A PAISAGEM E OS SENSOS: A cidade sensorial FREIRE, JANAÍNA M. 1. Universidade de Brasília. Departamento de Pós-Graduação em Geografia
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RESUMO Como os sensos se relacionam com a paisagem? Como a paisagem interage com os nossos sentidos? Para entender essa relação reciproca, buscamos, inicialmente, compreender o que são os sensos e a paisagem para em seguida uni-los em uma mesma perspectiva metodológica de análise. Para tanto, bebemos do ideal existencialista/fenomenológico, trazendo o homem e seu corpo como parte integrante da paisagem, ou seja, sujeito e paisagem se confundem, unificando-se. O homem a que recorremos, vivencia a paisagem por meio dos sentidos aristotélicos que é capaz, fisicamente, de utilizar. Chamamos de cidade sensorial aquela que é experenciada em sua totalidade, afetando o sujeito. Mesmo diante da aceleração técnica que somos acometidos, existe uma cidade sensível.
Palavras-chave: Sensos; Paisagem; Existencialismo; Cidade
Para começo de conversa De acordo com Heidegger (2012), o homem é um ser-no-mundo (dasein). Isso significa que o homem só existe, porque habita o/um mundo, que por sua vez, só pode ser concebido pelo homem – são inseparáveis. A presença espacial do ser se dá pela sua existência enquanto sujeito. No existir, homem e mundo são inseparáveis (Luijpen, 1973). O corpo, que é humano, e portanto revestido de humanidade, habita o mundo. Habitar é diferente de apenas “estar” porque sugere intencionalidades, percepções e ações. No habitar, construímos e só construímos porque habitamos (Heidegger, 2006a). Segundo Milton Santos, as técnicas nos levam a compreender o espaço. Não há como pensar o meio geográfico de um lado e o meio técnico de outro. A técnica se tornou universal, presente de forma direta ou indireta em todo o lugar. As técnicas têm uma dimensão temporal e espacial. O presente se apresenta com determinada configuração territorial que é resultado de diversas temporalidades. Pode exibir-se enquanto formas, que são ao mesmo tempo criadas e criadoras, porque há uma submissão do presente ao passado através delas. “(...) em todos os momentos as formas criadas no passado têm um papel ativo na elaboração do presente e do futuro. A história da cidade é a das formas, não como um dado passivo, mas como um dado ativo” (Santos, 1994, p.35). Marco Polo, após visitar as cidades do império de Kublai Khan, relata-lhe suas impressões. O imperador interpreta os gestos, as imagens, os movimentos, pois não falam a mesma língua. As cidades são descritas, inicialmente, sem palavras, visitadas e revisitadas pelo contador e imaginada pelo ouvinte. A mesma cidade é distinta para um e para o outro. Pode (ou não) unificar-se em uma só concepção. Quem sabe as cidades tenham o poder de diversificar compreensões ao invés de agregá-las? Ítalo Calvino (2003, p.46) discorre sobre as “Cidades Invisíveis” e demonstra a complexidade do estudo: “As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos”. Em uma passagem mais adiante, imperador e mercador dialogam: Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. -
Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - perguntou Kublai
Khan -
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde
Marco -, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: -
Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
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Polo responde: - Sem pedras o arco não existe (Calvino, 2003, p.81).
Pode-se substituir o final do diálogo pela seguinte estrutura: “- Por que falar das pessoas? Só a cidade me interessa [...] – Sem pessoas, a cidade não existe”. Poderíamos, portanto, falar apenas da cidade, isoladamente, mas ela existe com/pelas pessoas, assim como o homem urbano é revestido de cidade. Em Vida Social e Destinação, Jean Ladrière (1979) propõe que se estude a cidade por uma visão sintética, o que significa ir além do espaço topológico abstrato que reduz o ser humano à modelos, comportamentos e funções. Uma visão sintética abarca a totalidade concreta da cidade que é constituída pela individualidade, ou seja, por variadas percepções. “A apreensão de uma cidade é sempre incerta, incompleta, exploratória e nunca acabamos de explorar uma cidade, mesmo quando há muito a habitamos” (Ladriere, 1979, p.167). Essa infinidade de perspectivas torna o processo de apreensão da cidade inalcançável. A cidade é uma promessa perpétua que “como totalidade, só pode aparecer-nos em um lugar não traçado no solo, em um lugar fora da visão perceptiva, invisível; é este lugar invisível que chamamos imaginário” (Ladriere, p.171). Para Cristina Freire (1997, p.108), a cidade pode ser investigada por três perspectivas: a) como artefato (aspecto físico/topografia), b) como campo de forças (palco e protagonista de forças de interação social) e c) como imagem onde “remete ao conjunto de ideias, expectativas e valores que constituem o imaginário urbano”. A cidade como imagem, que nos interessa, tem um componente histórico e estético que remete a mensagens efabuladoras ligadas a diversas temporalidades e a memória individual e coletiva. A organização do espaço urbano gera um discurso da cidade que é absorvido de maneira distinta pelos sujeitos, com elementos compartilhados coletivamente e individualidades. “(...) as cidades não podem ser diferenciadas por suas pontes, viadutos, praças ou museus, mas sim, pela maneira com que essas construções se reapresentam no imaginário de seus habitantes” (Freire, 1997, p.111). É por esse raciocínio que Robert Musil diz não haver nada mais invisível que os monumentos, pois mesmo sendo grandes e vistosos, geram uma imensidão de interpretações no plano do invisível. Eu corrigiria a frase dele dizendo que não há nada mais invisível que as cidades, local da vida cotidiana que embora habitada enquanto espaço físico, remete a memórias e imaginários diversos, captados pelos sensos no viver da paisagem, ou melhor, no vivenciar da paisagem.
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A paisagem das cidades As cidades podem ser compreendidas como museus “onde as peças de seu acervo são ora visíveis, ora invisíveis. Esse terreno, por certo imaginário, possibilita a percepção de algumas peças e a rememoração de outras que hoje abriga ou um dia abrigou” (Freire, 1997, p.37). Monumentos são peças que compõem a paisagem das cidades, representando tanto uma grandiosidade quanto a morte de um passado que pretende-se armazenar entre paredes. De acordo com Cristina Freire (1997, p.94): monumento “(...) é um substantivo que vem do verbo latino monere – que significa fazer lembrar”. Origina-se também da palavra mausoléu, que dá origem ao termo museu. Portanto, está ligado, efetivamente, a memória e ao tempo, seja ele ausente ou presente As políticas de patrimonialização internacionais e nacionais visam a valorização memorial e esses incentivos voltam-se, em grande parte, aos monumentos. Estes, são instrumentos capazes de preservar uma lembrança ou condena-la ao ostracismo. No Egito antigo, registros de alguns faraós foram apagados pelos seus sucessores, para que, dessa forma, deixassem de existir. Essa concepção vem da premissa de que os monumentos são como documentos, que devem ser apropriados pela memória coletiva como um percurso para a eternização. Os monumentos estão ligados a um conteúdo simbólico além de sua presença física, alcançando o intangível: “Os monumentos, em seu significado mais pleno, são formas que concedam de maneira inequívoca as categorias de espaço e tempo como expressão de valores” (Freire, 1997, p.120) e investigar a relação das pessoas com essas paisagens, “implica, necessariamente, refletir sobre a cidade e seu imaginário” (Freire, 1997,p.108). Implica um mergulho ao museu imaginário da cidade, aquele além da forma. No processo de globalização, o avanço técnico transforma não apenas a composição paisagística urbana, mas também a percepção que se tem dela. A monumentalidade continua sendo uma marca presente das cidades, mas a lógica da vivência das paisagens é muito mais acelerada e efêmera. Para Bachelard (1989) e Dardel (2011), a paisagem seria externa aos olhos de um geômetra, mas, para um geógrafo, a paisagem existe no interior de si, visto que o homem habita um espaço vivido e percebido “com todas as parcialidades da imaginação” (Bachelard, 1989, p.19).
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De acordo com Simon Schama (1996, p.17), “(...) a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas”. Com essa afirmativa, demonstra que a paisagem conserva não apenas o visível, mas também o imaginável. Sabemos, todavia, que a apreensão da paisagem se dá para além da visão, por meio de todo o universo sensorial que o homem possui. A experiência sensorial geral um universal imaginário, e segundo Aristóteles (2013, p.87): “(...) ainda que os sensíveis se tenham afastado, as sensações e as imaginações permanecem nos órgãos sensoriais”, ou seja, mesmo que o objeto a que experimentamos sensações (o sensível) não esteja mais diretamente de nós, podemos acessa-lo pelo imaginário e pela sensação que tivemos. Eric Dardel (2011, p.31) afirma que “Ela [a paisagem] coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra, ou, se preferirmos, sua geograficidade original (...)”. Essa geograficidade define a relação do ser no mundo e é a essência da Geografia. A aceleração imposta pela globalização afastou a vivencia do homem e da paisagem. De acordo com Juca Villaschi: a sociedade contemporânea criou uma ruptura esquizofrênica entre quatro das dimensões fundamentais da experiência humana: Logos (razão/lógica), Pathos (afetividade/emoção), Eros (corporeidade/sedução que os lugares exercem) e Mythos (relação do homem com seus mistérios/crenças e lendas) e defende: Torna-se contundente a necessidade, então, de se voltar a dar pausas no ritmo da vida cotidiana – à semelhança da estrutura musical -, de revigorar sentidos anestesiados, de viver aqui e agora, de exercitar diferentes formas de ver, ouvir, cheirar, sentir, presenciar, desfrutar, compartilhar e de estar nos ambientes, apreciar e participar da construção dos lugares e da dinâmica da cidade (Villaschi, 2012, p.66 grifo proprio)
Edward Relph (1980) discorre sobre as inscapes, minsdcapes, soundscapes e smellscapes como os estímulos sensoriais causados pelas paisagens, inclusive as da cidade.
Ver, ouvir, cheirar, sentir e as vivências sensoriais Para Aristóteles a percepção sensorial ocorre quando somos movidos ou afetados por algo ou alguém, pois a faculdade perceptiva existe enquanto potência e precisa de algo para ser atividade/ação. Nesse sentido é possível distinguir percepção em potência e percepção em 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
atividade: “A faculdade perceptiva é em potência da mesma qualidade que o sensível é já em ato” (Aristóteles, 2013, p. 59). O autor explica que os nossos órgãos sensoriais existem potencialmente por necessitarem serem afetados para serem sensíveis. A percepção sensorial existe em potencia e o sensível em atividade. Existem, segundo o autor, três acepções do sensível. A primeira refere-se as qualidades que são próprias de cada sentido e não podem ser percepcionadas por outros. A segunda refere-se ao que é comum a todos como: movimento, repouso, grandeza, etc. A terceira acepção refere-se ao sensível por acidente, ou seja, ao sentido que acompanha determinado objeto percepcionado. A primeira das três é que possui a essência que cada um dos cinco sentidos responde por natureza. Os cinco sentidos aristotélicos são bem conhecidos e aceitos. Alguns autores já discorrem sobre outras possibilidades de órgãos sensoriais, mas aqui nos deteremos a esses. Para Aristóteles(2013), o tato é o sentido real, aquele que realmente nos é inerente porque não precisa de nenhum intermediário para existir visto que a carne estabelece contato direto. Já a visão, audição, paladar e olfato precisam do ar ou da agua para sofrerem afecção. Embora a ideia do autor seja plausível, entendemos a carne como o corpo - o todo material em que o espirito habita, por isso, pupila, a língua, o tímpano, são também carne e portanto o contato não deixaria de ser direto. Mas independente disso, sabemos que o que está diante da paisagem é o corpo e isso é primordial nas vivências que teremos. É necessário saber: Como nos posicionamos na cidade? Qual foco damos à ela? Quais sentidos estimulamos? Além dessas questões, é preciso tempo para deixar-se perceber e ser acometido por percepções diante da paisagem. Aristóteles (2013) complementa ainda que percepcionar e pensar são coisas distintas pois todos os animais são capazes de perceber mas nem todos são capazes de refletir/pensar sobre o percebido. Para Juca Villaschi (2012, p.62): “(...) o homem só se afirma no mundo objetivo através do conjunto integrado de seus variados sentidos e não apenas pela sua capacidade de pensar”. Sensos e pensamentos são, portanto, interligados e indispensáveis. A ausência deles compromete o indivíduo como cidadão e guardião do patrimônio, da memória. O usuário da cidade não apenas a consome como espaço mas é parte integrante e ativa, participando da dinâmica e da produção dos lugares: “além de ser visto todo objeto, ambiente e paisagem também é apresentado de forma intensa e diferenciada aos demais sentidos” não limitando-se a visão. (Villaschi, 2012, p.68). Nesse sentido, a paisagem urbana ganha outros significados. A ação primeira de todo ser humano vidente é ver (o termo olhar sugere algum 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
aprofundamento), mas a visão muitas vezes pode ser limitada, pois existem outros elementos que vão além da forma: Entendendo que a percepção não se limita ao sentido da visão, o estudo da paisagem na Geografia deve ir além dos aspectos visuais, e isso pressupõe considerar sua dimensão subjetiva. A paisagem é um complexo de formas e relações culturais, e à Geografia cabe a busca da compreensão de cada paisagem, não só pela aparência numa leitura estética, mas na busca de desvendar os significados dos lugares e as relações neles e entre eles estabelecidas (Torres, 2010, p.124).
Stanley Waterman (2006) explica que o olfato e a audição aprofundam a percepção dos detalhes, enquanto a visão capta elementos mais superficiais embora com uma amplitude espacial maior. Para Solange Guimaraes (2012, p.53) “vivenciamos as realidades construídas e ancoradas naquilo que somos e no que temos interesse e motivação para perceber e valorar (...) em meio a uma infinitude de experiências sensoriais, culturais, psicológicas, sociais, econômicas, respectivas as paisagens e suas dimensões exteriores e interiores”. Tuan(2014) discorre sobre os cinco sentidos. Para ele: “uma pessoa que simplesmente vê é um expectador, um observador, alguém que não está envolvido com a cena. O mundo percebido pelos olhos é mais abstrato que o conhecido por nós por meio dos outros sentidos” (Tuan, 2014, p.28). Por mais que o ser humano seja um animal muito dependente da visão, é preciso que expanda suas capacidades sensitivas por todos os outros órgãos sensoriais.
A Cidade Sensorial Jean Ladrière (1979) utilizando a mesma frase do poema de Holderlin “poeticamente o homem habita” e também inspirando-se em Heidegger propõe que se estude a cidade por uma visão sintética. Significa ir além do espaço topológico abstrato que reduz o ser humano à modelos, comportamentos e funções. Embora essa perspectiva seja útil, uma visão sintética abarca a totalidade concreta da cidade que é constituída pela individualidade, ou seja, por variadas percepções. “A apreensão de uma cidade é sempre incerta, incompleta, exploratória e nunca acabamos de explorar uma cidade, mesmo quando há muito a habitamos” (Ladriere, 1979, p.167).
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Martin Heidegger (2006, p.125) em Construir, Habitar, Pensar pergunta: O que é habitar? O habitar não se refere a posse de uma residência mesmo porque uma casa, em seu sentido físico, não garante a existência de um habitar. O mercado para um mercador pode ser mais seu habitar que o local que partilha com a família. Habitar, na verdade, é um traço fundamental do homem, visto que somos um ser que existimos porque existimos no mundo. Para Luijpen (1973, p.52): “(...) a alegação de que a subjetividade humana se chama uma subjetividade existente significa exatamente que o sujeito de nenhum modo é o que é sem estar mergulhado no corpo e enredado no mundo”. Portanto o mundo pertence a essência do homem e não pode haver um sem o outro. A separação de homem e mundo só ocorre com a morte do corpo. O corpo é a transição do EU para o mundo e nos torna SUJEITO porque é um corpo HUMANO capaz de se envolver no mundo com intencionalidades. O sujeito é ativo e não está no mundo como um lápis se encontra em uma gaveta, o ser do homem no mundo sugere um habitar. Martin Heidegger (2006, p.125) traz uma segunda pergunta: Em que medida pertence ao habitar um construir? O termo do alemão clássico Buan, transformado em Bauen é utilizado como construir e seu significado é habitar, transmitindo a ligação entre ambos. Martin Heidegger defende que não habitamos porque construímos mas sim cada vez mais construímos porque habitamos, porque somos seres que existimos no mundo habitando. Habitar, para o autor, é o traço fundamental do ser-homem e está relacionado ao construir. Mas nem todas as construções são habitações, muito embora elas tenham como meta o habitar. Desta forma, para entender a relação do homem com a cidade, não será necessário e nem recomendável perceber as construções enquanto arquitetura, ou seja, matéria bruta. As construções devem ser compreendidas em sua essência – o habitar, constituído pelo ser- no – mundo, o existente, o habitante. As cidades vivem uma contradição, pois passam a adquirir valor de mercadoria e tendem, principalmente a atender as dinâmicas do turismo, a imitar-se umas às outras, perdendo muitas características peculiares e únicas. David Harvey exemplifica isso ao falar das cidades da Europa que tendem a se “disneificar” para atrair interessados no consumo turístico e acabam por perder as características que a tornam especial. Saskia Sassen (2001, p.68) aborda essa temática por meio da análise da indústria global de entretenimento e demonstra como as cidades tem se constituído cada vez mais como um parque temático. “Para a indústria do entretenimento, as cidades não são apenas locais estratégicos para a produção e coordenação, mas locais de consumo cada vez mais importantes”.
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As cidades tornaram-se calculáveis, baseadas em dados quantitativos e abstratos, reduzidas ao valor de uso e de trocas (Matos, 1983; Simmel, 1997). “A cidade tinha um passado, uma história descentralizada, uma soma de experiências próprias, de paráticas cotidianas. O bairro tinha ele próprio seus micro-lugares, suas aventuras, sua identidade. A cidade sabia igualmente marcar o tempo por ritos, signos, periódicos de pertença ao grupo. Festas religiosas, políticas, privadas ou públicas se sucediam (...)” (Matos, 1983, p.47) Essa perda cultural da cidade, relacionada a quantificação da mesma (“a cultura se transformou em algum tipo de mercadoria” como diz David Harvey) e a formação de metrópoles anuladoras do humano. Olgária Matos (1983, p.51) utiliza os termos amnésia da cidade e sufocamento das lembranças e diz: “(...) suas lembranças passadas e grupais são invadidas por outra memória, a oficial celebradora que expropria o sentido e a verdade das primeiras”. O processo de sufocamento das lembranças e abandono da memória vem acompanhado de uma renúncia das emoções. Na metrópole o homem deixa-se mover quase que plenamente pela razão, ao contrário do homem do campo, que pode desenvolver com mais facilidade o emocional. “O homem metropolitano, de que existem inúmeros gêneros individuais, desenvolve uma capacidade protetora contra a profunda perturbação com que o ameaçam as flutuações e descontinuidades do ambiente externo” (Simmel, 1997, p. 32). Para tanto, o ser humano abandona o espírito criativo por um espírito calculista que seja capaz de habitar as cidades, de pequenas á metrópoles. Luijpen (1973) alega que ver o mundo como uma realidade bruta e externa é isolar o homem e o mundo em si mesmos. Como pode existir um homem isolado em si? E se existisse, como poderia conhecer as coisas e o mundo? A única maneira (sendo negligente com diversos fatores) seria a partir de si mesmo mas isto não corresponde a característica coletiva das sociedades. O homem provocaria o mundo exterior pelo mundo interior, todavia, é no mundo que o homem se conhece e conhece ao mundo porque existimos em relação a ele. Um mundo sem homem (agora sem negligências) não poderia ser consciente para o homem. Seria algo que nunca se ouviu falar e que “de nenhum modo fosse afirmado” (Luijpen, 1973, p.65). Vale ressaltar que a visão fenomenológica não é subjetivista porque reconhece a necessidade do externo material para que haja a percepção (ou melhor, as percepções). 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
E por isso devemos viver a cidade como sensorial, ou seja, como possibilidade de nos afetar por meio de todos os nossos sentidos. Jean Ladrière (1979, p.171) reconhece que cada pedaço da cidade visível torna presente a cidade invisível: A verdade da cidade não está no que nela é visível. Não que este não seja necessário, não esteja presente, não seja verdadeiro; mas, pelo contrário, a verdade, desta presença, desta necessidade e desta verdade encontra-se na cidade invisível. Como sempre, o invisível é a verdade do visível
Tuan (2014, p.30) explica que “a percepção é uma atividade, um estender-se para o mundo” pois é possível ter olhos sem que nada seja visto, assim como um ouvido pode nada escutar. É necessário que o sujeito se coloque diante da paisagem de forma sensorial e perceba o sensível da cidade. Ninguém “verá” o mundo da mesma forma pois a cidade não é uma unidade.
A cidade é uma promessa perpétua, assim concluímos A partir do presente artigo, pôde-se contribuir com novas abordagens para o estudo do urbano e da ação do desenvolvimento das cidades sobre a sociedade. A abordagem existencialista, embora considerada demasiadamente teórica e sem fins críticos, pode ser aplicada como valiosa ferramenta para a transformação social. Conhecer o ser-no-mundo torna-se fundamental a medida que se entende que não existimos sem ele e não podemos optar por um divórcio. Por esse viés, entende-se que não há meios de compreender o mundo sem conhecer o ser que habita pois são juntos um só: sujeito. Acreditamos que esse sujeito deve interagir com a cidade por meio dos sensos, construindo, de fato, uma cidade sensorial, mesmo no contexto ténico-cientifico-informacional no qual vivemos. A cidade é uma promessa perpétua e assim como o homem, se transforma infinitamente.
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