“Cidade da Mestra Jardecilha”: memória e identidade de um território simbólico em Alhandra (PB)1. Francisco Sales de Lima Segundo Mestrando do Programa de Pós-graduação em Antropologia (UFPB/Paraíba). Resumo Este trabalho pretende analisar a construção da Cidade da Mestra Jardecilha como um território simbólico, na perspectiva da identidade e da memória, que se insere no contexto do culto da Jurema Sagrada, no município de Alhandra (PB). Este lugar está associado à prática religiosa desta importante mestra juremeira, marcando um espaço de construção do sagrado deste culto no centro do município, fazendo parte da memória local, e referendando as identidades dos sujeitos como juremeiros. Entendendo a Jurema Sagrada dentro de universo complexo de significados, este trabalho de pesquisa tem como objetivo reconstruir parte da história de vida da Mestra Jardecilha, investigando as memórias acerca da dinâmica da sua prática espiritual, as representações subjetivas do seu espaço, tão como sua influência como liderança religiosa na região, através da memória coletiva local. Para isso, analisarei as identidades culturais dos juremeiros de Alhandra a partir das suas narrativas orais, e que fazem deste município o epicentro da cosmologia e do universo mítico da Jurema Sagrada. Isto também no intuito de examinar a constituição das “Cidades da Jurema” como territórios simbólicos, no qual a Cidade da Mestra Jardecilha se insere, de como estes espaços são representados e resignificados pelo imaginário dos juremeiros, e como eles repercutem na construção das identidades destes sujeitos. Palavras-chave: Identidade; Memória; Jurema Sagrada. Este artigo pretende analisar a construção de um território simbólico, na perspectiva da identidade e da memória, inserido no contexto do culto espiritualista da Jurema Sagrada, no município de Alhandra, localizado na microrregião do Litoral Sul 1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, em Natal (RN).
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da Paraíba. Este lugar refere-se à “Cidade da Mestra Jardecilha”, que está diretamente associado à prática religiosa desta importante mestra juremeira, marcando um significativo espaço de construção do sagrado deste culto no centro do município, fazendo parte da memória da população local, e referendando as identidades culturais dos sujeitos da cidade como juremeiros. Ao ir em busca da compreensão das relações subjetivas entre estes sujeitos com os seus espaços rituais, a ideia deste trabalho é de, a partir da história de vida da Mestra Jardecilha, buscar apreender os sentidos simbólicos que os juremeiros definem como importantes e reais, indo ao encontro de uma “espécie de relação secreta e emocional que liga os homens a sua terra e, no mesmo movimento, funda sua identidade cultural” (BONNEMAISON, 2002, p. 103). Para compreender parte deste contexto, descreveremos um trabalho espiritual realizado no terreiro do Templo Espírita Mestra Jardecilha, com o intuito de visualizar como o espaço está posicionado atualmente no contexto da religiosidade juremeira no município. E, em seguida, farei uma breve discussão sobre os elementos formadores da identidade relacionados com o culto da Jurema Sagrada, a partir das leituras de Castells (2003), Haesbaert (1999), Hall (2006, 2007) e Woodward (2007), levantando também considerações sobre a importância da memória neste processo (BOSI, 2003). A Jurema Sagrada e suas representações simbólicas. Mas antes de estudar a “Cidade da Mestra Jardecilha”, mais especificamente, é necessário compreender em que contexto ela se insere dentro da cosmologia da Jurema Sagrada. A jurema2 é uma árvore (Mimosa hostilis Benth) encontrada com bastante abundância no semiárido nordestino, e que, antes mesmo da colonização, era cultuada como um elemento sagrado por diversas etnias indígenas desta região, por conta de seus poderes mágicos. Isso foi observado por Sangirardi Jr., quando ele afirma que “a jurema era usada ritualmente por tribos de dois grandes grupos indígenas que habitaram o Nordeste: Jê, os tapuias dos antigos escritores, e Kariri” (1983, p. 193). Também ratificando esta ideia, Salles indica que, “de fato, os elementos indígenas nas cerimônias e a importância da Jurema na construção/manutenção da identidade étnica para a maioria dos índios nordestinos, entre 2
Farei, durante todo o trabalho, uma distinção entre Jurema (em maiúsculo) referente à elementos de sua cosmologia ou mesmo compreendendo-a como religião – a Jurema Sagrada – , e jurema (em minúsculo) quando fizermos referência unicamente a árvore. 2
outros aspectos, evidenciam essa procedência” (2010a, p. 39). Conforme afirma Bairrão, dentro do campo simbólico juremeiro, há representações que vão muito além de sua definição meramente botânica: ela é a “raiz, o tronco-mãe de uma série de desdobramentos e desenvolvimentos espirituais” (2011, n.p.); a Jurema é um “plano astral dos espíritos e seres encantados cultuados na difusa espiritualidade brasileira”, que se manifestam como índios, caboclos, pretos-velhos e mestres juremeiros; é uma bebida – o vinho da Jurema; ela é “uma índia metafísica” – “atende pelo nome de Jurema uma representação antropomórfica do sagrado florestal”, e do princípio feminino da criação divina. Em muitos rituais, convivem a bebida e a cabocla juntos. A Jurema é uma cidade – a “Cidade da Jurema”: uma cidade invisível, mas que tem suas repercussões e representações simbólicas também manifestadas no espaço, assim como, na memória coletiva. É possível afirmar, a partir do imaginário simbólico construído e que transcende a própria árvore, que a imagem que ela sucinta é apresentada “enquanto um conjunto de significações, que é verdadeira, e não uma única das suas significações, ou um único dos seus inúmeros planos de referência” (ELIADE, 1991a, p. 11-12). Desta forma, a Jurema apresentase por meio do arquétipo da “Árvore do Mundo” proposta por Eliade: o elemento de onde irradia as ligações do homem com suas verdades míticas, em que ela “se revela como 'cifra' do mundo, apreendida como realidade viva, sagrada, inexaurível” (1991b, p. 216). “A árvore imaginada é insensivelmente a árvore cosmológica, a árvore que resume um universo, que faz um universo” (BACHELARD apud. CABRAL, 1997, p. 40). Como esta religiosidade vem a ser polarizada no litoral da Paraíba, ainda não está bem claro para os estudiosos do tema. Sabe-se que o município de Alhandra foi fundado a partir da instauração do aldeamento de Aratagui no século XVI, por missionários jesuítas, passando depois para as mãos dos franciscanos, onde era originalmente habitado por índios Tabajara (MURA, PALITOT, MARQUES et. All, 2010) . Mas com o Diretório Pombalino de 1758, que instituiu que os aldeamentos missionários fossem transformados em vilas, também “determinava que fossem alocados o maior número de índios possível” (CUNHA, 2011, p. 06) nestas localidades. Neste movimento, Medeiros afirma que houve uma “transposição geográfica de um traço cultural, causada pelo deslocamento das populações indígenas do interior do semiárido até as proximidades do litoral, por ocasião da expansão colonial em direção aos sertões” (2006, p. 124). Neste encontro colonial, estas etnias quando não foram exterminadas por completo, foram escravizadas e levadas para os aldeamentos já
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estabelecidos no litoral, a qual a Vila de Alhandra fazia parte, onde serviram de mão-de-obra escrava nas plantações de cana-de-açúcar. Em contraposição a esta lógica, parte dos indígenas passaram a se agrupar em mocambos, que consistiam em grupos de indivíduos de diversas etnias distintas, “que, ao fugirem e se reunirem em meio à floresta, passavam a desafiar a ordem estabelecida pelos senhores coloniais” (ibidem, p. 03). Queremos chamar a atenção para a grande quantidade de indivíduos que sobreviveram à guerra, mesmo em condições pouco favoráveis, de opressão, frente à destruição do seu anterior universo cultural. Entretanto, foi a partir dessa sobrevivência que se abriu um novo horizonte de possibilidades de trocas, de ressignificações, de reconstruções (MEDEIROS, 2006, p. 16).
Este ambiente criou um ambiente propício para interação de diversas etnias distintas, que passaram a compartilhar um traço cultural comum. Com isso, é na zona da mata nordestina que ela incorpora elementos da cultura negra, no culto aos orixás, e do misticismo europeu, que vem junto com os colonizadores portugueses, que, ao sincretizarem-se, resulta no Catimbó3: prática diretamente derivada da cosmologia juremeira, e que hoje é difundido em várias matizes religiosas afro-brasileiras, em especial na Umbanda, e no qual a cidade de Alhandra é considerada como polarizadora destes elementos em nível regional. Para Cascudo, “Catimbó não sinônimo de candomblé, macumba, xangô, grupo de umbanda, casa de mina, tambor de crioulo, etc. É uma presença da velha feitiçaria, deturpada, diluída, misturada mas reconhecível e perfeitamente identificável” (2002, p. 122). Na tentativa de elaborar uma síntese mais abrangente, em meio às inúmeras significações que tem o culto da Jurema Sagrada, Salles afirma que: (…) podemos definir a Jurema como um complexo semiótico, fundamentado no culto aos mestres, caboclos e reis4, cuja a origem encontra-se nos povos indígenas nordestinos. As imagens e os símbolos presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos juremeiros como um “reino encantado”, os “encantos” ou as “Cidades da Jurema”. A planta cuja raízes ou cascas se produz a bebida tradicionalmente consumida durante as sessões, conhecida como jurema, é o símbolo maior do culto. É ela a “cidade” do mestre, sua “ciência”, simbolizando ao mesmo tempo morte e renascimento (2010a, p. 17-18).
A noção de ciência, aplicado pelos juremeiros, é fundamental para compreendermos a sua complexidade. A “ciência da Jurema” é um componente central que sintetiza e organiza 3
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“Todas as sessões do Catimbó consistem, essencialmente, em dezenas de entidades espirituais, ou espíritos, que se comunicam com os participantes das sessões. Os 'mestres' ou 'mestras', são pessoas que viveram outrora, na maioria em Alhandra, que tiveram atividade mediúnica, geralmente junto aos pés de Jurema que guardam sempre o nome deles” (VANDEZANDE, 175, p. 166). Ainda segundo Salles (idem), estas entidades representam o panteão basilar da cosmologia juremeira. 4
todo um campo semântico dos fundamentos basilares da cosmologia da Jurema, onde habitam seus mitos, seus segredos e mistérios, e só tem acesso quem detêm o conhecimento necessário para sua aplicação no que diz respeito, principalmente, à utilização dos seus preceitos mágicos, seja na aplicação de plantas para a cura de enfermidades, ou mesmo na solução das angústias íntimas dos sujeitos que procuram os juremeiros. Com isso, a força do rito, e dos próprios seres espirituais aqui cultuados, detentores destes princípios, encontram-se no culto aos encantados que são quem operam e transitam na dimensão da espiritualidade juremeira. A atenção dos estudiosos das ciências sociais voltada para a identificação e compreensão dos elementos culturais de origem africana no Brasil, fez com que o interesse pelo temário da Jurema fosse obscurecido. Só a partir da década de 1920 que Mário de Andrade (1963), à frente da Missão de Pesquisas Folclóricas, no qual buscava elementos que representassem a identidade nacional, vai à Paraíba estudar o Catimbó, no qual afirma que o “Reino da Jurema é uma das grandes regiões maravilhosas dos ares” (p. 32). Andrade foi o primeiro a registrar e identificar algumas destas manifestações, principalmente a música ritual. Depois dele, Gonçalves Fernandes escreve O Folclore Mágico do Nordeste (1938), que traz descrições um pouco mais detalhadas sobre alguns dos rituais realizados em Alhandra. Câmara Cascudo analisa também este tema, em seu livro Meleagro – Depoimentos e pesquisas sobre magia branca, chamando a atenção para o fato de que na Jurema a “feição mais decisiva é da feitiçaria europeia” (1978, p. 19). E Roger Bastide escreve o texto Catimbó, parte integrante da obra Imagens do Nordeste mítico em branco e preto, ratificando o crescente interesse pelo tema, em que afirma que “o catimbozeiro pode muito bem dar um revestimento cristão às origens do seu culto, mas sabe que essa ciência lhe foi ensinada pelo índio” (2004, p. 150). Mas é René Vandezande (1975), ao estudar em sua dissertação de mestrado o Catimbó praticado em Alhandra, que faz o primeiro inventário dos inúmeros elementos rituais da Jurema no litoral paraibano, com esmero antropológico. Além de descrever os cultos mediúnicos a qual observa, fazer considerações sobre o transe dos adeptos da Jurema, as formas e os símbolos do Catimbó, e as bricolagens culturais que dela acarreta, ele também identifica e mapeia as “Cidades da Jurema”. A dimensão espacial identificada por Vandezande (1975), territorializa-se a partir de práticas rituais específicas. Estes espaços são constituídos a partir da consagração ritual de uma árvore de Jurema a um mestre encantado, de onde são retiradas as cascas e parte das
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raízes para a produção do vinho da Jurema, e que será usado durante as sessões espirituais. Neste sentido, Eliade afirma que “todas as árvores ou troncos que são consagrados, antes ou durante uma cerimônia religiosa qualquer, são projetadas magicamente no Centro do Mundo” (1991a, p. 40-41). Apesar das mudanças e reinterpretações que perpassam todo o culto, as cidades continuam ocupando uma posição central no universo mitológico dos juremeiros da Umbanda. Estes chamam de cidade tanto uma determinado espaço sagrado onde existem um ou mais pés de jurema, quanto cada uma dessas plantas isoladamente. (SALLES, 2010a, p. 105).
Este elemento é tão fundamental para os juremeiros, que Vandezande (idem) chegou a elaborar uma cartografia das “Cidades da Jurema”, onde mapeou dez destes lugares sagrados. Salles (2010a) segue a sua trilha, e vai em busca destes espaços em sua pesquisa, mas acaba encontrando muito pouco do que Vandezande investigou. Ainda assim, estes lugares continuam vivos no imaginário destes sujeitos, presentes como territórios simbólicos em Alhandra e nos municípios vizinhos, apesar das redefinições do espaço agrário local, assim como também das transformações no contexto socioeconômico urbano da cidade. Na mesma perspectiva, esta relação subjetiva com o espaço ganha legitimidade dentro das instituições estatais, em torno do debate acerca dos patrimônios culturais imateriais, debate este referendado por marcos legais internacionais (UNESCO, 2003), tendo em vista a identificação e o registro do Sítio Acais, em 2009, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico do Estado da Paraíba (IPHAEP), fundamentado num estudo sobre a presença da “Cidade do Acais”, que está baseada na histórica atividade religiosa de Maria do Acais5, mestra juremeira referência em Alhandra. Com isso, visto que “todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólicos” (HALL, 1997, p. 71), as “Cidades da Jurema”, e as memórias construídas a partir delas, reforçam as identidades culturais dos adeptos da Jurema Sagrada. A Mestra Jardecilha e sua “Cidade”. O interesse por este tema, surge com a produção do documentário “Uma Ciência Encantada”(2010)6, que trata da apreensão de uma das “Cidades da Jurema”: a Cidade 5 6
Maria do Acais foi uma das mais importantes mestras juremeiras da região, que, segundo Fernandes, “gozou de um prestígio considerável que impunha sua reputação de grande catimbozeira (…) era uma feiticeira notável, enriquecida, de modos de grande senhora” (1938, p. 85-86). Este filme pode ser visualizado através do link: http://www.youtube.com/watch?v=zUykUNkuL4E. 6
Encantada de Tambaba. Localizada no município do Conde (PB), esta praia é descrita, por inúmeras narrativas orais, como um portal de acesso para variados planos astrais relacionados a este culto, pois, como afirma Vandezande, “a tradição diz, unanimemente, que no alto da praia de Tambaba houve uma Cidade de Jurema de igual nome, anos passados porém, esta cidade foi devorada pelo mar, e de lá teria origem o culto que ainda hoje os juremeiros prestam ocasionalmente nesta praia” (1975, p. 131). Com isso, fui em busca de relatos mais precisos acerca do universo simbólico desta “Cidade da Jurema”, através dos discursos dos juremeiros de Alhandra e João Pessoa, e neles vi quão viva eram estas narrativas. Assim, a proposta com a produção deste filme foi, através da sabedoria popular e da tradição oral, buscar compreender a riqueza de expressões acerca deste espaço mítico, num exercício de experimentação sobre o seu plano imaginário/simbólico. E na pesquisa para sua produção, tanto nas referências bibliográficas, como nas entrevistas realizadas, foi-se observado a constante referência à Mestra Jardecilha como uma figura ainda presente na memória recente dos juremeiros, assim como da importância do seu espaço religioso para a formação da identidade cultural destas pessoas, e de como ele ainda repercute para a manutenção do universo simbólico da Jurema Sagrada no contexto urbano local, mesmo após mais de 25 anos do seu falecimento. Conhecida como Dona Zefa de Tíino, Jardecilha Luíza de Sousa nasceu em Alhandra, no ano de 1934, e ainda criança teve seus dotes para a espiritualidade percebidos pelos juremeiros mais velhos, como descreve Nina, a sua filha: Maria do Acais quando morreu, minha mãe era pequenininha. (…) Mas meu avô era cabeça de mesa da Maria do Acais – a legítima. Ela falou para meu avô que a minha mãe ia ser médium de nascença, só que ela não iria estar viva para ver. E aí, o que aconteceu!? Minha mãe começou a sentir-se mal, a falar umas coisas que minha avó não entendia bem, e quando foi com 12 anos minha mãe já consultava pra todo mundo aqui em Alhandra, neste mesmo terreno onde nasceu e viveu até os 54 anos 7 (CABRAL, 1997, p. 09-10).
Neste lugar, onde hoje reside a família de sua filha, está o Templo Espírita Mestra Jardecilha, lugar na qual ela realizou os seus trabalhos espirituais durante toda a vida. Nele ainda hoje há nove árvores de Jurema – eram doze ao todo, mas três foram derrubadas pelos vizinhos num momento de ausência da família; um cruzeiro na parte exterior, representando os “senhores mestres”; um salão onde ela realizava os trabalhos de mesa branca 8, e onde 7 8
Entrevista realizada por Cabral (1997). “O trabalho que se realiza nesta mesa é (...) a formação e o treinamento de novos médiuns. Utilizando temas e técnicas do Kardecismo, são manipulados os símbolos do Catolicismo, da tradição de Alhandra sobre os 7
também consultava as pessoas que a procuravam para resolução dos mais diversos problemas particulares; além de um quarto menor dedicado aos orixás, e dois “assentamentos” 9: um para Exú e outro para os pretos-velhos. Hoje tudo é muito bem cuidado por sua filha, “que embora não tenha dado continuidade às atividades religiosas da mãe, vem zelando pelo centro que pertencia à falecida mestra” (SALLES, 2010a, p. 113). E, segundo a própria Nina, ela é da quarta geração de uma descendência “cabocla”, no qual esta tradição juremeira está família desde a sua bisavó. Dona Zefa de Tíino também era responsável por sessões que realizava ao ar livre, denominadas de “Toré dos Mestres”10, trabalhos estes descritos por Vandezande (1975, p. 78). Ela também realizava procissões em dias de santos católicos, como no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, ou no dia 24 de junho, dia de São João, demonstrando um intenso diálogo com elementos do catolicismo popular, e que tinha o aval oficial do pároco do município. Isso a fez conquistar um grande respeito frente à comunidade católica local. Esta interface entre os adeptos da Jurema Sagrada e a Igreja Católica era tão intenso, que Dona Zefa chegou a presenciar a visita do papa João Paulo II à cidade do Recife (PE), em 1982. Outra atividade que a fez muito respeitada, foi o fato dela ter sido a representante oficial da Federação de Cultos Africanos do Estado da Paraíba, não só em Alhandra mas em outros municípios da região, como Conde, Caaporã e Pitimbú. Com isso, ela exercia uma forte influência política sobre os juremeiros, já que este órgão era então o único responsável por autorizar o funcionamento dos terreiros, de acordo com a Lei Estadual 3.443 de 1966, no qual o então governador da Paraíba, João Agripino, oficializou a prática destes cultos no estado, retirando-os da clandestinidade. Diante disso, ela é sempre lembrada pela rigidez com que conduzia esta representação, fechando, inclusive, lugares que não seguiam os preceitos determinados pela federação, ou mesmo quando ela julgava que o trabalho espiritual de determinada “casa” estivesse equivocado. Apesar desta rigidez, Dona Zefa também exercia um forte influência no campo espiritual, no qual os trabalhos realizados por ela mobilizavam muitos adeptos, agregando, inclusive, outros mestres contemporâneos a ela, como o Mestre Colo. E como mais um mestres e índios. A única intenção é mesmo o treinamento” (VANDEZANDE, 1975, p. 171). Pequenos cômodos dedicados para as “obrigações” de determinada entidade, ou para espíritos de uma mesma “falange”, a exemplo do assentamento para os pretos-velhos, como encontramos aqui. 10 “O Toré é sempre uma dança em círculo onde os participantes avançam ritmicamente um depois do outro. (…) Sempre encontramos um acompanhamento instrumental das linhas do Toré. (…) No Toré dos Mestres, canta-se uma linha que chama a entidade. Quando esta se manifesta num participante, ela dá sempre um recado, por pequeno e simples que seja” (VANDEZANDE, 1975, p. 173-174). 9
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sintoma deste prestígio, João Paulino, neto da Mestra Jardecilha, chegou a me narrar 11 que ela teria iniciado cerca de 900 pessoas no culto da Jurema Sagrada, e teria sido madrinha de batismo de mais de 600 crianças – ritual este que tinha o respaldo da paróquia local, logo tinha a mesma validade que a realizada pela Igreja Católica. Este carisma dela foi conquistado através de um trabalho voltado essencialmente para a caridade, em que ela não cobrava para realizar as consultas, nem tinha hora para fazêlas. Como afirma Mãe Judith, uma mãe-de-santo de Alhandra e “filha de Jurema” de Dona Zefa de Tiíno, ela era uma verdadeira “cientista da Jurema”12. Mas no ano de 1988, Mestra Jardecilha morre, deixando o espaço aos cuidados de sua filha. E hoje, a “Cidade da Mestra Jardecilha” é uma das únicas “Cidades da Jurema” que ainda preserva seus aspectos físicos, desde os tempos áureos da Jurema de Alhandra, principalmente durante a década de 1970, graças à iniciativa de alguns familiares, ainda que não haja mais a dinâmica dos trabalhos da época em que Dona Zefa estava viva. Ainda segundo Nina, depois que Mestra Jardecilha morreu o vínculo das pessoas com a tradição da Jurema Sagrada se perdeu. Disso decorre um processo de intensa conversão dos juremeiros às doutrinas cristãs nos últimos trinta anos, sejam elas católicas ou protestantes, como observado por Silva Jr. (2011). Isso faz parte de um processo mais amplo, no qual o município vive hoje um momento de transformações em relação a sua identidade enquanto epicentro da cosmologia da Jurema, seja pela falta de valorização cultural dos mais jovens, ou mesmo pelo avanço dos cultos neopentecostais na cidade, que acabam por demonizar as práticas dos juremeiros, visto que “não cessa suas ofensivas simbólicas contra aquilo que consideram o mal, obra do inimigo” (p. 75). Conflitos estes ainda mais intensificados pelo fato da “Cidade da Mestra Jardecilha” estar localizado num contexto urbano, bem próximo do centro de Alhandra. Um claro exemplo disso, são os problemas com os vizinhos enfrentados pela família, e que vem minando a continuidade deste espaço como parte da memória dos juremeiros. E de haver, dentro da própria família, uma disputa estabelecida por pessoas interessadas em simplesmente acabar com o lugar, fundamentadas numa visão da religião protestante, no qual querem que todos elementos que levem à memória do culto da Jurema Sagrada no município sejam definitivamente apagadas. Deste movimento, decorre a derrubada de algumas árvores de jurema do espaço, como mencionado acima. Além de haver um processo judicial tramitando 11 Entrevista cedida ao autor em 25 de julho de 2012. 12 Entrevista cedida ao autor em 05 de agosto de 2012. 9
entre os próprios familiares, em que as partes reivindicam cada centímetro deste espaço. Com isso, têm-se pautado, junto aos órgãos estatais de preservação do patrimônio cultural, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a necessidade de salvaguarda deste espaço religioso, contra as constantes agressões que vêm sofrendo. A justificativa para isso, vêm sendo a importância da “Cidade da Mestra Jardecilha” para a memória do culto da Jurema Sagrada no município, como um lugar que polarizou diversas manifestações religiosas, e que diz respeito, diretamente, ao fortalecimento da identidade cultural dos juremeiros. Vivenciando a “Cidade da Mestra Jardecilha”. No dia 09 de julho de 2012, houve uma celebração no Templo Espírita Mestra Jardecilha, promovido pelo Quilombo Cultural Malunguinho, uma organização voltada à informação, pesquisa e formação na cultura e prática afro-indígena brasileira, e que agrega diversos segmentos em torno da Jurema Sagrada, na cidade do Recife (PE), entre estudiosos do tema e juremeiros de diversas partes da região metropolitana. Esta iniciativa visava dar mais visibilidade ao espaço, além de dar um suporte à família de Dona Zefa de Tiíno, que vem lutando num processo judicial contra outros familiares, a qual já foi citado. E pude estar presente e sentir o que aquele lugar tinha para mostrar. Além da comitiva vinda do Recife, com cerca de 60 pessoas, havia também a presença dos juremeiros locais, chegando a um total de aproximadamente 100 indivíduos. O trabalho inicia-se com Alexandre L'Omi L'Odo, representante do Quilombo Cultural Malunguinho, falando da importância deste lugar e de sua preservação, não só para os juremeiros de Alhandra, mas também para os de Pernambuco, e que a luta pela sua manutenção é de interesse de todos os adeptos, sejam lá onde estiverem. Em seguida, Nina, filha da Mestra Jardecilha, ao lado de uma fotografia de sua mãe, agradece ao incentivo dado pela comitiva pernambucana, e por todos alí presentes, e explana sobre a forma como Dona Zefa de Tiíno trabalhava com a espiritualidade, e o que representa a salvaguarda deste espaço ritual para a família e para os juremeiros do município. Fala também que a sua mãe costumava realizar o “Torés dos Mestres” no terreiro do seu centro, e que a ideia, naquele momento, seria resgatar uma parte do clima daquelas celebrações. Já seu neto, João Paulino, fala que todas as “Cidades de Jurema” tem aspectos materiais, como na presença da própria
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árvore, e imateriais, na consagração dela a um mestre encantado, funcionando como símbolo e representação da sua vida espiritual. E que a “Cidade da Mestra Jardecilha” é a única que ainda preserva estes dois aspectos, na sua forma integral. Rufam os ilús13. O “toque”14 começa com muita vibração. Os tocadores que vieram do Recife, com muita prática em tocar nos maracatus e afoxés da cidade, ditam o ritmo da celebração. As pessoas cantam com vigor, na mesma intensidade dos sons do ilús. Sente-se que há muito empenho de todos em fazer do trabalho o mais bonito possível. As vozes não são poupadas, e o movimento da gira vai se tornando cada vez mais intenso. Tudo isso estava acontecendo do lado de fora do templo, no terreiro, ao redor do cruzeiro dos “senhores mestres”, assim como eram realizados os “Torés dos Mestres” por Mestra Jardecilha. As primeiras incorporações começam a surgir. À medida que as pessoas vão incorporando as entidades espirituais, João Paulino e Nina vão servindo o vinho de Jurema aos participantes, preparado especialmente por ela. Uns vão auxiliando as entidades que vão incorporando, servindo-lhes cachaça ou jurema, ou ainda acendendo os seus cachimbos. A vibração do trabalho permanece alta. Outros vão em busca dos ensinamentos trazidos pelos mestres juremeiros. Entre sons entoados e espíritos incorporados, tudo vai acontecendo com tranquilidade e animação. Algum tempo depois, Nina abre as portas do templo, o que ela fez poucas vezes antes. Antes disso, ela pede para que as pessoas tenham muito respeito para com o lugar ritual de sua mãe, que ela cuida com todo zelo, e que não toquem em nada – “Façam suas preces com fé”, diz ela. Aos poucos, as pessoas vão entrando com cuidado, enquanto a gira continua acontecendo do lado de fora. O amplo salão está solenemente iluminado apenas com a claridade das velas. No fundo do salão está uma grande mesa coberta por uma toalha branca, onde a Mestra Jardecilha costumava realizar os trabalhos de mesa branca. Sobre a mesa estão todos objetos rituais cultuados por ela: as imagens dos santos católicos; cachimbos com pedaços de fumo ao lado; imagens de índios e caboclos; inúmeras velas acesas; terços e rosários; alguns copos com água, distribuídos organizadamente. Tudo disposto com muita simplicidade e cuidado. Umas pessoas tiram fotos, e outras fazem as suas preces aos pés da mesa. Pouco tempo depois, aconteceu o momento mais importante desta celebração. Saiu 13 Tambores consagrados que são tocados unicamente em rituais religiosos. 14 Assim são comumente chamados os rituais realizados em Alhandra: Toque de Jurema, Toque de Iemanjá, etc. 11
do salão e vejo que há clima diferente no ar. Vó Biu, uma juremeira de Alhandra com mais de 80 anos, incorpora uma entidade. As atenções, de repente se voltam para ela. Ouço alguém falar que é Maria do Acais. Em outras oportunidades, ouvi comentários em Alhandra de que era extremamente raro ela incorporar nos médiuns, e que dificilmente isso acontecia. Os ilús param de tocar. Um momento de veneração e respeito se estabelece. Aos poucos, vai se formando uma fila para receber as bençãos desta prestimosa entidade. Para cada pessoa que toca em suas mãos, há um instante particular de introspecção e muita atenção para com as suas palavras. Com isso, as lágrimas são inevitáveis – todo mundo que passa por suas mãos sentem a emoção daquele momento. Sem dúvidas, foi uma oportunidade única de presenciar a devoção e a fé dos juremeiros. Desde quando iniciei minhas pesquisas em Alhandra, em meados de 2010, escutei algumas pessoas, dentre elas a própria Nina, me dizerem que, apesar dos conflitos que o culto da Jurema Sagrada enfrenta atualmente, a cidade ainda guarda seus mistérios. Nunca entendi bem o que isso poderia significar. Mas após esta tarde, senti, de fato, o que estas pessoas queriam dizer. E, como pesquisador, senti-me profundamente afetado por aquele acontecimento, e as impressões daquela celebração ficaram registradas como um dos momentos mais comoventes em minha pesquisa até então. Ser juremeiro em Alhandra: considerações sobre a identidade e a memória. Como afirma Salles (2010a), o culto da Jurema Sagrada, no contexto da difusão dos ritos umbandistas em Alhandra, apresenta-se pela “transitividade e fluidez” (p. 223), o que garantiu a sobrevivência deste complexo religioso durante séculos. Ela é parte de uma história negada, silenciada, ainda assim escrita por índios, negros, caboclos, mestiços. História marcada por lutas, tensões, negociações, estratégias de poder, de afirmação política e reformulações de identidade em face das transformações do contexto social e cultural (idem).
Neste sentido, Stuart Hall (2007), ao falar da eficácia discursiva da identidade, coloca que as identidades parecem invocar um passado histórico, em que elas contribuiriam com a sua manutenção. Para ele, isso tem a ver com as questões de “como nós temos sido representados” e de “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios” (2007, p. 109). E afirma que esta eficácia discursiva da identidade se dá, necessariamente, através da imaginário – ou da subjetividade, como colocado por Woodward: 12
“Subjetividade” sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. O termo envolve os pensamentos e as emoções conscientes e inconscientes que constituem nossas concepções sobre “quem nós somos”. A subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais. Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós e no qual nós adotamos uma identidade (2007, p. 55).
A construção do imaginário do juremeiro, como uma pessoa associada a algo maligno, diretamente ligado à prática da feitiçaria, ou, mais especificamente, do Catimbó, tem repercutido desde a colonização. Salles (2010a), em seu estudo sobre o culto da Jurema Sagrada no município de Alhandra, identifica inúmeros documentos históricos que narram o consumo do vinho da Jurema por “índios feiticeiros” para obterem visões psicoativas, com vista a estabelecer contato com entidades invisíveis, ou mesmo por guerreiros indígenas mais hábeis para a guerra. Por conta disso, a Jurema e os adeptos do Catimbó, foram perseguidos tantos pelos colonizadores portugueses, por meio da inquisidora Igreja Católica, que a atribuiu aspectos “demoníacos”, como pela polícia já no século XX, visto que a sua prática pública era proibida pela legislação, o que viria a mudar na Paraíba, em parte, com a Lei Estadual 3.443 de 1966, citada anteriormente. Neste contexto, os juremeiros de Alhandra sempre tiveram que lidar com a constante repressão das suas práticas rituais, além das reprovações simbólicas de suas atividades espirituais, seja por parte da Igreja ou das instituições oficiais, apesar de sempre terem tido muita aceitação pelas camadas populares da população. Numa época em que o atendimento médico para esta população – ou “o povo da bata branca”, no dizer local – praticamente inexistia, uma das formas de tratamento era exatamente contar com receitas de ervas e banhos, além da fumaça exalada pelos cachimbos dos mestres juremeiros e de outras entidades espirituais, para cura das mais diversas enfermidades. Estes trabalhos são realizados nas “mesas de consulta”, que são definidos por Salles como “rituais de caráter mais individual e fechado, nos quais o crente recorre ao sacerdote em busca de cura para seus males físicos, mentais, espirituais ou para resolver toda sorte de aflição do dia a dia (problemas amorosos, intrigas, etc.)” (2010b, p. 99). Herdeiros da tradição dos pajés, verdadeiros curandeiros, os juremeiros são conhecedores dos segredos das ervas, das raízes, sendo, ao contrário do médico, capazes de identificar se uma doença é no corpo ou do espírito se é caso para o “homem de letra” ou para os mestres invisíveis (SALLES, 2007, p. 05).
Este tipo de atividade espiritual tem um forte apelo popular em toda a região 13
estudada, até mesmo por pessoas não ligadas diretamente ao culto, que, indiretamente, legitimam estas práticas. Mas, ainda que haja este diálogo, há uma clara uma diferença simbólica entre juremeiros e não-juremeiros: entre aqueles que compartilham dos elementos representativos da cosmologia afro-indígena regional, e outros que estão mais ligados às doutrinas cristãs institucionalizadas, sejam eles católicos ou protestantes (SILVA JR., 2011). Desta forma, à medida que estas distinções vão sendo construídas, os processos identitários vão se formando. Como afirma Woodward, a “identidade é relacional” (2007, p. 09) sendo marcada tanto pela diferença, quanto por meio de símbolos e de suas representações. E em relação aos juremeiros, podemos observar que esta diferença é elaborada em contraposição à doutrina pregada pela Igreja Católica, ou pela crescente ascensão dos cultos protestantes nos últimos anos – estes últimos, por sinal, são os que dirigem as críticas mais preconceituosas em relação aos juremeiros. (…) as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo, que o significado “positivo” de qualquer termo – e, assim, sua “identidade” – pode ser construído (HALL, 2007, p. 110).
Observando que a identidade é algo que está sempre em processo, sempre sendo formada, Hall também afirma que “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas uma falta de inteireza que é 'preenchida' a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (2006, p. 39). Neste sentido, Woodward concorda com Hall, ao colocar que “a diferença é marcada por representações simbólicas que atribuem significado às relações sociais” (2007, p. 54). Assim, a representação da própria identidade “inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito” (2007, p. 17). Desta forma, o juremeiro posiciona-se na condição de reverenciar a árvore da jurema como seu centro, por meio das “Cidades da Jurema”: o lugar de onde irradia as ligações do mundo terrestre com o seu universo mítico-cosmológico. Neste sentido, para Eliade, “a variante mais propagada do simbolismo do Centro é da Árvore Cósmica que se encontra no meio do universo (…) cujas raízes se prolongam até os infernos e os seus galhos tocam o céu” (1991a, p. 40). E o juremeiro, com isso, “se exprime sob formas simbólicas que se relacionam 14
no espaço” (ROSENDAHL, 1996, p. 65), e que estão fortemente relacionados com os aspectos culturais da comunidade. Com isso, compreender a riqueza cultural destes sujeitos sociais, é ler a multiplicidade de “signos e lugares de enraizamento que são os territórios” (BONNEMAISON, 2002, p. 129) – ou melhor, os territórios simbólicos. Exatamente na busca desta relação subjetiva com o espaço, que apresenta-se aqui como um território simbólico, que a memória aqui cumpre um papel fundamental, no sentido de fazer localizações e de trazer leituras e interpretações de um conjunto de símbolos pelos praticantes do culto da Jurema, em que ela, de acordo com Bosi, “opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam através de índices comuns” (2003, p. 31). A autora afirma ainda que, a maior riqueza da memória está em fazer “intervir pontos de vistas contraditórios” (2003, p. 15), em que “a fonte oral sugere mais que afirma, caminha em curvas e desvios obrigando uma interpretação sutil e rigorosa” (2003, p. 20). Estes caminhos descontínuos faz-se também na construção das identidades culturais, visto que “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2006, p. 13), e sendo mediadas por interações culturais das mais diversas. Assim, Haesbaert coloca que “a (re)construção imaginária da identidade envolve portanto uma escolha, entre múltiplos eventos e lugares no passado, daqueles capazes de fazer sentido na atualidade. Nesta perspectiva, a memória é solicitada e reestruturada sem cessar” (1999, p. 180). Assim, para Bosi, a memória destes sujeitos é considerado como o “intermediário informal da cultura”, e que através “do vínculo com o passado, se extrai a força para a formação da identidade” (2003, p. 15-16). Neste sentido, Castells compreende a identidade como “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) outras fontes de significados” (1999, p. 22). O autor afirma também que “quem constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como o seu significado para aqueles que com ela se identifica ou dela se excluem” (idem, p. 23). Com isso, a identidade pode se construir a partir da crença nas práticas e representações religiosas, atribuídas através de ritos específicos, em que “há uma memória religiosa feita de tradições que remontam a acontecimentos geralmente muito distantes no
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passado, e que aconteceram em lugares determinados” (HALBWACHS, 1990, p. 157). Neste mesmo propósito, Bosi entende que “há sempre uma narrativa coletiva privilegiada no interior de um mito ou de uma ideologia” (2003, p. 17). servindo, aqui, para legitimar a difusão deste poder simbólico. Uma das bases que pode dar mais consistência e eficácia ao poder simbólico da identidade são os referenciais concretos aos quais ela faz referência para ser construída. O deslocamento de sentido nunca pode ser total e o símbolo necessita sempre de algum referente concreto para se realizar. Este referente pode ser, por exemplo, um recorte ou uma característica espacial, geográfica, e neste caso podemos ter a construção de uma identidade pelo/com o território (HAESBAERT, 1999, p. 178).
Desta forma, o território simbólico da Jurema Sagrada é constituído por meio de poderes subjetivos, que, aqui, faz-se na presença física de uma ou mais árvores de Jurema num mesmo lugar, referendado pela atividade tradicional de um mestre juremeiro, pessoa esta de notório saber e respeito dentro do culto, que as consagram a uma ou mais entidades encantadas, a partir de ritos específicos. Esta tradição ligada às “Cidades da Jurema”, juntamente com todos elementos já citados, fazem do município ter uma posição de destaque na cosmologia juremeira, ainda que se perceba uma clara mudança nos últimos anos no campo religioso de Alhandra, de acordo com Silva Jr. Por ser a identidade este processo de construção permanente, é que, a partir dos anos de 1980, a identidade de “cidade jurema” de Alhandra começa a ser desestabilizada, subvertida. Os alhandrenses passam não mais a aceitar esta identificação de catimbozeiros ou juremeiros. É neste ponto que nossa pesquisa se debruçou a entender como foi este processo histórico que passou a rejeitar a identidade religiosa de Alhandra e inicia um processo para se forjar outra identidade, esta considerada a certa, pois é uma identidade cristã: a jurema passa cada vez mais a ser reconhecida como a identidade errante, que deve ser esquecida (2011, p. 123).
Mas há um elemento novo, este de teor político, e que vem agregar valor na redefinição da identidade juremeira no município, é a fundação da Associação Espírita dos Juremeiros de Alhandra (AEJA), em 19 de março de 2012. Esta entidade visa reunir os adeptos da Jurema Sagrada da cidade, no sentido de criar um canal de diálogo com as esferas da administração pública, para que possam levar as suas reivindicações por um maior reconhecimento e valorização desta tradição, fortalecendo, com isso, as identidades culturais locais. Esta iniciativa já rendeu a possibilidade da AEJA poder participar, com um stand da associação, da última festa de emancipação política de Alhandra, ocorrido em abril de 2013, exposição esta nunca antes ocorrida. Desta forma, de acordo com a observação intercultural 16
de Castells: (…) as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal. Apresento a hipótese de que, para que isso aconteça, faz-se necessário um processo de mobilização social, isto é, as pessoas precisam participar de movimentos urbanos (não exatamente revolucionários), pelos quais são revelados e defendidos interesses em comum, e a vida é, de algum modo, compartilhada, e um novo significado pode ser produzido (1999, p. 79).
Este novo significado vem sendo refeito na atualidade, por meio de iniciativas como esta, que visam restabelecer parte do terreno perdido nos últimos anos. Espaço este que sempre teve sua legitimidade perante a comunidade local, mas que veio sendo obscurecida por um discurso fundamentalista em sua essência. Assim, o que se assiste hoje em Alhandra, nada mais é do que a reivindicação por uma política de reconhecimento e de salvaguarda de seus espaços rituais, como resultado de ações estratégicas dos juremeiros para encontrar seu lugar na organização da sociedade e nas oportunidades políticas criadas por ela. Com isso, ser juremeiro em Alhandra, considerada a cidade da Jurema Sagrada, onde polariza-se diversos elementos desta religiosidade e que transcende a sua esfera municipal, representa participar de algo muito maior: é estar literalmente no “olho do furacão”, onde se está ligado a uma linhagem que fundou esta tradição de conhecimento; é compreender e participar na manutenção dos “mistérios” guardados nas narrativas orais; é ser detentor e guardião dos conhecimentos dos mestres juremeiros que alí viveram; é viver em contato permanente com uma força espiritual catalizada somente alí; é contribuir na conservação da memória coletiva local acerca dos “ciência da Jurema”; é ser sujeito da ação, “o ator social coletivo pelo qual indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência” (CASTELLS, 1999, p. 25). Considerações finais O trabalho de pesquisa que vem sendo realizado junto ao Programa de Pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGA-UFPB), tem como objetivo reconstruir parte da história de vida da Dona Zefa de Tíino, investigando a dinâmica da sua prática espiritual, as representações subjetivas do seu espaço, e a sua influência como liderança religiosa na região, através da memória coletiva local. Para isso, analisarei, a partir
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destas narrativas, as identidades culturais dos juremeiros de Alhandra, e que fazem deste município o epicentro da cosmologia e do universo mítico da Jurema Sagrada. Isso também no intuito de examinar a constituição das “Cidades da Jurema” como territórios simbólicos, no qual a “Cidade da Mestra Jardecilha” se insere, de como estes espaços são representados e resignificados pelo imaginário dos juremeiros, e como eles repercutem na construção das identidades destes sujeitos. Desta forma, a ideia com este trabalho é de entrar, através de parte dos itinerários simbólicos dos juremeiros acerca das “Cidades da Jurema”, numa “perspectiva e num universo cognitivo daqueles que vivenciam experiências específicas, e perceber o sagrado e a religiosidade a partir de seus posicionamentos espirituais” (GRÜNEWALD, 2012, n. p.). Com isso, a apreensão de parte da memória em torno da “Cidade da Mestra Jardecilha”, traz a possibilidade de visualizar a dimensão do significado desta manifestação, a partir do resgate deste território simbólico historicamente constituído, e que vem sofrendo constantemente com os conflitos culturais estabelecidos na atualidade. Trazem também consigo, a análise das reformulações das identidades culturais locais, pois “ela recorre a uma dimensão histórica do imaginário social, de modo que o espaço que serve de referência 'condense' a memória do grupo” (HAESBAERT, 1999, p. 180). Por fim, estes elementos apresentam-se aqui, para os juremeiros de Alhandra, como a possibilidade de reconstituir um importante território simbólico, já que “há marcos no espaço onde os valores se adensam” (BOSI, 2003, p. 24), fazendo por resgatar as histórias orais e preservando as subjetividades locais, e no qual a identidade, segundo Hall, “contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural” (2006, p. 12). Esta análise faz-se necessária no sentido de compreender como uma tradição cultural se transforma continuamente, requerendo, inclusive, políticas reconhecimento e de salvaguarda de um espaço que, guarda em seu seio, tanto os aspectos físicos do patrimônio da Jurema Sagrada, a exemplo das suas árvores consagradas, como também suas feições imateriais, impressas na memória coletiva e na identidade cultural destes sujeitos.
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