Autonomia e responsabilidade na tomada de decisão clínica

Autonomia e responsabilidade na tomada de decisão clínica em enfermagem Lucília Nunes 1 Sob o tema deste painel - centralidade dos cuidados de enferma...

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Autonomia e responsabilidade na tomada de decisão clínica em enfermagem Lucília Nunes 1

Sob o tema deste painel - centralidade dos cuidados de enfermagem nas práticas - o enfoque vai ser dado à acção, suportada e enraizada na tomada de decisão - portanto, pensando no REPE, na prestação como na gestão, na formação e na investigação relativas aos cuidados. Olhando para o TÍTULO, três questões imediatas se impõem: # De que falamos, quando falamos de autonomia? # O que queremos dizer quando falamos de responsabilidade? #

Como se podem encarar ambas – a autonomia e a responsabilidade –

enquanto fundantes ou como referenciais da centralidade nos cuidados, na tomada de decisão clínica em enfermagem? Na generalidade, e porque se deve ir dizendo o que se pretende advogar, vou defender que a autonomia e a responsabilidade são fundantes da centralidade nos cuidados, na tomada de decisão. Comecemos porém, por analisar estes elementos do título e, naturalmente, pela AUTONOMIA. Pela década de 60, o princípio do respeito pela autonomia da pessoa tornou-se uma das principais ferramentas da filosofia moral, em particular da ética aplicada. Juntamente com o conceito mais antigo de justiça, o princípio da autonomia formou os alicerces morais para o surgimento daquilo que ficou conhecido como a "cultura dos direitos". Se atentarmos bem, os princípios da autonomia e da justiça, participam da tarefa difícil, mas necessária, da construção da cidadania porque se tenta fazer cohabitar duas exigências igualmente legítimas, mas logicamente em conflito: (1) por um lado, o particular das liberdades, preferências e interesses pessoais, pertencentes ao 1

Presidente do Conselho Jurisdicional, Ordem dos Enfermeiros. Doutorada em Filosofia, com tese sobre «Justiça, Poder e Responsabilidade: articulação e mediações ns cuidados de enfermagem». Mestre em Ciências de Enfermagem e em História Cultural e Política. Curso de Especialização em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica. Professora-adjunta e Responsável da Área Disciplinar de Enfermagem na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal. Investigadora na unidade de investigação & desenvolvimento em enfermagem.

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campo dos direitos de cada pessoa; (2) por outro lado, o universal das necessidades e interesses comunitários e colectivos, pertencentes ao campo dos direitos de todas as pessoas. O conceito de autonomia moral joga um papel cada vez mais importante no campo da ética aplicada e da filosofia política contemporânea, juntamente com o conceito correlativo representado pelo princípio da responsabilidade, entendida sobretudo como responsabilidade colectiva e para com o futuro. Mas já iremos à responsabilidade.... Às vezes, pergunto às pessoas se sabem o que o seu próprio nome quer dizer. Porque cada palavra, cada nome, tem uma raíz, uma certa arqueologia própria. E pode ser importante para perceber o sentido que teve e que hoje tem, um determinado conceito. Etimologicamente, autonomia é de origem grega composta pelo adjectivo pronominal autos, que significa "o mesmo", "ele mesmo" e "por si mesmo", e pelo substantivo nomos, com o significado de “instituição", "lei", "norma", "convenção" ou "uso". No sentido geral, autonomia indica a capacidade humana em dar leis a si próprio ou a condição de uma pessoa ou de uma coletividade, capaz de determinar por ela mesma a lei à qual se submete. Existe aqui uma ambiguidade entre a referência à esfera individual e à esfera coletiva e, ainda, entre um conteúdo ideal (que indica a capacidade de autodeterminação e uma pessoa ser o verdadeiro autor das suas acções, teorizada por Kant como autonomia da "boa vontade", enquanto condição necessária da moralidade de uma acção), e um conteúdo de realidade, consistente no facto de cada um de nós estar vinculado aos seus semelhantes por meio de instituições tais como leis, normas, convenções e usos, legitimadas colectivamente. Afirmaria Kant que a autonomia é a competência da vontade humana em dar-se a si mesma a sua própria lei e que é nosso dever tentar atingir a autonomia moral, assim como respeitar a autonomia dos outros. Aliás, ele sintetiza isto no imperativo universal do dever: age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma lei universal; e pelo imperativo prático de agir de tal modo se tome cada ser humano como um fim em si mesmo e nunca um

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meio ou um instrumento de outra vontade. Talvez, se pensarmos um pouco, não seja difícil perceber que o modelo kantiano é ideal, que a autonomia está sempre numa relação complexa com aquilo que a ameaça e pode destruir, ou seja, a heteronomia, que é o seu antónimo. O conceito de autonomia, conceito aparentemente simples, é, de facto, complexo. Entendendo a autonomia plena como a escolha concreta de um acto autónomo, numa autonomia das preferências, a liberdade em relação aos condicionamentos externos é certamente uma condição necessária mas não suficiente. Afinal, as nossas "preferências" podem muito bem ser induzidas, razão pela qual uma preferência não é necessariamente uma autêntica preferência, quer dizer, fruto do exercício da autonomia pessoal. Neste sentido, uma outra condição necessária parece ser a reflexão sobre as preferências, que pode ter o resultado de fazer mudar, após uma análise racional e imparcial, a preferência que pensámos antes. Mas mesmo neste caso existem problemas, pois falta ainda definir o grau de auto-reflexão necessária para poder considerar uma preferência como plenamente autónoma. Ademais, fora de um contexto kantiano de discussão, que obriga a sempre respeitar um princípio, como avaliar o grau de autonomia em contextos específicos? Tomamos decisões no sentido de um agir que responda às necessidades das pessoas – por isso, a tomada de decisão não se dispensa, nem a ela não se renuncia. Mais a percebemos como realidade a que não é possível escapar. A ideia de não escolher ou de se abster de uma escolha é, em si mesma, uma escolha. Afirmo, sem grandes dúvidas, que não há senão escolhas. E, enfim, um certo espaço ao acaso... O AGIR é, simultaneamente, fundado pela autonomia (que se exerce ao agir) e pela responsabilidade - e se tomar decisões é assumir responsabilidade, também decorre de se ter responsabilidades. Muitos factores interferem nas decisões, decerto – tanto os externos como os internos, designadamente, as emoções e o grau de autoconsciência de si.

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Equacionemos agora a

RESPONSABILIDADE – o que é uma tarefa de risco,

sobretudo pelos diversos níveis a que se pode referir. Falamos de responsável como traço de uma pessoa, como característica de uma acção, da responsabilidade como uma categoria legal e como dever associado a uma função ou papel. Tanto se exige discernimento e capacidade para ajuizar como se define, classicamente, como a capacidade e a obrigação de assumir os actos e as respectivas consequências. Assim, escolheria três ideias para abordar a responsabilidade: a capacidade, a obrigação e o compromisso. # a capacidade tenhamos em conta que a fragilidade humana expressa-se na relação autonomia-vulnerabilidade, e, por isso, também se diz no vocabulário do poder e do não-poder. Afirmou Ricoeur que este par capacidade/incapacidade é “a forma mais elementar do paradoxo da autonomia e vulnerabilidade”. As diferentes formas de impotência que temos, expressam e reflectem as nossas incapacidades. E é certo que podemos ter dúvidas sobre a capacidade (a falta do acto de confiança) ou ter incapacidades em si mesmas (sejam resultantes da doença ou do envelhecimento, sejam decorrentes do poder domínio exercido sobre nós). Ser-se-capaz é muito próximo de estar preparado para responder, para prestar contas e para ser julgado, mormente à luz das promessas que fez ou dos compromissos assumidos. E ser capaz é poder, considerando que a responsabilidade se estende tão longe quanto as nossas capacidades. A capacidade da pessoa é uma questão central, tanto no sentido da capacidade de (de exercício dos poderes, de causar danos) como da capacidade para (ser imputável, ser responsável). O que age é aquele que pode: a relação da acção com quem age é uma relação do meu eu com o conjunto dos meus actos, sejam eles pensamento, palavras ou acções. Ou seja, não apenas realizamos as nossas acções, também as pensamos e as dizemos.

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# a obrigação que estabelece laços entre duas partes, refere-se a “cumprir certos deveres, assumir certos encargos, de manter certos compromissos”. Podemos ligar o dever à norma, o encargo ao tomar conta e o compromisso à promessa feita – e, assim, pensar a obrigação tanto em sentido do prescritivo, como da incumbência de cuidado ou da fidelidade à palavra dada. A responsabilidade reflecte uma obrigação, seja, como no direito civil, a obrigação de reparar o dano que se causou por um erro ou uma falta, seja, como no direito penal, pela obrigação de suportar o castigo. Há aqui um sentido duplo da obrigação: de reparar o dano e de sofrer a pena. # o compromisso Notemos que existe um “elemento da capacidade construtora de universos na faculdade humana de fazer e de cumprir promessas”, como afirmou Hannah Arendt. Com-prometer-se é virado para o futuro, como quando um formado se compromete a cumprir os deveres profissionais. A promessa supõe o penhor de manter a palavra dada – e combina o respeito de si, do outro e pela própria coisa prometida. Por isso, pode a promessa ser pensada como o garante da identidade do sujeito moral. Compromisso significa que a responsabilidade de um sujeito da acção é inseparável da ideia de missão, no sentido de que existe uma determinada tarefa a cumprir. Ricœur afirma que a “RESPONSABILIDADE” sofre de ambiguidade e apresenta-a em dois sentidos: no mais débil, diz-se responsável o que é o autor dos seus actos (aqui recomenda utilizar o termo imputação) e, no sentido mais forte, a “verdadeira responsabilidade não é senão a que se exerce a respeito de alguém ou alguma coisa frágil, que nos será confiada”. Neste sentido, é preciso que alguma coisa ou alguém me seja confiado, por Outro, para que eu possa ser tida por responsável. E ser responsável ultrapassa a capacidade de designar a si mesmo como o «verdadeiro autor» de uma acção cometida ou de assumir a acção realizada – delineia-se “como ter a cargo uma certa zona de eficácia”, onde a fidelidade à palavra dada é posta à prova. A responsabilidade configura-se em ligação a um encargo confiado (e por tal criador de obrigação) e a algo vulnerável, que pode perecer a menos que os cuidados de alguém tornado responsável o procure assegurar. II Congresso Ordem dos Enfermeiros Lucília Nunes 10 de Maio, 2006

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Ora, o que existe mais frágil do que a Vida? E mais protector do que os CUIDADOS? Esta ideia de algo em risco refunda a responsabilidade na fragilidade da vida e o reforço a uma promessa, um compromisso solene em que quem promete se (com)promete. Clarificadas as duas primeiras questões, em síntese, pensemos um pouco sobre o julgamento e a decisão. Entendamos que julgamento é a avaliação das alternativas e a decisão é a escolha entre as alternativas. No nosso contexto, na prática de enfermagem, podendo estar ou ser separados, o julgamento e a decisão estão interligados e são, frequentemnte, discutidos como uma entidade única. As teorias do julgamento e da tomada de decisão podem ser subdivididas como sendo normativas, descritivas e prescritivas. As normativas concentram-se em como as decisões devem ser tomadas num mundo ideal e enunciam normas. As teorias descritivas procuram explicitar como é que as pessoas alcançam os juízos e decisões. Finalmente, as teorias prescritivas procuram analisar a forma como as pessoas fazem juízos e tomam decisões para procurar prescrever. Talvez a teoria descritiva mais influente na tomada de decisão e de juízo clínico, usada como base de muitos estudos em enfermagem, seja a do processamento de informação. E existem diversas sequências de etapas, de acordo com diversos autores. Julgo que mais relevante é perceber que todas elas têm elementos comuns, como, por exemplo: - a recolha de informação preliminar - a seguir, equacionar várias hipóteses, umas mais plausíveis que outras - processo de raciocínio interpretativo, em que se inclui os elementos diferenciais - pesam-se prós e contras das hipóteses ou alternativas colocadas - e escolhe-se a que fôr favorecida por maior evidênca. Tomar decisões faz parte do dia-a-dia. Muitas vezes, decide-se sem grandes análises e, também, sem uma avaliação acurada do que se está a fazer. Situações simples, habituais, não levantam dúvidas. Mas quanto menos familiares (logo, mais

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instáveis e ambíguos) forem os problemas, mais morosa e analítica tende a ser a estratégia da decisão. Face a uma situação nova (ou inesperada) em que se exige uma decisão, somos desafiados (ou forçados) a reflectir no que estamos a fazer e temos de explicar os motivos que nos levaram a agir (ou não) de determinada forma. As decisões morais têm de ser fundamentadas pelo menos em 5 elementos: numa cuidadosa deliberação racional sobre os factos existentes, no exame dos princípios morais relevantes, na apreciação das opções e possibilidades (chamo-lhes «cenários»), na monitorização dos efeitos e consequências das acções e na identificação de lições para o futuro. Atentemos um pouco à deliberação, pois que deliberar trata de chegar a um acordo sobre um certo número de questões que se consideram importantes, moralmente salientes, com consequências futuras. As questões primordiais da deliberação são: o que fazer para obter um determinado resultado? E como o fazer? A deliberação, distintamente da decisão, põe necessariamente em jogo a subjectividade - inscreve-se numa cadeia conceptual que parte do desejo e da vontade e se conclui com a escolha e a decisão; o objecto da escolha é o voluntário, o deliberado, prévio ao levar a cabo da acção. O processo que nos conduz da vontade à acção – e a questão da deliberação encontra-se no coração da teoria da acção – é, todo ele, um processo de concretização do possível humano. Para haver deliberação, com efeito, é necessário que o desejo seja realizável, se enquadre dentro dos nossos possíveis (embora possa obviamente haver erro na avaliação dos possíveis). E a posição do desejo no início da cadeia é fundamental. Não deliberamos, com efeito, sem antes desejar um determinado fim (prestar cuidados excelentes, por exemplo). É como se a acção supusesse uma prévia escolha racional por relação a um valor. Assim, a partir de um desejo, afirmamos um fim, e deliberamos sobre os meios próprios para atingir esse fim. Há, deste modo, um ponto de partida da deliberação, que é afirmado pelo desejo e pela vontade. Acresce-se que não deliberamos sobre tudo - deliberamos apenas sobre o futuro, e sobre aquilo que, no futuro, nos aparece indeterminado e dependente de

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nós. Assim, podemos sem dúvida desejar que um determinado cliente se trate mas isso não constitui matéria para deliberação, pois que não depende de nós. Não deliberamos, igualmente, sobre aquilo que, pura e simplesmente, nos acontece, sem intervenção da nossa vontade. E, em qualquer deliberação, certas considerações oferecem uma maior “prioridade deliberativa”, isto é, damos-lhes naturalmente mais peso do que a outras no contexto da nossa deliberação. O campo da deliberação, como Pierre Aubenque salientou, é o campo indeterminado da acção humana, o campo da contingência, intermédio entre a necessidade e o acaso, o campo daquilo que pode ser de uma maneira ou de outra, o domínio do inacabamento humano, da não-transparência. Finda a deliberação, decidimos e, salvo uma sempre provável e inoportuna manifestação de fraqueza de vontade, agimos de acordo com a nossa escolha. A boa deliberação e a boa acção medem-se, pelo menos parcialmente, pela sua eficácia. Assim, em termos gerais, a acção moral é concebida de modo similar ao modelo da acção técnica, de pôr em prática certos objectivos. Encontramo-nos face a situações que são sempre, num certo sentido, únicas, e trata-se de saber qual a ocasião, o momento favorável, para agir. Somos nós que temos de decidir: decidir no tempo, e segundo a nossa opinião. E o acto voluntário inscreve-se sempre num contexto que o limita: a situação presente, o momento no qual ele ocorre. A deliberação leva o seu tempo: “É preciso executar rapidamente o que foi deliberado, mas deliberar lentamente”, afirmou Aristóteles. Há uma boa duração da deliberação: nem demasiado breve, nem demasiado longa; com efeito, ela não se pode prolongar infinitamente: é preciso pôr um ponto final na deliberação. Deliberar é determinar – e qualquer deliberação, como qualquer acção, comporta um risco que não podemos esquecer. Decidir é escolher uma acção de entre várias possíveis e dirigida para a resolução de um determinado problema. Por aqui se vê que a decisão pode ser orientada segundo uma ideologia, condicionada por crenças e valores, pelas prioridades e/ou pelos objectivos. Por outro

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lado, resolver o problema (que era o pretendido) é condicionado pela escolha (supôrse-ia da melhor acção) e à existência (ou não) de competências para a levar a cabo. De certa forma, pode pensar-se se a nossa decisão acerca dos cuidados a prestar ou que prestamos, é orientada pelas normas da instituição, pelas regras ou cultura da organização, pelas nossas necessidades ou interesses como profissionais ou se se centra nos próprios cuidados... Pensar sobre isto, é inquietante. É quase inevitável que me ocorra que a ideia de Heidegger, de que o pensamento é "um hóspede inquietante". Abre-se-lhe a porta e ele entra sossegadamente. Depois... torna-se "um vendaval", que pode pôr a esvoaçar uma série de ideias, conceitos, coisas julgadas-sabidas. Estaremos de acordo que pensar é um exercício de reflexão e de consciência. Debruça-se e refere-se aos valores que integramos, às condutas que temos, às atitudes que valoramos, às procuras que fazemos, em suma, aos perfis das pessoas em que nos queremos ir tornando. Julgo que pensar é trazer as coisas, que nos acontecem e que acontecem em nós, ao exercício da consciência. Posto isto, pode acontecer que pensar ponha em causa, ou seja, interrogue o sentido do socializado, do que reproduzimos porque «sim», porque «sempre assim foi», porque «toda a gente faz assim» ou pelo que julgamos que esperam de nós. Pode ainda acontecer que sejamos conguentes com o pensar e que, por via de termos pensado, modifiquemos (devagarinho, pois) os hábitos instalados. Aliás, isso seria a face visível do pensar (que o que pensamos, por si só, realmente não se vê – ou o dizemos, ou o escrevemos e, sobretudo, o agimos). Também me parece que pensar não muda o mundo, nem nos torna mais sábios por si só. Mas o que somos ou nos tornamos sem o pensar?! Viviane Forrester escreveu que “nada é mais mobilizador do que o pensamento”. Aliás, há quem afirme que não existe actividade mais subversiva, mais temida e também mais difamada que o pensamento e que o mero facto de pensar é já político. E muitas vezes ”é mais difícil pensar em contextos onde se trava alguma resistência contra o pensamento. Contra a capacidade de pensar. Capacidade que, no entanto, representa e representará cada vez mais o nosso maior recurso”.

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Parece haver sempre pessoas prontas a dizer-nos o que queremos, a explicarnos como nos são as coisas e a mostrar-nos no que devemos acreditar ou o que devemos fazer. E, às vezes, dependendo do estadio de desenvolvimento de cada um, até parece mais fácil seguir as indicações... mas lembremo-nos da questão da autonomia e da heteronomia! Por outro lado, corremos também o risco de tomar como manifestações de autonomia algumas coisas que o não são... Citaria três máximas relevantes, que vêm desde Kant, relativas: 1 - a pensar por si próprio (ou seja, recusar pensar por procuração, para usar a expressão kantiana, pois face à tradição e à autoridade, é importante um pensamento pessoal e ousar pensar por si), 2 - a desenvolver uma mentalidade alargada (colocar-se, em pensamento, no lugar dos outros e julgar a sua conduta e os seus efeitos sobre os outros) e, em terceiro, 3 - estar de acordo consigo mesmo - faz recurso à consistência, ao pensamento consequente. E, já agora, consideremos que pode fazer diferença para as pessoas, e para os ganhos em saúde, a acção autónoma e responsável dos enfermeiros. Enquanto enfermeiros, actuamos nas áreas da prestação de cuidados, da gestão, da formação, da investigação. De acordo com o REPE, as intervenções de enfermagem são autónomas e interdependentes – e a diferença está no prescritor, em quem inicia o processo de prescrição de cuidados. Por isso, diria que os enfermeiros prestam cuidados sempre de forma autónoma. O enfermeiro não é o profissional que age por indicação de outrem. A interdependência configura-se simplesmente em relação ao início do processo prescritor e mesmo quando outro profissional prescreve, é o enfermeiro que assume a responsabilidade pelos seus próprios actos (e pelas decisões que toma). O

dever

é

co-responsabilizar-se

e

trabalhamos

em

articulação

e

complementaridade sendo que as nossas decisões quanto aos cuidados e a nossa responsabilidade perante as pessoas de quem cuidamos não apenas nos pertencem como nos constituem profissionalmente.

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A

autonomia

tem

de

reflectir-se

em

qualquer

tomada

de

decisão,

inevitavelmente ligada à nossa capacidade, à nossa obrigação profissional e ao compromisso – e mandato social - que assumimos. E temos de gerir bem a autonomia, sem cair no excesso ou no defeito – ou seja, sem prescindirmos de sair para o mar mas sem nos afoitarmos de tal modo que naufragamos. Se quisermos usar a analogia da luz, temos a mesma ideia, de que não podemos permanecer no escuro nem sair inopinadamente para o sol do meio dia – o que provocaria um outro tipo de cegueira, tão ou mais perigosa do que a que resulta da escuridão. Eventualmente, haverá contextos e áreas de actuação em que parece poder ser mais evidente o exercício da autonomia responsável. È o caso da investigação, por exemplo. Pareceria que um investigador age sempre no domínio da autonomia científica. Todavia, a sua responsabilidade continua a ser com a centralidade nos cuidados, e com o desenvolvimento da disciplina de enfermagem. Da gestão, dir-se-á que existe uma relação evidente com a Liderança. A principal responsabilidade do enfermeiro chefe é responder pela qualidade dos cuidados de enfermagem no seu serviço. E promover o desenvolvimento de competências dos profissionais, orientar o seu desempenho, são meios para essa finalidade, que é a melhoria da qualidade dos cuidados. No ensino, a tarefa mais relevante do professor é a de dotar o estudante de instrumentos que lhe permitam desenvolver uma aprendizagem significativa e vir a ser um profissional reflexivo, autónomo e responsável. A formação desenvolve-se em torno das respostas ás necessidades de aperfeiçoamento e de desenvolvimento dos profissionais – para que estes prestem desenvolvam a qualidade e a segurança dos cuidados. A prestação de cuidados, como o próprio nome indica, centra-se no cuidado a uma pessoa. E aqui, a centralidade do centro da nossa preocupação é mesmo a pessoa que temos ao nosso encargo e que nos cabe e nos comprometemos cuidar. Daí, que a autonomia e a responsabilidade se configurem como fundantes da centralidade dos cuidados, em qualquer área de actuação do enfermeiro. Sendo que a II Congresso Ordem dos Enfermeiros Lucília Nunes 10 de Maio, 2006

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nossa própria razão de ser, enquanto profissionais, decorre da necessidade de cuidados, que deverão ser prestados com excelência, equidade e proximidade: porque somos enfermeiros.

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