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52 JAEIRO EVEREIRO 201 Guerra dos lugares Raquel Rolnik Boitempo Editorial, 424 p., 2015. UM LUGAR NO MUNDO Com o instigante título, Guerra dos lugare...

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LIVROS

TRAZER LUZ AOS VELHOS PARADIGMAS

RUMOS – O que a “Radiografia do Brasil contemporâneo” trará de novo sobre a sociedade brasileira? Em qual momento a pesquisa se encontra? JESSÉ SOUZA – A pesquisa reflete essa tentativa de termos acesso à população brasileira, especialmente a população que é menos conhecida, que é menos privilegiada. São cerca de 70% da população do Brasil que estão abaixo da classe média real. São eles que queremos conhecer melhor; por exemplo, existem privilégios que são moldados dentro da instituição familiar, que parecem naturais, mas não são, como a capacidade de concentração. Ela é um privilégio de classe, a classe média tem. E boa parte da população brasileira mais carente não tem. E, talvez, a ausência dela seja uma das causas mais importantes para que ainda hoje uma porção significativa dos pobres saia da escola como analfabetos funcionais, porque se precisa dessa capacidade de concentração para poder aprender efetivamente. Então, estamos tentando entender melhor essa relação, da socialização familiar, entre a escola e o mercado de trabalho. RUMOS – E em que momento nós estamos da pesquisa? Já é possível adiantar? SOUZA – A pesquisa está avançada. Ela tem duas fases. A primeira é de um levantamento geral do Brasil inteiro sobre todas as classes e as extrações destes aspectos que iremos examinar. E essa 50

Divulgação

Nesta entrevista de abertura de “Livros”, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé Souza, faz um convite à reflexão sobre os velhos paradigmas norteadores da sociedade brasileira, explicados em sua última obra. E também apresenta o andamento da mais recente pesquisa do Instituto.

primeira fase está em dia, fico muito contente com os resultados, que estão espetaculares. Essa é uma pesquisa extraordinária que está acontecendo e vamos tê-la pronta em março. Na segunda fase, ela vai ter outros focos. RUMOS – A próxima questão é pensar que ter um banco de dados, esse rol de informações, irá auxiliar no desenho de novas políticas ou na reorientação delas. É fundamental ter informações nesse grau de profundidade e confiabilidade para orientar esse momento pós-ajuste fiscal? SOUZA – Sem dúvida. Até porque é exatamente o tipo de conhecimento que é necessário agora, pois, por exemplo, os programas sociais têm uma especificidade muito grande. E essa especificidade significa que não pode só ser medida em termos monetários. Além da transparência de renda, os programas implicaram em expansão de horizontes familiares. Há indicativos de que as famílias mais pobres passaram em investir mais em educação, o que é um item muito importante porque o capital econômico é concentrado em todos os lugares, mas o que vai mudar os países, ou seja, se eles vão ser mais igualitários, ou mais desiguais, como o nosso, é o fato de que o capital cultural vai ser democratizado ou não. O que o capitalismo consegue democratizar nunca é o capital econômico, isso fica sem-

Estamos tentando entender melhor essa relação, da socialização familiar, entre a escola e o mercado de trabalho.

JANEIRO | FEVEREIRO 2016

pre em poucas mãos, mas ele pode democratizar o capital cultural. Então, poderemos avaliar esses programas por esse lado: de que maneira essa ação está transformando o horizonte das famílias mais pobres, ou seja, elas estão percebendo o mundo e o seu lugar nele de outro modo. Isso é muito mais do que ter dinheiro. RUMOS – No livro, o senhor propõe uma leitura que está separada do que tradicionalmente é dito e feito dos paradigmas do pensamento social brasileiro. E o senhor mostra que esses conceitos estão incorporados no dia a dia das pessoas, que as repetem de forma irrefletida. De que forma esse paradigma que saiu do campo da academia não ficou restrito lá, influiu no desenho das políticas públicas e no processo de desenvolvimento do Brasil até agora? SOUZA – Ele influiu muito, bastante. Isso é outra coisa que não se percebe normalmente porque as ideias normalmente ficam invisíveis, o que estimula, digamos assim, uma cegueira geral. As ideias são muito importantes, no fundo. As ideias não são importantes aqui, mas elas garantem a compra dos interesses poderosos. Normalmente, pensamos que o dinheiro é tudo, mas no fundo são as ideias dominantes que dizem a forma como você vai usar o dinheiro. Então, as ideias são fundamentais nisso. Elas são muito específicas e singulares, ou seja, o jornalista está no jornal, ele pode ter até uma opinião pessoal, mas ela vai ser uma variação sobre aquilo que já é, sobre aquela ideia que já é dominante naquele tema, então o jornalista repete no fundo as ideias dominantes, como o professor na universidade, o juiz na sua causa. O que aconteceu é que temos no Brasil uma luta de classes que é muito escondida, porque é encoberta. Nós somos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo. Mas a sociedade se acomodou, acha isso normal. Essa questão é muito assustadora: que a desigualdade não seja obviamente a grande questão a ser combatida no Brasil. Com isso se monta um mundo que só existe na ideia com nenhuma relação com o real para que se possa manipular o resto da sociedade. No funRUMOS

do, há uma luta de classes que está desconhecida. A classe média, por exemplo, corresponde há 20% da população, no máximo. No fundo, a classe média é explorada sobre todos os modos, por mecanismos estatais, ou por mecanismos de mercado por essa meia dúzia de ricos, mas ela não percebe isso, ela vê, considera que o mal está no Estado. RUMOS – Seria o caso de pensar num novo paradigma para entender o Brasil? Como construir, ou como abrir esse caminho para essa reflexão ampla desses mitos que estão incorporados? SOUZA – A dúvida é essa. O meu caminho é pensar que devemos pôr a luz àquilo que estava escondido. Então, todas essas estruturas de dominação precisam ser explicitadas. Na minha visão, esse aspecto é o mais importante. A questão central entre nós é a desigualdade. Por que todos os problemas centrais que temos advêm dela: a insegurança, a má qualidade dos serviços, a baixa produtividade. E essa é a questão econômica, social e política mais importante, não tem nenhuma outra. RUMOS – O senhor acredita, agora à frente do Ipea, que existe algum instrumento que permita ao instituto mudar o modo como o Estado brasileiro é visto? Este é um papel que cabe ao Ipea? SOUZA – O Ipea tem que assessorar o governo. Ele atua do melhor modo possível e tem a função institucional de promover os seus debates importantes para o desenvolvimento brasileiro. E esse desenvolvimento brasileiro é em todos os níveis: desenvolvimento social, político e econômico. É com o aprofundamento dessa agenda que o país deve e pode se debruçar. Essas questões mais essenciais são uma agenda fundamental.

Nós somos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo. Mas, a sociedade se acomodou, acha isso normal. Essa questão é muito assustadora: que a desigualdade não seja obviamente a grande questão a ser combatida no Brasil.

A Tolice da Inteligência Brasileira Jessé Souza Casa da Palavra, 272p., 2015. . 51

O NASCIMENTO DE UMA POTÊNCIA

China em Transformação Marcos Antonio Macedo Cintra, Edison Benedito da Silva Filho e Eduardo Costa Pinto (orgs.) Ipea, 602 p., 2015.

O que fez a China se tornar a segunda maior economia do mundo? As variadas transformações ocorridas naquele país são examinadas em detalhes por professores de diversas universidades brasileiras, sob a coordenação de Marcos Antonio Macedo Cintra, Edison Benedito da Silva Filho e Eduardo Costa Pinto e publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É uma obra robusta que aborda desde questões referentes à industrialização, à inserção nas cadeias produtivas globais, à gestão da moeda e do crédito, passando pelo aparato modernizante. Ao escrever sobre o livro, o professor associado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Ernani Teixeira Torres Filho, destaca que o texto “estimula o debate sobre as principais

características do modelo de desenvolvimento chinês e as céleres transformações ocorridas no socialismo de mercado, ou uma das formas existentes de organização do capitalismo na China contemporânea. Este debate entre funcionários públicos, formuladores de políticas, empresários, sindicatos, partidos políticos, acadêmicos, jornalistas e estudantes pode ser frutífero para alimentar a discussão sobre um novo desenho de desenvolvimento para o Brasil, projeto que deverá implicar mudanças na inserção internacional do nosso país, nas dimensões comercial, produtiva e financeira.” A obra foi publicada em versão digital e está disponível na internet para download gratuito por meio do endereço eletrônico do Ipea: http:// migre.me/t8S9h.

UM LUGAR NO MUNDO

Guerra dos lugares Raquel Rolnik Boitempo Editorial, 424 p., 2015. 52

Com o instigante título, Guerra dos lugares, a nova obra da urbanista Raquel Rolnik, reúne as reflexões posteriores ao mandato da autora como relatora para o Direito à Moradia Adequada da ONU. No livro, ela aborda o processo global de financeirização das cidades e seu impacto sobre os direitos à terra e à moradia dos mais pobres e vulneráveis. Dividido em três partes, Rolnik, no início, descreve e analisa as transformações recentes nas políticas habitacionais e fundiárias em vários países do mundo, no marco da expansão de uma economia neoliberal globalizada, controlada pelo sistema financeiro, que provocaram um processo global de insegurança da posse. Na terceira, a urbanista explora a

mesma questão, com foco no Brasil. A originalidade da obra reside no enfoque global do fenômeno, investigado a partir da vivência direta de uma autora brasileira olhando as condições de moradia no mundo. A leitura da evolução recente das políticas habitacionais e urbanas no Brasil – inclusive na era Lula – à luz desses processos globais ajuda a pensar as especificidades e as diferenças da crise urbana no país. Também é original o entrelaçamento entre as políticas habitacionais e a política urbana, articuladas pela autora através da construção da hegemonia da propriedade individual e da transmutação dos imóveis em ativos. Ainda sobre essa temática, Rolnik escreveu O que é cidade e A cidade e a Lei, dentre outras obras.

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