O Advogado e a Sociedade

2 Mas já nesse tempo recuado, os advogados, ou melhor dizendo, os defensores, estavam sujeitos a certas regras de conduta, a que hoje chamamos deontol...

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O ADVOGADO E A SOCIEDADE *

A dicotomia do tema desta palestra – o advogado e a sociedade – quer significar que o advogado é um produto da sociedade onde se insere, e que esta pode e deve ser moldada pela advocacia. De facto, o tipo ou protótipo do advogado foi variando ao longo dos séculos e, por outro lado, os juristas, em geral, e os advogados, em particular, deram um contributo decisivo para tornar a sociedade mais livre e mais justa. Falo de sociedade no sentido político-civil que lhe deu Rosseau no Contrato Social, ou seja, o contrato pelo qual o homem trocou a sua liberdade natural, que é o direito do mais forte, pela liberdade civil, que decorre da vontade geral corporizada na lei. Hoje chamamos a essa sociedade Estado de Direito Democrático. E falo de advocacia no sentido históricoetimológico da palavra: de ad-vocatus, o que é chamado para junto de, em sua defesa, para pugnar pelo direito e pela justiça. O advogado foi sempre, desde os alvores da humanidade, um defensor e um protector (patrono), designação que ainda hoje se mantém. A sua função é tanto mais indispensável quanto mais frágil for a pessoa defendida. A matriz primordial do advogado é a de defensor e, por razões históricas, defensor dos fracos e dos oprimidos. Antes de ser uma profissão, a advocacia foi uma vocação, não apenas naquele sentido de “ser chamado”, mas no sentido de representar um acto de solidariedade com os acusados, em geral pessoas caídas em desgraça ou de baixa condição social que ficavam à mercê do chefe ou do senhor absoluto. Durante milénios, a defesa dessas pessoas que, por regra, não tinham capacidade de argumentar a seu favor, foi assegurada por homens respeitáveis e generosos, gratuitamente, sem outra compensação que não fosse o desejo de ajudar os fracos e servir a justiça. Sendo então o direito o produto da vontade ou do capricho do senhor, que assumia, muitas vezes ele próprio, as funções de julgador, esses nossos antepassados tinham de gozar de prestígio social e de crédito moral suficiente para serem ouvidos. Por isso o “advogado” antigo – estou a falar do Egipto, da Grécia, do Império persa e babilónico de há 3/4.000 anos – tinha como apanágio a honra, a respeitabilidade, a compostura e a eloquência, visto não lhes ser exigido o conhecimento do direito. Esse perfil moral continua a ser indispensável, e cada vez com mais rigor, porque a nossa sociedade está a esvaziar-se dos grandes princípios éticos e a mercenarizar a vida, incluindo a advocacia, como direi adiante.

2    Mas já nesse tempo recuado, os advogados, ou melhor dizendo, os defensores, estavam sujeitos a certas regras de conduta, a que hoje chamamos deontologia. Só podiam exercer a função homens livres e respeitáveis, devendo abster-se de considerações inúteis e de expedientes ilegais na defesa da causa. Contudo, houve um advogado, de nome Hypérides, que faltou ao seu dever e, justamente por isso, ficou na história como símbolo do trapaceiro, que é um tipo de advogado que ainda hoje existe, capaz de usar todos os truques para levar a água ao seu moinho. Esse tal Hypérides defendia uma cortesã, e vendo que o tribunal ia condená-la, mandou-a avançar para o centro do areópago e retirar o manto que lhe cobria os seios. Impressionados com a beleza da mulher e seduzidos pela oratória do defensor, os juízes absolveram-na. O incidente deu origem a uma lei para disciplinar a intervenção dos advogados, reforçando a proibição do uso de artifícios para obstruir a acção da justiça. O advogado não resiste, por vezes, à tentação ou à vaidade de ganhar a causa a todo o custo. Daí a necessidade de regulamentar a sua actuação. Essa velha lei está hoje corporizada no artº 852-a) do E.O.A.: “Não advogar contra o direito, não usar de meios ou expediente ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias...” Esta norma insere-se nos nossos “deveres para com a comunidade”, nos quais se incluem, como sabemos , o dever de recusar o patrocínio às causas injustas e de colaborar no acesso ao direito. Trata-se, pois, de um conjunto de deveres que relevam da função éticosocial da advocacia como “elemento essencial à administração da justiça”, na expressão do artº 208 da CRP. É também esse o espírito do art. 104º do Estatuto, que proíbe o contacto com testemunhas, dando corpo legal a uma velha praxe forense. No mundo antigo, o advogado, ou defensor-orador, como também era chamado, não cobrava honorários e considerava-se gratificado por ter contribuído para “proclamar o direito no país, impedir que o forte oprima o fraco... e fazer justiça ao oprimido” - estou a citar passagens do Código de Hamurabi, sec. XVIII A.C.. Em Portugal, quase 3.000 anos depois, os primeiros “advogados”, também não eram pagos e intervinham apenas por espírito de solidariedade e sentido de justiça. Ficaram conhecidos por “arrazoadores” ou “vozeiros”, por serem eles que alegavam as razões e emprestavam a voz aos que não sabiam defender-se. Até aqui falámos de advogado e advocacia em sentido impróprio, pois os defensores, causidici ou patroni, como também eram designados em Roma, não eram técnicos de direito, mas apenas pessoas de bem que se prontificavam, ou eram chamados, a ajudar, benevolamente, aqueles que precisavam de si. Porém, quando foram fundadas pelo Império romano, as primeiras escolas de direito e quando Justiniano institucionalizou a profissão (Sec.

3    VI), criando a respectiva Ordem, passou a justificar-se o pagamento de honorários pela assistência jurídica prestada por esses profissionais. Por tal motivo, os advogados ficaram sujeitos a uma rigorosa disciplina, sendo-lhes proibido, designadamente, abandonar a causa e cobrar, em caso de sucesso, uma quota-parte do valor do processo (pacto de quota-litis). Em Portugal a evolução foi semelhante. As Ordenações Afonsinas (1446) passaram a exigir que os advogados fossem “letrados” e se submetessem a um exame. As Ordenações Manuelinas vieram permitir o exercício da advocacia aos graduados em direito, sem necessidade de exame, e as Filipinas (1603) regulamentaram, com algum pormenor, a actividade forense, estabelecendo condições de acesso, incompatibilidades e outras regras deontológicas, em especial, proibindo a quota-litis e garantindo o segredo profissional. As Ordenações Filipinas estiveram em vigor até ao Código Civil, de 1867, que consagrou algumas normas relativas ao mandato judicial. Mas foi apenas com a publicação do Estatuto da Ordem dos Advogados, em 1984, que a profissão forense foi devidamente dignificada e regulamentada. A nossa Ordem foi criada pelo Decreto nº 11.715 de 12 de Junho de 1926, após uma longa e dificultosa luta dos advogados portugueses, que há muito reivindicavam um organismo que os defendesse e congregasse. O poder foi sempre avesso aos advogados e, por maioria de razão, a uma associação de classe, porque o poder tende a ser prepotente, e os advogados são, por essência, contra a propotência, as arbitrariedades e as injustiças. Criada a Ordem, era necessária uma regulamentação adequada dos seus órgãos e da função advocatícia. Contudo, o Estatuto Judiciário, de 1927, apenas continha um capítulo sobre o mandato judicial, não desenvolvendo suficientemente os direitos e deveres dos advogados e fazendo depender a Ordem do Ministro da Justiça. Só após a Revolução de Abril foi possível obter um Estatuto próprio, que reconheceu a dignidade e independência da Ordem dos Advogados, conferindo-lhe a natureza de associação de direito público, com delegação de poderes do Estado para regular o exercício da profissão, designadamente,nos seus aspectos formativos, deontológicos e disciplinares. O nosso primeiro Estatuto foi objecto de várias alterações, a última e a mais profunda operada pela Lei 80/2001, que trouxe algumas importantes inovações, de que destaco a criação dos Conselhos de Deontologia e a introdução da pena disciplinar de expulsão. Quando parecia que esta reforma tinha estabilizado e revigorado o nosso ordenamento profissional, eis que, menos de dois anos volvidos, se começa a trabalhar, por influência das grandes sociedades de advogados, na elaboração de um novo Estatuto à medida dos seus interesses. E foi assim que, sem discussão parlamentar e quando já estava anunciada a sua dissolução, a Assembleia da República aprovou, em 26 de Janeiro de 2005, a Lei nº 15 que contém o actual Estatuto.

4    Este diploma, como tenho escrito e dito repetidas vezes, constitui uma grave entorse aos valores éticos da advocacia, cria um novo paradigma de advogado e fere os valores identitários que deviam resistir à onda mercantilista que devasta, como um maremoto, os alicerces morais da sociedade. De facto, e segundo a lógica neoliberal, a advocacia está a ser equiparada a uma qualquer indústria, que produz uma qualquer mercadoria, sujeita às leis do mercado. Trata-se de uma verdadeira mercenarização que estabelece, como disse, um novo tipo de advogado. Dou apenas dois exemplos do que chamo o abastardamento deontológico do actual Estatuto. Primeiro: o artº 89, nº 3, alíneas h) a l) equipara, praticamente, a advocacia, para efeitos de publicidade, à actividade mercantil, permitindo a menção a assuntos profissionais em que o advogado tenha intervindo (as causas mediáticas), a cargos públicos ou privados exercidos e à composição e estrutura do escritório, certamente por meio de folhetos desdobráveis ilustrados, como fazem as agências de viagem. A parcimónia do artº 80 do anterior Estatuto, que apenas permitia o uso de tabuletas, a “inserção de meros anúncios nos jornais” e a divulgação do curriculo profissional e académico em publicações especializadas, foi substituída por uma permissividade que roça o impudor. O advogado pode agora publicitar que foi ministro, deputado, presidente de câmara ou de uma empresa magestática, aliciando dessa forma certo tipo de clientes, numa verdadeira concorrência desleal à esmagadora maioria dos colegas que nunca desempenharam tais cargos, mas que exercem a advocacia de forma honesta e competente. Este autêntico desbragamento fere, em meu parecer, o cânone deontológico da advocacia portuguesa e serve apenas os interesses das grandes sociedades de advogados, cujos sócios principais circulam habitualmente entre os seus gabinetes e os corredores do poder político ou económico. Sempre se entendeu que a dignidade da advocacia que, como já disse, deve ser uma verdadeira magistratura cívica, impunha um certo decoro, pois, como também já escrevi, o advogado deve tornar-se conhecido e ser procurado pela sua competência e probidade e não pelo engodo de campanhas publicitárias. É claro que a Ordem não pode ignorar a realidade actual e deve permitir a publicidade informativa pelos meios existentes, incluindo a internet. O problema não está nos meios mas nos conteúdos. E estes deviam referir-se apenas às circunstâncias e qualidades respeitantes exclusivamente à profissão, como o curriculo académico, a área preferencial de actividade ou a especialização. O segundo exemplo da concepção mercantilista da advocacia, perfilhada pelo actual Estatuto, respeita a honorários e visou igualmente satisfazer os interesses das sociedades de advogados que, habitualmente, trabalham para o governo ou para as grandes empresas. Os honorários sempre foram fixados por critérios de moderação, atendendo, sobretudo, “ao tempo gasto, à dificuldade do assunto, à importância do serviço prestado, às posses dos

5    interessados e à praxe do foro e estilo da comarca”, conforme estipulava o artº 65-1 do Estatuto de 1984. O artº 100 do actual, mantém, no essencial, estes critérios, tornando-os mais flexíveis pela introdução de um novo parâmetro que é o “grau de criatividade intelectual”, e eliminando os incisos “moderação” e “posses dos interessados”. Mas não é nesta alteração semântica, apesar de relevante, que está o pecado da gula, ou seja, a sofreguidão pelo enriquecimento sem causa, ou, para ser mais preciso, a visão mercenária da advocacia. O artº 101, depois de proibir e definir a quota-litis, que todos nós sabemos em que consiste, e que é interdita desde o Digesto romano, vem legalizar, no seu nº 2, um subgénero do pacto quota-litício que permite, além do mais, a “fixação prévia do montante de honorários, ainda que em percentagem, em função do valor do assunto”. Esta norma subverte os critérios de fixação de honorários estabelecidos no próprio artº 100-3, segundo o qual eles devem corresponder aos serviços efectivamente prestados, e é mais indecorosa que o tradicional pacto do quota-litis. De facto, enquanto neste, o advogado só cobrava honorários se ganhasse a causa, recebendo uma parte do seu valor, agora recebe sempre a sua percentagem do valor do assunto, independentemente do resultado! O tipo de advocacia que o actual Estatuto desenha, corresponde a um novo paradigma, talvez mais conforme com o mercantilismo reinante, apesar da falência das doutrinas neoliberais, mas desconforme com os valores éticos que são o timbre e o brasão da advocacia portuguesa. Chegou a altura da Classe se mobilizar para discutir uma revisão estatutária que revogue aquelas normas e proceda a outros ajustamentos, como já tive a oportunidade de sugerir ao Senhor Bastonário. É urgente reparar a entorse deontológica causada pela Lei 15/2005 e pelos seus inspiradores.

* Os advogados ajudaram, ao longo dos tempos, a moldar a sociedade, tornando-a mais justa e convivente, defendendo os fracos e os oprimidos, contribuindo para um mundo melhor. Os advogados foram, desde os primórdios, os verdadeiros e, por vezes, os únicos defensores do direito, da verdade e da justiça. Ainda hoje o nosso Estatuto consagra, como uma das mais importantes atribuições da Ordem, a defesa do Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como o dever de colaborar na administração da justiça (artº 3º- a).

6    Muitas leis injustas foram revogadas ou alteradas pela acção persistente dos advogados e da nossa Ordem, como por exemplo, o regime das escutas telefónicas ou da prisão preventiva. A jurisprudência também tem procurado adaptar a lei à realidade social. Mas não devemos esquecer que as decisões judiciais são proferidas em função das alegações das partes, elaboradas por advogados, o mesmo acontecendo com a declaração de inconstitucionalidade de certas normas. O advogado, consciente da sua função ético-social é, assim, um verdadeiro “servidor da justiça e do direito”, como o definia o artº 76 do anterior Estatuto. Esta formulação desapareceu, infelizmente, do actual Estatuto, que apenas o considera como “indispensável à administração da justiça” (artº 83.1) expressão que, em nosso entender, aligeira essa dignidade de servidor da justiça, aliás, a única e honrosa “servidão” que impende sobre os advogados. Esta concepção do profissional do foro, ao serviço do direito e defensor dos mais fracos é, apesar do anedotário conhecido sobre a classe, uma ideia antiga. Jerónimo da Silva Araújo, escritor forense do Séc. XVIII, escreve no seu livro “O Perfeito Advogado”: “O louvável ofício dos advogados é tão antigo e geral que foi sempre respeitadíssimo em todas as nações; e necessariamente, porque é necessidade do género humano que exige este múnus. Com efeito, se não houvesse advogado, muitos pereceriam, ou expostos às calamidades ou à última indigência, ou entregues sem defesa ao último destino (...). Porém, com o auxílio dos advogados e a eloquência dos oradores, é dado a cada um o seu direito, e cada um toma o que é seu.” É esta imagem ou paradigma que devemos honrar e defender, evitando que a profissão caia no mercantilismo que ameaça subverter a sociedade. Fazer da advocacia uma advocatura ou uma magistratura cívica como disse atrás, é um imperativo moral da classe, se quisermos honrar o passado e ser dignos do futuro. O nosso ofício não é igual a outros, embora todos sejam igualmente dignos. Os advogados exercem, como escreveu Afonso X, o sábio, no Séc. XII, um “oficio público”, porque estão ao serviço do direito e da paz social. Defensor, por vocação e condição, da verdade e da justiça, o advogado que cumpra os seus deveres deontológicos é, nessa medida, um garante do estado de direito e da cidadania. É o advogado que defende, contra todos os arbítrios e prepotências, a nossa honra, a nossa liberdade, a nossa fazenda e os nossos interesses legítimos. É na fidelidade a essa vocação histórica – no duplo sentido de ser chamado e de responder à chamada – que podemos falar da “alma da toga”, para usar a feliz expressão de Osório y Galhardo, que dá o título a um livro seu. E assim, o autêntico advogado, no sentido ético e etimológico, deve ser um cidadão respeitável, livre em sua consciência, de “alta e escrupulosa probidade”, como o definiu o

7    decreto de 1926 que criou a nossa Ordem, e que, ao lutar pela justiça – Suum quique tribuere – ajuda a construir uma sociedade mais livre, justa e fraterna. Ao assinalarmos o dia do advogado devemos recordar a nobreza da sua origem, a sua marca ética e o seu relevante papel social. Pode dizer-se que o mundo mudou, que estamos em plena globalização e que os advogados devem adaptar-se aos novos tempos. Mas eu pergunto – e termino com esta reflexão: em vez de nos adaptarmos, não devíamos antes, para preservar a dignidade e a eminente função social da advocacia, defender o nosso reduto do mercantilismo dominante? * Algumas ideias e formulações desta conferência foram retiradas dos meus livros “Iniciação à Advocacia”, 9ª Edição, e E.O.A. anotado, 12ª Edição. Portalegre, 18 de Maio de 2009