Estipulação em favor de terceiro: contrato ou cláusula especial

Orlando Gomes caminha no mesmo sentido. Veja-se, portanto: A estipulação em favor de terceiro opõe-se de frente à regra do direito romano segundo a qu...

15 downloads 410 Views 66KB Size
Estipulação em favor de terceiro: contrato ou cláusula especial? Paulo Henrique Borges Cruvinel1 Gustavo Henrique Moreira do Valle2 Resumo Existem cinco explicações teóricas diferentes, de autores diversos, sobre a definição jurídica da estipulação em favor de terceiro constante do artigo 436 e seguintes do Código Civil. Há autores que afirmam que a estipulação em favor de terceiro é uma espécie contrato; outros defendem que o instituto perfaz uma proposta a espera de aceitação; outros a colocam como um ato unilateral, atípico, ou, especificamente, como uma gestão de negócio; e há ainda os que creem ser a estipulação em favor de terceiro uma exceção ao princípio da relatividade dos contratos. A natureza jurídica da estipulação em favor de terceiro, bem como seu regramento, é o objeto do presente estudo. Palavras-chave: Contratos. Estipulação em favor de terceiro.

Abstract There are five different theoretical explanations from different authors about the juridical definition of stipulation in favor of a third party provided in article 436 et seq. of the Brazilian Civil Code. There are authors who claim that the stipulation in favor of a third party is a kind of contract; others defend that the institute is a proposition that awaits acceptance; others consider it as an atypical unilateral act or, more especifically, as business management; and there are still those who believe that the stipulation in favor of a third party is an exception to the principle of relativity of contracts. The objective of the present work is to analyse the juridical nature of the stipulation in favor of third parties, as well as its regulatios. Key Words: Contracts. Stipulation in favor of a third party.

1. INTRODUÇÃO

A natureza jurídica do instituto da estipulação em favor de terceiro é controvertida na doutrina. Para alguns autores, a estipulação em favor de terceiro é um contrato típico, enquanto para outros configura uma exceção à relatividade dos contratos, havendo ainda 1

Advogado. Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos ([email protected]). 2 Juiz de Direito. Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos ([email protected]).

três outras correntes que tentam defini-lo dentro da ciência jurídica, uma colocando-o como uma oferta a espera de aceitação; outra que postula ser a estipulação em favor de terceiro um ato unilateral qualquer, ou atípico; e outra corrente que defende a tese de que o instituto perfaz um ato unilateral específico e típico: a gestão de negócios. Fato é que não há uma voz uníssona em torno do instituto da estipulação em favor de terceiro, e todas as correntes têm seus méritos, mas têm também justas críticas a seu respeito. A investigação da natureza jurídica do instituto é salutar, sendo fato que se impõe como necessário, tendo-se em vista a justa aplicação do direito, bem como a integridade da ciência jurídica.

2. DIREITO DAS OBRIGAÇÕES NO BRASIL: ESCORÇO HISTÓRICO

Conforme asseverado pelo Professor Miguel Reale ao elaborar sua “Visão geral do novo Código Civil”, tal Código não colocou fim à chamada dicotomia do Direito Privado, extinguindo o Direito Comercial como disciplina acadêmica autônoma, dotada de princípios próprios, supostamente integrando-a ao campo do Direito Civil comum. Todavia, conforme também asseverado pelo mesmo professor, o que se observou com a entrada em vigor do Código Civil vigente foi a unificação do Direito das Obrigações.3 Aliás, quanto à unificação do Direito das Obrigações, vale lembrar que a ideia já não era nova quando o Presidente Ernesto Geisel, em 1975, submeteu à apreciação da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei que viria a ser o Código Civil de 2002, pois a Comissão elaboradora do atual Código, presidida pelo Professor Miguel Reale, acolheu, como diretriz a ser seguida na elaboração da nova lei, o aproveitamento dos trabalhos de reforma da Lei Civil realizados anteriormente ao ano de 1975 por juristas de escol, tais como Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de Azevedo, Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, primeiro com o anteprojeto do “Código das

3

“2. Diretrizes seguidas na elaboração do Anteprojeto: (...). Daí ficarem assentes estas diretrizes: (...) g) Não realizar, propriamente, a unificação do Direito Privado, mas sim do Direito das Obrigações – de resto já uma realidade operacional no País – em virtude do obsoletismo do Código Comercial de 1850 – com a consequente inclusão de mais um Livro na Parte Especial, que, de início, se denominou Atividades Negociais, e, posteriormente, Direito de Empresa.” (REALE, 2004, p. 11)

Obrigações”, e, posteriormente, com a proposta de elaboração separada de um Código Civil e de um Código das Obrigações.4 De qualquer modo, a unificação do Direito das Obrigações já era ideia antiga e o Código Civil a acolheu fazendo com que “obrigações”, em Direito Privado, fossem geradas através quatro fenômenos jurídicos, a saber: os contratos, os atos unilaterais, os títulos de crédito e os atos ilícitos. Cumpre esclarecer que a lei, considerada em sentido amplo, não entra nesse rol, haja vista que ela não é considerada, no presente trabalho, como fonte das obrigações, as quais são tratadas pelo Direito Privado e, segundo se entende, referem-se apenas a fatos jurídicos decorrentes da vontade e da ação humana, e não aqueles decorrentes de imposição de lei (nesse caso, seria tecnicamente mais apropriado referir-se a tais fatos não como “obrigações”, mas sim como “sujeições”, ou “imposições legais”). Isso porque as “obrigações” propriamente ditas possuem natureza jurídica distinta, vale dizer, umas nascem da liberdade conferida ao cidadão para criar sua própria lei (desde que, obviamente, não haja vedação legal, conforme estatui o princípio da legalidade previsto na Constituição Federal), ou de exercer seu arbítrio (ainda que este produza consequências coercitivas, conforme ocorre quando se pratica ato ilícito), e outras decorrem da imposição do Estado pela necessidade de se manter a paz social, a segurança jurídica e, principalmente, a prevalência, na maioria dos casos, da supremacia do interesse comum, social, coletivo, sobre o interesse individual. Considera-se aqui, portanto, como “obrigações”, apenas as “obrigações voluntárias”, isto é, aquelas decorrentes da vontade humana. Quanto aos fatos jurídicos que produzem obrigações em sentido amplo, vale dizer, tanto obrigações decorrentes da vontade humana quanto aquelas decorrentes de imposição de lei, esta (a lei), e também as teses que foram elaboradas acerca dos fatos jurídicos, explicam que estes (os fatos jurídicos) são de duas ordens, a saber: os fatos jurídicos naturais, como, por exemplo, o nascimento e a morte; e os fatos jurídicos humanos. Os fatos jurídicos humanos, por sua vez, são fatos que produzem reflexos no ordenamento jurídico (e é justamente por isso que são qualificados como “jurídicos”) e que 4

“2. Diretrizes seguidas na elaboração do Anteprojeto: (...). Daí ficarem assentes estas diretrizes: (...) d) Aproveitamento dos trabalhos de reforma da Lei Civil, nas duas meritórias tentativas feitas, anteriormente, por ilustres jurisconsultos, primeiro por Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de Azevedo, com o anteprojeto do Código das Obrigações; e, depois, por Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, com a proposta de elaboração separada de um Código Civil e de um Código das Obrigações, contando com a elaboração, neste caso, de Sílvio Marcondes, Theóphilo de Azevedo Santos e Nehemias Gueiros.”(REALE, 2004, p. 11/12)

são provocados não por fenômenos naturais, mas sim pela ação (ou omissão) humana. Por isso mesmo os fatos jurídicos humanos também são chamados de atos jurídicos em sentido amplo. Observe-se que a palavra “ato” dá justamente a ideia de uma atitude, de uma ação ou omissão humana, e este ato jurídico é “em sentido amplo” porque comporta três espécies, sendo uma delas o ato jurídico em sentido estrito, que é precisamente aquele ato humano que é praticado em virtude de uma imposição da lei, como, por exemplo, votar ou se apresentar nas forças armadas para o alistamento militar obrigatório. Desta feita, o ato jurídico em sentido estrito, embora seja um ato jurídico, não é uma obrigação em sentido estrito, isto é, criada pela vontade humana, e sim uma sujeição imposta por lei, cujo cumprimento não a qualifica como obrigação, mas a qualifica como ato jurídico. Além do ato jurídico em sentido estrito, há outras duas espécies de ato jurídico (fatos jurídicos humanos, ou ato jurídico em sentido amplo): os negócios jurídicos (englobando os contratos, os atos unilaterais e os títulos de crédito) e os atos ilícitos. Os negócios jurídicos nascem de atos jurídicos praticados “conforme a lei”, e os atos ilícitos, como o próprio nome induz a crer, da prática de atos jurídicos “contrários a lei”. A estipulação em favor de terceiro é, para alguns juristas, espécie de contrato, embora para outros não o seja. Mas, quanto a uma questão, não paira dúvida: a estipulação em favor de terceiro é instituto afeto aos contratos, e no Código Civil ela vem tratada no Título pertinente aos “contratos em geral”.

3. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO E SUA NATUREZA JURÍDICA

Historicamente, verifica-se que o direito romano não contemplava tal instituto, até mesmo devido à relatividade dos contratos (produção de efeitos apenas entre os contratantes). Nesse período, a parte que atualmente é chamada de beneficiário da estipulação em favor de terceiro não teria, conforme estatui o Direito Processual moderno, legitimidade para requerer tutela jurisdicional do Estado para fazer valer seu direito à estipulação feita por outrem em seu benefício, pois as fontes do Direito das Obrigações (obrigações voluntárias) da época - as Institutas de Justiniano e o Digesto - não contemplavam exceção à regra da relatividade dos contratos.

O Código Napoleão seguiu o direito romano e não contemplou a estipulação em favor de terceiro, a qual foi incorporada ao direito francês apenas algumas décadas após a entrada em vigor do Código em questão, mais precisamente em 1860, através da jurisprudência, que, inclusive, sedimentou-se ignorando por completo a dicção da lei (embora o instituto tenha sido aplicado apenas para os contratos de seguro, o de vida e o coletivo contra acidentes). Entretanto, na Alemanha, o Código de 1896 contemplou tal instituto, condicionando-o à existência de interesse econômico ou moral por parte do estipulante. No Brasil o Código Bevilácqua contemplou o instituto.5 Feitas tais considerações preliminares sobre a origem do instituto, cumpre agora firmar um conceito de estipulação em favor de terceiro. Assim, argumenta-se que “estipulação em favor de terceiro” é uma disposição entabulada entre contratantes através da qual uma das partes, o estipulante, convenciona com a outra parte, o promitente, uma obrigação em que a prestação deverá ser cumprida em favor de outra pessoa, o beneficiário, estranho à avença realizada entre aqueles dois primeiros. Carlos Roberto Gonçalves assim definiu o instituto: Dá-se estipulação em favor de terceiro, pois, quando, no contrato celebrado entre duas pessoas, denominadas estipulante e promitente, convenciona-se que a vantagem resultante do ajuste reverterá em benefício de terceira pessoa, alheia à formação do vínculo contratual. Nela, como se vê, figuram três personagens: o estipulante, o promitente e o beneficiário, este último estranho à convenção. Por conseguinte, a capacidade só é exigida dos dois primeiros, pois qualquer pessoa pode ser contemplada com a estipulação, seja ou não capaz. (2012, p. 118/119)

No mesmo sentido César Fiuza: “Dá-se estipulação em favor de terceiro quando, em contrato, se pactuar que o benefício dele decorrente, no todo ou em parte, reverta em favor de terceiro que lhe seja totalmente estranho” (2008, p. 458). Serpa Lopes aduz o seguinte a respeito da conceituação da estipulação em favor de terceiro:

5

Leia-se, nesse sentido, o escólio de Carlos Roberto Gonçalves acerca do escorço histórico do instituto da estipulação em favor de terceiro: “O direito romano não admitia a estipulação em favor de terceiro, que se opõe ao caráter estritamente pessoal do vínculo obrigatório capaz de produzir conseqüências somente entre os partícipes da convenção, simbolizado pela parêmia alteri stipulari Nemo potest, mencionada nas Institutas de JUSTINIANO e no Digesto, fonte, na época, das obrigações voluntárias cercadas de formalidades. O beneficiário da promessa não teria legitimação para propor ação reclamando o seu cumprimento por não ser parte na convenção original. (...). O Código NAPOLEÃO, por influência de POTHIER, manteve-se fiel à tradição romana clássica, não admitindo as estipulações em favor de terceiro (art. 1.119). Somente a partir de 1860 a jurisprudência começou a admiti-las, praticamente contrariando o texto legal, nos contratos de seguro de vida e de seguro coletivo contra acidentes. O Código alemão de 1896, todavia, veio consolidar e sistematizar as conquistas da jurisprudência belga e da francesa, admitindo a estipulação em favor de terceiro sempre que houvesse interesse econômico ou moral por parte do estipulante. Posteriormente, os códigos modernos passaram a discipliná-las, em geral como exceção ao princípio da relatividade dos efeitos do contrato. Assim também fez o Código Civil brasileiro de 1916, como já dito.” (2012, p. 120)

83 – Conceito de estipulação de terceiro. Há estipulação em favor de terceiros quando em um contrato, estabelecido entre duas pessoas, pactua-se que o benefício dele decorrente, no todo ou parte, reverterá em proveito de terceiro, que lhe é totalmente estranho. (2001, p. 137)

Caio Mário da Silva Pereira, por sua vez, assim se referiu a respeito da conceituação do tema: “Dá-se o contrato em favor de terceiro quando uma pessoa (o estipulante) convenciona com outra (o promitente) uma obrigação, em que a prestação será cumprida em favor de outra pessoa (o beneficiário)” (2012, p. 92). E, Arnoldo Wald: “Conceito: A estipulação em favor de terceiro é o contrato pelo qual se cria, para terceiro, um direito novo e próprio. Exemplo: seguro de vida” (2005, p. 265). Pela doutrina portuguesa, Mário Júlio de Almeida Costa define: Diz-se contrato a favor de terceiro aquele em que um dos contraentes (promitente) se compromete perante o outro (promissário ou estipulante) a atribuir certa vantagem a uma pessoa estranha ao negócio (destinatário ou beneficiário). (1994, p. 290)

Arnaldo Rizzardo, por sua vez, assim definiu o instituto: Tem-se, pois, um contrato formado por duas pessoas, sendo que uma delas se obriga a entregar uma vantagem ou proveito a uma terceira pessoa, a qual é completamente estranha à relação, não participando ou concordando na convenção. (2006, p. 146)

Orlando Gomes caminha no mesmo sentido. Veja-se, portanto: A estipulação em favor de terceiro opõe-se de frente à regra do direito romano segundo a qual alteri stipulari Nemo potest. A possibilidade de estipular para outrem foi, entretanto, admitida, configurando-se em vários contratos como os de seguro de vida; constituição de renda, e transporte de objetos para terceiros destinatários, e exercendo, no comércio jurídico, importante função prática. Os códigos modernos disciplinam-na. Não obstante, sua natureza é ainda objeto de controvérsias, propondo-se várias teorias a explicá-las. A tendência dominante é no sentido de qualificá-la como contrato. Daí a denominação perfeita da doutrina italiana de contrato a favor de terceiro. A estipulação em favor de terceiro é realmente, o contrato por via do qual uma das partes se obriga a atribuir vantagem patrimonial gratuita a pessoa estranha à formação do vínculo contratual. (1990, p. 184/185)

Maria Helena Diniz, assim definiu a estipulação em favor de terceiro: A estipulação em favor de terceiro vem a ser um contrato estabelecido entre duas pessoas, em que uma (estipulante) convenciona com outra (promitente) certa vantagem patrimonial em proveito de terceiro (beneficiário), alheio à formação do vínculo contratual. (2007, p. 108)

Sílvio de Salvo Venosa diz que: A expressão (contratos em favor de terceiros) tem sentido técnico de extensão restrita. Quando se fala em contratos ou estipulações em favor de terceiros, se

deseja mencionar aqueles que originalmente não participaram da relação jurídica, mas podem ser chamados a fazê-lo. A estipulação em que dois contratantes procuram beneficiar terceiros se apresenta, portanto, como uma exceção ao princípio da relatividade dos contratos. (1997, p. 105)

Observe-se, portanto, que enquanto Carlos Roberto Gonçalves, César Fiuza e Miguel Maria de Serpa Lopes apontam a estipulação em favor de terceiro como sendo uma cláusula contratual, Caio Mário da Silva Pereira (que, inclusive, cita Clóvis Bevilácqua defendendo ponto de vista idêntico ao seu), Arnoldo Wald, Mário Júlio de Almeida Costa, Arnaldo Rizzardo e Orlando Gomes preferem qualificá-la como sendo uma espécie de contrato. Já Sílvio de Salvo Venosa prefere apresentar a estipulação em favor de terceiro como uma exceção ao princípio da relatividade dos contratos. Não obstante Carlos Roberto Gonçalves se refira à estipulação em favor de terceiro como sendo apenas uma estipulação contratual, isto é, como sendo apenas uma cláusula de contrato, e não como um contrato, ele também deixa claro que, na verdade, aderiu à concepção contratualista do instituto, nos mesmos moldes, por exemplo, de Caio Mário da Silva Pereira e Clóvis Bevilácqua. Veja-se, nesse sentido, o seguinte: A concepção contratualista da estipulação em favor de terceiro não sofre contestação entre nós, uma vez que é consagrada no Código Civil. Com efeito, os arts. 436, parágrafo único, 437 e 438 do novo diploma referem-se a ela utilizando o vocábulo contrato. (GONÇALVES, 2012, p. 122)

Há, aqui, nas citações do trabalho de Carlos Roberto Gonçalves, uma aparente contradição, pois primeiramente afirmou-se que tal autor entende ser o instituto em questão uma mera cláusula especial dos contratos e, após, transcreveu-se seu entendimento acerca de ser o instituto um contrato. Todavia, há que se deixar claro que tal contradição é apenas aparente, pois a estipulação em favor de terceiro, sendo um acordo de vontades com o fim de criar, modificar, conservar ou extinguir direitos, é realmente um contrato (em sentido amplo), uma avença. E, portanto, sob esse prisma, correto o entendimento do autor mencionado quanto à natureza contratualista do instituto. Entretanto, não é um contrato em espécie, como faz crer a leitura da obra de Caio Mário da Silva Pereira, já que os contratos em espécie estão previstos em Título específico do Código Civil. A estipulação em favor de terceiro está prevista no Código Civil no Título que trata “dos contratos em geral”, ou seja, naquela parte que possui disposições gerais que deverão

ser aplicadas a todos os contratos em espécie, o que, aliás, se aplica ao instituto ora em foco, pois este pode ser aplicado a diversos contratos em espécie, tanto do Código Civil quanto àqueles previstos em legislação especial. Mas, não obstante o direito positivo brasileiro, a questão acerca da natureza jurídica do instituto é controvertida, possuindo diversas correntes, sendo que Caio Mário da Silva Pereira, em sua obra, informa que a questão é objeto de controvérsias acadêmicas, apontando a existência de mais outras quatro correntes (além de sua própria corrente, que entende ser estipulação em favor de terceiro uma espécie de contrato). Na esteira do raciocínio apresentado, tem-se que as mencionadas correntes são as seguintes: (1ª) a que entende ser a estipulação em favor de terceiro uma oferta à espera de aceitação, à qual, contudo, faz-se a acertada crítica de que o promitente não é mero policitante, mas sim verdadeiro obrigado (Serpa Lopes aponta LAURENT como o principal expoente dessa teoria na doutrina estrangeira 6 ); (2ª) a que entende ser a estipulação em favor de terceiro uma exceção ao princípio da relatividade contratual (ou princípio do efeito relativo dos contratos), segundo o qual os contratos só obrigam, em princípio, as partes que o celebraram, não obstante possam ser opostos a terceiros. Com relação a esta corrente, há também a crítica de que, embora seu postulado seja verdadeiro, não há a indicação do instituto jurídico ao qual a estipulação em favor de terceiro pertença, ou se assemelhe; e (3ª) e (4ª) as que entendem ser a estipulação em favor de terceiro um ato unilateral qualquer (Serpa Lopes 7 e Carlos Roberto Gonçalves 8 apontam COLIN et CAPITANT, sendo que Serpa Lopes 9 menciona, também, JOSSERAND e BAUDRYLACANTINERIE,

como principais defensores desta tese no

estrangeiro) ou,

especificamente, uma gestão de negócios (conforme LABRÉ e POTHIER, citados por Serpa Lopes10), às quais também se faz a crítica de que na estipulação em favor de terceiro não se pratica um ato unilateral, mas há, contrariamente, a junção de duas vontades, a do estipulante e a do promitente. Afora os dois entendimentos mais frágeis sobre o instituto, quais sejam, o da exceção ao princípio da relatividade dos contratos e o do ato unilateral, certo é que o instituto suscita dúvidas quanto à sua caracterização jurídica, e, dessa forma, é de se perguntar qual é, afinal, a natureza jurídica da estipulação em favor de terceiro? 6

(2001, p.138) (2001, p. 138) 8 (2012, p. 121) 9 (2001, p. 138) 10 (2001, p. 138) 7

Dizer, conforme Caio Mário da Silva Pereira e Clóvis Bevilácqua, que a estipulação em favor de terceiro é um contrato seria correto somente se se considerar a palavra “contrato” em seu sentido amplo, isto é, naquele sentido de que qualquer avença ou estipulação realizada por particulares, amparada por lei, e que preencha os requisitos de validade dos negócios jurídicos, é um contrato. Todavia, considerar o instituto como espécie de contrato, ou melhor, como contrato típico (ou nominado) previsto no Código Civil, seria exagero, nesse ponto apresentando-se mais acertado o entendimento de Serpa Lopes, Carlos Roberto Gonçalves e César Fiuza, conforme mencionado retro, de que a estipulação em favor de terceiro é apenas uma cláusula contratual, ou uma disposição que possa constar de algumas espécies de contratos, típicos ou não. Portanto, acredita-se ser mais acertado referir-se ao instituto em questão apenas como uma cláusula especial dos contratos, nos mesmos moldes daquelas cláusulas especiais previstas no Código Civil, do artigo 505 ao artigo 532, especificamente sobre o contrato de compra e venda. Vale dizer: a estipulação em favor de terceiro não é um contrato em si, mas uma cláusula especial integrante de outro contrato, como, por exemplo, o de compra e venda, o de locação, o de seguro etc.

4. CONCLUSÃO

É certo, pois, que o instituto da estipulação em favor de terceiro é realmente um contrato, no sentido de que é uma estipulação decorrente da vontade que tem por objetivo criar direitos, e, sob esse aspecto, realmente acertada a chamada corrente contratualista a respeito do tema. Todavia, analisando o instituto de forma mais minuciosa, a estipulação em favor de terceiro não é um contrato em sentido estrito, ou seja, um contrato típico previsto no artigo 436 do Código Civil, mas, sim, apenas uma cláusula de contrato, ou, ainda, uma disposição geral a ser aplicada a todos os contratos, sejam eles típicos ou não. A análise da sistemática do Código Civil, isto é, a forma como seus institutos estão dispostos em seu corpo, demonstra que a estipulação em favor de terceiro está localizada no Título que dispõe sobre os “contratos em geral”, enquanto há um Título específico que

trata dos “contratos em espécie”, não sendo absurdo se concluir que as disposições gerais estatuídas no Título dos “contratos em geral” se aplicam a todos os “contratos em espécie”. Assim, com base nessas considerações fica aqui assente que o instituto da estipulação é favor de terceiro é uma cláusula especial dos contratos, e não um contrato propriamente dito.

REFERÊNCIAS

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 6ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 3° vol. 23ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 11ª ed. rev., atual. e amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. GOMES, Orlando. Contratos. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais. vol. III. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. vol. III. 7ª ed. rev. Pelo Prof. José Serpa de Santa Maria. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: contratos. vol. III. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. REALE, Miguel. Novo Código Civil Brasileiro: estudo comparativo com o Código Civil de 1916, Constituição Federal, legislação codificada e extravagante / obra coletiva de autoria da Editora Revista dos Tribunais, prefácio do Professor Miguel Reale. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. VENOSA, Sílvio de Salvo. Teoria Geral dos Contratos. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1996. WALD, Arnoldo. Obrigações e Contratos. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.