Joaquim Quintino Aires A ARTE DE DIZER NÃO - glups.leya.com

A ARTE DE DIZER NÃO 8 Nas suas vidas, como aconteceu com cada um de nós, o Não será a primeira palavra a ser articulada com sentido, ou seja com a int...

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Joaquim Quintino Aires

A ARTE DE DIZER NÃO

CONTEÚDOS

INTRODUÇÃO

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> 1 :: A HISTÓRIA PSICOLÓGICA DO NÃO

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> 2 :: OS PAIS DIZEM NÃO

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> 3 :: OS AMIGOS DIZEM NÃO

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> 4 :: NO NAMORO E NO CASAMENTO DIZEMOS NÃO

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> 5 :: NO TRABALHO DIZEMOS NÃO

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> 6 :: OS FILHOS DIZEM NÃO

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> 7 :: NAS COMPRAS DIZEMOS NÃO

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INTRODUÇÃO

A palavra Não é a primeira a ser usada com sentido pela criança. Depois das articulações Mam, Pá, Ão-Ão, e de mais alguns sons que nos fascinam, por volta dos 18 meses chega o Não. Mas, repetimos, é já usada com sentido. Mas o que é isso de umas palavras terem sentido e outras não? No último domingo, eu e mais alguns elementos da minha família passámos momentos muito agradáveis no parque Marechal Carmona em Cascais, com as minhas sobrinhas, gémeas, de 15 meses. Numa das muitas brincadeiras, elas lá davam os seus passinhos seguindo pombos e chamando-os de ão-ão, a designação que também usam para os cães. Nada de estranho para quem já acompanhou o crescimento de crianças pequenas. Uma mesma articulação serve para vários objetos ou seres, o que apenas significa que não têm ainda um entendimento preciso sobre aquela palavra. Aquele som articulado, ão-ão, substitui a ação de apontar com os dedos e as mãos, com que antes sinalizavam para as outras pessoas o que estava nas suas cabecinhas, mas é ainda muito vago. Não tem um sentido exato.

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Nas suas vidas, como aconteceu com cada um de nós, o Não será a primeira palavra a ser articulada com sentido, ou seja com a intenção de manifestar um único significado concreto: responder negativamente, recusando uma oferta ou um pedido. A primeira palavra a ser articulada com sentido por qualquer humano começa nesse momento a tornar-se elemento fundamental da sua personalidade. A afirmação negativa é o instrumento usado para nos diferenciarmos de todos os outros, permitindo assim edificar a personalidade. Mas, curiosamente, e apesar de ser a primeira palavra articulada com sentido em todas as culturas e nos mais diversos idiomas, o seu uso nada tem de inato. Precisa de ser aprendido, e nem sempre de uma forma fácil. Num estudo realizado na minha clínica em 2013, dos 401 novos casos com idades entre os cinco e os 25 anos, apenas oito por cento mostravam agilidade para usar a palavra Não, e assim expressarem a sua personalidade a outros humanos, sem levantar problemas no relacionamento social. Outros colegas, e muitos estudos publicados, alertam para a necessidade do uso assertivo da palavra Não nas sociedades modernas. Quanto maior é o desenvolvimento social, e maior a liberdade interior de cada pessoa, mais o Não se revela um instrumento absolutamente fundamental para a sobrevivência social. Primeiro com os pais em casa, depois na escola com os colegas e professores, mais tarde ainda com conhecidos,

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INTRODUÇÃO

amigos, no namoro e no casamento, e sem esquecer o trabalho, a arte de dizer não é um bem necessário para qualquer humano. Nos consultórios de psicologia os profissionais perceberam a importância de um trabalho de aprendizagem do Não na vida de muitos dos seus clientes. Por isso, nas últimas décadas desenvolveram-se diferentes técnicas que ajudam a dominar essa importante mas difícil arte. A minha intenção ao escrever este livro é oferecer-lhe a possibilidade de, começando hoje mesmo, desenvolver esta arte e, dizendo Não sem levantar problemas, conseguir que os outros percebam, e respeitem, as suas opiniões e as suas escolhas para a sua vida, e desse modo desfrute de um dia a dia bem mais agradável. Começo por lhe apresentar a história psicológica do Não. A seguir apresento vários contextos de relações nas quais o Não é absolutamente fundamental – como na relação de pais para filhos, entre amigos, no namoro e no casamento, na relação de filhos para pais e até quando vai às compras. Este é um livro para ler e pensar. Em cada parágrafo tente recordar-se de uma história da sua vida. O livro não foi escrito para lhe entregar uma lista de conselhos. Como sabe, nunca os seguimos… A estrutura do livro foi pensada antes para ajudar o leitor a refletir e a restruturar-se. Por outras palavras, para o ajudar a tornar-se um mestre na arte de dizer não. E para que perceba até que ponto a questão do Não é fundamental, vou contar-lhe aqui algumas histórias ocorridas

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com clientes meus. Leia-as com atenção e veja se reconhece nelas alguma coisa de si.

A Maria, de 33 anos, tinha uma grande dificuldade em dizer não, facto que lhe tem criado grandes problemas e sofrimento ao longo da vida. “Prefiro prejudicar-me do que ter de lidar com isso”, confessa-me. “O pior é que muitas pessoas já perceberam essa dificuldade e acabam por abusar de mim. Eu sei que tenho de aprender a dizer não. Eu sei a importância que isso pode vir a ter na minha vida.” Logo quando começou o trabalho de desenvolvimento pessoal, a Maria percebeu a importância de dizer não. O problema era controlar a ansiedade que a bloqueava no momento de o dizer. O treino de análise mais rápida das situações e contextos, associado a um treino em verbalizar em momentos de elevado stresse, permitiu à Maria uma vida social absolutamente diferente a par de um aumento muito significativo da sua autoestima.

Uma fisioterapeuta de 28 anos ficava horas à espera de uma colega porque se achava na obrigação de lhe dar boleia após o trabalho. Chegava a faltar a compromissos pessoais para cumprir o ritual. Na sua vida amorosa, preferia ceder a dizer não sempre que achava que o namorado iria ficar chateado. O mesmo acontecia nas relações de

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trabalho e com a família. Sou conhecida como boazinha, atenciosa ou prestativa, dizia ela. Mas apesar desta classificação social muito positiva, dentro dela a raiva aumentava e a autoestima diminuía. Hoje é uma mulher muito mais feliz e relata com espanto que até há mais gente que a admira pela sua personalidade.

Luís tinha 15 anos quando os pais o trouxeram à minha consulta. A sua recusa em ouvir um Não dos pais era bem diferente da comum oposição nos adolescentes. Na sua história não havia a palavra Não e, quando foi mesmo necessária, depois de três reprovações apenas porque não gostava dos professores nem achava a matéria escolar interessante, quando, finalmente, a mãe não aguentou mais ser insultada de “cabra” nem o pai de “ignorante”, quando começaram a contrariar comportamentos muito desadequados, procuraram então a minha consulta. Várias semanas de terapia, com o Luís e com os pais, fizeram aparecer um novo rapaz. Aprendeu a reconhecer a autoridade dos pais, que já lhe sabem dizer não, a sua autoestima aumentou significativamente, é mais social e com um excelente envolvimento escolar.

Carla, uma mulher de 40 anos foi fazer o teste do HIV porque o marido dela, que também já tinha feito o teste, contara-lhe que a amante tinha tido análises com resul-

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tado positivo… E as dele também eram positivas. Carla sabia que o marido mantinha esta relação extraconjugal há anos, mas sempre que ele queria fazer sexo com ela, ela aceitava e nunca se protegeu na relação sexual. Confrontada com esse facto na consulta disse apenas: “É que de cada vez que ele se chegava a mim eu pensava que era porque me tinha voltado a amar… Então eu não podia dizer-lhe que não, porque se casámos é para toda a vida, tenho de aguentar.”

Carlos, consultor numa multinacional, casado, numa viagem de negócios à Tailândia e após ter consumido bastante álcool, revelou aos colegas que alimentava fantasias sexuais com prostitutas. Os colegas, sem que ele se apercebesse, juntaram-se e pagaram entre todos os serviços de uma profissional que já se encontrava seminua no seu quarto quando ele chegou para descansar. Confrontado com a situação pensou que não queria e achou que os colegas se tinham precipitado. Mas cedeu. “Se lhe dissesse que não, os meus colegas iriam saber… talvez surgissem rumores de me ter negado a fazer sexo com uma mulher.”

Rogério, empregado bancário, tem 25 anos. Queixa-se de dificuldades financeiras e de como gasta o pouco que ganha em bares com amigos. “É que se eu não bebo chamam-me

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INTRODUÇÃO

maricas e eu não gosto. Eles oferecem-me bebidas e eu não consigo dizer que não… E depois tenho de retribuir e fico sem dinheiro.”

Num anúncio na Internet oferecia-se a pintura de unhas. Tratava-se de um centro de formação e quem quisesse usufruir desse serviço grátis estaria a ajudar as formandas nas suas horas de formação prática. Apenas se informava que o trabalho das alunas poderia durar de três a oito horas e que as cores usadas seriam as indicadas no curso. No dia marcado uma cliente, mal se sentou na cadeira e vendo o frasco verde-florescente que a formadora deu à aluna, ficou assustada e disse para a aluna: “Não me vai pôr isso nas minhas unhas, pois não?” Ao que a aluna respondeu: “A senhora foi avisada e aceitou. Eu apenas sigo as ordens da minha formadora. Se quiser, vá falar com ela.” A senhora explicou então à formadora que não podia ir para o trabalho com as unhas daquela cor e quando foi avisada das condições não imaginou aquilo, tendo imaginado cores diferentes, mas não tão estranhas. A formadora foi categórica. Disse-lhe que ela tinha aceitado as condições e que deveria voltar para o seu lugar para a aplicação do verniz, o que a senhora cumpriu e passou toda a aplicação das unhas de gel, em cor verde-florescente, a chorar.

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Estas são histórias da vida de pessoas normais. Depois do nosso espanto, e em alguns casos até do nosso riso, perguntamo-nos porque não dizem estas pessoas, nestas situações: Não, não quero!

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1. A HISTÓRIA PSICOLÓGICA DO NÃO

Nove em cada dez dos meus clientes1 têm alguma dificuldade em dizer não. Raramente esta é a causa explícita que justificou a consulta. A maioria dos meus clientes não chega ao meu consultório e diz: “Não consigo dizer não.” Mas quando começamos a conversar e a estudar as suas vidas, e o que justificou aquela consulta, rapidamente percebemos que a dificuldade em dizer não está na origem, ou pelo menos é um importante fator, da procura de uma ajuda especializada. Os contextos em que cada pessoa não consegue dizer não variam bastante. Desde a dificuldade em terminar um namoro ou casamento, apesar de assumidamente esse relacionamento já não trazer qualquer gratificação ou crescimento ao casal; não dizer um ao outro o que pensam e do que não gostam, por medo de que o outro se zangue ou se vá embora; a mulher ou o homem que tem dificul1 Causa por vezes alguma estranheza a utilização do termo “cliente” para referir quem procura os serviços de um profissional de Psicologia. Este termo não apareceu ao acaso, mas depois de bastante discussão sobre o uso do termo “paciente” que se usava antigamente. Nos novos modelos de trabalho psicológico a pessoa que procura o psicólogo não é um ator passivo no processo, nem o psicólogo é o todo poderoso que tudo sabe e que tudo faz no processo psicoterapêutico. Pelo contrário, ambos colaboram no processo de mudança. E como este é um serviço prestado e convertido num valor em dinheiro é comum usar o termo cliente para nos referirmos a quem procura o trabalho de um psicólogo.

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dade em dizer ao companheiro ou à companheira que não lhe apetece fazer sexo naquele dia; o pai ou a mãe incapazes de dizer não a um filho pré-adolescente que insiste em dormir com um deles, separando assim os pais à noite para que um durma com ele; o pai ou a mãe que permite que o filho esteja horas a jogar videojogos porque “se eu lhe disser alguma coisa ele fica muito revoltado”; a falta de energia para dizer Não ao consumo de drogas por parte de um filho que, adolescente ou já adulto, ainda vive em casa dos pais; o casal que não consegue dizer aos pais dele ou dela que estão cansados dos almoços em família todos os fins de semana e continuam todas as semanas a sentir a mesma irritação; o aluno que está sistematicamente a emprestar os apontamentos aos colegas, sem ser capaz de lhes dizer Não; os filhos que não dizem que Não a pais demasiado intrusivos que procuram saber a todo o custo sobre a vida dos filhos mesmo que estes já sejam completamente autónomos, casados e estejam a viver nas suas próprias casas; o trabalhador que não diz Não ao patrão quando este o manda fazer tarefas que nada têm a ver com o seu contrato; etc., etc., etc. O que observo é que um elemento absolutamente fundamental na comunicação (e portanto na relação entre as pessoas) – a palavra NÃO – está demasiado ausente na linguagem. E devido a essa falta, muita gente sofre e é infeliz. Na psicologia, ou pelo menos na perspetiva em que a trabalho, entende-se que a atividade da mente é mediada pela linguagem. Quer dizer, a origem da atividade cons-

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ciente e a sua manutenção com padrões de boa adaptação e equilíbrio acontece através da linguagem, numa partilha mútua e comprometida com outros seres humanos. Através da fala, podemos comunicar de uma forma mais eficiente. Partilhamos ideias, o que permite que conheçamos o pensamento do outro, mas também que esse pensamento, atitudes e opiniões possam ser discutidos e eventualmente gerar novos consensos.

Porque falam os humanos? A pergunta parece não precisar de resposta, mas não é assim tão simples como isso. E olharmos para a resposta é certamente um modo útil de começarmos este livro, pois acredito que vai alertar o leitor para algumas verdades nas quais talvez nunca tenha pensado. Falar é muito mais do que dizer coisas. Ao falar, os humanos trocam e partilham ideias. Mas também se afirmam perante os outros, expressam a sua personalidade, e podem mesmo alterar os comportamentos de terceiros com quem se cruzam e relacionam. E porque ao falar também refletem, e desta forma conhecem-se a si mesmos, podem equacionar e até mesmo reformular a maneira como querem agir. Naturalmente, através desse processo, conhecem o mundo de uma forma muito mais esclarecida. Portanto, comunicam e pensam, e inventam um outro mundo onde pode-

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rão viver de uma forma diferente, tendencialmente uma forma melhor. Nenhuma outra espécie animal conseguiu um desenvolvimento tão grande. E estou convencido, juntamente com muitos outros cientistas, que grande parte desse desenvolvimento se deve exatamente ao aparecimento da fala. Sabemos hoje, já com bastante certeza, que a origem da fala não tem nada de genético. Naturalmente que a fala emerge e acontece no corpo humano, e que este precisa do genoma humano para se formar. Mas o genoma humano não tem informação para a fala. Desde 2001 que muito se escreveu sobre o foxp2, que se pensou poder ser o gene para a linguagem. Mas poucos anos depois da descoberta desta sequência no braço longo do cromossoma 7, também se descobriu que não era um gene de expressão, mas um fator de transcrição importante para o gene cntnap2, também este no cromossoma 7 um pouco mais à frente. O gene cntnap2 é importante para a aprendizagem de sequências motoras com grande exigência de precisão e harmonia, como acontece no caso da fala; mas como acontece também com o canto das aves canoras ou os movimentos de outras espécies como os peixe-zebra. A fala, para se estruturar no cérebro de cada humano, necessita da interação entre seres humanos falantes. Essa interação é fortemente motivada por um profundo desejo de comunicar, de ser entendido, e de que a mensagem que contém a sua intenção seja confirmada pela resposta

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contingente de um outro humano. Podemos dizer que esta relação está na origem da mente, e portanto do processo que transforma cada humano em pessoa. Para muitos, eu incluído, é mesmo a origem da Pessoa humana. Da mesma forma que o genoma humano é a nossa origem como humanos – membros de uma espécie a que os cientistas chamaram Homo sapiens –, a fala é a nossa origem como pessoas, uma vez que é por ela que se constrói a nossa personalidade, que nos conhecemos, e que começamos a agir como seres únicos, diferentes de todos os outros. Com uma personalidade própria. A construção da personalidade pela fala é possível graças a duas das suas características. A fala medeia a relação entre humanos – o sistema pragmático – e reformula o processo de pensamento – o sistema semântico. Tentando ser um pouco mais específico, não em exagero, mas apenas o necessário para que possa acompanhar o que lhe tento agora explicar, podemos olhar para a fala como estando organizada em vários níveis ou sistemas: > pragmático, que organiza a relação entre as pessoas; > fonológico, sons com significado dentro das

palavras; > morfológico, a forma como as palavras se modificam para originar diferentes significados; > sintático, a organização das palavras na frase; > semântico, com acesso ao pensamento.

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Todos estes níveis se originam e desenvolvem na relação entre seres humanos. O pragmático é uma evolução dos esquemas naturais, biológicos, de comunicação entre humanos. O semântico forma um reflexo do mundo, e será a base da personalidade da pessoa. Os três centrais – fonológico, morfológico e sintático – são sistemas específicos da linguagem. Formam-se para servir os outros dois. O modo de os servirem consiste numa reformulação, desde uma forma primitiva e natural, de comunicação e de pensamento, para níveis mais elevados a que chamamos cognitivos ou mentais. Só com este pequeno texto acredito que já lhe consegui transmitir que a linguagem tem um papel fundamental na vida de todos nós e dá um contributo único para o nosso bem-estar psicológico. De entre todas as palavras que um humano pode usar, a palavra Não tem um papel único na comunicação. Se está a ler este livro, certamente já passou bastante tempo desde a sua infância. Idealmente o Não já entrou na sua vida e já é capaz de o usar sempre que necessário. Ou talvez ainda não. O desenvolvimento psicológico nem sempre se relaciona com a idade no cartão de cidadão, e muitos processos psicológicos, típicos da infância, acompanham as nossas vidas na adolescência, na idade de jovens adultos e até mesmo na adultez tardia. Ou seja, o desenvolvimento psicológico não acontece apenas porque o tempo passa. É preciso que determinados processos de interação aconteçam de deter-

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minada forma. Quando não acontecem, o desenvolvimento psicológico fica à espera de uma nova oportunidade. A palavra mágica aqui é exatamente “uma nova oportunidade”. Tudo o que é psicológico pode sempre ser transformado em qualquer idade. Por isso mesmo, e também para si que já está na idade adulta, se muitas vezes lhe custa dizer o Não, este capítulo pode ser-lhe de grande utilidade. Perceber como alguma coisa surge e se desenvolve é sempre um excelente contributo se realmente pretendemos adquirir, transformar e integrar esse caminho para o desenvolvimento da nossa personalidade. Por tudo isto, a minha sugestão é que não salte a leitura deste capítulo. Ele vai ser-lhe útil para mais rapidamente entender os outros.

Porque precisamos do Não e qual a importância dessa palavra para o desenvolvimento? É opinião generalizada na sociedade que um bebé ou uma criança pequena que faz muitas birras “tem muita personalidade”. Aliás é esta a forma como a maioria dos pais se refere aos filhos difíceis: “Ele tem muita personalidade!” Nada mais errado! Um bebé, ou uma criança pequena, que faz muitas birras revela ainda acentuada incapacidade de interação; e porque na medida em que ainda está muito imaturo nas suas competências comunicativas, precisa de gritar e de usar a força para se afirmar. A arte da relação humana deve ser fluida, confortável, e sem grande

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desgaste nem desconforto, quer para quem se afirma quer para quem atende, compreende e respeita. O tempo dos choros e das birras é um tempo do animal biológico que é cada humano ao nascer. Confuso e confundido no novelo muito baralhado dos contactos humanos, o bebé e a criança pequena não sabem bem o que querem e o que não querem, do que gostam e do que não gostam, e por isso não têm ainda uma meta nem uma direção para a qual devam dirigir os seus comportamentos de apelo e de exigência. Por isso mesmo, muitas vezes parece que a sua vontade aponta numa direção e num sentido, e depois rapidamente muda. Não têm essa meta porque ainda nem se conhecem a si próprios como pessoas. E não se poderiam conhecer, porque na verdade ainda nem existem como pessoas, apenas como humanos que mais tarde se tornarão pessoas. O bebé e a criança pequena apenas sentem conforto ou desconforto. Quando predomina o desconforto, utilizam a força para produzir alguma alteração no ambiente que os rodeia, mas muitas vezes sem saberem orientar essa aplicação da força numa direção específica. Nem o poderiam fazer, porque desconhecem a direção a tomar para reduzir o desconforto. Gritos, birras, zangas, tudo serve para forçar a mudança. E muito do insucesso na conquista desse objetivo resulta da ausência de uma representação interna, uma ideia formada acerca da mudança adequada no ambiente que

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