Língua: pluralismos, dinamismos, poder e textualidade

* Maria da Graça Costa Val define textualidade como “o conjunto de características que fazem com que um ... Ver Redação e Textualidade (999). Seguindo...

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Língua: pluralismos, dinamismos, poder e textualidade Alemar Silva Araújo Rena

Resumo Para melhor lidar com textos em geral, questões como o universo contextual, estilo, jogos de estranhamento, funções da linguagem, a língua como poder, fatores de textualidade, entre outras, precisam ser estudadas e consideradas na práxis. Procurarei discorrer, neste artigo, sobre tais questões sob um viés ligado à realidade jornalística, sem, no entanto, ignorar reflexões em outros campos discursivos.

Palavras-chave: língua; jornalismo; fatores de textualidade.

Abstract In order to better deal with texts in general, issues such as context, style, language functions, language as a tool to impose power, and standards of textuality are to be studied in practice. In this article, I intend to approach these issues taking into consideration text production in journalism as well as in other discursive fields. Keywords: language; journalism; textuality factors.

Pluralismos, dinamismos e poder Ainda que soe estranho para boa parte dos falantes, a língua possui por natureza caráter mutante e impuro, ou seja, novas palavras são criadas ou ganham novos sentidos, estruturas sintáticas se alteram e vernáculos se misturam gerando, no mais das vezes, ampliações positivas. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, a língua, “[...] utilização social da faculdade da linguagem, criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela ao organismo social que a criou.” (2001, p. 1) Além de ser objeto sociocultural em constante mudança, ela traz ainda arraigados, em qualquer ponto de sua escala temporal de evolução, diversos sistemas linguísticos, o que faz dela um diassistema e a torna não um instrumento de comunicação com caráter de regulação interno único, mas marcado por variações que se dão no âmbito do espaço geográfico, das diferenças das camadas socioculturais e dos tipos de modalidades expressivas. Para se referir a essas variações surgem rótulos como Mestre em Teoria da Literatura pela FALE – UFMG, docente do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e do curso de pós-graduação Processos Criativos em Palavra e Imagem da PUC-MG. Desenvolve pesquisas nas áreas de comunicação, tecnologias e cognição, inteligência coletiva, comunicação em redes, autoria e obra no universo do digital. 

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“variantes regionais”, “nível culto”, “língua padrão”, “nível popular”, língua falada”, “língua escrita”, “língua literária”, “linguagem dos homens”, “linguagem das mulheres”, etc. Roland Barthes dizia “Se eu fosse legislador (...) eu encorajaria (...) a aprendizagem simultânea de várias línguas francesas, com funções diversas, promovidas à igualdade. (...) Essa liberdade é um luxo que toda sociedade deveria proporcionar a seus cidadãos: tantas linguagens quantos desejos houver.” (2004, p. 24) Se a língua se apresenta intrinsecamente multifacetada, incorporadora de sistemas e subsistemas diversos, não se deve falar em uma única utilização correta da mesma. Para Otto Jespersen, “falar correto significa falar o que a comunidade espera, e erro em linguagem equivale a desvios desta norma, sem relação alguma com o valor interno das palavras ou formas”, ou seja, em sentido lato, é uma questão de situacionalidade, um dos fatores da textualidade * (apud CUNHA e CINTRA, 2001, p. 6). A situacionalidade diz respeito aos elementos responsáveis pela pertinência e relevância do texto quanto ao contexto em que ocorre, isto é, uma adequação à situação sociocomunicativa. Extrapolando essa questão podemos fomentar, na esfera da interpretação textual, considerações mais pertinentes. Em diversas ocasiões, o receptor ingênuo encontra-se desarmado perante o discurso retórico rebuscado mal intencionado. Ao crer na lógica do “quanto mais estruturalmente complexo melhor”, ele é facilmente levado a avaliar positivamente um texto apenas pelo seu grau de complexidade formal. Ele para no nível de significação das palavras enquanto elementos autônomos, que ainda não se tornaram agentes produtores de significados em um dado contexto, e então põe em prática a sua lógica absurda, mas recorrente, de “complexo equivalente a aceitável, bom”. Essa se torna uma conjuntura comum quando o político usa sua habilidade com as palavras, adquirida pelos anos de discursos em palanques, para falar pouco, no plano do conteúdo, mas rebuscadamente no plano da forma, utilizando figuras de linguagem, torneios de estilo, léxico obscuro e desatualizado, etc. O ingênuo receptor se vê diante de uma solução: julgar o discurso por sua complexidade formal apenas – uma vez que ele não o assimilou –, e assim aprová-lo. Evidentemente, nem sempre o discurso portador de uma estrutura sintática ou lexical complexa apresenta ausência de informações no nível do conteúdo. Mas o discurso complexo e rebuscado mesmo imbuído de conteúdo pertinente e bem elaborado conceitualmente pode ser usado para exercer poder e manipulação. Gnerre nos lembra que no Brasil “os cidadãos, apesar de declarados iguais perante a lei, são, na realidade, discriminados já na base do mesmo código em que a lei é redigida.” (1998, p. 10) Uma enorme fatia da população brasileira economicamente desprivilegiada não tem acesso ou, pelo menos, tem uma possibilidade reduzida de acesso à norma padrão. Mas o bom uso dessa variante, entre outras coisas, é pré-requisito para a compreensão do discurso oficial e ascensão socioeconômica que, por sua vez, pode Maria da Graça Costa Val define textualidade como “o conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto, e não apenas uma sequência de frases”. Ver Redação e Textualidade (1999). Seguindo o mesmo caminho da autora, utilizo em minha discussão alguns fatores de textualidade estudados por Robert Alain de Beaugrande e Wolfgang U. Dressler em Introduction to Text Linguistics (1983). *

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permitir ao cidadão proporcionar uma educação de melhor qualidade a seus filhos. Como se vê, é um ciclo vicioso que só pode ser interrompido pela intervenção forte do Estado através de pesados investimentos em educação gratuita e eficiente, o que não é o caso brasileiro. Embora exista toda uma problemática que concerne à utilização da língua padrão, sua existência em si não deveria gerar conflitos. Pelo contrário, a linguagem expressa o indivíduo por seu caráter de criação, mas expressa também o ambiente social e nacional, por seu caráter de repetição, de aceitação de uma norma (grifo meu), que é ao mesmo tempo histórica e sincrônica: existe o falar porque existem os indivíduos que pensam e sentem, e existem “línguas” como entidades históricas e como sistemas e normas ideais, porque a linguagem não é só expressão (grifo meu), finalidade em si mesma, senão também comunicação, finalidade instrumental, expressão para outro, cultura objetivada historicamente e que transcende ao indivíduo (grifo meu). (COSERIU apud CUNHA e CINTRA, 2001. p. 7)

Eugenio Coseriu apresenta a língua enquanto uma dicotomia muito própria dela. O código linguístico é (1): ferramenta pela qual indivíduos se expressam; e (2): resultado de um processo social que, para fins pragmáticos, precisa de uma norma, é portanto “cultura objetivada historicamente e que transcende ao indivíduo ”. Daí a importância de livros de referência como gramáticas e dicionários que, ao buscar desempenhar a difícil tarefa de, ao mesmo tempo, refletir e documentar normativamente uma língua, são indispensáveis ferramentas para a projeção de um código linguístico padrão enquanto instrumento eficiente no processo de comunicação de uma nação. Essa dicotomia na qual se acha a língua vem apenas reforçar a asserção de que pensá-la exige a compreensão de suas complexas multiplicidades geradas por fatores políticos, sociais, econômicos e culturais. Como instância dinâmica e plural dentro de uma sociedade, a língua se apresenta multifacetada e passível de novas interferências em suas diversas instâncias, e o fato de se buscar uma norma é tão somente uma determinação mais ou menos pragmática e objetiva de uma sociedade.

Textualidade na invenção Dois fatores de textualidade ligados à questão da pragmática do discurso são a intencionalidade e a aceitabilidade. A intencionalidade concerne ao “empenho do produtor em construir um discurso coerente, coeso e capaz de satisfazer os objetivos que tem em mente uma determinada situação comunicativa.” (VAL, 1999, p. 10) A aceitabilidade se encontra no âmbito da recepção e diz respeito à “expectativa do recebedor de que o conjunto de ocorrências com que se defronta seja um texto coerente, coeso, útil e relevante, capaz de levá-lo a adquirir conhecimentos ou a cooperar com os objetivos do produtor”. ( ibid, p. 11) Não há fórmulas para a produção de textos coesos e coerentes e o que nos guia na busca pela coerência e coesão – dois outros fatores de textualidade que se relacionam com o material

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conceitual e linguístico do texto – não é sempre a língua padrão. Um estilo textual que soa coeso e coerente numa nota jornalística de um caderno de esportes pode não soar coerente na obra de Guimarães Rosa, e vice-versa. Mas é fato que quanto mais o leitor empírico – aquele que realmente vai ler o texto – se aproxima do leitor modelo* – o leitor imaginado como ideal pelo autor – mais chances de sucesso tem uma produção textual. No entanto, essa aproximação nem sempre é simples de ser alcançada. Por vezes, o autor deseja gerar tensão no processo interpretativo a fim de surpreender o leitor. Nesse caso, o seu texto vai se distanciar, intencionalmente e conscientemente, da “aceitabilidade”, gerando assim um estranhamento do leitor em relação ao texto. O autor controla este estranhamento para que se atinja um objetivo planejado. Mas a aceitabilidade pode se encontrar desestabilizada apenas em um primeiro momento, pois, após perceber a intencionalidade ali contida, o leitor rearranja sua posição perante o texto para completar, de modo já esperado pelo autor, o processo comunicacional, tornando-se, por fim, um leitor modelo. É muito comum que esses jogos de estranhamento e rompimento com a linguagem formal padrão partam de autores e jornalistas provenientes do meio literário e artístico. Eles trazem para a linguagem jornalística traços muito típicos da linguagem literária como a quebra de coesão formal, multissignificação, intertextualidade mais acentuada, ritmo forte, desapego pela norma padrão quando julgado apropriado, maior apuro estilístico e maior ênfase nas funções emotiva e estética da linguagem. Vejamos o texto “Barulho é música”, de Arnaldo Antunes, originalmente publicado no caderno Folhinha da Folha de São Paulo e posteriormente republicado no livro 40 Escritos: Barulho é música? Quem pode me dizer se barulho é. Música? E se as falas das pessoas falando forem. Canções? Velhas orelhas ouvem o rock e dizem: – Essa barulheira infernal não é. Música. Abaixe o volume! – berram as orelhas velhas. Mas não dá pra passar a vida ouvindo só canções de ninar. E se os carros na rua forem tão bons compositores quanto o vento nos bambus? E os sabiás? Música. Pode ser feita por alguém, mas também se faz. Um compositor chamado John Cage disse: “Os sons que a gente ouve são. Música”. O que a lavadeira faz com as roupas no tanque. O que o guarda noturno faz com seu apito. O que os dentes fazem com as batatas chips dentro da cabeça. O que fazem a chuva, o mar, a televisão, os passos, o piano, as panelas, os relógios. Tic tac tic tac. O coração. Bom bom bom bom. Uma música que não é brasileira, nem americana, nem africana, nem de nenhuma parte do planeta porque é. Do planeta todo. Fechando os olhos fica mais fácil da gente escutar. Ela. (2000, p. 39)

Nesta crônica-poema Antunes conversa com seu público sobre a possibilidade de música não ser somente o que se convencionou chamar de música, o que fora enquadrado em padrões rítmicos e melódicos previstos em métodos de música e *

Os conceitos “leitor modelo” e “leitor empírico” podem ser achados em Lector in Fabula (1979), de Umberto Eco.

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presentes em praticamente todas as rádios no mundo. O texto de Antunes teria apenas uma informação a passar, do ponto de vista do discurso objetivo e preso ao referencial: “barulho do dia a dia também pode ser música, dependendo do ponto de vista”. No entanto, ao quebrar com elementos coesivos formais – observe que o verbo “ser” não se comporta transitivamente em “quem pode me dizer se barulho é. Música” (1) como sugere a gramática da língua padrão –, Antunes busca outros campos de atuação que vão além da função referencial. As palavras são trabalhadas em dois níveis semânticos, artifício muito comum na poesia; ao mesmo tempo em que no plano do conteúdo ele faz uma pergunta, ele sugere uma resposta no plano da forma: “sim”, parece dizer ele, “se meu texto pode não seguir os padrões formais da língua quanto à transitividade do verbo ‘ser’, gerando um ‘barulho’ linguístico, então você, leitor, pode aprender a perceber a música do barulho”. Em outros momentos como “e se os carros na rua forem tão bons compositores quanto o vento nos bambus?”, Antunes brinca com a coerência externa ao texto, com a própria lógica de mundo do recebedor de sua mensagem, pois, ao ler essa frase o leitor se pergunta: “mas bambus são bons compositores?”. Na verdade, novamente o autor nos propõe uma questão e simultaneamente a responde; desta vez não no plano da forma, como em 1, mas no plano do próprio conteúdo: se a pergunta assume que bambus são bons compositores, destarte os carros também o podem ser. Antunes vai em direção oposta àquela da prática da escrita objetiva presa à função referencial da linguagem apenas, aquela que traz consigo o sentido explícito e em primeiro plano, que apresenta forma atrofiada e enrijecida, presa a fórmulas. Em seus textos, publicados em jornais, catálogos, revistas, CDs ou livros de poesia, Antunes busca um arranjo sofisticado que se dá no plano da função poética, tanto no nível semântico do conteúdo quanto da forma. Publicado no ambiente jornalístico, fica como paradigma senão de estilo (os textos informativos do jornal obviamente não podem seguir suas subversões), certamente de uma postura inventiva perante a língua que pode potencializar a comunicação e neutralizar a mesmice sufocante da objetividade pragmática.

Referências ANTUNES, Arnaldo. 40 escritos. São Paulo: Iluminuras, 2000. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2004. CÂMARA, Joaquim Matoso. Manual de expressão oral e escrita. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 134. CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1998. KOCH, Ingedore. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2001. VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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