Absorção da glicose, glicólise e desidrogénase do piruvato

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Absorção da glicose, glicólise e desidrogénase do piruvato; Rui Fontes

Absorção da glicose, glicólise e desidrogénase do piruvato 1-

O amido é, habitualmente, o mais abundante componente glicídico da dieta. É um polímero formado exclusivamente por resíduos D-glicose ligados entre si por ligações glicosídicas de tipo α. O amido natural é formado por dois tipos de estruturas distintas: a amilose e a amilopectina. Na amilose as ligações são exclusivamente de tipo α-1,4 enquanto na amilopectina também existem ligações do tipo α-1,6.

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Na hidrólise do amido participam duas isoenzimas (amílases salivar e pancreática) que catalisam a rotura de ligações glicosídicas α-1,4 mas poupam as ligações α-1,6 assim como as α-1,4 das extremidades das cadeias ou as que se situam na vizinhança das ligações α-1,6. Assim, da acção das amílases digestivas sobre o amido, resulta a formação de maltose (α-Dglicopiranosil-(1→4)-D-glicose), maltotriose (trímero com 3 resíduos glicose) e dextrinas limite (oligossacarídeo formado por vários resíduos glicose sendo que dois deles estão ligados por uma ligação α-1,6).

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A hidrólise da maltose, maltotriose e dextrinas limite resulta na formação de glicose e é catalisada por duas dissacarídases que estão ancoradas no polo apical da membrana celular dos enterócitos: a maltase (α-1,4 glicosídase) e a isomaltase (α-1,6 glicosídase).

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A absorção da glicose e outros monossacarídeos ocorre no duodeno e jejuno. No processo de transporte transmembranar intervêm moléculas proteicas da membrana dos enterócitos (que se designam como transportadores) e por isso o transporte diz-se mediado. O transporte pode ocorrer a favor do gradiente (transporte passivo) mas nos casos da glicose e da galactose existem mecanismos de transporte contra gradiente (transporte activo).

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A absorção eficaz da glicose e da galactose pressupõe a hidrólise de ATP (ATP + H2O → ADP + Pi). (a) A bomba de sódio-potássio (ou ATPase do Na+/K+) é um proteído da membrana citoplasmática de todas as células do organismo que, usando a energia libertada na hidrólise do ATP, promove a entrada de iões K+ do meio extracelular para o citosol e a saída de iões Na+ do citosol para o meio extracelular. A bomba de sódio-potássio é uma máquina biológica que faz a acoplagem de um processo exergónico (a hidrólise do ATP) com processos endergónicos (o transporte de iões Na+ e K+ contra gradiente). Porque a energia usada no processo de transporte destes iões provém directamente da hidrólise do ATP diz-se que este transporte activo é de tipo primário. (b) A acção da bomba de sódio-potássio cria gradientes de concentração que explicam uma tendência para a saída do K+ das células e a entrada do Na+ para dentro das células. No caso concreto do polo apical dos enterócitos do jejuno existe uma proteína que é capaz de transportar conjuntamente Na+ e glicose na mesma direcção; por este motivo se designa como um “simporter”. A existência do gradiente de Na+ que tende a mover este ião para dentro da célula fornece a energia que permite o transporte de glicose contra gradiente.

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No polo basal dos enterócitos o transporte de glicose ocorre sempre a favor do gradiente e neste transporte estão envolvidos “uniporters” denominados GLUT2. Na entrada da glicose do meio extracelular para o citosol de todas as células do organismo participam “uniporters” específicos para a glicose.

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O metabolismo energético dos seres vivos pode ser interpretado como um processo no qual os nutrientes são oxidados pelo O2 (catabolismo) gerando a energia necessária para a síntese de ATP (a partir de ADP + Pi) ao mesmo tempo que o ATP formado é hidrolisado (a ADP + Pi) fornecendo a energia utilizada na síntese de múltiplas substâncias (anabolismo), na actividade muscular e na manutenção dos gradientes iónicos. Juntamente com outros mecanismos, a fome é um importante mecanismo homeostático: a ingestão de alimentos

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fornece ao organismo substâncias cuja oxidação permite manter a concentração de ATP quase constante (“estacionária”). 8-

A glicólise é uma via metabólica do citosol das células em que a glicose é, num processo exergónico, convertida em piruvato (ou lactato) e se forma, concomitantemente e num processo endergónico, ATP a partir de ADP + Pi. As enzimas da glicólise são, no seu conjunto, “a máquina” que permite a acoplagem dos dois processos.

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As enzimas da glicólise são: (1) a cínase da glicose ou das hexoses (glicose + ATP → glicose 6-P + ADP), (2) a isomérase das fosfohexoses (glicose 6-P ↔ frutose 6-P), (3) a cínase-1 da frutose 6-P (frutose 6-P + ATP → frutose 1,6-bisfosfato), (4) a aldólase (frutose 1,6bisfosfato → gliceraldeído 3-P + dihidroxiacetona-P), (5) a isomérase das trioses-P (dihidroxiacetona-P ↔ gliceraldeído 3-P), (6) a desidrogénase do gliceraldeído 3-P (gliceraldeído 3-P + Pi + NAD+ ↔ 1,3-bisfosfoglicerato + NADH), (7) a cínase do 3fosfoglicerato (1,3-bisfosfoglicerato + ADP ↔ 3-fosfoglicerato + ATP), (8) a mútase do fosfoglicerato (3-fosfoglicerato ↔ 2-fosfoglicerato), (9) a enólase (2-fosfoglicerato ↔ fosfoenolpiruvato + H2O) e (10) a cínase do piruvato (fosfoenolpiruvato + ADP → piruvato + ATP). A cínase da glicose é uma enzima mais específica para a glicose e existe no fígado, rim e células β dos ilhéus pancreáticos; a cínase das hexoses existe noutras células e é uma isoenzima menos específica funcionando outras hexoses como substratos aceitadores de fosfato.

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A aldólase é a enzima que catalisa a cisão (lise) da molécula de frutose 1,6-bisfosfato (6C) em gliceraldeído 3-P (3C) e dihidroxiacetona-P (3C). A transformação da dihidroxiacetona-P em gliceraldeído 3-P e a posterior transformação deste composto em piruvato (3C) permite compreender que uma molécula de glicose (6C) dê origem a duas de piruvato (2 * 3C). Antes da lise da frutose 1,6-bisfosfato duas moléculas de ATP servem como substratos dadores de fosfato em reacções de fosfotransferência catalisadas pelas cínases da glicose e da frutose 6P. Depois da lise da frutose 1,6-bisfosfato ocorre a formação de ATP em duas reacções de fosfotransferência em que o substrato aceitador é o ADP e os substratos dadores são o 1,3bisfosfoglicerato (cínase do 3-fosfoglicerato) e o fosfoenolpiruvato (cínase do piruvato). A este tipo de reacções de formação de ATP a partir de ADP através de reacções de fosfotransferência é comum denominarem-se de “fosforilações ao nível do substrato” (por contraponto com a “fosforilação oxidativa” mitocondrial). Também já depois da lise da frutose 1,6-bisfosfato ocorre a redução do NAD+ (e consequente formação do NADH) numa reacção em que, concomitantemente, com a reacção de oxiredução ocorre a adição de fosfato inorgânico (Pi): esta reacção é a catalisada pela desidrogénase do gliceraldeído 3-P.

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O somatório das reacções envolvidas na formação do piruvato pode ser expressa pela seguinte equação: glicose (C6H12O6) + 2NAD+ + 2ADP + 2Pi → (1) 2 ác. pirúvico (C3H4O3) + 2NADH + 2ATP + 2H2O A energia libertada no processo de oxidação (e cisão) de um mole de glicose pelo NAD+ permite a formação de 2 moles de ATP (a partir de ADP e Pi).

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As reacções catalisadas pelas cínases da glicose ou das hexoses (enz.1), da frutose 6-P (enz.3) e do piruvato (enz.10) são fisiologicamente irreversíveis: sendo catalisadas por enzimas com baixa actividade catalítica encontram-se muito afastadas do equilíbrio químico. No caso destas três enzimas variações na sua actividade repercutem-se na velocidade da via metabólica. Pelo contrário, no caso das outras sete enzimas, as suas actividades são tão elevadas que as reacções por elas catalisadas se encontram próximo do equilíbrio químico e crê-se que variações fisiológicas da sua actividade não influenciam de modo significativo a velocidade global da glicólise. No entanto, no caso destas enzimas, pequenas variações na razão entre as concentrações dos reagentes e dos produtos podem repercutir-se em saldos Página 2 de 4

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positivos a favor da reacção no sentido glicolítico (conversão de glicose em piruvato) ou no sentido inverso. 13-

Em condições de aerobiose o NADH formado é oxidado a NAD+ pelo O2 na cadeia respiratória das mitocôndrias: NADH + ½ O2 → NAD+ + H2O (2) Desta forma as concentrações de NADH são mantidas baixas na célula ao mesmo tempo que o NAD+ é regenerado. Em condições de aerobiose, o piruvato entra para a mitocôndria onde, por acção catalítica da desidrogénase do piruvato se converte em acetil-CoA. A reacção catalisada pela desidrogénase do piruvato é fisiologicamente irreversível e é descrita pela equação (3): piruvato + CoA + NAD+ → acetil-CoA + CO2 + NADH (3) O processo catalítico é frequentemente descrito como uma “oxidação descarboxilativa” porque a par de uma reacção de oxi-redução ocorre uma descarboxilação (saída de CO2) de tal forma que o número de carbonos do resíduo acetilo da acetil-CoA (dois) é menor que o do piruvato (três).

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No entanto, em condições de anaerobiose (como, por exemplo, no caso dos eritrócitos que não têm mitocôndrias, em situações de trabalho muscular intenso ou em células tumorais de cancros sólidos mal irrigados) a concentração de NADH aumenta no citosol e reduz o piruvato a lactato: piruvato (C3H4O3) + NADH ↔ lactato (C3H6O3) + NAD+ (4) A reacção é catalisada pela desidrogénase do lactato e permite a regeneração do NAD+ que é necessário para que a glicólise possa prosseguir. Nestas condições o processo glicolítico dizse anaeróbio, não é globalmente oxidativo e a equação que o representa é o somatório das equações (1) e (4): glicose (C6H12O6) + 2ADP + 2Pi → 2 ac. láctico (C3H6O3) + 2ATP + 2H2O (5)

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A desidrogénase do piruvato (ver equação 3) é de facto um complexo multienzímico composto por 5 tipos diferentes de proteínas que se designam por (1) desidrogénase do piruvato, (2) transacetílase do dihidrolipoato, (3) desidrogénase do dihidrolipoato, (4) cínase da desidrogénase do piruvato e (5) fosfátase da desidrogénase do piruvato. Estas proteínas estão organizadas em agregados sendo que as proteínas (1), (2) e (3) são colectivamente responsáveis pela catálise expressa pela equação (3). A cínase da desidrogénase do piruvato promove a fosforilação (e consequente inactivação) do complexo catalisando a transferência do fosfato γ do ATP para o complexo (ATP + desidrogénase do piruvato → ADP + desidrogénase do piruvato-P). A fosfátase da desidrogénase do piruvato catalisa a hidrólise da desidrogénase do fosfato fosforilada (desidrogénase do piruvato-P + H2O → desidrogénase do piruvato + Pi) e, consequentemente, a sua activação.

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Apesar do seu baixo rendimento “energético” (apenas 2 moles de ATP formadas por mole de glicose cindida), a glicólise anaeróbia tem um papel essencial na sobrevivência dos indivíduos e, em última análise, na sobrevivência das espécies. A glicólise anaeróbia pode aumentar explosivamente de velocidade em situações em que a hidrólise do ATP aumenta de forma dramática nas fibras musculares esqueléticas (subir a uma árvore, por exemplo). Numa situação deste tipo a síntese de ATP pode prosseguir (embora por curtos períodos de tempo) apesar de o aporte de oxigénio ser deficiente relativamente às necessidades de ATP. A descida da concentração intracelular de ATP causada pela contracção muscular é acompanhada por um aumento da concentração de ADP (a contracção muscular acompanha-se de hidrólise do ATP: ATP + H2O → ADP + Pi). Nas células existe uma enzima (cínase do AMP) que permite formar AMP e ATP a partir de ADP (2 ADP → ATP + AMP). Quando o gasto de ATP aumenta também aumenta a concentração de AMP que é um potente activador Página 3 de 4

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alostérico da enzima mais importante na regulação da velocidade da glicólise no músculo: a cínase-1 da frutose 6-P. Reciprocamente, o ATP é um potente inibidor alostérico da mesma enzima e portanto, a velocidade do processo glicolítico diminui quando a concentração de ATP está alta. 17-

O lactato acumulado no músculo quando trabalhou em condições de anaerobiose pode, em condições de aerobiose, regenerar o piruvato. Se o NADH for oxidado pelo O2 a sua concentração volta a baixar e a de NAD+ a aumentar (ver equação 2) permitindo que a reacção catalisada pela desidrogénase do lactato (ver equação 4) evolua no sentido da oxidação do lactato a piruvato.

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Durante o trabalho anaeróbio a concentração de lactato nas fibras musculares pode aumentar cerca de 30 vezes e é comum afirmar-se que é esta acumulação do ião lactato que provoca a fadiga. Contudo as evidências experimentais demonstram que embora a concentração de lactato esteja directamente relacionada com o grau de fadiga o ião lactato não interfere na actividade contráctil. Como mostra a equação 5, na glicólise anaeróbia uma substância aprótica (a glicose) transforma-se numa outra que emite protões (ác. láctico). O pKa do ácido láctico (≈4) é mais baixo que o pH do citoplasma das fibras musculares (≈7) e, por isso, a esmagadora maioria das moléculas de ácido láctico dissocia-se provocando uma descida do pH (de cerca 7 para valores tão baixos como 6,5). No esforço muscular contráctil em regime anaeróbio a descida do pH inibe a actividade muscular contráctil e é um dos factores envolvidos no processo de fadiga.

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Para além da regulação alostérica pelo ATP e pelo AMP da cínase-1 da frutose 6-P, na regulação do metabolismo oxidativo da glicose a nível hepático merecem destaque especial outros 3 aspectos. (1) A concentração intracelular de glicose no fígado é inferior ao Km da glicose na reacção catalisada pela glicocínase e por isso variações na concentração intracelular da glicose influenciam a actividade da glicocínase; quando mais alta a concentração de glicose maior a actividade da glicocínase. (2) A glicagina é uma (i) hormona produzida nas células α dos ilhéus de Langherans do pâncreas em situações de jejum, (ii) que contém receptores na face externa da membrana dos hepatócitos e (iii) que faz parte dum mecanismo homeostático que permite poupar glicose durante o jejum. A glicagina vai diminuir a concentração de uma substância (frutose-2,6-bisfosfato) que é um potente activador alostérico da cínase-1 da frutose 6-P; desta forma, a glicagina diminui a actividade desta enzima da glicólise e, em última análise, o catabolismo da glicose. Por um mecanismo diferente a glicagina também induz a inibição da cínase do piruvato. (3) Quando a concentração de ATP está elevada aumenta a actividade de uma enzima (a cínase da desidrogénase do piruvato) que catalisa a fosforilação da desidrogénase do piruvato (desidrogénase do piruvato + ATP → desidrogénase do piruvato-P + ATP). A forma fosforilada da desidrogénase do piruvato (desidrogénase do piruvato-P) é menos activa que a forma desfosforilada e assim aumentos na concentração do ATP intracelular inibem a desidrogénase do piruvato e, em última análise, a formação de ATP.

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