História Diplomática: Uma história obsoleta? - Anpuh-SP

perspectiva do internacionalismo utópico, da política internacional ... História Diplomática do Brasil ... Exterior do Brasil (1992) de Amado Cervo e...

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História Diplomática: Uma história obsoleta? Marcos Rafael da Silva1

Na noite de sábado de 22 de agosto de 1896, por volta das 19 horas, um grupo de italianos reunido no Largo do Rosário, em São Paulo, saudou com vivas a Itália, e com morras o Brasil. Por sua vez, minutos depois, um grupo de brasileiros levantou muitos vivas ao Brasil. Os grupos caminhavam um para o outro e o confronto era iminente, evitado em tempo pela chegada dos 1º e 5º delegados e de uma força policial do 1º Batalhão de Polícia, sendo os manifestantes dispersados, noticia o jornal O Estado de São Paulo.2 Mais tarde, às 20h, outro grupo de italianos descia a Rua Quinze de Novembro, também em tom exaltado e aclamando a Itália com vivas, sendo novamente dispersado pelos oficiais da Força Pública. Mas, logo depois, começaram as correrias e manifestações de parte a parte. A Força Pública, armada, passou ao policiamento ostensivo na cidade. Os ânimos estavam acirrados. Na mesma noite, as autoridades policiais chamadas pelo presidente do Estado de São Paulo, Campos Sales, relataram as ocorrências e as providencias em andamento no sentido de acalmar os ânimos. Nesse ínterim, uma comissão popular chegou ao Palácio do Governo e teria declarado ao presidente do Estado “que o povo tinha que manifestarse desse modo enquanto a palavra de S. Exa. não o animasse para a defesa de seus direitos.”3 Da sacada de um prédio da Rua Quinze de Novembro Agricio Camargo pediu, em nome do presidente do Estado, à multidão para dispersar-se e acalmar-se. Aos poucos a multidão se encaminhou novamente ao Largo do Rosário e lá permaneceu até serem ouvidos tiros disparados no Largo da Memória, e para lá seguiu juntamente com a força policial. 1

Doutorando em História Social, com o projeto de pesquisa “Os Protocolos Italianos: imigração e nacionalismo no início da República (1892-1907)”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria de Lourdes Monaco Janotti. Aluno bolsista do CNPq. 2 O ESTADO DE SÃO PAULO, 23/08/1896, p. 3 Idem.

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Segundo o jornal, estava à frente de um dos grupos de italianos o Cônsul da Itália em São Paulo, Conde Edoardo Brichanteau e, o vice, Conde Brandolini D’Aste, sendo responsabilizados pelos acontecimentos daquele dia.4 No dia seguinte, a agitação teve início no Largo do Rosário e seguiu para as ruas Quinze de Novembro e Largo municipal, região central da cidade. Erguendo vivas à República, ao Brasil e à Polícia numeroso grupo de brasileiros dirigiu-se ao Largo da Memória e lá fixou uma representação dirigida ao presidente do Estado solicitando a cassação do exequatur do cônsul italiano. Às quatro e meia da tarde a polícia recebeu notícias de que na Liberdade haviam sido disparados muitos tiros contra um bonde. Quase à mesma hora, um piquete da cavalaria foi encaminhado ao Brás para dispersar italianos que estavam, segundo o jornal, “celebrando uma reunião”. Às cinco horas, o chefe de polícia mandou todos os proprietários de cafés, confeitarias, bilhares fecharem seus estabelecimentos. Daquela hora em diante, foi intensa a movimentação de pessoas no centro da cidade. Às 18 horas e 20 minutos deu-se grande tiroteio na rua Formosa, República. Às 18 horas e 25 minutos, Gregório Ricardo de Oliveira foi agredido por um grupo de italianos, que dispararam tiros contra ele. Nessa hora, enquanto a polícia ordenava o fim do tráfego de bondes no centro da cidade, um piquete da cavalaria marchava para o Bom Retiro, a fim de reprimir conflitos entre italianos e brasileiros. O conflito foi contido. Pouco tempo depois, novamente na Rua Quinze de Novembro deu-se novo tiroteio, e no Bom Retiro novos conflitos rebentaram. Às 20 horas, na ladeira São João foram ouvidas novas “detonações”. Os conflitos tinham tomado um aspecto grave. A força policial foi autorizada a descarregar sobre os grupos que não aceitassem dispersarse. Às 21horas os grupos foram controlados, eclodindo, porém, novo confronto as 22h na Rua São Caetano, na Luz. Teriam grupos de italianos agredido moradores brasileiros daquela rua. Na Rua Tymbiras, foi também registrado confronto entre brasileiros e italianos. A partir das 23 horas, noticia o jornal, as ruas da cidade permaneceram completamente desertas. O número de mortos e feridos foi, segundo o Estado de São Paulo, de três mortos, quatro feridos graves, 33 leves; sendo 18 brasileiros, 20 italianos, 4

Idem.

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um espanhol e um austríaco. A polícia efetuou a prisão de 115 indivíduos envolvidos, direta ou indiretamente, nos conflitos do dia 23 de agosto. *** Uma das motivações desses conflitos encontra-se, em boa medida, na questão dos chamados Protocolos Italianos: acordos diplomáticos entre o Brasil e a Itália para solucionar reclamações de imigrantes italianos no Brasil, que previam o pagamento de indenizações aos reclamantes. Essas reclamações remontam ao ano de 18485, e são de natureza diversa. Há reclamações com relação à quebra de contrato por parte do Governo Imperial e do Republicano; por danos em propriedades de colonos no sul do país durante a Revolução Federalista; por naturalização indesejada no ato da Proclamação da República, etc. Assim as resume o ministro Carlos de Carvalho, da pasta de Relações Exteriores em 1895: Ao assumir a gestão dos negócios que correm pelo Ministério das Relações Exteriores, encontrei considerável número de reclamações de estrangeiros apoiadas pelas Legações. Mais avultavam as provenientes de requisições militares por motivo da guerra civil no Rio Grande do Sul [Revolução Federalista], e da invasão dos Estados de Santa Catarina e Paraná. Também muitas versavam sobre prejuízos causados por forças revolucionárias e por operações de guerra, sobre violências praticadas por agentes da autoridade ou da força pública, invocando algumas por título e fundamento contratos celebrados com a administração pública e violação de leis e regulamentos por parte de certos funcionários.6

As reclamações foram apresentadas em relatórios detalhados e bem documentados. As notas trocadas entre os agentes diplomáticos, anexas aos Relatórios, dão boa indicação da maneira pela qual agia o Ministério das Relações Exteriores, ao refazer o caminho percorrido para defender a posição oficial do Governo em cada reclamação analisada, baseado, na maioria das vezes, em documentação empírica da Chancelaria ou nas práticas adotadas nas relações entre os países ou, para utilizar o vocabulário dos relatórios, entre as “nações civilizadas”.

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A reclamação de Cristóvão Bonini refere-se a contrato celebrado entre este e a Província do Rio de Janeiro em 18 de Setembro de 1848 para a construção da ponte do Penedo na estrada da Estrela, caminho para Petrópolis. Bonini solicitou indenização pelo aumento dos custos na construção da Ponte, a reclamação continuava pendente à época dos Protocolos. Cf. Nota da Legação Italiana ao Governo Brasileiro in BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, RELATÓRIO, 1896. Rio de Janeiro, p. 130. 6 Brasil, Ministério das Relações Exteriores, RELATÓRIO, 1895. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 9394.

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Nos relatórios os conflitos de rua, os protestos na imprensa, os discursos parlamentares contra os projetos não são mencionados; toda a crise gerada parece resolvida no âmbito restrito das lides diplomáticas. Assim, na perspectiva dos relatórios não há a ação das “forças profundas”7 que atuariam na relação entre os países. Claro está que a análise historiográfica (histórica) do documento deve encontrar essas forças, que os agentes diplomáticos tendem a não deixar transparecer. Porém, a primeira tarefa do historiador é conhecer suas fontes e o que (e como) elas falam. Propomos, por isso, comentar e discutir os Protocolos Italianos a partir dos Relatórios que os ministros das Relações Exteriores encaminharam ao Presidente da República, situando a maneira pela qual as reclamações se consubstanciaram, indicando algumas das posições do Governo Federal. Desta feita, a defesa da posição brasileira em relação às reclamações baseia-se, como dito anteriormente, em documentos produzidos, sobretudo, na Chancelaria ou em princípios estabelecidos pelo direito internacional. A orientação por princípios internacionais ligaria a Diplomacia brasileira, nesse caso, coadunar-se-ia com a perspectiva do internacionalismo utópico, da política internacional fundamentada em princípios, bem como a igualdade entre pequenos e grandes Estados nacionais.8 Há, portanto, um elo entre a diplomacia enquanto prática e história diplomática, que a nosso ver tenta explicar os caminhos adotados na gestão da política externa; ambas são produzidas com base em documentação oficial utilizada como elemento de veracidade à prática, para a primeira, e à narrativa, no caso da segunda. Atualmente, caiu em desuso nos estudos de política externa brasileira a expressão “história diplomática”. No lugar dela, utiliza-se história das relações internacionais, que segundo os especialistas, apresenta maior senso crítico e maior rigor metodológico no tratamento dos assuntos “de fora”. No entanto, textos que apresentam estudos historiográficos da área de relações internacionais utilizam os termos história diplomática/história das relações internacionais, em certas ocasiões, como sinônimos; ou uma designação que revestiria os trabalhos produzidos fora do âmbito acadêmico, cuja institucionalização da área de relações internacionais, a partir dos 70, impeliria a

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RENOUVIN, DUROSELLE... RODRIGUES, SEITENFUS, 1995, p. 57.

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utilização do rótulo História das Relações Internacionais. Nesse sentido, Norma Breda dos Santos ao avaliar a produção na área de relações internacionais diz: [...] a História Diplomática, com esse rótulo, parece não ter conseguido sua reafirmação na academia e assumiu, assim, uma nova designação – História das Relações Internacionais -, embora nada haja de escusável em um campo de pesquisa histórica que aponta para a relevância da documentação diplomática e que é importante, sim, que esse manancial documental seja estudado de maneira crítica. Seja como for, vários dos questionamentos a que se submete a História Diplomática são comuns à História das Relações Internacionais [...]. Entretanto, como essas perspectivas que incluem estruturas e processos definidos por uma lógica de “baixo para cima” podem conviver com a produção da História Diplomática/História das Relações Internacionais, em que o Estado não deixa de ter centralidade?9

A questão autora sobre a coexistência de uma história “vista de baixo”, das “mentalidades”, do “cotidiano” e uma história diplomática/das relações internacionais, em que o Estado tem centralidade, nos parece extremamente importante, na medida em que ela aponta para o debate metodológico no campo do conhecimento histórico em que a história política se insere, e no qual defende sua pertinência como área dos estudos históricos, recuperando, de acordo com Marieta Moraes Ferreira, a credibilidade perdida com a afirmação da Escola dos Annales.10 No entanto, são poucos os trabalhos de síntese em história diplomática/história das relações internacionais, sendo comumente elencadas as obras de João Pandiá Calógeras – A Política Externa do Império (1927); as de Hélio Vianna e Carlos Delgado de Carvalho, ambas intituladas História Diplomática do Brasil (1958 e 1959, respectivamente);História da Política Exterior do Brasil (1992) de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno; e de José Honório Rodrigues e Ricardo Steifuss – Uma História Diplomática (1995). A Política Externa do Império de João Pandiá Calógeras é considerada o primeiro trabalho de síntese a tratar, centralmente e de forma sistemática, das relações internacionais do Brasil. Obra vasta, em três volumes, aborda a formação e

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SANTOS, Norma Breda dos. História das Relações Internacionais do Brasil: esboço de uma avaliação sobre a área. In.: História (São Paulo), Franca, v. 24, n. 1, p. 16. 10 FERREIRA, Marieta Moraes. Apresentação. In. RÉMOND, René. (org.). Por uma história política. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 6.

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consolidação do Império Português, o processo de colonização da América portuguesa, a Independência do Brasil até a luta contra Rosas, em 1851-1852.11 Depois de Pandiá Calógeras, outros lançarem-se à análise da política externa brasileira, como Renato de Mendonça em que trata, extensamente, do período colonial chegando ao reconhecimento da Independência12, José Antônio Soares de Souza com estudos monográficos sobre o período monárquico e a questão do Prata13, e Teixeira Soares que analisou mesmo temático, além da questão da formação das fronteiras brasileiras14. Em 1946, foi criado o Instituto Rio Branco (IRBr) com a função de formar e aperfeiçoar diplomatas. Para isso, foram convidados historiadores e pesquisadores, muitos deles atuantes também na formação de oficiais militares nos Estados-Maiores das Forças Armadas. Entre os historiadores estavam José Honório Rodrigues e Hélio Vianna, e o geógrafo Carlos Delgado de Carvalho, que atuaram no Instituto entre os anos de 1950 e 1960.15 Dessa experiência de formação de diplomatas surgiram obras de história diplomática, com caráter de síntese e abordagem didática. Hélio Viana publica em 1958 sua História Diplomática do Brasil16, baseado em curso ministrado em 1947 sobre história das fronteiras brasileiras e completado com texto sobre história diplomática do Brasil, originalmente preparado para curso de aperfeiçoamento ministrado em 1950. Trata-se, portanto, de uma obra híbrida, pois retoma trechos inteiros de História das Fronteiras, do autor, logrando, contudo, certa unidade temática e de tratamento linear dos principais eventos das relações internacionais do Brasil dos descobrimentos até, na segunda e última edição, o problema dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1961, com ênfase, evidentemente, nos diversos processos de fixação de limites com os vizinhos 11

Cf. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Estudos de relações internacionais do Brasil: etapas da produção historiográfica brasileira, 1927-1992. In: Revista Brasileira de Política Internacionail, ano. 36, n. 1, 1993, p. 15; ________________. Introdução. In: CARVALHO, Carlos Delgado. História Diplomática do Brasil. 2.ed. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 18. (Coleção Memória Brasileira) 12 MENDONÇA, Renato. História da Política Exterior do Brasil, 1500-1825. México: Instituto PanAmericano de Geografia e História, 1945. 13 SOUZA, José Antônio Soares de. Um diplomata do Império: Barão da Ponte Ribeiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952. 14 SOARES, Teixeira. Diplomacia do Império no Rio da Prata, até 1865. Rio de Janeiro: Brand Editora, 1955. 15 ALMEIDA, 2004, p. 19. 16 VIANNA, Hélio. História Diplomática do Brasil. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d.

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países sul-americanos. E de acordo com Almeida, “a posição conservadora do autor reflete-se claramente nesta obra, que opera, nas mais diferentes passagens, uma justificação integral das escolhas oficiais a cada momento de nossa história política.”17 Depois de Vianna, Carlos Delgado de Carvalho publica sua História Diplomática do Brasil18 em 1959, obra em que trata das relações internacionais do país. Mantém a característica de manual didático, direcionado, sobretudo, ao estudioso das relações exteriores do Brasil, em geral, e aos diplomatas em formação, em particular. Dois aspectos diferenciam, contudo, o trabalho de Delgado do de seu antecessor: ao final de cada capítulo apresenta uma compilação de autores significativos para o entendimento das relações exteriores do período abordado. Essa compilação, que levou o nome de “Excerpta”, apresenta diferentes autores em análises originais sobre as relações exteriores brasileira, ou, sobre aspectos da história brasileira que ajudassem a entender a perspectiva externa, entre eles, um excerto de História Econômica do Brasil de Caio Prado Junior. O segundo aspecto é a ênfase dada ao período mais recente de nossa história diplomática, Carvalho considera mesmo uma “falha inexplicável dos nossos atuais programas secundários de atribuir à história dos portugueses no Brasil, dito “período colonial”, uma importância e desenvolvimento equivalente aos nossos 67 anos de Império e 70 anos de República.”19 Por isso se debruça detidamente no período do Império e reconstrói, factualmente, o cenário do reconhecimento da República chegando até a Segunda Guerra Mundial e a participação do Brasil no conflito. Uma História Diplomática do Brasil veio a lume em 1995, anos após a morte de seu autor principal, José Honório Rodrigues. Com base em anotações de José Honório para o curso no Instituto Rio Branco entre 1946 e 1956, o livro parte da política internacional à época das grandes navegações, a formalização do território português na América, o processo de Independência do Brasil chegando à gestão do Barão do Rio Branco; foi acrescido ainda de dois capítulos de autoria de Ricardo Seitenfus em este que discute a “diplomacia brasileira e a organização internacional do Pós-Guerra”, a participação do Brasil na Ligas das Nações e a “escalada para a Segunda Guerra mundial”. Essa História Diplomática se diferencia pelo tom crítico, apesar de menos 17

ALMEIDA, 2004, p. 20. CARVALHO, Carlos Delgado. História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. 19 Idem, p. XVII. 18

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radical do que aquele encontrado em outras obras de José Honório Rodrigues, não obstante manter a característica de manual didático, até por conta de sua origem como notas de aula. Além disso, a riqueza das citações indica a extensa pesquisa realizada nos arquivos diplomáticos com o bom cruzamento com a bibliografia utilizada, e indicada. Por exemplo, quando em 1895 o governo Britânico reclama a posse da Ilha da Trindade, o governo brasileiro defende a propriedade desse território a partir dos documentos diplomáticos que comprovavam a concessão daquela Ilha, pelo governo britânico, ao governo brasileiro em 1782.20 A pesquisa documental, ausente na obra de Vianna e Carvalho, redimensiona a obra de José Honório e Ricardo Steinfus possibilitando novas questões, pesquisas e, portanto, a continuidade da empreitada. Em 1992, Amado Cervo e Clodoaldo Bueno publicam sua História da Política Exterior do Brasil21, já no título se vê certo distanciamento do tipo de história diplomática que se praticava até então. Pesquisadores profissionais, com trabalhos monográficos na área de relações internacionais, atualizaram a explicação de nossa política externa comparada, sobretudo, a abordagem dos anos 50. Sendo que os autores se colocam na continuidade metodológica de José Honório Rodrigues.22 Nesse sentido, e a despeito das concepções teóricas e metodológicas de cada um dos autores apresentados e da abordagem, em alguns casos, exclusivamente factual, destacamos a utilização feita da documentação primária para a escrita da história diplomática. Tomamos essas obras como exemplos de análise da política externa, do manejo dos arquivos e documentos diplomáticos.

A reclamação Franzini e a discussão de sua legitimidade pelo MRE No Relatório do Ministro das Relações Exteriores encaminhado ao Presidente da República em 1895 e 1896 são apresentadas, entre outros temas e questões, as reclamações de imigrantes italianos no Brasil, que deram origem a questão dos Protocolos Italianos. O Relatório de 1895 apresentou detidamente três questões: como a 20

RODRIGUES; SEITENFUS, 1995, p. 222-224. CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 3.ed. Brasília: Editora da UnB, 2008. 22 ALMEIDA, 2004, p. 31. 21

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alegação de quebra de contrato para por parte do governo com o italiano “General de Franzini”, para a introdução e estabelecimentos de imigrantes italianos no estado do Espírito Santo; a inutilização de duas embarcações pertencentes a súdito italiano por tropas do governo federal durante a Revolta da Armada; e ainda, rompimento de contrato com Pedro Caminada para construção de via férrea circular no Rio de Janeiro.23 A reclamação do General Franzini, como denominado nos relatórios, é apresentada na seguinte estrutura: 1) Histórico da origem da reclamação; 2) Posição do Governo Brasileiro, baseado em citações das notas trocas entre o Ministério e a Legação Italiana no Brasil; 3) Anexo, no final do Relatório, das Notas trocadas entre o Ministério e a Legação. Assim está informado que em 12 de julho de 1872 celebrou-se contrato entre o Governo Imperial, por meio do seu Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e Michele Mario Franzini, que se obrigou a organizar companhia de imigração no prazo de um ano, para “introduzir e estabelecer cinqüenta mil imigrantes, no prazo de dez anos, em terras da então província do Espírito Santo.”24 Cabia ainda, pela cláusula VI do contrato assinado, o direito à companhia organizada de estabelecer agências de propaganda na Europa e de, por sua conta, aliciar e transportar os imigrantes destinados aos Brasil.25 Desta feita, o general Franzini pediu, em 23 de abril de 1873, que o prazo fosse prorrogado, o que foi negado em 10 de agosto. Uma vez não cumprido o contrato, o mesmo caducou. Entretanto, em 08 de fevereiro de 1879 alegou que formara a companhia em 23 de fevereiro de 1873, e então procedeu com a reclamação.26 Em nota “Pró-memória” da Legação Italiana ao Governo Brasileiro, por meio do MRE, de 24 de janeiro de 1892, é encaminhado um requerimento do General Franzini, em que este solicita do Ministério da Fazenda a nomeação de um árbitro para a questão ainda sem resolução. Novas notas são trocadas entre os dois órgãos, para a adequação 23

Cf. BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, 1895. Brasil, Ministério das Relações Exteriores, RELATÓRIO de maio de 1895, p. 27. Em 14 páginas do seu Relatório o ministro apresenta a questão do General Franzini, suas reivindicações, e a posição do Governo brasileiro. 25 Cf. Pró-Memória do Governo Brasileiro à Legação Italiana, datada de 13 de junho de 1892 e anexada ao Relatório de 1895, p. 120. 26 Idem, ibidem. 24

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do pedido, haja vista que o contrato havia sido firmado pela pasta da Agricultura, e a ela deveria ser encaminhado tal requerimento. Resolvidas as devidas incongruências do processo, o MRE respondeu à Legação Italiana, segundo informações do Ministério da Agricultura, que não podia atender ao pedido do General Franzini, e elenca dois motivos: 1.º Porque estava obrigado a organizar a companhia dentro do prazo de um ano, a contar da data da assinatura do contrato (12 de julho de 1872), obrigação que não cumpriu, como demonstram, além de outros, o fato de haver requerido prorrogação de prazo, pedido que foi indeferido, pelo que ficou a concessão ou contrato incurso em pena de caducidade; 2.º Porque se, como afirma, organizou companhia, devia ter dado cumprimento ao mencionado contrato, apesar da publicação, que diz ter sido feita no Times de 12 de abril de 1873, pois que nessa publicação, apenas o Encarregado dos Negócios do Brasil declarava que o Governo Brasileiro recomendava ou havia recomendado aos seus agentes que não promovessem a imigração para o Brasil: mas de modo algum se declarou autorizado a proibir que particulares ou companhias se encarregassem de um tal serviço, maxime tratando-se do problema do povoamento do nosso solo, problema do qual, se então nem sempre os poderes públicos podiam cuidar, também não tentaram embaraçar.27

O primeiro motivo será recorrentemente utilizado para contrapor os pedidos de indenização de Franzini. O segundo, pouco explicitado no relatório, parece ser um debate entre Franzini e os agentes diplomáticos do Brasil, cuja orientação oficial era de que não promovessem a imigração, mas ao mesmo tal recomendação não era impeditiva de ação nesse sentido. Por ordem do Governo da Itália, a Legação Italiana, em nota de 31 de maio de 1894, solicitou que a reclamação do General Franzini fosse julgada novamente, e submetida a juízo arbitral. O pedido fundava-se na cláusula XIX do contrato de 12 de julho de 1872, que versava sobre a instalação de tribunal arbitral para julgar pendências entre a o Governo brasileiro e a companhia.28 No entanto, o Governo brasileiro recusou-se, naquele momento, a atender ao pedido da Legação, argumentando que

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Pró-memória do Governo Brasileiro à Legação Italiana de 13 de junho de 1893, in Brasil, Ministério das Relações Exteriores, RELATÓRIO, 1895, p. 119. 28 Brasil, Ministério das Relações Exteriores, RELATÓRIO, 1895, p. 29.

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o súdito italiano Franzini e a companhia que organizasse para dar execução ao contrato são entidades jurídicas inteiramente distintas e o que se refere a uma não pode de modo coercitivo aplicar-se ao outro.”29

Ou seja, uma vez que a companhia não foi constituída a cláusula XIX perdia força jurídica. Ainda, segundo o ministro Carlos de Carvalho, em 21 de outubro de 188, Franzini entrou com ação ordinária contra Fazenda Pública do Brasil, exigindo 8.800:000$ a título de indenização de perdas e danos causados pela nulificação do contrato de 12 de julho. Perdeu em primeira instância, e não deu prosseguimento à ação, o que lhe era de direito.30 Porém, no relatório de 1896 o MRE aceitou levar o caso Franzini a julgamento por um tribunal arbitral.31 Nas palavras de De Martino, transcritas no relatório, tem-se que Franzini costitui la compagnia “The General Agricultural of Brazil limited”, mas questa non riusci ad ottenere, con la sottoscrizione delle azioni, I capitali necessari a causa di difficoltá che il concessionario ritiene siano imputabili al Governo del Brasile. Dá cio l’origine della vertenza, che trascina da tanto tempo, per rifacimento di danni.32

Assim, o Brasil aceita o arbítrio na questão. É preciso dizer que De Martino vem da Itália especialmente para resolver a questão dos Protocolos Italianos, que não avançava devido às pressões contrárias exercidas pela Câmara e Senado Federais, pressionados, por sua vez, pela imprensa e opinião pública.

Considerações Finais

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Brasil, Ministério das Relações Exteriores, RELATÓRIO, 1895, p. 28. Esse argumento, o de que Franzini teria recorrido às instâncias ordinárias da justiça brasileira para encaminhar suas reclamações, será o ponto nodal do discurso contra os protocolos italianos, na medida em que, segundo os ministros, senadores e deputados, os imigrantes italianos deveriam procurar a Justiça Brasileira para encaminhar suas reivindicações e não o Consulado Italiano; criando assim, segundos esses, um foro privilegiado. 31 No Relatório não há referência às causas que alteraram a posição do Governo diante da reclamação do General Franzini. 32 DE MARTINO In Brasil, Ministério das Relações Exteriores, RELATÓRIO, 1896, p. 131. 30

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A partir de uma análise preliminar e bastante restrita da historiografia sobre história diplomática/relações internacionais do Brasil, e da análise da documentação da reclamação de Michele Franzini podemos entrever que a posição da diplomacia brasileira ao longo de sua história baseou-se na defesa de seus direitos por instrumentos legais e sem uso da força, considerando inclusive a relação com Estados menores, como os da América do Sul. Tal esforço para situar-se no campo da legalidade das relações internacionais, a despeito dos protestos que ressoavam da sociedade à época, nos induzem a duas hipóteses: 1) a da conhecida impermeabilidade da Diplomacia frente às outras instâncias do poder; 2) a da tentativa de melhorar a imagem externa brasileira bastante danificada pelos tumultuados anos iniciais da República. A hipótese da impermeabilidade da Diplomacia se enfraquece na medida em que analisados outros documentos da época, podemos entrever a intensa mobilização social, as pressões exercidas pelo Legislativo e a várias reviravoltas nas negociações diplomáticas. Por conseguinte, a hipótese da tentativa de melhorar a imagem externa brasileira se fortalece se levado em consideração a forte dependência brasileira do mercado internacional de seu principal produto, o café. Consolidar a imagem de bom pagador assumindo os compromissos internacionais e garantir a continuidade do fluxo imigratório são objetivos que facilmente se encontram nos documentos e na historiografia sobre o período.

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