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O PROCESSO COMO FATOR DE DISCRIMINAÇÃO: ANÁLISE DAS MEDIDAS CAUTELARES NO PROCESSO PENAL Lucas Soares e SILVA

RESUMO: A entrada em vigor da Lei 12.403/2011, lei que dispõe sobre medidas cautelares no processo penal, trouxe a tona a discussão entre a presunção de inocência assegurada constitucionalmente e a utilização das medidas cautelares no decorrer do processo penal. A nova Lei reflete a tendência de se evitar, na medida do possível, o cárcere, tendo em conta a estigmação que tal aparelho provoca, dotando a sistemática processual penal de mais lógica e humanidade. Entretanto, não só os aspectos benéficos podem ser apontados, mas também outros, que a depender o do ponto de vista podem representar retrocesso quanto ao tema. Diante das drásticas inovações e de sua recente vigência não é um diagnóstico definitivo quanto às novas medidas cautelares. Todavia, há que se adiantar, e esta é a pretensão do estudo introdutório, que o alargamento do poder estatal sob o réu que se presume inocente não pode ser visto como avanço inquestionável da legislação. Palavras-chave: medidas cautelares, Lei 12.430/11, presunção de inocência.

INTRODUÇÃO A entrada em vigor da Lei 12.403/2011, lei que dispõe sobre medidas cautelares no processo penal, trouxe a tona a discussão entre a presunção de inocência assegurada constitucionalmente e a utilização das medidas cautelares no decorrer do processo penal. É certo que a nova Lei reflete a tendência de se evitar, na medida do possível, o cárcere, dotando a sistemática processual penal de mais lógica e humanidade. Entretanto, não só os aspectos benéficos podem ser apontados, mas também outros, que a depender o do ponto de vista podem representar retrocesso quanto ao tema. Este estudo introdutório intenta analisar à partir do viés crítico (no sentido de se abordar os pontos que podem ser considerados negativos) as novas medidas cautelares previstas na nova legislação, as quais, ainda que distante da prisão podem representar aumento do poder de coerção estatal.



Mestrando do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná, Campus de Jacarezinho/PR.

1 Aspectos gerais das medidas cautelares Uma das primeiras ressalvas de Fernando Carnelutti em sua obra As misérias do processo penal (Editora Minelli, 2006) é no sentido que o processo penal figura como verdadeiro espetáculo de diversão e abstração da opinião pública (daí o grande sucesso das páginas policiais): O mau é que assiste-se ao processo da mesma maneira que se goza do espetáculo cinematográfico, o qual, no demais, finge com muita freqüência tanto o delito como o processo correspondente; mas posto que atitude do público acerca dos protagonistas do drama penal é a mesma que tinha em um tempo a multidão frente as gladiadores que combatiam no circo, e tem, todavia, em certos países do mundo, frente às corridas de touros, o processo penal não é, infelizmente, outra coisa além de uma escola de incivilidade. (2006, p. 8).

Parece-nos, nesse sentido, que o problema é ainda mais intenso, visto que com a sua atual estrutura prática, o processo penal representa também um exímio mantenedor das relações de desigualdade social. O referido autor ressalta que aquele que se coloca a assistir ao processo penal como espetáculo não se considera um indivíduo como aquele que enfrenta a persecução criminal. Tal qual o gladiador era considerado coisa, e por isso se justificava a ausência de qualquer civilidade para com sua pessoa, o acusado também é encarado com o mesmo grau de dessubjetivisação. Vejamos (CARNELUTTI, 2006, p. 10): Considerar ao homem como uma coisa: pode haver uma fórmula mais expressiva de incivilidade? No entanto, é o que ocorre, infelizmente, nove de cada dez vezes no processo penal. Na melhor das hipóteses, os que se vão a ver, cerrados na jaula como animais no jardim zoológico, parecem homens fictícios mais que homens de verdade. E se algum se dá conta de que são homens de verdade, lhe parece que se trata de homens de raça ou, poderíamos dizer, de outro mundo. Este que assim pensa não se lembra, quando assim sente, a parábola do republicano e do fariseu1, e não suspeita que sua mentalidade seja propriamente a do fariseu: eu não sou como este.

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Lucas cap 18: 9 Propôs também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros: 10 Dois homens subiram ao templo para orar; um fariseu, e o outro publicano. 11 O fariseu, de pé, assim orava consigo mesmo: ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda com este publicano. 12 Jejuo duas vezes na semana, e dou o dízimo de tudo quanto ganho. 13 Mas o publicano, estando em pé de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: ó Deus, sê propício a mim, o pecador! 14 Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que a si mesmo se exaltar será humilhado; mas o que a si mesmo se humilhar será exaltado.

E continua Carnelutti com a seguinte ressalva: “o que é necessário, ao contrário, para merecer o título de homem civil, é inverter tal atitude, somente quando cheguemos a dizer, sinceramente, eu sou como este, então seremos verdadeiro dignos de civilidade” (2006, p. 10). Trata-se de um sério equívoco equiparar a figura do preso a do delinqüente. O delinqüente como tal, solto, é um ser captável pelo sistema penal, mas que uma vez capturado retoma seu status de homem e como tal deve ser tratado. Todavia, como já mencionado inicialmente, a prisão (e conseqüente instauração de um processo penal) em si representa tão-somente a consagração última de uma estrutura de persecução social excludente já bem desenvolvida, de forma que, evitar o cárcere (principalmente tratando-se de medidas cautelares) significa evitar o carimbo definitivo que qualifica o cidadão como criminoso, sendo, portanto, tarefa imprescindível. Nesse sentido, argumenta Alessandro Baratta (2002, p. 166): O aprofundamento da relação entre direito penal e desigualdade conduz, em certo sentido, a inverter os termos em que esta relação aparece na superfície do fenômeno descrito. Ou seja: não só as normas do direito penal se forma e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de desigualdade. Em primeiro lugar, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade.

O que se pode notar é que o direito e processo penal, em regra, coincide com um movimento externo a eles. Movimento tal que uma Constituição de cunho democrático e de conteúdo transformador intenta aniquilar. Conclui Baratta (2006, p. 167): O cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores, da assistência social etc. O cárcere representa, geralmente, a consolidação definitiva de uma carreira criminosa.

Dessa forma, a presunção de inocência de qualquer acusado é princípio a ser observado na ação repressiva do Estado (uma vez que é princípio constitucional assegurado expressamente no art. 5º, LVII da Constituição), sendo, inclusive, seu nível de observância o termômetro de qualidade do sistema processual penal (LOPES, JR. 2006, p. 185). Ressalta-se, todavia, que a presunção de inocência deve ser efetivada através de uma postura positiva do sistema penal, ou seja, devem todos aqueles envolvidos na

persecução criminal não somente se eximir de considerar alguém culpado antes do fim do processo, mas de fato tratá-lo como inocente (LOPES, JR, 2006, p. 186). De tal forma, a prisão cautelar sempre terá de ser vista como medida extremamente excepcional, uma vez que se trata da prisão de um inocente. Explica Aury Lopes Junior: É um postulado que será diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da idéia de que ele é inocente e, por tanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus diretos durante o processo (incluindo-se, é claro, a fase préprocessual). (2006, p. 188).

Acerca do tema se posicionou Eugênio Pacelli de Oliveira (2011, p 8): O princípio da inocência, ou da não-culpabilidade, cuja origem mais significativa pode ser referida à Revolução Francesa e à queda do Absolutismo, sob a rubrica da presunção de inocência, recebeu tratamento distinto por parte de nosso constituinte de 1988. A nossa Constituição, com efeito, não fala em nenhuma presunção de inocência, mas da afirmação dela, como valor normativo a ser considerado em todas as fases do processo penal ou da persecução penal, abrangendo, assim, tanto a fase investigatória (fase pré-processual) quanto a fase processual propriamente dita (ação penal). A Constituição da República, portanto, promoveu: a) a instituição de um princípio afirmativo da situação de inocência de todo aquele que estiver submetido à persecução penal; b) a garantia de que toda prisão anterior à condenação definitiva seja efetivamente fundamentada e por ordem escrita de autoridade judiciária competente.

Sequer a gravidade do delito importa ao respeito do referido princípio, ao passo que a alteração pela Lei 12.403/2011, no art. 313 do CPP, inciso I (quatro anos), embora traga inequívocos benefícios práticos aos encarcerados preventivamente, não guarda relação direta com a presunção de inocência. É certo que o legislador, neste ponto específico, utilizou-se do princípio da homogeneidade, de forma que a medida cautelar passou a manter coerência com a pena de prisão, ao passo que se não se espera pena de prisão com o fim do processo, não razão para que o indivíduo seja preso cautelarmente. A margem de quatro anos é coincidente com as hipóteses de cumprimento de pena em regime aberto, bem como as de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Além da difícil coexistência entre a presunção de inocência e as prisões cautelares, há ainda problemas de ordem teórica em relação à regulação desta modalidade de

encarceramento. Destaca-se que as prisões cautelares descendem de fundamentos e conceitos importados do processo civil, superados, a nosso ver, muito recentemente. Grande parte da doutrina identificava como requisitos da prisão cautelar o fumus boni iuris e periculum in mora, o que não poderia ter sido mais equivocado. Quanto ao equívoco se manifestou Aury Lopes Jr (2006, p. 200): No processo penal, o requisito para a decretação de uma medida coercitiva não é a probabilidade de existência do direito de acusação alegado, mas sim de um fato aparentemente punível. Logo, o correto é afirmar que o requisito para decretação de uma prisão cautelar é a existência do fumus commissi delicti, enquanto probabilidade da ocorrência de um delito (e não de um direito), ou, mais especificamente, na sistemática do CPP, a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Grifos no original.

Já em relação ao periculum in mora, e neste ponto o referido autor se reporta a Calamandrei, tem-se, preliminarmente, que não se trata de segundo requisito das cautelares, mas de seu verdadeiro fundamento. Outro equívoco era focá-lo na demora, ou seja, no “risco derivado do atraso inerente ao tempo que deve transcorrer até que recaia uma sentença definitiva no processo” (LOPES JR. 2006, p. 200). Tal raciocínio é acertado em se tratando da tutela cautelar civil, uma vez que no transcorrer exacerbado da prestação jurisdicional pode-se vir a ocorrer eventos que impossibilite a efetivação do direito quando da sentença, tal qual a dilapidação do patrimônio do réu. Em contrapartida, quando se trata do processo penal o sentido é outro (LOPES JR, 2006, p. 201): Aqui o fator determinante não é o tempo, mas a situação de perigo criada pela conduta do imputado. Fala-se, nesses casos, em risco de frustração da função punitiva (fuga) ou graves prejuízos ao processo, em virtude da ausência do acusado, ou risco ao normal desenvolvimento do processo criado por sua conduta (em relação à coleta de prova). Grifos no original.

Estamos, dessa maneira, diante de verdadeiro periculum libertatis, uma vez que o perigo está diretamente ligado ao estado de liberdade do imputado (LOPES JR, 2006, p. 201). Portanto, sendo este o fundamento e não requisito das prisões cautelares, inexistindo perigo de fuga, destruição de provas ou demais riscos (garantia da ordem pública ou da ordem econômica), não há razão para que o acusado seja privado de sua liberdade independentemente se a pena em abstrato do delito ultrapasse ou não quatro anos ou se o réu é

reincidente. Tanto a nova quanto a antiga regulação das prisões cautelares colidem com esse pensamento (embora, como já referido, a margem de quatro anos vem resguardando a coerência sistêmica). Para o autor com que aqui se dialoga, “as medidas cautelares são instrumentos a serviço do processo, para tutela da prova ou para garantir a presença da parte passiva”. Dessa forma, a prisão preventiva fundamentada na garantia da ordem pública ou e da ordem econômica seriam inconstitucionais, uma vez que não gozam da natureza cautelar (LOPES JR, 2006, p. 201). A princípio, contudo, discorda-se de tal pensamento, visto que, embora questionável, a Constituição Federal deixou a cargo do legislador ordinário estabelecer quais serão os casos de liberdade provisória (terminologia que também merece suas críticas), de forma que a partir de uma interpretação contrario senso do inciso LXVI do art. 5º da CF, temse que é também missão do legislador estabelecer as hipóteses de prisão preventiva. Não há que se confundir a fundamentação da cautelar na garantia da ordem pública (conceito genérico e que normalmente não guarda relação direta com o processo instaurado) com a falta de fundamentação. Existem nesse sentido reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, das quais destaca-se trecho de recente decisão do Ministro Gilmar Mendes: Também, considero que não se pode conceber como compatível com o princípio constitucional da não culpabilidade qualquer antecipação de cumprimento da pena. Outros fundamentos há para autorizar a prisão cautelar de alguém (vide art. 312 do Código de Processo Penal). No entanto, o cerceamento preventivo da liberdade não pode constituir um castigo àquele ou àquela que sequer possui uma condenação definitiva contra si. Parece evidente, outrossim, que uma execução antecipada em matéria penal configuraria grave atentado contra a própria ideia de dignidade da pessoa humana. Caso se entenda, como enfaticamente destacam a doutrina e a jurisprudência, que o princípio da dignidade humana não permite que o ser humano se convole em objeto da ação estatal, não há como compatibilizar semelhante ideia com a execução penal antecipada. Assim, entendo que o recolhimento à prisão, quando ainda cabe recurso da sentença ou acórdão condenatório, há de ser embasado em decisão judicial devidamente fundamentada em qualquer das hipóteses previstas no art. 312 do Código de Processo Penal. Na espécie, considerado o princípio constitucional da não culpabilidade (CF, art. 5º, LVII) e dada a ausência de indicação de elementos concretos aptos a embasar a constrição cautelar do paciente, a expedição de mandado de prisão pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro constitui evidente constrangimento ilegal [...].

Cumpre observar que a decisão impugnada, nos termos em que foi posta, inverte toda uma matriz de ordem constitucional. É que uma situação excepcional de constrição da liberdade de qualquer pessoa exige fundamentação idônea, nos termos do art. 312 do CPP. Mas não é só, na linha da jurisprudência deste Tribunal, porém, não basta a mera explicitação textual dos requisitos previstos, sendo necessário que a alegação abstrata ceda à demonstração concreta e firme de que tais condições realizam-se na espécie. (HC 107.178/RJ).

De toda forma, extrai-se da obra de Aury Lopes Jr (2006, p. 202): Para a decretação de uma prisão cautelar, diante do altíssimo custo que significa, é necessário um juízo de probabilidade, um predomínio das razões positivas. Se a possibilidade basta para a imputação, não pode bastar para a prisão preventiva, pois o preço do processo agrava-se notavelmente sobre as costas do acusado. Grifo no original.

As medidas cautelares têm por finalidade o resguardo do processo, na medida em que “buscam garantir o normal desenvolvimento do processo e, como conseqüência, a eficaz aplicação do poder de penar” (LOPES JR, 2006, p. 199). Daí o posicionamento de parte da doutrina processualista no sentido de que a prisão cautelar fundamentada na garantia da ordem pública ou ordem econômica seriam substancialmente inconstitucionais. De fato, tais fundamentos se distanciam da finalidade imediata da medida cautelar (instrumento do instrumento), entretanto, estão intimamente ligados a outros interesses constitucionais, aos quais o processo penal também serve. O processo em si é meio de apaziguamento social, portanto, a serviço da ordem pública. A preservação criminal, em última análise, assegura a própria segurança do imputado, evitando linchamentos e execuções sumárias, eventos que de toda forma, frustram a instrução criminal justa. Nesse sentido: Sucintamente, vemos que ao longo dos tempos já houve aproximação do conceito de ordem pública com a preservação da credibilidade do Estado na Justiça; igualando a garantia da ordem social com a garantia da ordem pública, somente sendo efetivada com a aplicação da lei penal; sendo sinônimo de periculosidade, ou gravidade do delito, como método de apaziguação social, tendo em vista o clamor público, ou seja, a revolta da população pela prática da infração; ordem pública inclusive em favor do acusado, na idéia de que é mais seguro deixar o réu encarcerado do que solto, a fim de garantir sua incolumidade, entre tantas outras. (ALBERTON, 2004, p. 186).

A medida de prisão nunca perderá, entretanto, a natureza excepcional, reforçada pela introdução de novas medidas cautelares no sistema processual brasileiro, devendo sempre ser decidida com fulcro na razoabilidade e proporcionalidade e muito bem

fundamentada, independentemente se intenta tutelar a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal. Qualquer que seja a medida cautelar exigida ou imposta, determinados princípios devem ser respeitados, são eles: a jurisdicionalidade, provisionalidade, provisoriedade, excepcionalidade e proporcionalidade. A observância de tais princípios é o que garante a coexistência de uma prisão sem sentença condenatória transitada em julgado com a presunção de inocência. Nesse sentido, a jurisdicionalidade, consagrada no art. 5º, LXI da CF, consiste no fato de que “toda e qualquer prisão cautelar somente pode ser decretada por ordem judicial fundamentada” (LOPES JR, 2006, p. 206). Já o princípio da provisionalidade se caracteriza pela natureza situacional das medidas cautelares (regra válida para qualquer das cautelares, lembrando que com o surgimento de medidas cautelares que mantém o réu, em tese, em liberdade, não será tolerado que o réu passe anos cumprindo desnecessariamente uma medida), sendo que “uma vez desaparecido o suporte fático legitimador da medida e corporificado no fumus commissi delicti e/ou no periculum libertatis, deve cessar a prisão” (LOPES JR, 2006, p. 207). Por outro lado, o princípio da provisoriedade exigiria que toda medida cautelar fosse temporária, o que não ocorreu com o novo regramento, persistindo a possibilidade da cautelar se manter, a princípio, durante todo o processo, constatada sua necessidade. O princípio da excepcionalidade, por sua vez, como explica Aury Lopes Junior, deve ser lido “em conjunto com a presunção de inocência, constituindo um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenhamos que tolerar a impunidade de algum culpado, pois tão grande como é a segurança dos delitos o é o das penas arbitrárias” (2006, p. 209). Por fim, o princípio da proporcionalidade vem ditar a intensidade da medida cautelar. Com a reforma, e o aparecimento de medidas cautelares novas, ou seja, diferentes da prisão, esta se tornou rigorosamente excepcional (previsão expressa do art. 282 do CPP e incisos). Assim, existindo outra medida cautelar, dentre aquelas do art. 399 do CPP, suficiente aos seus fins e diferente da prisão provisória, deverá ser decretada em detrimento desta última (isoladas ou cumulativamente, conforme o caso concreto).

Já alertava LOPES JR (2006, p. 212): A adequação informa que a medida cautelar deve ser apta aos seus motivos e fins. Logo, se houver alguma outra medida (inclusive de natureza cautelar real) que se apresente igualmente apta e menos onerosa para o imputado, ela deve ser adotada, reservando a prisão para os casos graves, como ultima ratio do sistema.

Interessante o posicionamento de Cláudia Marlisse Alberton, em estudo anterior à Lei nº 12.403/11: Diante dos exíguos mecanismos disponibilizados pela lei, o Juiz criminal, em muitas hipóteses, se vê diante da dicotomia do “prender” ou “não prender”, o que, como conseqüência, ou o leva a decretar prisões cautelares desarrazoadas ou, ao contrário, a assistir, passivamente, o esvaziamento do processo, não obstante estar diante de real necessidade de garantir a aplicação da lei penal, a instrução criminal ou mesmo a ordem pública. (p. 184).

2 Modificações mais intensas no regramento das cautelares com o advento da Lei 12.403/11 O sistema antigo era conhecido como sistema binário, por meio do qual ou era cabível a prisão cautelar (temporária ou preventiva) ou o réu permaneceria solto no decorrer do processo sem qualquer medida cautelar. O sistema novo é o multicautelar. O juiz, antes da prisão cautelar, tem que examinar se cabíveis às alternativas (previstas no art. 319 do CPP). Dentre as razões do surgimento da nova lei estão o fato de que 44% dos presos brasileiros estão presos cautelarmente, bem como a intenção de cumprir a Constituição Federal, fazendo da pena de prisão verdadeira extrema ratio da ultima ratio. Uma ratificação oriunda da nova legislação é no sentido de que não haverá mais execução provisória contra o réu (art. 283 do CPP). Tal entendimento já vinha sendo adotado por grande parte da jurisprudência, efetivando-se a execução provisória quando benéfica ao réu (exemplo da condenação em regime semiaberto de réu que está preso preventivamente). Outra mudança radical está impreterível separação de preso provisório com preso definitivo (art. 300 do CPP). A nova redação do artigo 300 do Código de Processo Penal, não mais meramente sugestiva, implicará em diversos problemas práticos, já que algumas comarcas não terão espaço físico para cumpri-lo.

Por fim, cabe dizer introdutoriamente que houve a supressão da possibilidade de se fundamentar a preventiva na vadiagem do imputado (art. 313 do CPP).

a) Prisão em flagrante Retoma-se primeiramente a questão da separação entre presos provisórios e definitivos imposta pelo art. 300 do CPP. É certo que a nova redação do artigo impõe de forma cogente que os presos provisórios fiquem separados dos definitivos. A saída aqui seria no sentido de que caso não haja vagas para os presos provisórios, a prisão preventiva não pode ser cumprida, devendo, portanto, o juiz decretar a prisão domiciliar ou outra medida preventiva. Não só o risco ao processo pode ser levado em conta, mais importante nessa fase é garantir que o Estado não leve o preso provisório ao risco de permanecer juntamente com condenados. Não é novidade que o preso novato está submetido às mais derivadas barbáries, devendo ser utilizado o mesmo raciocínio lançado mão pelo Supremo Tribunal Federal na questão da falta de vaga para progressão de regime, qual seja, quando réu que cumpre pena no regime fechado tem concedido o benefício da progressão para o regime semiaberto, e nesse não se encontra vaga, permanece o indivíduo no regime aberto, aguardando. Cabe lembrar que em tal hipótese trata-se de preso já condenado, não havendo razão para seja determinado tratamento mais gravoso ao preso provisório. Na ocorrência da prisão em flagrante, que agora deve ser comunicada ao Ministério Público, cabe ao juiz três caminhos: a) relaxar a prisão se for ilegal; b) converter a prisão em flagrante em prisão preventiva; c) conceder a liberdade provisória com ou sem medida cautelar (previsão contida no art. 310 do Código de Processo Penal). Se converter a prisão em flagrante em preventiva, exige-se que seja de forma fundamentada e que a fundamentação seja idônea. A mera repetição da letra seca da lei não é fundamentação idônea, deve o magistrado apresentar motivos concretos para a custódia precária. Já no caso da presença de excludentes de ilicitude, deve-se conceder liberdade provisória sob o compromisso de comparecimento em juízo, sob pena de revogação. Em regra, em nenhuma hipótese pode ser decretada prisão preventiva neste caso, o que colide com parágrafo único do art. 312, o qual admite a prisão preventiva para o caso de

descumprimento das medidas cautelares. Trata-se de fato de anacronismo mantido, visto existindo excludente de ilicitude, sequer crime há.

b) Prisão preventiva O art. 311 do Código de Processo Penal prevê as hipóteses de prisão preventiva e enumera os legitimados para requerê-la. O juiz ainda pode decretar preventiva de ofício, porém, agora somente na fase judicial. Não significa, todavia, a insubsistência da conversão do flagrante em preventiva de ofício, o que de fato continua sendo o procedimento normal. A intenção da mudança é a de manter o juiz eqüidistante. Pela nova regra a autoridade policial continua representando pela preventiva, a qual cabe ao Ministério Público requerer; A novidade é no tocante ao assistente de acusação que não podia requerer a prisão preventiva e sob a nova redação do art. 311 pode. Trata-se de medida de aproximação da vítima ao processo. Quanto ao art. 312, trata-se dos requisitos e fundamentos da preventiva. São os mesmos requisitos, quais sejam, prova da materialidade e indícios da autoria (fumus comissi deliciti). Quanto aos fundamentos, são eles a garantia da ordem pública (questionável por ser muito amplo; crítica de Paulo Rangel, Eugênio Pacelli de Oliveira e Aury Lopes Junior); garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal (quanto ao vernáculo “conveniência” o legislador perdeu a oportunidade de corrigir este, ao nosso ver, absurdo, visto que jamais se deve decretar uma prisão por mera conveniência, mas somente quando imprescindível); e a garantia da lei penal. Uma novidade no tratamento do tema está contida no parágrafo único do referido artigo. Segundo sua redação é cabível prisão preventiva no caso de descumprimento injustificado das cautelares impostas. Neste caso é necessária a garantia do contraditório e da ampla defesa, visto que somente no descumprimento injustificado poderá haver “regressão” (tal conclusão pode ser extraída da leitura do art. 282, §4º, §5º do Código de Processo Penal). Questiona-se: no caso de descumprimento, deverá ser observado os requisitos do art. 313 (pena máxima superior a 4 anos; réu reincidente em crime doloso; violência doméstica)? Rogério Sanches diz que sim; Eugênio Paccelli entende que não.

O art. 313, por sua vez, dispõe acerca das condições de admissibilidade da prisão preventiva. Vejamos: I – pena máxima superior a quatro anos: entende-se que o legislador foi coerente, pois são crimes em que caberiam regime aberto e substituição (penas alternativas); II – réu reincidente em crime doloso: para os casos concretos que aqui se enquadram, não importa a pena máxima, sendo o réu reincidente cabe a prisão preventiva; III – violência doméstica e casos análogos para garantir medidas protetivas.

c) Liberdade provisória e fiança A fiança, teoricamente, perdeu um pouco de força, visto que agora figura ao lado de diversas medidas cautelares. De toda forma, cumpre destacar que deve respeito aos princípios da adequação, razoabilidade e proporcionalidade. Há uma ressalva muito importante de ser feita: a prática de crime inafiançável não implica em prisão preventiva obrigatória, necessária. Quando é vedada a fiança, nos ditos crimes inafiançáveis (racismo, tortura, tráfico, terrorismo, crimes contra a ordem nacional), há a possibilidade de liberdade provisória de se decretar outra medida cautelar. Ainda, sob a nova Lei, tem-se que no caso de liberdade provisória quando da ocorrência de excludentes de ilicitude, a única obrigação dessa cautelar é o comparecimento obrigatório em todos os atos do processo. Portanto, a liberdade provisória com fiança deverá ser utilizada sempre que a preventiva não for necessária. Nesse caso, o juiz avalia a necessidade da fiança (que é necessária, importante) e a determina, podendo aplicar outras cautelares em conjunto (art. 319). Já a liberdade provisória sem fiança destina-se para os casos em que se pode aplicar as demais cautelares e o juiz não julga necessário a fiança. A fiança poderá ser arbitrada ainda pela autoridade policial no caso de crime punido com até quatro anos de prisão; no caso de pena prevista superior a quatro anos, caberá ao juiz arbitrar a fiança. O art. 350 prevê possibilidade de liberdade provisória sem fiança quando o réu não tem condição financeira de arcar com tal medida. Todavia, este artigo ficou incoerente no texto, já que existem outras medidas.

No caso do crime de tráfico de drogas, há hoje dupla interpretação no Supremo Tribunal Federal: parte da Suprema Corte argumenta que não cabe liberdade provisória, uma vez que o legislador optou por vedar a medida cautelar expressamente; Já a 2ª turma argumenta que cabe, pois deve ser valorizado o caso concreto.

CONCLUSÃO Diante de tão drásticas inovações e de sua recente vigência seria pretensiosamente temeroso um diagnóstico definitivo quanto às novas medidas cautelares. Todavia, há que se adiantar que o alargamento do poder estatal sob o réu que se presume inocente não pode ser visto como avanço inquestionável da legislação. O estado de inocência, bem respeitado, é aquele sob o qual não incida qualquer restrição de liberdade do acusado. Nesse ponto a legislação anterior, por se caracterizar por tudo ou nada (ou prende ou solta) era mais coerente com aquele que tinha a liberdade provisória concedida (embora a liberdade provisória contasse com determinadas condições). Todavia, e aqui se aponta a grande vantagem da nova Lei: quando o réu que anteriormente responderia ao processo preventivamente preso, hoje receber em substituição uma das outras medidas cautelares estar-se-á respeitando em maior grau sua inocência. O cuidado que se espera então é com a não banalização das medidas cautelares, já que não raro o réu figurava solto sem qualquer pesar. O novo regramento da fiança, bem como do monitoramento eletrônico, por exemplo, devem ser encarados com o máximo bom senso.

REFERÊNCIAS ALBERTON, Cláudia Marlise. Tutelas de urgência, emergência e evidência: a questão da sumarização frente ao processo penal garantista. In CARVALHO, Salo de (org). Leituras constitucionais do sistema penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus nº 107.178/RJ. Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes. CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Sorocaba, SP: Editora Minelli, 2006.

LOPES JR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011.