. Isso, porém, não exclui a possibilidade de se avançar em matéria de democratização do processo decisório mesmo no interior de uma sociedade capitalista, desde que, malgrado as tensões daí decorrentes, elementos de democracia direta sejam consistentemente combinados com os mecanismos convencionais da democracia representativa. Por menor que seja esse tipo de avanço em comparação com a problemática e os obstáculos principais, seria obscurantismo qualificá-lo de desprezível, deixando na sombra os seus eventuais desdobramentos político-pedagógicos e seus efeitos de longo prazo. É precisamente um progresso dessa natureza que as experiências mais sérias de participação popular na elaboração do orçamento municipal, a começar pela de Porto Alegre, parecem estar atualmente conseguindo (ver, sobre o orçamento participativo de Porto Alegre, o qual tem contribuído, inclusive, para fortalecer o ativismo de bairro local, (NAVARRO, 1996), (ABERS, 1998) e (FEDOZZI, 1997).

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3. Quem planeja (ou gere) o quê e como? Adequando o planejamento e a gestão ao princípio de defesa da autonomia Não seria sensato tentar dar um passo tão maior que a perna neste momento, buscando refletir sobre a natureza do planejamento e da gestão urbanos em uma sociedade basicamente autônoma, se na arena de luta imediata do autor e de seus 1eítores,um país capitalista semiperiférico, obstáculos elementares e disparidades gritantes em matéria de heteronomia subsistem. Além do mais, buscar respostas teóricas por antecipação para algo ainda tão distante seria de um racionalismo desmedido, pois só a própria história, mais exatamente, a atividade coletiva e transformadora da maioria dos homens e mulheres, poderá (ou não) determinar a forma concreta que as instituições assumiriam em uma tal sociedade. Observe-se que até mesmo as etapas intermediárias escapam à nossa capacidade de prognóstico: quanto mais se tenta antecipar os próximos passos na direção de uma mudança sócio-espacial, mais incerto e nebuloso fica o caminho e mais irrelevante tende a ser a resposta. Só durante a própria marcha será possível vislumbrar os novos desafios que irão surgir - as limitações das táticas adotadas e da própria estratégia - e as maneiras de vencê-los. Se, como belamente disse o poeta, o caminhante faz o próprio caminho ao caminhar, o que importa é ter clareza quanto aos objetivos da empreitada e saber dar os passos iniciais; os passos seguintes dependerão dos anteriores, de tal modo que tentar planejar pormenorizadamente o percurso seria um absurdo de fundo teleológico. As indicações que se seguem visam, por conseguinte, a um público de pesquisadores engajados e militantes de movimentos sociais que se vêem ou hão de se ver arrostados, inicialmente, com o desafio de contribuir para que sejam dados os primeiros passos rumo a uma superação da heteronomia, instaurando mecanismos e adotando medidas que permitam a redução da segregação sócio-espacial, a coibição eficaz da especulação imobiliária e que se vá além da pseudoparticipação. Seja como for, seria de uma enorme incoerência pretender fornecer, ao final de um trabalho comprometido com uma perspectiva autonomista, um balizamento metodológico no estilo de um receituário, ou seja, um esquema apriorístico de validade pretensamente universal, como se o método fosse inteiramente independente do objeto e como se uma reflexão teórica, e não o debate sobre a realidade entre os próprios sujeitos sociais envolvidos, tivesse a capacidade e a responsabilidade de orientar a intervenção sobre o real. Destarte, o que se segue constitui, tão-somente, um conjunto de alertas e recomendações.

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3.1. O contexto político do planejamento e da gestão urbanos Quem planeja ou gere? Em princípio, a resposta óbvia é: o Estado. NI entanto, não é SÓ o Estado que planeja e gere; certos agentes modeladores dr

espaço, como o grande capital industrial e imobiliário, elaboram sua: geoestratégias de forma clara e, não raro, sofisticada. A parcela majoritária d: sociedade civil, que não pertence a nenhum grupo dirigente, precisa qualificar se e organizar-se para elaborar suas propostas e estratégias e lutar para pô las em prática (diretamente ou pressionando o Estado). O que é planejado ou gerido? Planejar e gerir não é planejar e geri apenas ou sobretudo coisas, mas sim planejar e gerir relações sociais. En cada local específico, os agentes sociais que tiverem a iniciativa de elabora estratégias de ação e intervenção visando a um desenvolvimento sõcio-espacia autêntico precisam começar, assim, estabelecendo respostas para as seguinte: perguntas: que problemas precisam ser superados? Com quem se pod. contar para essa empreitada, e sob quais condições? táculos e as dificuldades previsíveis?

Quais são os obs

A primeira pergunta remete à necessidade de muita clareza quanto ao: fins da ação/intervenção proposta, clareza essa que só pode advir de un debate lúcido e democrático. Esse debate é um debate essencialmente polui co, não uma discussão eminentemente técnica (a qual se dá em um momenu posterior, e que visa à seleção dos meios mais eficientes e eficazes para SI

atingir os fins sobre os quais se deliberou); por conseguinte, os pesquisadore: e conhecedores de técnicas de planejamento e gestão, sejam eles moradore: do locaI ou não, não podem pretender estabelecer as prioridades e definir a: metas e os objetivos em nome da população. Sob um ângulo dialógico (expres são que é tomada de empréstimo a Paulo Freire 1 5 ), a missão do intelectual pesquisador/planejador é a de chamar a atenção daqueles que, para ele, são ao mesmo tempo, objeto de conhecimento e sujeitos históricos cuja autonomh precisa ser respeitada e estimulada, para as contradições entre objetivos, o: problemas e as margens de manobra que o seu treinamento técnico-científicr 15 Paulo Freire, em seu Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1986), defende o ato de educar nãc apenas como fundado no diálogo e infenso a autoritarismos, onde o educador afasta-se daquik que ele chama de concepção "bancária" da educação (na qual o professor "deposita" conteúdo: na cabeça de seus alunos, que são assim reduzidos a um papel essencialmente passivo). ) importância dessa mensagem transcende de muito a esfera da "educação" em sentido restrito sendo, com efeito, de um ponto de vista Iibertário, uma sabedoria de valor inestimável par: qualquer processo de ação coletiva visando a uma mudança social positiva. De fato, parece qw o alcance politico-filosôfico da obra de Paulo Freire, sintetizado na poderosíssima sentenç "ninguém líberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão" está ainda para ser devidamente apreciado.

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lhe permitam vislumbrar. Esse treinamento, significando uma proficiência na coleta, no manuseio e na integração de um grande volume de dados de natureza díspar e uma capacidade de reflexão combinando diversas escalas temporais e espaciais, entre outros aspectos, é de um valor inestimável. Entretanto, o papel do intelectual e do cientista social é o de esclarecer quanto a determinados assuntos referentes à escolha e ao uso otimizado dos meios da mudança social; quanto aos fins, estes dizem respeito a valores e expectativas que, sob um ângulo radicalmente democrático, não podem ser definidos por uma instância técnica ou política separada do restante da sociedade. Os fins têm de ser estabelecidos pelos próprios envolvidos, cabendo aos intelectuais, no máximo, o papel de contribuir para a sua discussão crítica, aconselhando e alertando para possíveis contradições e incompatibilidades entre metas. Um planejamento crítico, portanto, como pesquisa científica aplicada que é, deve, por um lado, manter-se vigilante diante do senso comum, desafiando-o e buscando ''ultrapassá-lo'' ao interrogar o não interrogado e duvidar de certezas não-questionadas; ao mesmo tempo, um planejamento crítico não-arrogante não pode simplesmente ignorar os "saberes locais" e os "mundos da vida" (Lebenswelten) dos homens e mulheres concretos, como se as aspirações é necessidades destes devessem ser definidas por outros que não eles mesmos. A esse respeito, a pedra angular do pensamento autonomista é, precisamente, a convicção de que o usuário de um produto, e não o expert que o concebeu ou produziu, é o melhor e o mais legítimo juiz de suas qualidades. Seguramente, esse juiz não é infalível, mas é seu direito correr 'O risco de falhar em liberdade. Responder à segunda indagação pressupõe habilidade para fazer uma lúcida avaliação da constelação de forças. É preciso identificar os grupos sociais e seus interesses latentes ou manifestos, examinando-se as divergências e convergências, as compatibilidades e incompatibilidades, as possibilidades de alianças e o caráter menos ou mais estável (menos ou mais conjuntural) das alianças. Finalmente, a terceira pergunta conduz a uma identificação tanto dos gargalos materiais e institucionais (real disponibilidade de recursos financeiros, técnicos e midiãtico-comunicacionais, competências e atribuições legais etc.) quanto dos grupos dominantes que, previsivelmente, serão focos de resistência ativa ou passiva à implementação de políticas redistributivistas e à ampliação da democracia. Conflitos não devem ser escamoteados; saudar o diálogo mesmo entre oponentes, sobre a base de um "agir comunicativo", conforme defendido por HABERMAS (1981, 1990), não significa buscar, ingenuamente, costurar consensos artificiais a expensas de uma insuficiente explicitação das contradições existentes, como ocorre com o "planejamento comunicativo/colaborativo"

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anglo-saxão. Consenso, em um sentido forte, só se pode lograr sobre os alicerces da livre participação de todos os participantes. Não se pode esperar o consentimento dos participantes "a não ser que todos os afetados possam aceitar livremente as conseqüências e os efeitos colaterais que a observância geral de uma norma controvertida deve ter para a satisfação do interesse de cada indivíduo" (HABERMAS, 1990:93). Contradições não se "resolvem" como se resolve uma equação; contradições se superam, sendo os enfrentamentos quase sempre inevitáveis - o que não é o mesmo que dizer que a violência é quase sempre inevitável. 3.2. Sugestões para o encaminhamento de processos de planejamento e gestão Sobre a parametrização delineada na Seção 2, ela deve ser empregada tanto em diagnósticos quanto em propostas de intervenção. Aliás, as propostas de intervenção. para serem compatíveis precisam ser derivadas dos diagnósticos.

com uma abordagem

científica,

Esclareça-se que aquilo que, na prática do Urbanismo (o qual constitui tão-somente uma modalidade de planejamento urbano, não devendo ser tomado como equivalente ao planejamento tout court), entende-se por diagnóstico ou estudo preparatório, ainda que se distinga do apriorismo nu e cru, corporificado por visionários arrogantes como Le Corbusier, normalmente não chega a ser um procedimento propriamente científico, seja pela falta de rigor metodológico, seja pelo viés apriorístico remanescente. Muito longe de querer sugerir que a ciência seja o único saber que conta quando o que está em jogo é a otimização dos meios para o desenvolvimento sócio-espacial das cidades, o fato é que as facetas técnico-funcional e técnico-estética (considerações sobre a volumetria, sobre os relacionamentos funcional e estético de um objeto geográfico com O seu entorno, e por aí vai), trazidas principalmente pelo arquiteto-urbanista, se devem combinar com os aportes teórico-conceituais e metodológicos a serem oferecidos diretamente pelos cientistas sociais para a consecução desses empreendimentos de vocação inter e transdisciplinar por excelência que são o planejamento e a gestão urbanos. Os diagnósticos tanto podem dizer respeito à análise de processos gerais (orientada por questões do tipo: quais são as necessidades dos indivíduos e grupos de um local "y" no momento "x"? Elas têm sido melhor ou pior satisfeitas ao longo do período de tempo "z"? Quais os fatores que têm contribuído para isso? Qual é o conteúdo da justiça social, nesse contexto histórico-geográfico específico? Têm ocorrido avanços ou retrocessos no que conceme à garantia de uma maior justiça social?) quanto à avaliação ex-post

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de experiências de planejamento e gestão (orientada por questões do tipo: os esquemas de planejamento ou gestão utilizados no local "y" ao longo do período de tempo "z" têm contribuído para uma melhor qualidade de vida e para maior justiça social?). Devido ao seu cunho prático-político, as propostas de intervenção, mesmo tendo a sua formulação baseada em diagnósticos que incorporam a dimensão (inter)subjetiva dos agentes sociais envolvidos, necessitam ter a sua implementação submetida a escrutínio popular, ocasião em que poderão ser calibradas e corrigidas. Em se tratando de diagnósticos e análises, o pesquisador, mesmo recusando o objetivismo e o cientificismo, tem o direito à última palavra sobre as idéias que são, ao fim e ao cabo, de sua responsabilidade; diversamente - e nunca é demais insistir sobre isso -, no caso de propostas de intervenção quem detém a última palavra são, sob um ângulo autonomista, os envolvidos, cabendo ao pesquisador o papel de um interlocutor que propõe (e alerta para contradições e riscos embutidos nas propostas feitas por outros, pesquisadores ou não), mas jamais o de um consultor que impõe ou sugere que se imponha. Uma abordagem tecnocrática típica obedece ao seguinte modelo: ~





4

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4























,

















































••••••••••••••••••••••••••

DIAGNÓSTICO (elaborado por "especialistas" pretensamente neutros e imparciais; freqüentemente superficial; não considera verdadeiramente a percepção e a vivência dos usuários dos espaços [objetivista]) ~ PROPOSTA DE INTERVENÇÃO (elaborada por "especialistas", parcialmente com base no diagnóstico, parcialmente com base em modelos sobre a "cidade ideal' e, sobretudo, com base em injunções políticas de cima para baixo; preocupação em atingir metas e objetivos que, se alcançados, concretizariam a "cidade ideal'; indicações impositivas e pretensamente racionais a respeito tanto dos meios quanto dos fins; proposta fortemente normativa, tendendo a ser impermeável à participação popular ou, na melhor das hipóteses, a reduzir esta à pseudoparticipação [apaziguamento, consulta e informação])

...................................................................

o

enfoque preconizado pelo mainstream do "planejamento politizado" brasileiro, de sua parte, rompe em larga medida com o viés tecnocrático desse modelo, mas sem conseguir eliminá-lo inteiramente. Isto porque, na prática, não se cogita de abraçar um projeto alternativo à "democracia" representativa (ou, mais exatamente, oligarquia liberal) e ao capitalismo, mas sim de aumentar o grau de transparência e controle popular da primeira e de diminuir o grau de exclusão social inerente ao segundo. Eis os traços essenciais do modelo:

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DIAGNÓSTICO (elaborado por "pesquisadores/planejadores engajados"; análise crítica. porém pouco aberta para com a dimensão [inter]subjetiva, via de regra negligenciando a percepção e a vivência dos usuários dos espaços [viés objetivista]) -+ PROPOSTA DE INTERVENÇÃO (elaborada por "pesquisadores/planejadores engajados", parcialmente com base no diagnóstico, parcialmente com base em injunções políticas de cima para baixo; preocupação em definir instrumentos que permitam minimizar ou eliminar os problemas sociais e espaciais detectados na cidade rest; indicações dos "pesquisadores/planejadores engajados" podem dizer respeito tanto aos meios quanto aos fins; proposta permeável à participação popular, mas tendendo a limitar seus objetivos a uma incorporação pelo Estado de alguns mecanismos de democracia direta e uma atenuação das injustiças sociais no âmbito da sociedade capitalista)

................................................................... Já o enfoque autonomista concilia um espírito pragmático, capaz de valorizar os pequenos desafios situados no interior da ordem heterônoma e as pequenas conquistas realizadas no interior da mesma ordem, com um horizonte político-filosófico que não se satisfaz com uma mera "minimização do horror", Na prática. o modelo autonomista. sintetizado abaixo, aproveita o que há de mais arrojado em algumas experiências já em andamento, notadamente orçamentos participativos (cujos plenos potencial e alcance não raro escapam ao mainstream do "planejamento politizado"), recontextualizando, com o auxílio de alicerces metateóricos ambiciosos, os elementos resgatados:

DIAGNÓSTICO (elaborado por "pesquisadoreslplanejadores engajados", que confrontam sua leitura da realidade "objetiva" com as intersubjetividades. ao incorporarem a análise dos Lebenswelten dos diversos grupos sociais, de sua percepção e de sua vivência espaciais) -+ PROPOSTA DE INTERVENÇÃO ("pesquisadores/planejadores engajados" fazem recomendações a propósito do que poderia ou deveria ser feito, tomando por base o diagnóstico; preocupação em definir instrumentos que permitam minimizar ou eliminar os problemas sociais e espaciais detectados na cidade real [não sendo essa "realidade", contudo, definida de maneira objetivista, mas incorporando as percepções dos usuários]; sugestões restringem-se, via de regra, aos meios, conquanto possam, eventualmente, chamar a atenção para incompatibilidades entre diferentes fins, conforme identificados a partir de trabalho de campo [diagnóstico] ou manifestados pela população no âmbito de processos políticos participativos) -+ EXAME, DEBATE PÚBLICO E DELIBERAÇÃO POR PARTE DA COLETIVIDADE (a coleti-

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vidade [sociedade civil, no caso de uma sociedade heterõnoma; no caso de uma sociedade basicamente autônoma, onde não haja um aparelho de Estado separado da sociedade, a coletividade simplesmente] detém a palavra final sobre os fins e os meios do planejamento e da gestão) -+ RETROALlMENTAÇÃO DO DIAGNÓSTICO E DA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO (resultados do exame, do debate e da deliberação pelos cidadãos devem retroalimentar o diagnóstico e a elaboração da proposta de intervenção; pesquisas de avaliação podem ser usadas como coadjuvantes) •









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Um documento orientador de uma estratégia de desenvolvimento urbano, no que conceme ao planejamento, deve conter, pelo menos, as seguintes partes: 1) introdução (comentando a relevância do esforço de regulação. os princípios básicos perseguidos e expondo as diretrizes, isto é, as metas e seu desdobramento e detalhamento sob a forma de objetivos); 2) base institucional (expondo o funcionamento do sistema de planejamento e/ou gestão, com destaque para as normas para a constituição de fundos e operação do Conselho de Desenvolvimento Urbano); 3) instrumentação (instrumentos de planejamento, incluindo zoneamentos). Instrumentos clássicos, como os parâmetros urbanísticos (afastamentos, taxa de ocupação etc.), deverão ser combinados com os chamados (amiúde impropriamente) "novos instrumentos". Quanto a estes últimos, deverá ser dada nítida prioridade a certos tributos de grande potencial extrafiscal, especialmente o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), desde que instaurada a sua progressividade no tempo, cuja vocação é a de colaborar para coibir a especulação imobiliária, e a contribuição de melhoria, cuja rationale é capturar para os cofres municipais a valorização imobiliária decorrente de obras públicas não voltadas para a satisfação de necessidades materiais básicas, notadamente em bairros privilegiados (portanto, entender como fato gerador do instrumento a valorização decorrente de obras essenciais como a pavimentação, a iluminação ou a construção de rede de esgotamento pluvial em logradouros públicos, como ocorreu em diversas ocasiões, na legislação e na prática administrativa, constitui uma distorção socialmente injusta, que tem de ser rechaçada). Já outros instrumentos merecem reservas e cuidados no tocante à sua aplicação, o que não quer dizer que não sejam interessantes: é o caso da concessão onerosa do direito de construir, ou "solo criado", que pode servir para se perseguirem múltiplos objetivos, mas cujas três funções precípuas (rebaixamento dos preços da terra, aumento de arrecadação e controle do adensamento, com vistas a evitar-se a saturação da infra-estrutura) não estão isentas de atritos entre si, logo, não podendo ser maximizadas simultaneamente.

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No que diz respeito aos zoneamentos, especificamente, há que se repudiar o tipo convencional de zoneamento funcionalista, adotando-se, em lugar disso, um zoneamento alternativo, onde sejam identificados diversos tipos de espaços em relação aos quais a intervenção estatal seja prioritária para fins de dotação de infra-estrutura técnica e social básica (favelas, loteamentos irregulares e cortiços), regularização fundiária (favelas), coibição da especulação imobiliária (vazios urbanos) e preservação ambiental, O espírito desse zoneamento foi didaticamente exposto por RIBEIRO e CARDOSO (1990), alcançando uma forma diretamente operacionalizável no projeto de lei do Plano Diretor de São Paulo (cf. DIÁRIO OFICIAL DO MUNICíPIO DE SÃO PAULO, 1991), lamentavelmente não aprovado, o qual combina esse tipo de zoneamento com um zoneamento de densidades, sem esquecer de dois importantes cuidados de ordem funcional: a localização de indústrias e a proteção das atividades primárias produtoras de alímentos, por meio do estabelecimento de um coeficiente de aproveitamento baixo (0,1) para os lotes e glebas da zona rural do município. O caminho aí indicado é válido, independentemente das limitações de sua base político-filosófica, devendo ser enriquecido - lançandose mão de incentivos à agricultura periurbana suplementares às restrições à edificação na zona rural e mediante uma hierarquização de cada subtipo de zona de especial interesse social conforme o grau de carência infra-estrutural da área. No caso da regulamentação de orçamentos participativos (que são, acima de tudo, mecanismos de gestão), o formato será mais simples que o de um documento-guia de planejamento, bastando duas partes, a introdução e a base institucional. Na introdução comentar-se-ão a relevância da co-gestão Estado/sociedade civil na elaboração do orçamento, os princípios básicos perseguidos e as metas gerais. Na parte sobre a base institucional expor-se-á como o sistema e o processo orçamentários são ajustados à participação direta da população - regras de extração de delegados, unidades territoriais de referência etc. -, apresentar-se-á o calendário e dispor-se-á sobre a integração entre planejamento e orçamento. O planejamento, que, por definição, remete ao futuro, deve, não menos que a gestão, a qual tem a ver com a administração dos recursos disponíveis no presente (conquanto a gestão sempre tenha de incluir uma dimensão de planejamento, como ocorre com o orçamento), ser tratado como um processo continuo. Deve-se diferenciar entre objetivos de longo prazo, atinentes ao enfrentamento de problemas estruturais, e de médio e curto prazos, de sabor mais conjuntural. Por sua natureza, documentos-guia de planejamento (planos de desenvolvimento urbano) conterão metas e objetivos de longo prazo, os quais devem, no entanto, ser periodicamente atualizados (a cada cinco anos,

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pelo menos) em consonância com a evolução dos fatos. Objetivos de médio e curto prazos orientarão a elaboração de intervenções específicas, respeitados os princípios gerais e observados as metas e objetivos de longo prazo. A definição, a atualização, a integração e a compatibilização de objetivos e propostas pertencem, ao lado do monitoramento da implementação das estratégias e políticas, ao conjunto das missões sob responsabilidade do Conselho de Desenvolvimento Urbano. A este Conselho, a ser previsto em lei (Lei Orgânica Municipal, Plano Diretor) e composto por representantes do Estado e da sociedade civil, cabe dar a última palavra acerca das questões mais importantes referentes à regulamentação do uso do solo, aplicação de instrumentos de planejamento etc. O Conselho de Desenvolvimento Urbano, portanto, terá caráter deliberativo, e não meramente consultivo, e esforços de articulação de suas atividades com aquelas do Conselho do Orçamento Participativo - seu equivalente no que tange à elaboração do orçamento deverão ser envidados tanto pelo Executivo municipal quanto pela sociedade civil. Na verdade, o ideal seria que houvesse um conselho único a cuidar do planejamento e da gestão, para que fossem evitadas tanto a duplicação de esforços quanto a disputa de competências. A existência de um Conselho de Desenvolvimento Urbano institucionalizado e com legitimidade é uma garantia de que os documentos-guia de planejamento não serão peças demasiado rígidas, isto é, estorvos mais que uma ajuda, uma vez que eles serão apenas cristalizações provisórias no contexto de um processo contínuo de debate, (auto)crítica, atualização e revisão. Por outro lado, flexibilidade, aqui, não significará abrir as portas ao casuísmo (como mudanças de zoneamentos por decreto, abusos com instrumentos do tipo "operações interligadas" etc.), justamente porque a transparência e a accountability funcionarão corno inibidores de distorções e corrupção. Uma instância deliberativa desse tipo configura urna co-gestão entre Estado e sociedade civil, representando, se não urna ruptura decisiva para com a ordem social heterônoma - a qual reclama uma genuína autogestão da coletividade, incompatível com uma sociedade capitalista -, pelo menos algo que vai bem além da mera pseudo-participação. Um tópico adicional da maior relevância é aquele atinente à conveniência de não se perder de vista que, como acontece especialmente nos núcleos metropolitanos, muitos dos equipamentos do município servem igualmente a uma população que mora em municípios limítrofes. Acresce que, dada a forte interdependência existente em áreas metropolitanas, muitos dos serviços são de interesse comum a mais de uma municipalidade e poderiam ser melhor prestados, com ganhos de economia de escala e evitando-se o desperdício decorrente da duplicação de esforços, com urna integração institucional a um s6

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tempo democrática e eficaz (logo, diferente do modelo tecno-burocrático de gestão das regiões metropolitanas imposto no Brasil dos anos 70). Assim como se tem geralmente percebido que a liberdade da população de um bairro ou setor geográfico para decidir sobre a alocação de verba advinda com o orçamento participativo deve ser enquadrada por critérios de justiça, eqüidade e bom senso que assegurem que as conquistas de uma parte da cidade não prejudicarão as demais áreas (o que inevitavelmente ocorreria se fossem desconsideradas diferenças de tamanho demográfico ou centralidade entre os bairros ou se fossem negligenciadas obras estruturantes, de interesse para toda a cidade), assim também a escala local ampliada, supramunicipal, necessita ser levada em conta. A maior autonomia conquistada pela população de um dado município não deve traduzir-se em decisões egoístas que venham a ferir os direitos daqueles que não residem no município mas dependem dos equipamentos nele existentes para a satisfação de algumas de suas necessidades. O problema do "corporativismo territorial" já havia sido levantado em SOUZA (1997a), no mesmo trabalho no qual o princípio de autonomia foi subdividido em dois componentes: autonomia interna (isto é, ausência de opressão em um determinado território controlado por uma dada coletividade) e externa (referente ao direito de cada coletividade à autodeterminação, sem que constrangimentos originários do exterior a ameacem)." A exigência de respeito à dimensão externa do princípio de autonomia depreende que as intervenções sejam concebidas e as decisões sejam tomadas após uma avaliação ponderada de seus impactos em diferentes escalas. No caso em tela, mecanismos de cooperação, regras de consultação e canais de diálogo intermunicipal deverão ser instituídos, a fim de se afastar o perigo de que um acréscimo de autonomia internamente a um município degenere em "corporativismo territorial". Já se disse que o papel dos pesquisadores e intelectuais envolvidos com planejamento há de ser relativamente modesto, por ser de assessoria para a tomada de decisões (especialmente quanto aos meios, ou seja, quanto aos

16 Castoriadis já aludira a uma "face interna" e a uma "face externa" da autonomia, porém reportando- se a outra escala. O interno, em seu texto, é o interno ao próprio indivíduo, tendo a ver com a relação entre a instância reflexiva e as demais instâncias psíquicas, bem como com a capacidade de autoconhecimento a partir do confronto reflexivo entre presente e passado na trajetória biográfica individual. Quanto à face externa, ela diria respeito à relação do indivíduo com os demais indivíduos (CASTORIADIS, 1990b:131·3). Ora, nada impede que os dois sentidos do par interno/externo sejam utilizados, desde que se atente para o fato de que são atinentes a duas escalas distintas: em um caso, o que está em questão é o interno ou externo relativamente ao indivíduo, estando em jogo, pois, diretamente, a autonomia individuai; no outro caso, interno e externo referem-se ao grupo ou sociedade, sendo, por conseguinte, uma discussão sobre a autonomia coletiva.

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aspectos técnicos strictu sensu) e não de proposição fechada, em nome de uma "verdade científica" e de uma "racionalidade" das quais eles seriam os depositários, das decisões a serem tomadas pelos detentores do poder. Devese, adicionalmente, salientar que, na medida em que o "método" (no sentido amplo da palavra grega méthodos: caminho para se chegar a um fim) não é independente do objeto, pesquisadores e técnicos que não tenham uma relação forte e intensa com o espaço de referência para um planejamento ou uma gestão devem abdicar, via de regra, de aconselhamento direto. Os técnicos e intelectuais locais, sejam membros dos conselhos populares ou não, têm uma responsabilidade muito maior quanto ao destino do espaço no qual residem e trabalham - o qual é, para eles, um espaço vivido, um lugar com o qual se acham organicamente comprometidos. Os pesquisadores "de fora" devem procurar se restringir a uma colaboração mais indireta, sobretudo contribuindo para o aprimoramento e a requalificação dos quadros locais, em vez de atuar como consultores que elaboram planos acabados e como que saídos de urna linha de montagem. Cabe ainda registrar, a propósito dos instrumentos de planejamento ou gestão, que de pouco ou nada adianta delinear e aprovar "novos" instrumentos, como o IPTU progressivo, a concessão onerosa do direito de construir, a contribuição de melhoria e outros mais, se não se cuidar de enfrentar dificuldades básicas eventualmente presentes, como plantas de valores e cadastros de imóveis desatualizados e repletos de erros. A aplicação da maioria dos instrumentos, sejam eles novos ou não, depende de dados confiáveis, atualizados e facilmente disponíveis a respeito da realidade fundiária do município. Por fim, ainda no que concerne à informação, um cuidado indispensável refere-se à sua disseminação. Socializar o conhecimento sobre os problemas e as possíveis soluções é essencial tanto para incentivar mais pessoas a se integrarem a debates e processos decisórios, quanto para prestar contas aos atores sociais já envolvidos (mas que não sejam membros de conselhos) sobre os trâmites legais, as modificações e a implementação de propostas. O estímulo à mobilização e participação da população, estímulo esse que deve ser urna iniciativa compartilhada entre as organizações da própria sociedade civil e o aparelho de Estado, deve caminhar pari passu com a disponibilização de dados e informações sobre a realidade local (fruto de diagnósticos e levantamentos) e os próprios mecanismos e propostas de planejamento e gestão, à medida que forem sendo examinados, debatidos e, eventualmente, aprovados. A essência de todas as estratégias e de todos os planos deverá estar disponível sob uma forma acessível a uma população letrada porém de escolaridade baixa ou elementar, para além da forma mais técnica como for aprovada enquanto lei ou documento de referência para ações do Executivo e de organizações da

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sociedade civil. As versões simplificadas dos planos e das propostas, em consonância com o requisito de transparência que é condição sine qua non para decisões com conhecimento de causa e o exercício da autonomia, não poderão sonegar informações-chave, seja quanto aos fins, seja quanto aos meios.

Conclusão Ao contrário do que querem fazer crer alguns observadores da cena contemporânea obcecados pela "globalização" e pela mudança no modo de regulação do capitalismo, a margem de manobra para movimentos de resistência e conquista de direitos existente nas escalas nacional e local não desapareceu, a despeito de suas mutações e de seu encolhimento. Mesmo a escala local não tomou-se irrelevante, quer seja econômica ou politicamente, em que pese a força do grande capital, mais dotado de mobilidade e poder deformador e corruptor do que nunca. A escala local continua sendo, potencialmente, uma escala privilegiada para experimentos político-pedagógicos, para a formação de uma consciência de direitos e para a prática da participação política. Além do mais, o "conformismo generalizado", irretocavelmente apresentado por CASTORIADIS (1990a) como um traço lamentável das sociedades ocidentais na segunda metade do século XX, não é absoluto ou irreversível.-queiram alguns exemplos extraíveis da experiência brasileira recente, como t<> orçamento participativo de Porto Alegte, servir de ilustração r É possível e urgente construir uma alternativa estratégica que seja, a um só tempo, pragmática e ambiciosa. Uma alternativa capaz de valorizar a margem de manobra para avanços existente mesmo no interior de uma sociedade heterônoma sem sacrificar os objetivos de longo ou longuíssimo prazo e a visão dos obstáculos mais estruturais e duradouros. Sobre os alicerces dessa alternativa pode-se contribuir para construir uma esfera privada/pública dotada de vitalidade, a qual, em uma democracia genuína, fará a ponte entre as esferas privada e pública. Purgar o planejamento alternativo inspirado no ideário da Reforma Urbana de seus resíduos tecnocráticos, ao mesmo tempo oferecendo-lhe um horizonte político-filosófico mais ambicioso, é algo verdadeiramente imprescindível, caso se queira superar o falso dilema que apresenta como únicas saídas aparentes, de um lado, um planejamento e uma gestão de índole mercadófila e cunho empresarialista, que só fazem agravar as contradições e as tensões sociais, e, de outro, um planejamento social-reformista com pouco ferrão crítico, incapaz de contrapor-se eficazmente à onda empresarialista, sendo os seus adeptos, por isso, presas fáceis de sentimentos derrotistas e de impotência

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(os quais são, muitas vezes, a ante-sala de uma guinada pseudorealista conservadorismo e o cretinismo políticos).

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