Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas ISSN 2238-‐‑1627, Ano V, No 9, fevereiro de 2015
BOAS CIDADES, VIDAS MELHORES – COMO A EUROPA REDESCOBRIU A ARTE PERDIDA DO URBANISMO GOOD CITIES BETTER LIVES – HOW EUROPE DISCOVERED THE LOST ART OF URBANISM. Peter Hall & Nicholas Falk. London: Routledge, 2014 (kindle edition) Resenhado por Selene Herculano
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Peter Hall, autor de dezenas de livros, é mais conhecido entre nós pelo seu Cidades do Amanhã, referência obrigatória para os estudantes de urbanismo e de sociologia urbana. Ele é professor da cátedra Bartlett de Planejamento e Regeneração na Universidade de Londres. Nicholas Falk, seu colaborador neste livro, é Diretor e fundador do URBED -‐‑ Urbanism, Environment and Design (1976), dedicado à regeneração urbana (algo diferente dos meros projetos de renovação, que se reduzem à gentrificação). Neste livro que ora resenhamos os autores se debruçam sobre boas práticas de planejamento e de gerenciamento urbano realizadas recentemente em algumas cidades europeias que resolveram enfrentar as disparidades regionais crescentes que se refletem no mundo urbano contemporâneo: a mudança de um setor manufatureiro residual para a produção de serviços avançados; a escassez de habilidades científicas de alto nível e de tecnologia de nível médio e um excesso de trabalhadores subqualificados, necessitados de educação e de readaptação funcional, a desigualdade social. Peter Hall visitou locais pela Europa, ali consultou seus especialistas e nos trouxe casos de boas práticas escandinavas, alemãs, francesas e dos Países Baixos para compará-‐‑las com a realidade britânica, a fim de “ver o que ocorreu de errado em seu UK (Reino Unido). O livro está dividido em três partes: na primeira, intitulada Enfrentando os Desafios“ (Facing the Challenges) são descritos os problemas urbanos e as más soluções tentadas na Inglaterra, que, segundo ele, havia seguido o modelo californiano até o fim dos anos 90, com o predomínio do padrão de dependência ao automóvel e suas consequências: impacto ambiental e energético negativos e imposição injusta dos custos sociais pelos proprietários de carros aos demais; fracionamento do tecido urbano e êxodo em direção a subúrbios. Hall adota o
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termo cunhado por Pierre Veltz para descrever a Inglaterra e uma tendência também geral: a “economia de arquipélago”, onde ilhas de crescimento econômico – core cities, international hubs, research centres – se inserem em um vasto mar de estagnação, desemprego e declínio, onde uma black economy de drogas, crime e prostituição emerge. O que não teria funcionado nas cidades do UK? Neste ponto Hall resenha uma série de pesquisas e condensa alguns dados interessantes. Alguns itens “suspeitos” desse mau funcionamento são arrolados de início: 1o – o ”vício” (addiction) da propriedade imobiliária. Como contraste, é lembrado o bom exemplo da Alemanha, poupada na crise de 2008 porque ¾ da sua população era locatária; 2o – os banqueiros, pois onde os bancos concedem muitos empréstimos através de hipotecas houve crash imobiliário; 3o – os donos de terras, pois a falta de oferta de terras eleva seu preço, eles as retalham em menores unidades ou as mantém sem uso, como reserva de valor, o que faz existir áreas abandonadas no meio urbano: os brownfields. Uma das consequências disso é que as construções passam a avançar sobre áreas verdes (greenfields), expandindo o perímetro urbano. O 4o suspeito são os incorporadores (builders), que preferem construir unidades de menor qualidade para solteiros ou casais enquanto que um número crescente de famílias com três e mais filhos fica desatendido. O 5o suspeito são os planejadores, que não incentivam construções no norte da Inglaterra para minorar o peso absoluto do desenvolvimento em Londres, no sudeste e sul e cujo programa de renovação de vizinhança (Neighbourhood Renewal Programme) não vem tendo sucesso em enfrentar o êxodo urbano, a polarização social e os bolsões étnicos. Em subúrbios como Benchill em Manchester os jovens reclamam de nada a fazer e suas ruas se tornam perigosas à noite. Tornar tais localidades urbanamente sustentáveis implica em torná-‐‑las locais onde as pessoas queiram realmente viver, o que significa atrair investimentos para lhes dar base econômica, capital social e infraestrutura física. Nas cidades desindustrializadas ao norte da Inglaterra e nas periferias célticas trabalhadores subqualificados residem em habitações precárias. A oferta de novas habitações caiu ao longo do tempo: de 425 mil em 1968 para 200 mil ao ano em 2010, após atingir o nível mais baixo 173 mil em 2001. Isso teria provocado uma elevação no preço da moradia em 2,5% ao ano, enquanto que na França, Suécia e Alemanha os preços declinaram. A segunda parte do livro tem por título “Aprendendo com as cidades-‐‑modelo: um tour pelo século XXI” (Learning from model cities: a twenty-‐‑century grand tour). Na Alemanha, visitou as cidades de Hamburgo, Berlim, Dortmund, Kassel,
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Friburgo e Leipzig; na França, Montpellier, Grenoble e Estrasburgo; nos Países Baixos Amsterdam, Vinex, Almere, Amersfort, Ypenburgo. O foco fica com o crescimento econômico alemão, o exemplo das habitações e comunidades holandesas, o transporte sustentável francês, a conservação ambiental escandinava. São descritas: a transformação do porto de Hamburgo em uma economia do conhecimento; a presença de universidades reinventando a economia e reanimando as cidades de Dortmund e Kassel. Na França, a transformação de Montpellier em um polo técnico (technopole). Na Escandinávia, a mudança para um trânsito orbital ligando as cidades-‐‑satélites de Estocolmo entre si, onde a ênfase antes era a ligação radial, e a renovação do miolo urbano. Interessantissimo o exemplo do modelo de gestão integrada de uma metrópole transnacional Copenhagen-‐‑Malmó (ligando Dinamarca e Suécia). E finalmente, o destaque à cidade que fez tudo isso ao mesmo tempo: Friburgo, inovando em mecanismos colaborativos. Os bons exemplos europeus de renovação urbana relatados ao longo do livro criaram empregos, diminuíram o consumo energético e as emissões poluentes, reciclaram resíduos, construíram habitações e, last but not least, geraram vidas urbanas afluentes. Nessas cidades Hall enumera os cinco desafios que vem sendo bem enfrentados: 1o -‐‑ reequilibrar a economia urbana criando bons empregos; 2o -‐‑ construir novas habitações em quantidades adequadas e compatibilizando as demandas com os bons padrões urbanos; 3o – ligar pessoas e lugares, integrando o uso do solo com o planejamento dos transportes; 4o – viver com recursos reconhecidos como finitos; 5o – consertar a “máquina deteriorada”(the broken machinery), ou seja, a agência administrativa, juntando os organismos públicos e privados em esforços comuns, definindo novos mecanismos de gestão para mudar as cidades. A terceira parte se intitula “Lições da Europa: o que e como (Lessons from Europe). Seus estudos comparados mostram que as cidades menores tem mais facilidade em fazer a transição para uma nova economia, especialmente quando sediam universidades e centros de pesquisa, ao contrário dos grandes centros urbanos que herdaram velhas indústrias. Hall enfatiza que uma das questões mais interessantes em política pública atualmente diz respeito a como se dão as relações sinérgicas entre as maiores cidades, que são centros financeiros, com as cidades desindustrializadas e com os centros urbanos menores. Ele comenta algumas iniciativas, tais como museus e galerias que são criados em cidades menores para incrementar o turismo; centros de mídia que são transferidos (como a BBC em 2011, saindo de Londres para
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Salford). Na Alemanha e na França Hall salienta o sucesso da escolha da adoção de manufaturas avançadas, tais como equipamentos óticos e de ferrovias e mesmo o setor joalheiro em Birmingham para inserção em uma economia globalizada. A chave é concentrar residências, áreas de trabalho e de amenidades em um mesmo cluster, de forma a diminuir distâncias e que estas possam ser percorridas de bicicleta e por transporte público. O multiuso e a proximidade da diversidade de rendas e de pessoas na mesma localidade é a chave. O incentivo a fornecedores locais de alimentos, a sistemas de agricultura doméstica, em uma política de segurança alimentar autossuficiente e resiliente é a outra chave. O desafio da sustentabilidade enfoca o sistema energético e hídrico das habitações, o reuso de materiais na construção, a redução da produção do lixo e repensar sua destinação final. Segundo Hall, a Inglaterra aprendeu a lição: em 2008 o governo inglês anunciou a construção de quatro eco-‐‑towns pioneiras: Whitehill-‐‑Bordon, St Austell, Rackheath e North West Bicester, de zero carbono, a realizar-‐‑se após 2016. Há ainda o Programa Verde (Green Deal Programme), de retrofit, criado em 2010 e que incentiva proprietários e inquilinos a reformas que reduzam o consumo de energia, pois o estoque de casas inglesas é em sua maioria anterior a 1945, sem maior isolamento térmico e que ainda utilizam aquecimento a gás. Uma tabela compara a situação do lixo na Europa e no Reino Unido em 2008, com ligeira desvantagem para este último: LIXO EU UK Reciclagem 27% 26% Compostagem 18% 14% Incineração 20% 11% Aterro sanitário 38% 48% Lixo per capita/ano 513 kg 529 kg A água é fator decisivo nas eco-‐‑towns do Reino Unido, com políticas de redução de seu uso doméstico, que era de 145 litros/dia per capita em 2000, com a meta de baixar para 130 até 2035, o que economizaria 440 milhões de litros/dia. Em 2011 o DEFRA (Department for the Environment and Rural Affairs) baixou o
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equivalente a uma Portaria que permite rever o Water Act de 2003, permitindo-‐‑se rever licenças dadas e que possam causar danos a rios, lagos e aquíferos. Que lições podemos tirar dos exemplos descritos por Hall? Por vias transversas nossas metrópoles, como o Rio de Janeiro, tem uma experiência de multiuso e de proximidade da diversidade de pessoas e rendas, como em Copacabana (embora esta ainda seja citada como um exemplo de erro urbano que o padrão Barra da Tijuca tentaria rever, mas que vem se provando tão deletério quanto ultrapassado, baseado no automóvel e no zoneamento restrito). Outra vivência de multiuso e de proximidade do diverso está na presença das favelas em nosso tecido urbano e em sua própria vida cotidiana interna, cujo dinamismo econômico começa a ser percebido. (Lembro-‐‑me do antropólogo Ralph Turner, visitando nossas favelas nos anos 60 e sua grande “solução” de então, a Cidade de Deus. Disse ele: “sou apresentado a soluções que são problemas e vejo realidades apresentadas como problemas e que são soluções). No entanto, vale enfatizar que essas minhas observações não são panglossianas: não, não estamos no melhor dos mundos. Nossas favelas chafurdam no lixo e convivem com esgoto a céu aberto. Nossos rios urbanos são cloacas. Quanto à água, se o Reino Unido se esforça para baixar seu consumo per capita para 130 litros/dia (em torno de 6 baldes) a ONU e seus Objetivos do Milênio (?!) pautaram como meta realizar o direito ainda irrealizado de 42 litros/dia a cada habitante do planeta (2 baldes). De toda a descrição minuciosa de Hall, retive como bom exemplo a ser perseguido as cidades de Dortmund, Kassel e Montpellier, que centraram sua vida econômica em torno de suas universidades e centros de pesquisa. Fico lembrando do campus tão negligenciado da UFRRJ no pobre município de Seropédica, o que poderia vir a ser! Outro bom exemplo é a da gestão integrada de duas cidades conurbadas e que estão em países diferentes, Copenhagen e Malmó! Dois países conseguem fazer uma gestão urbana integrada e inovadora enquanto que aqui municípios limítrofes no mesmo estado da federação sequer conseguem gerenciar seus rios, seu transporte e seu lixo.