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Além de ter sido um ensino constante nos cursos formais de enfermagem, o assunto foi tratado em sucessivosmomentos, em congressos, semanas de enfermag...

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A ÉTICA NA ENFERMAGEM

Elizete Silva Passos 1

RES U M O : Ensaio sobre a evolução dos princípios morais adotados pela enfe rmagem brasileira desde 1 923 até os dias atuais. Analisa os Códigos de Ética de 1 958, 1 975 e 1 993, assi nalando uma tendência metafísica , abstrata e espiritual dos dois primeiros, e uma mudança n o Código d e 1 993, o qual procura ver os valores de forma histórica e baseados em condições materias de existência. UNITERMOS:

Ética de enfe rmagem - Valores sociais - Princípios morais - Legislação de enfermagem

o exercício da enferm agem esteve sem pre vinculado a uma visão conservadora e metafisica do mundo, onde os papéis sociais acham-se previamente defi n idos, de modo que a profissão tem se destinado ao ser feminino, por ser u m trabalho pouco valorizado socia lmente e q u e exige de quem o exerce forte convicção religiosa, respeito à hierarquia e d isposição para servir, para obedecer e para devotar-se . Em contribuíção à ideologia cristã que perpassa o exercício profissional da enfermagem, colocando a enfe rmeira como uma mensageira divina, os princípios morais que têm servido para orientar o com portamento dessas profissionais têm segu id o a mesma tendência e legitimam essa prática . Desse mod o , a enfermagem tem sido orientada por uma ética de i nspiração metaf{sica, ou sej a , abstrata e espiritual, s e m vincu lação com as condições materiais da sociedade. Enquanto isto , os atos praticados passam a ser avaliados como bons ou maus, a depender da sua conformidade, ou não, com tais fi ns, perdendo-se de vista a dimensão do homem como u m ser social e os seus atos como fazendo parte d e u m processo dialético . Essa orientação foi fortemente explicitada na década de 60, quando a categoria reu n ida no

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Congresso Latin o Americano d e Enfermagem, real izado na cidade do Rio de Janei ro , em torno do

tema " O sentido cristIJo de servir" 2 deixou patente q ue a enfermei ra devia pautar a sua vida no ato de servir, embalado pelo espírito cristão , pois a enfermagem devia conti n ua r segu indo u ma moral cristã , que tem em Deus sua i nspi ração e seu fim último. Com esse próposito e essa condução , o ensino da ética tem cam i n hado passo a passo com o ensi no da enfermage m , de modo que estudar o exercício da enfermagem no Brasil nos conduz a estudara ética que orientou essa prática. Segundo nos mostra Rai m u nda G ERMAN03, a ética faz parte do currículo do Curso de Enfermagem desde o ano de 1 923, ou sej a , desde a criação da primeira escola de enfermagem no Brasil . Sua incl usão no cu rrícu lo d eu-se através do Decreto n ú mero 1 6 . 300/23, da Escola de Enfermagem do Departamento de Saúde Pú blica , com o nome de Bases Históricas, Éticas e Sociais da Arte da Enfermagem. No ano de 1 949, através do Decreto número 27.426/49, que regulamentava o ensinoda enfermagem nacional, a mesma ganhou o nqme de Ética e História da Enfermagem, tornando-se d iscipl i na o brigatória do curso . Em 1 972 , a Resolução n ú mero 4 do Conselho Federal de Ed ucação, manteve-a como d isciplina obrigatória, passando a chamar-se Exerc{cio da Enfermagem, a b ra n g e n d o a d eo n to l o g i a e a l e g i s l a çã o profis&ional.

Professora de Ética do Departamento de Filosofia, da Faculdade de F ilosofia e C iências H u manas e N úcleo de Estudos I nterdisciplinares sobre a M ulher ( N E I M) da U niversidade Federal da Bahia. 2

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pesquisadora do

A questao é discutida por várias autoras. Entre elas, Waleska Paixao em: O sentido cristao de servir em enfermamgem, Revista Brasileira de Enfermagem, v. 1 4, nO 4, p. 301 .31 0, ago. 1 961 . G ERMANO , Raimunda Medeiros. A ética e o ensino de ética na enfermagem ($0 Brasil. sao Paulo: Cortez, 1 993.

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Além de ter sido u m ensino constante nos cu rsos formais d e enfermag e m , o assunto foi tratado em sucessivosm omentos, em congressos, semanas de enfermagem e veiculado através de artigos nas revistas da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) , o que demonstra o g rande peso que foi dado a ele pela categori a . I nteressa­ nos saber o porq u ê 96 tal privilegiamento . Que papel esse ensino desempenhou na çonfiguração da profissão? Enfi m , a q u e ele serviu? Partindo-se do pri ncípio que os valores morais têm por fi m regulamentara conduta dos i ndivíduos na socied ade e, de forma extensiva, dos i ndivíd uos enq ua nto fazendo parte de u m a determ i nada categoria profissional, podemos facilmente d eduzir que a ênfase dada pela enfermagem à transmissão '; inculcação d esses valores em seus mem bros, visava criar uma certa homogen ização das atitudes q u e os m e smos deveriam ter enquanto seres h u m a n o s e enquanto profissionais. Os o bj etivos de tal "sintonia", na forma de ser de u m g ru po de pessoas, são m u itos. Primeiro , ela serve para qua lificar ou desqual ificar as atitudes, selecionar os impulsos desejáveis, reforçaratitudes e d e <; e st i m u l a r o ut ra s , e n fi m , contro l a r os co mportamentos e a forma de ser e d e viver das pesso a s D i a nte de tais objetivos, expl ica-se a ênfase que a profis�ão deu ao ensino de ética e todas as investidas em torno dela, de modo a gra vá-Ia nos corações!. A pretensão é g rande e significativa . Quem g rava pressu põe fazer u m a marca q u e perd u ra , q u e n ã o s e a ltera co m a ação do tempo e q u e se mantém presente e m todos os momentos. Assim , a profissional da enfennagem devia pautar-se po r u m a atitude moralista e rígida d i uturnamente. Para isso , seg u ndo e ntendiam alg u ns estudiosos5 . a " n a tureza "já havia prestado o seu serviço ao m u n i r as enfermeiras de q ualidades morais i natas, as q u a is precisavam ser desenvolvidas, o q u e só seria possível através do estudo da religião. Sem ela seria impossível desenvolver uma "boa formaçfJo do caráter", u m a vez q u e é ela "que dá vida à existência de um ser e os alicerces de uma formaç{ío sólida'6. Desse modo, as au las de ética

deviam ser com plementad as pelas aulas de rel ig i ã o , a s profiss i o n a i s devi a m participar freqüentém ente de enco�ros e conferências onde o tema fosse tratado , bem como ler m u ito sobre a ética profissiona l , que outra coisa não era senão a moral cristlJ. Enfi m , a v.oz da igreja se colocava como um "norte" para �s profissionais e como a guardiã da profissã o . C o m esse entendi mento , n a década de 50, a categori a começou a pensar n a cod ificação dos seus pri ncípios morais. ,Na é poca , sob grande infl uência dos códigós de ética do Consel ho I nternacional de Enferrnei ros (C I E) e do Com itê I n t e r n a ci o n a l C at ó l i c o d e E n f e rm e i ra s e Ass i stentes M é d i co-Soci a i s (C I C I A M S) . A preocu pação com o tema fez com q u e o mes\ll o fossetratado em nove Congressos de Enfermagem e se tornasse tema oficial de três deles. O fato é que após ql,Jase u m a dé�ada de estudos, no ano de 1 958 , foi aprovado o primeiro cód igo de ética da e nfermagem, a partir de um esboço elaborado por enfermeiras religiosas. O r�ferido código enfatizava três pontos básicos: a visão rel ig iosa , o servi r como papel do enfermeiro e a obed iência aos médicos e às autoridades constit u ídas. Com isso , o cód igo seg u i u u m a tendência tautológica e legitimadora, à medida e'm que serviu a penas para sacramentar o que já vinha se dando na prática das profissionais. Logo na parte i ntrodutória do código, ainda nos considerandos, o mesmo explicita a sua tendência religiosa ao afi rma r a i m portância de u m a ética n at u ra l CJ�,m o s u p o rt e para as profissionais da enfermagem. Alg uns trechos do mesmo são elucidativos: " um código de ética baseado em princlpios do direito natural será um valioso instrumento de orientaçlJo e apoio para os enfermeiros. . . '7 . Tam bém , o Artigo Primeiro ao determinarque: " a responsabilidade fundamental do enfermeiro é seNir a pessoa humana, zelando pela conseNação da saúde . . . '6 ; bem como o Artigo Segundo, que comp/ementa essa orientação ao afi rma r: "O enfermeiro respeita a vida humana em todas as circunstáncias desde a concepçlJo até a morte. . . '9, são demonstrativos da orientação

S o b re o a s s u nto , v e r B O C KW I N KE L , I r , M a r i a R o sa l d a , F o r m açao m o r a l ,d a e n fe rm e i ra . Re v. Bras.

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Enferm. v . 1 5, n° 6, p. 489-95,dezJ1 962 I b l d . p. 490 I bid. p. 490

M U NARO, Júlio S. Códigos de �tica dos Profissionais da Saúde. sao Paulo Sociedade Beneficiente sao Camilo, CESC Centro de Desenvolvimento em Administraçao da Saúde, s. d., p.38. I bid. p. 38 I bid. p. 38

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cristã , de u m a tendência metafísica dada ao primeiro cód igo de ética da enfermag e m . O respeito à v i d a é o pri m e i ro pressuposto d e u ma moral de orientação tmascendental , n a medida em q ue a mesma é vista como u m a dádiva d ivina , e somente a Deus é permitido d ispor-se dela. Q u a nto a os h o m ens, com pete protegê-Ia e preservá- I a , com o sendo u m a missão a eles confiada por Deus. O papel das enfermeiras, de ufiéis escudeiras" de Deus, na defesa da vid a , tinha pois subjacente a defesa da alma. Assim , o código determi nava no seu Artigo Q u i nto : " o enfermeiro respeita as crenças religiosas e a liberdade de consciência de seus pacientes e vela, com a necessária prudência, para que não lhes falte assistência espiritual". Ficq evidente o com prom isso da enfermagem com a salvação da a l mas, de tal modo que além de cu idar do corpo , ela tinha a m issão de cu idar do espírito dos pacientes. Com isso, verifica-se q u e em plena década de 50 a enfermagem continuava sendo m u ito mais uma umissão" do que uma profissão, cujo trabalho não se baseava a penas em princípios científicos e sim em preceitos dog m áticos l igados à fé . Com isso , o que se pode i nferi r, é q u e a enfermagem modern a , mesmo trazendo as marcas de uma superação da enfermagem de cu nho religioso caritativo , e apregoando um exercício baseado n u m sa be r espe cífico e s i ste matica m ente elaborado , não conseg u i u rom per, de fato , com a trad ição. Assi m , su bstituiu a a postu ra caritativa pela vocacionalidade, ou seja, com o uma forma de chamado e de destinação , que em ú ltima anál ise sign ifica a mesma coisa . Florence N I G HT I N GALE10 frizava que a enfermagem era uma arte e o seu exercício presssupunha ded icação e devota mento . Para ta nto , m esmo tendo i nvestido na fo rmação sistemática da enfermeira , deu g rande espaço para os ensinamentos morais poiS, i m portava

tomar atitudes simples como a rej a r o a m biente ou aquecê-lo, caso a situação exig isse ; e m oferecer a os pacientes o utras o pções a l i m e nta res e principalmente , em cu m pri r as ordens médicas e dos superiores hierárquicos. Desse modo, justifica­ se por o utro ângulo, mais uma vez, a necess idade de uma ética mora l i zadora e não histórica, q u est i o n a d o ra e crítica . Pois, no fu ndo , a preocu pação e ra a de fortalecer a uvontade enfraquecida'� 1 , fazendo com q ue as enfermeiras a ba n d o n assem a s i nfl u ências co nsideradas indesejáveis, com o , certamente, aquelas de não aceitare m as relações de poder estabelecidas. O objetivo primeiro era formaro caráter, através da uformação da vontade; desenvolvimento de ideais dignos; aquisição de hábitos co"etos, controle das emoções; aquisição da integridade moral'� 2 Com isso, faz-se u m contra ponto a uma idéia básica de Florence N ig htingale q ue afi rmava ser um engano pensar q u e a enferm agem exigia a penas vontade e ded icação, ela necessitava de técn ica e con hecimento . E m contraposição a uma possível tendência de achar q u e a técnica e o conhecimento era m suficientes , a éti ca da enfermagem tem mostrado que somente ela não satisfaz. Faz-se necessário , a simpatia humana e cristã que mais facilmente toca o paciente e lhe dá aquele indispensável conforto moral que tantas vezes lhe falta'� 3. A tendência legitimadora está evidente no cód igo de 1 958, q u a ndo o mesmo se a presenta com a seg u i nte afi rm ação : o enfermeiro é o principal colaborador do médico . . . mas que conserva a responsabilidade de seus atos no exercfcio profissional'� 4. Não existem dúvidas quanto ao lugar destinado às profissionais da e n fe rm a g e m na e q u i p e de s a ú d e , n e m q uestionamentos acerca d o mesmo. Ao contrário , o próprio cód igo se incu be de leg iti má-lo ao exigi r d a p rofiss i o n a l seri edade , com pro m isso e responsabilidade no cum primento das atribu ições

m u ito mais o d iscipl i n a m ento d a s profiss i o n a i s a

que l hes fora m confe ridas. Exig irdela que responda ,

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fim d e q u e pud esse m desempe n h a r, co m eficiênci a , suas atri bu íções. A eficiência a que ela se referi a , consistia em

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moral e leg a l mente , por esses atos é o mesmo que colocá-Ia diante de uma situação sem saída. Pois o não cu mprimento dos mesmos é passível

Ela discute a questao no livro Notas sobre enfermagem, sao Paulo.: Cortez, 1 984 . . Ver PAI XÃ O , Waleska. Ética profISsional na escola de enfermamgem. Rev. Bras. de Enferm. , v.9, n . 4, p. 224-23 1 , dez. 1 956. Ibid. p. 228 I bid. p. 228 M U NA R O . op. ci!. p. 38.

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de punições, que vão desde u m a advertência verbal até a suspensão do exercício profissiona l . Visando não deixar q u a lquer ponto obscu ro quanto aos l i m ites e a brangências do desempenho esperado da profissional, o Artigo Oitavo sentencia :" o enfermeiro executa as prescrições médicas com inteligência e lealdade. . . . Somente em situação de extrema urgência, aplica tratamentos médicos sem prescrição., relatando-os ao médico responsável o mais breve possfver�5. A relação de poder está estabelecida . Claro que ela não se configura no fato da enfermeira poder ou não prescrever medicamentos, este é u m l i m ite que serve apenas pa ra demarcar espaços profissionais e com petências, tão valiosos e corriqueiros no campo científico a partirda modernidade. O ponto crucial está na forma como esses l i m ites são estabelecidos e com o o seu cu m primento se d á . C o m o podemos i nferi r da letra do código, n ã o existe u m a d e m a rcação d e saberes e n tre enfermeiras e méd i cos, e sim a a presentação de u m saber, com o ú n ico , privativo dos médicos e o cumprimento de tarefas, voltadas para a objetivação desse saber, desti nado às enfermeiras. O que se perg u nta é o seg u i nte : será que tantos a nos de estudos16 não era m suficientes para constru i r um saber, não necessáriamente desti nado à prescrição de medicamentos, mas um saber q ue não consistisse a penas em executar tarefas? Por q u e será que no fi nal da década de 50, as próprias profissionais não se questionavam sobre essa relação de poder? Ou, se questionavam porque não a expli citava ao i nvés d e a .legitimarem no seu cód igo de deontolog ia? Só se pode entender a atitude conservadora e leg itimadora tomada pelas enfermeiras n aq uele momento, como sendo u m reflexo da permanência . d e va l o res e t rad i ções q u e a e nfermagem contin uava a rrastando através dos tem pos. Os quais, além de fortes pelos laços feitos no passado, amárrados n a origem da profissão , tinham sua maioraliada no fato da profissão ser �minentemente feminina e as mulheres não só terem sido moldadas no passado , n u m a sociedade patriarcal , para serem o "segundo sexo'; com o ainda continuarem

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recebend o essa mesma ideolog ia sexista . Esses a ntecedentes são determ inantes, pois os veremos presentes no exercíci o profission al da enfermag em, de modo bastante igual até o fi nal da década de 70. Assi m , por volta dos anos 70, apesar de surg i rem os pri m e i ros sindicatos da profissão, nos estados do Rio G rande do Sul e do Rio de Janeiro , o que pode ser entendido como uma forma de fortaleci mento da profissão e poss i b i l i d a d e d e i n d e pe n d ê n c i a d e s u a s profissionais, a mesma conti nuou s e conduzindo por uma postura conservadora� A atuação dos movi mentos sindicais e da ABEn resu m iu-se apenas à l uta i ntern a , entre os mem bros da categori a , mantendo-se a ABEn su bserviente às pol íticas de saúde governamentais. 17 D e n t ro d esse co ntext o , o "Código . de Deontologia de Enfermagem e Código de Infrações e Penalidade", aprovados pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEn) em 4 de outu bro de 1 975, mais uma vez seg u i u uma orientação fi losófica metafísica, colocando como pri ncipal tarefa dos profissionais da saúde, e entre eles as da enfermage m , "preencher um vazio, aliviar uma dor, acender a esperança '� 8. Como explica o preâmbulo do cód igo de Deontolog i a , " essa finalidade é, em suma, o bem. Mas o bem não é apenas a finalidade, é também a causa. Ele se encontra no princfpio e no fim'� 9. A m o r a l c o n t in u a v a i m p re g n a d a d e religiosidade, baseada em verd ades reveladas, e as relações h u manas se pautam pelos mesmos pri ncípios. As profissionais da enfermagem não orientavam suas ações por normas surg idas da sua prática cotid iana, nem do seu e nvolvimento soci a l . D o mesmo m odo, sua ação não visava atingiro homem concreto , ver o paciente como um ser soci a l , histórico e pol ítico , sua orientação continuava sendo teórica e ideal ista . O cód igo q ue surge passa uma forte infl uência da Declaração U n iversal dos Dire itos H u manos e dos códigos de ética do Conselho I nternacional de E n fe rm e i ras (C I E) , bem c o m o d o Com i tê I n t e r n a ci o n a l C at ó l i co d e E n f e rm e i ras e Assistentes Médico- Sociais (C I C IAMS) . Com

Ibid. p. 39 A formaç30 da enfermeira se dá em quatro anos de estudos. G E RMAN O , .R . M. Educaç§o e Ideologia da Enfermagem no Brasil. S30 Paulo: Cortez, 1 983, 1 1 8p. M U NARO, Op. cit. p. 3 Ibid. p.3.

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essas bases, o seu Artigo o itavo , referente aos "deveresdaenfermeira", no seu paragráfo primeiro, d iz ser de competência da profissional : " exercer sua atividade com zelo e probidade e obedecer aos preceitos da ética profissional, da moral, do civismo e das leis em vigor, preservando a honra, o prestigio e as tradições da profissão "20. A palavra d e ordem contin uava sendo obedecer. Como fica expl ícito , a atit ude de a cata m e nto deve ri a e sten d e r-se d esde as a ut o ri d a d e s i m e d i at a s , c o m o : m é d i co s , enfermeiras chefes, d i retores, bem com o às a utoridades maiores com o os governantes. Daí a tendência largamente seguida pelo o rgão oficial da classe , a ABEn , d u rante a maior parte de sua e x i st ê n c i a , de a cata m e n t o d as p o l ít i ca s governamentais e de saúd e . Tudo leva a cre r q ue essa atitude além de representar u m a longa trad ição na enfermagem , sign ificava, tam bé m , procu ra de reconheci mento e d e aceitação social . Era preciso , como está expl i cito no trecho aci m a citado , "preservar a honra e a tradição da profissão". Mas de q u e honra estavam falando? Certamente do valorque a profissão havia adquirido durante a década de 20, em decorrência de seg u i r um modelo norte-ame'ricano, ter co m o profissionais m u l heres de valor soci a l , mas principalmente, porq u e ela representou uma força para o poder constitu íd o , pois l utava porquestOes de saúde q ue correspondiam aos i nteresses do momento. Tendo e m vista não perder a "honra " e a "tradição': o cód igo em análise , colocava cada profissional com o fiscal da o utra e aquelas com carg o s d e ch efi a co m o responsáveis pe l o com portamento d o s s e u s subord i n ados. O Artigo Décim o defi ne essa relação: "cumprirospreceitos contidos neste Código e levarao Conselho Regional de Enfermagem conhecimento de €lto atentatório a qualquer de seus dispositivos". 21 Além de se rv i r para l eg iti m a r a posição secu ndári a e depefldente da profisSional da enfermagem, o código reforçava que a enfellTleira

df;l/ia ser a guardiã, aq uela q u e serve e q u e zela. Que guarda as chaves, que mantém em segurança as d rogas perigosas, que cu ida da seg u rança dos pacientes, entre o utras atri buições congêneres. Os artigos 1 5 e 1 6 do referido código são

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elucidativos: "o enfermeiro zela para que o prontuário do cliente permaneça fora do alcance de estranhos à equipe de saúde da instituição". " O enfermeiro mantém em segurança os entorpecentes e outras subs .'áncias determinante de dependência flsica ou psíquica. . . "22. Além de servir para justifica r e reforçar a ideolog i a relig iosa , q u e colocava o fazer de enfe rmagem distante d e u m saber científico e mais aproximado de u m a ação caritativa , bem com o de l eg iti mar a h ierarquia existente no seio da profissão e fora dela, o Código de Ética, "amarrava" total mente a profissiona l . Não perm itia q u e ela pa rticipasse de pro paganda , q u e recebesse g ratificações, q u e ocupasse cargos deixados por o utro colega , q u e criticasse um colega ou a instituição onde trabal hava, entre outras proibições. Não temos a pretensão , no momento, de entrar no mérito d essas pro i bições e sim de analisar a forma com o esses princípios eram e rigidos e chegavam até as profissionais. Certamente, m uitos deles tinham por fi m evitar atos verd adeiramente atentatórios à ética : contra a pessoa humana, a honestidade e a seriedade profission a l . Poré m , percebe-se q u e os mesmostinham sido elaborados tomando por base u m a tradição ideológica q u e n ã o representava m a is o momento histórico , n e m a profissão. Por o utro l a d o , era m apresentados c o m o fó rm u l a s pronta s , co m o i mposições permeadas de a meaças e repressões; que longe de possi b i l itar a conscientização e o crescimento das profissionais, serviam para anularas pessoas, e não garantia m que elas tivessem comportamentos verdadeiramente éticos. Esse tipo de cód igo m o ra l , elaborado a partir de u m conteúdo teórico e a bstrato , não 'dá conta de orientar atitudes q u e se referem a q uestões concretas e reais, com o as relacionadas à saúd e , porq u e não ati nge o n ú cleo da ética \ ética da enfermage m , até os a nos 80, continuava restrita , voltada apenas para as relações entre instituição e cliente, deixando de l ad o as q uestões básicas, com o os q uestionamentos acerca d a submissão que tem caracterizado, histori camente, a profissão; a pouca reflexão sobre sua situação de atividade periférica e de menor valor soci a l ; a relação existente entre essa subm issão e a situação .



Ibid. p. 4. M U NARO, op. cit. p. 5. I bid. p. 6.

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no preâmbulo essa i ntenção fica reg istrada : "0 fem i n i n a na sociedade e seu em basamento em apromoramento do comportamento ético do parâmetros u niversais e a bstratos. profissional passa pelo processo de construçllo Mudar esse quadro significa mudar as bases de uma consciência individual e coletiva, pela que têm alicerçado a construção da ética da compromisso social e profissional (. . . ) com reflexos profisSão. nos campos técnico, cientifico e politico ". 24 " É preciso romper com a ética imposta pelos Esse processo de conscientização de que fala interesses s6cio-econllmicos e usar as lições o cód igo, i mpulsionou a lterações na postura de do passado apenas como meio de eniendê­ total dedicação a que a enfermeira sempre se las, para reescrevê-Ias a partir dos seres su bmete u , a ponto de deixar de lado sua vida h um a n o s e . para os s eres pessoal. O atual código , aotempo em que reafirma humanos(. . .)remo vendo o seu centro da o comprom isso da profissão com a saúde pública , exterioridade - das imposições sociais - para a n ã o desconhece "os interesses do profissional e interioridade dos individuos, de onde os valores de sua organizaçllo". Assim, o seu compromisso devem emergir''23. deixa de ser apenas com o externo, voltado para Em síntese , era preciso elaborar valores que o outro e busca, com o outros, "lutar por uma se preocu passem com a d i g n idade, não da assistência de qualidade sem riscos e acessível profissão, e sim da pessoa humana. Tanto no que a toda a populaçllo"25. Sem que com isso tenha diz respeito ao cliente, a honestidade profissional que deixar de lado os seus interesses enquanto no cu idado q u e se deve ter com ele, bem como profissional e como pessoa . das suas profissionais, como seres históricos e Também mudou sua fonte d e i nspiração. Antes sociais e como tal d otados de desejos, emoções baseada na orientação dada pelas associações e sentimentos. E não com o pessoas a bstratas, i nternacionais catól i cas, hoje, seg u e a penas os que devem fazerda profissão sua única m issão na vida, cuidardos outros com devotamento a ponto pri ncípios gerais da Declaração U n iversa l dos de esq uecer-se de si mesmas, submeter-se aos . Direitos H u manos, de resto , possuí um caminho desejos de pessoas a penas porq u e estão , independente . Com a l i berdade conqu istada, o soci a l mente , e m posição su perior, obedecer mesmo conseg u i u rom pe r m u itas a m a rras cegamente às determ i nações, mesmo q uando relacionadas aos direitos das profissionais, aos não concordem com elas. seus deveres e aos temas considerados tabus, Para isso , faz-se necessário elaborar uma . como o corpo , a sexu a l idade, entre outros. ética reflexiva, cujos valores não sejam baseados No co n ce rn e nte a o s d i re itos, a l g u m as em princípios m etafísicos (q ue contin uassem conq uistas são de g rande relevânci a . Entre elas, vendo a enfermagem como um trabalho caritativo, o código assegura que a profissional da enfermagem de ajuda aos outros e baseado na devoção e no tenha conhecimento do diagnósti co dos seus sacrifício, desse modo, destinado ao sexo feminino) cl ientes, que possa participar de "movimentos e sim , valores hist6ricos e basead os nas reivindicat6rios por melhores condições de condições m ateriais de existência das pessoas. assistência, de trabalho e remuneraçllo''J.6 e que Parece-nos que o cód igo de ética elaborado no tenha o d i reito de "suspender suas atividades ano de 1 993, é u m a tentativa de aproxi mação individual ou coletj'(amente, quando a instituiçllo d essa t ra n sfo rm a çã o . D e u ma orie ntaçã o pública ou privada para a qual trabalhe nllo oferecer eminentemente m etafísica , q u e caracterizou o condições minimas para o exercicio''27. código da década de 50, onde o ato de servir era Essas decisões são indicadoras de atitudes a atividade básica da enfermeira , e a o bed iência de pessoas que não querem mais cumpri rem aos méd icos e às a uto ridades constitu ídas, determi nações sem questioná-Ias, ao contrário, inquestionável , o atua l código sinal iza com u m exigem participar, em iguald ade de condições, do postura hist6rica e u m a . visllo de processo. Logo processo . Do mesmo modo, demonstram que o 21 li 25 :111 11

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PASSOS, Elizete Silva. Bases teóricas da ética profissional. Revista BrasHeira de Enfermagem, v. 46, n. 1 , p. 56-62, jan.! mar. 1 993

CONSELHO F E D E RA L DE E N F E RMAGEM - C O F E N . Código de Ética de Enfermagem.COFEN, 1 993, p. 7. Ibid . , p.7. Ibid . , Artigo 1 0, Capitulo 1 1 , p. 8. I bid . , Artigo 1 1 , Capitulo 1 1 , p. 8.

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seu fazer não acontece de maneira i m provisada, orientado apenas pelo amor e pela ded i cação, e sim planejadamente e dentro de critérioscientff/COs básicos, sem os q uais não podem nem devem realizá-lo. A ru ptu ra com uma trad ição de serviço anti­ científico , a benegado e alienado, para uma ação que se conduz a o científico e profissional vem sendo possível pelo processo de conscientização que as profissionais estão passando nas ú ltimas décadas, com reflexos na sua organização pol ítica e nos seus orgãos de classe . Estes têm servido como espaçospolfticos, à medida émque tomaram para si a obrigação de informar aos seus membros, através de palestras, reun iões e o utras atividades, sobre o código de ética , os d i reitos e deveres das profissionais, desenvolvendo d iscussões sobre as condições d e tra ba lh o, identificando os pontos problemáticos da profissão e com isso faci l itando a su peração dos mesmos, ou pel o menos o seu enfrentamento. Também n o que se refe re aos deve res profissionais algu ns ava n ços podem ser i nferidos, a começar pela linguagem utilizada no atual código. Nele, os verbos zelar e cuidar, são su bstitu ídos por orientare colaborar. O Artigo 31 do Capítulo 1 1 1 é i l ustrativo , ao d izer q u e a enferm e i ra tem como uma de suas fu nções, "colaborar com a equipe de saúde na orientação do cliente ou responsável sobre os riscos dos exames ou de outros procedimentos . ".28 A enferm e i ra deixa de ser, pelo que está escrito , apenas u m a cum pridora de tarefas e passa a ter u m a posição de igualdade com os outros com ponentes da eq u i pe de saúde. O fato de poder preparar o paciente sobre a qualidade do tratamento a q u e vai se submeter, pressupõe que ela esteja engajada e tão i nformada q u a nto os demais profissionais, ou seja, que esteja colocada no mesmo n ível deles. . .

O atua l Código de Éti ca · da Enfe rm agem, apesar de manter proibições como a que veta a partici pação da profissional na práti ca de a borto (mesmo o l egal) , traz avanços ao pressupor a . pesq u isa no cam po da enfermagem, conforme i nsinua o Artig0 57 do Capítu lo \J29, ao recom0ndar que a prática científica não deve sobrepor aos i nteresses e a seg u rança das pessoas. Essa é u ma reco m endaçã o q u e só faz se ntid o se considera rmos a possibilidade e a existência de experiências dessa natureza . O que se apresenta com o u m a real idade pois, a partir dos a nos 80, é a pesq u isa na área da e nferm a g e m sa i se estrutu ra n d o d e fo rm a sistemática . I sso tem dado oportun idade às profissionais de tratare m q uestões até então tidas como tabus, . com o aq uelas que fossem de encontro à política governamental e aos interesses da Igrej a . Assim , a enfe rmagem está se abrindo para estudos rel acionadas à condição fem inina na socieda de , ao planejamento fam i l i a r, à saúde da m u l her, onde são trabalhad os conte údos sobre as relações de gênero , a q u estão da submissão fem i n i n a , os processos de l i bertação possíveis, a necessidade da m u l h e r con hecer melhor o seu corpo e ter d i re itos sobre ele, entre outros. Isso tem sido possível porq u e a enfermagem está vivendo um novo m omento , o qual tem possibilitado u ma avaliação dos va lores que regem a cond uta das suas profissionais. Em decorrência disso, o atual cód igo de ética demonstra não está preocupado em colocar parãmetros abstratos para serem seg u idos e sim valores que sejam erigidos a partirde uma análise crftica darealidade. Valores q u e reflitam o com prom isso d as profissionais com a dignidade da pessoa h u m a n a , i ncl usive delas, onde a enfermeira não seja a penas "massa de monobra': e sim u m se q u e 'con heça o seu papel no processo de transformação social , em especial, nos serviços de saúde ofe recidos à população.

ABSTRACT: Synopsis a bo ut the evolution of mora l pri ncipies adopted by braszilian nursing since 1 923 to nowadays. It indicates a metaphysica l , abstract and spiritual tendencies in

the codes of 1 958 and 1 975, and a change i n the code of 1 993, whi ch searches to o bserve val u a bles of historie form and based on m aterial conditions of existence. KEYWORDS: Eth ics, n u rsing , - Social values - Mora l principies - Legislation , n u rsing

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Ibid . , p. 1 0. Ibid . , p. 1 2.

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