1 Alimentar-se ou nutrir-se em um “comedor social” na Espanha

Alimentar-se ou nutrir-se em um “comedor social” na Espanha: reflexos sobre a comensalidade1. Fabiana Bom Kraemer, UERJ / RJ, Brasil. Mabel Gracia Arn...

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Alimentar-se ou nutrir-se em um “comedor social” na Espanha: reflexos sobre a comensalidade1 Fabiana Bom Kraemer, UERJ / RJ, Brasil. Mabel Gracia Arnaiz, URV, Espanha. Resumo: Esse trabalho situa as mudanças nas práticas alimentares das pessoas em situação de vulnerabilidade social e afetadas pela recente crise econômico-financeira espanhola. A pesquisa foi realizada em um ‘comedor social’ na cidade de Reus, Catalunha, Espanha. A análise se refere especificamente às observações do comportamento dos comensais durante o horário do almoço e ao uso das técnicas de grupo focal e entrevista. Evidenciamos que os coordenadores do projeto valorizam o ritual das refeições como uma forma de favorecer a solidariedade e a convivialidade, mostrando-se a comensalidade um sentido especial de acolhimento. A acolhida é percebida pelos comensais por intermédio do trabalho dos voluntários. No entanto, os comensais relacionam negativamente a comensalidade com a perda da autonomia na decisão alimentar. Como o ‘com quem e onde comer’ no comedor social não é uma escolha dos comensais, o ato de comer permanece um interesse pessoal e uma satisfação individual, observando-se uma individualização do comer durante o momento da refeição. ‘O que comer’ também não é uma escolha do comensal. Para ele o cardápio caracteriza-se por menor consumo de carne, frutas e verduras e maior consumo de ‘carboidratos’. Ao mesmo tempo, diante da situação de pobreza há uma resignação frente a comida servida. O comensal, desta maneira, apesar de sentir-se amparado, apresenta uma perda da referência cultural, da qualidade nutritiva da alimentação e do poder de tomar decisões sobre a sua alimentação. Palavras-chave: comensalidade, práticas alimentares, assistência alimentar.

Introdução Nos últimos anos, uma série de mudanças sociais tem interferido nas transformações do comportamento alimentar na sociedade ocidental e os debates sobre a alimentação contemporânea têm procurado responder quais as consequências destas modificações, como elas estão acontecendo e em que direção estão caminhando.

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Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Estudos sócioantropológicos situam na chamada modernidade alimentar os impactos que a alimentação tem sofrido, em função das transformações sociais, econômicas e culturais ocorridas na sociedade contemporânea. Por uma parte, caracteriza-se pela fartura no abastecimento alimentar e aumento na produção e consumo dos alimentos processados industrialmente, maior conhecimento científico sobre a composição dos alimentos e multiplicação dos discursos e normas dietéticas. Por outro lado,

estas

transformações

têm

acarretado

nos

comensais

a

flexibilização

(desestruturação) nos modos de comer, a homogeneização daquilo que se come, uma má nutrição e uma insegurança em relação aos componentes dos alimentos (FISCHLER 1995; POULAIN, 2004; CONTRERAS E ARNAIZ, 2011). No âmbito espanhol, estudos estabelecendo o nexo causal entre o processo social de modernização da sociedade e as transformações alimentares demonstram uma tendência para uma nova estrutura do comportamento alimentar com uma simplificação da estrutura alimentar (que na Espanha seria um prato único e sobremesa), uma alteração do horário e tipo de refeições que são realizadas em função das atividades laborais e escolares e uma medicalização da alimentação (CONTRERAS, 2002; DÍAZ MENDES, 2005; GRACIA ARNAIZ, 2005). Gracia Arnaiz (2005) ainda nos lembra que nos países industrializados a maior acessibilidade aos alimentos contrasta com a persistência de um consumo diferencial e socialmente desigual, em função do nível de renda das pessoas, indicando que para muitas pessoas os problemas da modernidade alimentar não são os da superabundância. Dados da Food and Agriculture Orgnization of the United Nations informam que foram ao redor de 842 milhões de pessoas no mundo que sofreram de fome crônica no período compreendido entre 2011 e 2013 (FAO, 2013). Assim que nos parece que a democratização do consumo alimentar não está sendo real e as diferenças alimentares relacionadas com as variáveis socioeconômicas continuam existindo. Nesta direção, procuramos compreender os efeitos das mudanças macrossociais na alimentação, tendo como referência os efeitos da adoção de uma política econômica neoliberal - a globalização, e os processos de cronicidade do desemprego, produção de miséria e pobreza por ela favorecidos (SANTOS, 2006). Desta forma, esse trabalho situa as mudanças nas práticas alimentares cotidianas das pessoas em situação de vulnerabilidade social e afetadas pela crise econômico-financeira instaurada oficialmente no ano de 2008, na Espanha.

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A Espanha vem apresentando, desde então, um grande número de pessoas em situação de pobreza transitória ou recorrente (EUROSTAT, 2013) direcionando-se a uma cronicidade. Segundo dados de Cáritas Espanhola (2013), 58% dos espanhóis são desempregados de longa duração (pessoa que está sem emprego nos últimos 12 meses) e 35% estão desempregados a mais de dois anos e, ainda, uma em cada três pessoas assistidas pela entidade demanda ajuda há mais de 3 anos. Neste cenário, evidenciamos o aumento das ajudas alimentares aos “novos pobres” por parte do governo, instituições não governamentais e da sociedade civil, estando, dentre elas, a distribuição de refeições em comedores sociales. Estas “novas” formas de alimentar-se (a partir de benefícios assistenciais) carreiam consigo mudanças nos comportamentos, representações e percepções sociais relacionadas aos alimentos e que necessitam ser melhor compreendidas e analisadas. A este respeito, queremos saber em que medida a crise econômico financeira transforma as maneiras de comer das pessoas em condições de vida precárias e contribuir no debate sobre os paradoxos e ambiguidades do atual sistema alimentar.

Considerações metodológicas A pesquisa faz parte do projeto ‘Comer em tempos de crisis: nuevos contextos alimentarios y de salud en España’ desenvolvido na Universitat Rovira i Virgili (Tarragona, ES) e foi realizada durante o estágio de doutoramento no exterior para efetivar parte do projeto de tese ‘Sentidos e significados da alimentação (saudável): Restaurantes Populares no Brasil e Comedores Sociales na Espanha’ (Programa de Pós Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil). O trabalho de campo foi, inicialmente, realizado em um comedor social, criado no final do ano de 2009 a partir de uma parceria entre um órgão governamental e uma instituição não governamental (católica) na cidade de Reus, Catalunha, Espanha. Privilegiamos a abordagem etnográfica no estudo e recorremos a técnicas de investigação tais como observação direta, entrevista em profundidade, grupo focal e o uso do diário de campo. A análise, desta forma, se refere especificamente às observações do comportamento dos comensais durante o horário do almoço em um espaço social delimitado, a um grupo focal com 5 comensais e também 5 entrevistas: uma com a assistente social da instituição não governamental, uma com a coordenadora do comedor social e 3 com os comensais. 3

O comedor social em estudo é um programa de distribuição de refeições que cumpre a função de dar de comer, gratuitamente ou com uma pequena contribuição, a pessoas com recursos escassos. Assim, atende aos residentes da cidade em risco de exclusão social e que não podem cobrir por si mesmos as necessidades de alimentação, dentre eles, pessoas afetadas diretamente pela crise-econômica através da perda do emprego, idosos, drogodependentes e pessoas com comprometimento da saúde mental. Todos, em sua maioria, homens. Na cidade, através do comedor social eram distribuídos, de segunda à sexta-feira, almoço para um grupo de 50 a 60 comensais e eram distribuídas bolsas com alimentos de pronto consumo aos finais de semana a fim de administrar de forma mais eficiente possível a carência à alimentação. As refeições do almoço situam-se entre as treze e as catorze horas e trinta minutos. As preparações do almoço, praticamente, são elaboradas com gêneros alimentícios oriundos de doações (banco de alimentos e doações privadas), assim como a confecção da bolsa dos fins de semana. Assim, a cozinheira e a coordenadora do comedor social planejam os cardápios com os gêneros que estão disponíveis. Foi esclarecido aos participantes que a participação era livre apresentando, quando coube, a ‘Carta de consentimiento’.

Principais resultados É fundamento dos estudos da socioantropologia da alimentação compreender as práticas sociais, econômicas e simbólicas ligadas à alimentação entendida como um ato social e cultural e, portanto, produtora de diversos sistemas alimentares. Na constituição desses sistemas, intervêm fatores de ordem ecológica, histórica, cultural, social e econômica que implicam representações e imaginários sociais envolvendo escolhas e classificações (CANESQUI; GARCIA, 2005). De tal modo que o homem, ao se alimentar, “cria práticas e atribui significados àquilo que está incorporando a si mesmo, o que vai além da utilização dos alimentos pelo organismo” (MACIEL, 2001, p. 145). “O alimentar-se assume sentidos que dizem respeito à significação no contexto de um universo imaginário e simbólico, não necessariamente racional [mas] capaz de produzir identidades individuais e coletivas, relações sociais e vínculos que ultrapassam a lógica consciente do discurso.” (CARVALHO, LUZ e PRADO, 2011, p. 159).

Sentidos e significados são, assim, atribuídos à alimentação relacionados diretamente ao sentido de nós mesmos enquanto corpo substantivo de materiais culturais 4

historicamente derivados (MINTZ, 2001). Destarte, o que se come não pode ser comido igualmente por outro (SIMMEL, 2004), o que faz com que o ato de alimentar-se possa ter significados diferentes entre os sujeitos em um mesmo espaço social. As formas e os significados que a refeição assume para o grupo que trabalha direta ou indiretamente no comedor social estão diretamente relacionados ao grande valor social atribuído, na quase totalidade das sociedades, a realização de uma refeição comum, reforçado pela simbologia que o alimento tem para a igreja católica que toma a refeição como um forte símbolo de comunhão. O espaço do comedor social da cidade de Reus é gerido através de uma entidade católica e no sentido religioso a refeição tem uma importância fundamental, isto é, o comer dá vida e fortalece a alma. Nesta perspectiva, a participação de diversas pessoas na mesma refeição é uma prática de comunhão aberta ao perdão, hospitalidade e amizade (TEIXEIRA; SILVA, 2013). Assim, o ritual das refeições cotidianas é valorizado como uma forma de favorecer a solidariedade e a convivialidade. Usa-se o ato de comer como veículo para relacionamento sociais, mostrando-se a comensalidade um sentido especial de acolhimento. Diz um dos entrevistados “No es simplemente el hecho de dar comida. Se hace un poco de acogida”. Desta forma, a refeição é realizada por todos durante o mesmo horário com características ao mesmo tempo do cardápio tradicional da Espanha (do tipo trinaria, apresentado em 1º. Prato, 2º. Prato e sobremesa) e econômico. A comida é servida diretamente à mesa pelos voluntários onde os comensais estão reunidos em grupos de 4 pessoas. A mesa, como descrito por Fernandes (1997), é usada como meio de se fazer a permuta da estima social, pois através do seu referencial de família promove a aproximação entre as pessoas, é um rito de agregação, e a refeição como espaço e tempo de partilha conduz a um momento de sociabilidade. Assim, procura-se propiciar, através da ritualização da comensalidade, uma sociabilização que permita aos comensais não cair no vazio do quotidiano e contribua na superação do sofrimento derivado dos determinantes socioeconômicos que pesam sobre eles. Nestas refeições, afirma-se a significação do acolhimento, pois além da manutenção da estrutura da refeição, a seleção dos alimentos que entram na preparação dos pratos e as técnicas culinárias utilizadas reportam-se a identidade alimentar espanhola, mesmo com a presença dos imigrantes. Assim, fazem parte do cardápio

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preparações como ‘fideuá’, ‘paella’, ‘estofado de carne’ etc. que remetem a memória do grupo, os saberes alimentares preferidos desta sociedade. Isto, não necessariamente significa que as expectativas e vontades dos comensais são atendidas. A acolhida é percebida pelos comensais por intermédio do trabalho dos voluntários que, segundo os comensais, são sempre muito gentis e pacientes. No entanto, os comensais relacionam negativamente a comensalidade com a perda da autonomia na decisão alimentar. De fato, os comensais possuem pouca (ou nenhuma) autonomia na decisão ‘do que’, ‘onde’, ‘quando’ e com ‘quem’ comer. Mais que alimentar-se conforme o meio que o homem está inserido, o homem se alimenta de acordo com a sociedade a que pertence (MACIEL, 2001) e, para muitos, a atual estrutura socioeconômica do país e a falta de laços familiares impõem a necessidade de fazer a refeição no comedor social. A casa ou o restaurante comercial se mostraram como espaços ideais nas referências alimentares dos comensais, pois neles se come ‘o que’ se gosta (tipo de comida e modo de preparo) e se escolhe com ‘quem’ se come. Apesar da preparação de pratos culinários próximos do cotidiano espanhol, ‘o que’ comer não é uma escolha do comensal. Muitos só fazem aquela refeição durante o dia e para eles, a comida é pouca, o tempero é diferente e o que lhes dão é para saciar a fome, pois o cardápio caracteriza-se por menor consumo de carne, frutas e verduras e maior consumo de carboidratos. “No nos dan gambas, ni langosta. […] Todo o que nos dan es para cebarnos. ” (comensal 1). A bolsa de alimentos que recebem aos finais de semana não é considerada suficiente e adequada para preparar uma refeição, pois são alimentos para pronto consumo como pão de forma, suco ou leite e ‘chucherías’ (balas, achocolatado, biscoitos). Poucas são as vezes que colocam uma lata de atum, sanduíches; não tem ovos, azeite, etc. De tal modo que a associam a ‘comida de criança’, principalmente por conter as guloseimas. Podemos perceber que para os comensais o comer à mesa no comedor social se situa na postura do comer enquanto finalidade de subsistência, uma realidade inerente à própria estrutura do homem e a condição em que se encontram. Ao alimento é instituído sua função de nutrir. A comida marca, também, a distinção social entre ‘pobre’ e ‘rico’, (re)posicionando o comensal, através da escassez e do tipo do alimento, na condição de pobreza e dependente da solidariedade social. Não apenas ‘o que’ comer, mas também o ‘com quem’ comer não é uma escolha dos comensais. A referência ao comportamento dos drogodependentes (falar em um tom 6

de voz mais alto ou agredir verbalmente outro comensal ou voluntário) pelos demais comensais é motivo de desconforto e constrangimento e aparece como um indicador de diferenciação social. As regras de comportamento à mesa, definidas em cada sociedade, são imprescindíveis na manutenção da harmonia nas refeições, na constituição das normas de civilidade e educação. Ao serem transgredidas, quebra-se a harmonia das relações sociais naquele espaço e fragiliza-se a força socializadora da comensalidade. As sociabilidades, organizadas no comedor social, encontram-se condicionadas não pela convergência de interesses dos sujeitos, mas pelas condições, em comum, da precarização em que se encontram. A convivialidade e sociabilidade, desta maneira, ficam comprometidas, pois dependem do processo interativo entre o grupo mediadas pelas narrativas particulares desenvolvidas no ato comunicativo, pautada nas afinidades. Observamos, assim, entre muitos, uma individualização do comer durante o momento da refeição, apesar de compartilharem a mesma mesa e espaço. Como o ‘com quem e onde comer’ não é uma escolha dos comensais, o ato de comer permanece um interesse pessoal e uma satisfação individual. A comensalidade que muitas vezes teria o significado central no jogo das interações sociais, no comedor social, transforma-se muito mais em um lugar de nutrirse do que de convívio social. Por fim, apesar dos aspectos negativos relacionados pelos comensais a comensalidade, observamos um conformismo com o que lhes é servido, pois na situação da pobreza há que se aceitar o que tem. Os comensais compreendem o benefício da assistência como uma ajuda alimentar e não como uma violência infringida ao direito à alimentação. Por sentirem-se impotentes diante às repercussões do quadro macroeconômico em suas vidas, silenciam-se.

Considerações Finais Neste estudo procuramos contribuir com os debates em torno dos paradoxos do sistema alimentar moderno a partir da análise das maneiras de comer das pessoas que foram diretamente afetadas pela crise econômico financeira que assola a Espanha nos últimos anos. Com o aumento do desemprego no país, a necessidade de buscar ajudas alimentares torna-se uma realidade para muitos espanhóis. Dentre as assistências alimentares estão os comedores sociales que distribuem refeições a pessoas que não possuem condições de prover sua própria alimentação. 7

No comedor social da cidade de Reus (Catalunha) procura-se, por parte da entidade, atribuir a comensalidade um espaço de acolhimento. No entanto, sabe-se que o ato de alimentar é impregnado de significados diversos em acordo com o ator social e seu contexto. O comer, para o comensal do comedor social, transforma-se em mera operação de subsistência com uma renúncia ao prazer que se encontra em saborear a comida e escolher ‘o que’ e ‘quanto’ comer. O comensal, desta maneira, apesar de sentir-se amparado, apresenta uma perda da referência cultural e do poder de tomar decisões sobre a sua alimentação. Considera-se ainda a perda da qualidade nutritiva da alimentação, incluindo a diminuição da diversidade da dieta e da quantidade de alimentos. A sociabilidade existente para vários autores em torno do comer à mesa fica fragilizada na medida que os comensais não escolhem ‘com quem’ comem e a individualização do comer é predominante, mesmo na comida partilhada. Essas reflexões nos fazem (re)pensar sobre algumas tendências positivas atribuídas ao sistema alimentar moderno, como a democratização da alimentação social e a diminuição das diferenças sociais no consumo alimentar.

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Apoio: Faperj (Brasil) y Plan Nacional I+D (España - CSO2012-31323)

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