Gênero, memória e narrativas – ST 41 B Marilda Aparecida de Oliveira Effting UFSC Literatura, contação de histórias, narrativa oral
A contadora de histórias na literatura de José Lins do Rego
“O contar de um povo revela os seus usos e costumes, o seu falar e o seu dizer, o cotidiano e a esperança de um devir, o que percebe como real e como produto da imaginação. A vida expõe-se no ato de contar.” Maria Claurência Silveira
José Lins do Rego, não se reconhecia como um contador de histórias, mas, com muita maestria, adoçou as suas prosas com toda a peculiaridade das narrativas orais. No livro Menino de engenho1, escrito em 1932, embebido nas lembranças de sua infância, José Lins ou o Zé Lins, como era carinhosamente chamado pelos amigos e assim iremos nos referir ao autor no decorrer deste ensaio, constrói um personagem menino que narra, em primeira pessoa, a sua própria trajetória, dos quatro aos doze anos de idade, junto da família (ou mais ou menos junto da família), ambientada em um engenho de cana de açúcar, no interior da Paraíba e parte em Pernambuco. Este romance é considerado pelos críticos como uma autobiografia do autor. A narrativa, apesar de detalhar o tempo vivido por Carlinhos2, no engenho Santa Rosa3, acompanhado dos seus primos e de outros meninos da comunidade do engenho, não é destinada às crianças. O romance tem como pano de fundo a decadência dos senhores de engenho enredado às mazelas intrínsecas ao mundo dos adultos e com isso, percebe-se, a distribuição dos papéis sociais representados por homens e por mulheres de todas as idades. Um outro aspecto relevante na obra é a abordagem das condições humanas, muitas vezes tão desumanas, como a dos empregados braçais e do contingente de trabalhadores rurais do sertão brasileiro, submetidos, pelas “leis” vigentes do poderio econômico, a rigorosas jornadas de trabalhos em regime semi-escravo, registrando aí, também, traços nitidamente étnicos. No entanto, nossas atenções ficarão centradas no papel da mulher, principalmente à contadora de histórias. A narrativa começa com o relato da morte de dona Clarisse, a mãe de Carlinhos, assassinada pelo marido, sem um motivo justificável para tal atitude a não ser o ciúme descontrolado que sentia por ela, pois “o amor que tinha pela esposa era o amor de um louco” 4. O pai é preso e levado para um sanatório e lá termina os seus dias. O menino, que vivia com os pais, na capital de Pernambuco, é levado, após a tragédia familiar, para o engenho do avô materno, no interior da Paraíba. Lá recebe
toda proteção e cuidados de tia Mariazinha, moça muito jovem, irmã mais nova da mãe de Carlinhos, que tenta afastar dele as tristes lembranças de menino órfão. Procura ocupá-lo com catecismos e princípios de boa educação. Tarefa difícil para a jovem tia, pois aquela criança sentia muita falta dos pais e, em tenra idade, tinha súbitos momentos de intensa melancolia duro fato para a sua “sensibilidade em formação” 5. A tia Mariazinha, além dos cuidados com o sobrinho, acupava-se dos preparativos para o seu casamento, destino comum às moças daquele período que se casavam muito cedo, saindo do domínio do pai para o domínio dos maridos. Um movimento de simples transferência de subordinação. Carlinhos observa a limitação do espaço feminino, condição imposta pelo modelo da cultura patriarcal, e com a sinceridade inerente às crianças, o revela, à medida que fala das mulheres que fizeram parte da sua história. As mulheres, cada qual na sua posição, pela divisão de classes, dentro do contexto social da época, mantinham-se, de alguma forma, subordinadas aos homens. Já em Histórias da velha Totônia6 (1936), o autor apresenta quatro narrativas, do gênero conto, direcionados às crianças. O que tem de convergente entre as duas obras? Bem não se trata aqui de buscar convergências ou dissonâncias entre as obras escolhidas. O ponto a ser considerado é a presença da mulher contadora de histórias em várias passagens da primeira e na segunda, assim, todos os contos apresentados são colocados sob a responsabilidade dela. Os contos que compõem Histórias de velha Totônia e alguns apresentados em Menino de engenho são contos populares recuperados pela memória de José Lins, e adaptados aos valores do Brasil, mais especificamente ao nordeste brasileiro. “E o que fazia a velha Totonha [Em Menino de engenho o nome da contadora é grafado Totonha] mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritos”7. E assim...
“Quando ela queria pintar um reino era como se estivesse falando dum engenho fabuloso. Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba-azul era um senhor de engenho de Pernambuco”8 Mas quem era a velha Totônia? Ela foi descrita pelo narrador, de Menino de engenho, como um arquétipo de uma anciã que tinha trânsito livre nos engenhos por onde passava. Detentora de um considerável arquivo de histórias populares ainda possuía excepcional habilidade em segurar a atenção dos seus ouvintes através de narrativas fantásticas. Então vamos conhecer um pouco mais dela:
“Pequenina e toda engenhada, tão leve que uma ventania poderia carregá-la, andava léguas e léguas a pé, de engenho a engenho, como uma edição viva das Mil e uma noites. Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às palavras. [...] Ela também sabia escolher o seu auditório. [...] era uma grande artista para dramatizar. Ela subia e descia ao sublime sem forçar as situações, como a coisa mais natural do mundo. Tinha uma memória de prodígio”9.
Com todo respeito dedicado à Velha Totônia, José Lins, quando a descreve através de Carlinhos, dá pistas da condição social dela. Apesar de todas as virtudes, na qualidade de contadora de histórias, ela representa alguém que vive à margem da sociedade. Lograda da boa sorte de fortuna, nem sequer tinha um nome de família. Era simplesmente a Velha Totônia. Mas o núcleo feminino em Menino de engenho é bastante significativo. E as descrições acerca de cada uma delas, no desenrolar do romance, são apoiadas em conceitos referenciais de um período histórico-cultural que remete o leitor aos quadros da situação vivenciada pelas mulheres do início do século XX, ainda sob o domínio patriarcal. No entanto a representação delas fica somente no campo quantitativo, sem enlevo no processo cultural, ficam totalmente camufladas no âmbito das significações. Totônia podia ser desprovida de recursos financeiros e ter passado toda a sua vida distanciada da educação formal, mas conseguia significar todas as palavras e gestos que compunham o cenário das suas narrativas. Ela fazia brotar, àquele que se dispunha a ouvi-la, um rio, um mar10, um oceano, um mundo todo de imagens e possibilidades. E, escolada pela vida, detinha “os segredos da oralidade”11; para Havelock eles “não estão no comportamento da língua usada na conversação, mas na língua empregada para o armazenamento de informações na memória. Essa língua deve preencher dois requisitos básicos: tem sempre de ser rítmica e narrativa”12. E foi articulando bem a língua, sem negligenciar no ritmo e nos pormenores de cada narrativa, do ponto de vista do seu interesse imediato que era se fazer ouvir e da intenção de assentar significados as suas histórias que Velha Totônia, intuitivamente, aplicava às palavras toda sorte de representação. As palavras, por ela pronunciadas, tinham sempre dimensões e proporções tais que uma boa acolhida por ouvintes atentos poderiam fazer delas uma forma de expressão possível de permanência nos arquivos da memória. O deslocamento circunscrito à Velha Totônia, em relação às demais mulheres da trama narrativa, é marcado pela liberdade. A liberdade de Totônia a possibilitava caminhar com os próprios pés, sem um homem lhe apontando o próximo passo. Ou cobrando um passo anterior. Ela não tinha compromisso com as convenções impostas pelas teias da sociedade. E assim andava por onde queria andar e sabia onde seria ouvida. Conhecia o chão no qual pretendia pisar e se nele
encontraria ouvintes aos misteriosos reinos encantados, fadas bondosas, madrinhas perversas, princesas delicadas, príncipes belos e valentes, mirabolantes histórias de Trancoso, enfim, o seu “baú” de histórias não tinha fundo. As outras mulheres eram regidas pelos homens: pais, maridos, irmãos, patrões. As palavras, antes de serem pronunciadas por elas, eram cuidadosamente medidas e pesadas. Mulheres esculpidas para agradar ora como bibelôs, ora como subservientes aos caprichos daqueles homens. As suas histórias particulares ficavam esvaziadas de ações, de fatos e de atitudes a não ser pela interposição de um gesto masculino. Viviam presas às convenções ditadas pelo núcleo social/familiar. José Lins, no montante da sua produção literária, contou muitas histórias. Histórias para todas as faixas-etárias. Mas com Histórias da velha Totônia reservou e dedicou um espaço aos “meninos e meninas do Brasil”. Mas também a todas e todos que guardam na lembrança os ecos de uma voz contando uma história. E aos que queiram manter, com essa arte milenar e tão prazerosa, contato e assim dar continuidade aos arquivos pessoais ou coletivizados, de uma vida vivida com magia, fantasia e muito encantamento. Convém lembrar que, ainda em Menino de engenho, outros contadores são apresentados. Carlinhos foi um privilegiado. O pai lhe contou histórias, antes de morrer. A mãe o embalava descrevendo o engenho como “recanto do céu”13. O mesmo fazia a negra ajudante de dona Clarisse nos afazeres domésticos. Antônio Silvino, o cangaceiro, contava as suas histórias de valentias, despertando nas crianças respeito e admiração pelas bravuras (ou atrocidades) que cometia. Zé Guedes, mestre em histórias de amor, detalhava os seus romances, mesmo os mais picantes, deixando o menino interessado pela temática. Carlinhos não se sentia atraído pelos assuntos da igreja, mas via que “as estampas das paredes contavam histórias de mártires”14. Ainda havia as crenças coletivas que se propagavam em versões diversificadas, como as histórias de lobisomem:
“eles me contavam estas histórias dando detalhes por detalhes, que ninguém podia suspeitar da mentira. E a verdade é que para mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em Deus. [...] O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva. Era sair antes da meia-noite para a Mata do Rolo, e encontra-lo”15. “Os zumbis também existiam no engenho.[...] O zumbi, que era a alma dos animais, ficava por ali rondando. Não tinha o poder maligno do lobisomens”16. E as crenças iam se propagando, seguindo caminho no imaginário dos ouvintes, sedimentando-se, através de algumas personagens, e identificadas pelo povo de uma determinada localidade ou região, quase como uma verdade, ou uma meia verdade.
Os outros contadores tinham as suas próprias narrativas, mas o lugar de destaque, para o ato de narrar, ficava, indiscutivelmente, com a Velha Totônia e é o próprio Carlinhos que nos explica o que a diferenciava:
“O meu avô costumava à noite, depois da ceia, conversar com a mesa calada. Contava histórias de parentes e de amigos, dando dos fatos os mais pitorescos detalhes. _ Isto se deu antes do cólera de quarenta e oito ou depois do cólera de cinqüenta e seis. [...] Estas histórias do meu avô me prendiam a tenção de um modo diferente daquelas de velha Totônia. Não apelavam para a minha imaginação, para o fantástico. Não tinham a solução milagrosa das outras. [...] Era uma obra de cronista bulindo de realidade”17. Pode-se dizer que o lugar da contação de história ainda sofre estigmatização, como espaço e função delegada às mulheres. A mulher conta história para acalmar a criança. Para fazê-la dormir. Para distraí-la. A professora conta histórias, na sala de aula, com as finalidades mais diversas. O que precisa ser entendido é que a contação de histórias, além de todas as funções que se pretende com ela, e do subjacente e inegável caráter social ela deve ser consentida a agir, sem omissões ou mascaramentos, como possibilidade de deleite, de pura fruição, principalmente às crianças e que também ao adulto não seja negado o direito de usufruir do poder de uma boa história narrada. Shedlock observa que “o apelo da arte de narrar histórias não vale apenas para o mundo da educação, ou para os pais enquanto pais, e sim a um público amplo interessado no tema de um ponto de vista puramente humano”18. O acervo, para a contação de histórias, é inesgotável. Existem histórias para mulheres e homens, independentemente de idade, classe social, ideologia política ou crença religiosa. As histórias podem até ter o mesmo título, começar com o “era uma vez...”, mas cada contador vai dar para a sua narrativa uma roupagem própria. Vai colorir os ambientes e descrever as personagens de forma muito particular. E assim sendo é só começar a contar uma história, quem ainda não começou, para garantir, às gerações futuras, o grande legado recolhido das gerações passadas, pela multiplicação de incontáveis Totônias(os), sem, necessariamente, serem Velhas(os).
Notas: 1. Romance da primeira fase do autor, publicado em 1932, e enquadrado no ciclo da cana de açúcar. 2. Personagem central e narrador do romance Menino de engenho. 3. Grande engenho de cana de açúcar pertencente ao avô materno de Carlinhos, José Paulino. Espaço referencial da narrativa. 4. Menino de engenho, p. 35. 5. Id. p. 94. 6. Publicado em 1936 é o único livro de Literatura infantil de toda produção literária de José Lins do Rego. 7. Menino de engenho, p.80. 8. Id. p. 80. 9. Id. p. 79. 10. Alusão à fábula Mar de histórias de Salmam Rushdie, lembrada por Gilka Girardello na introdução de Baús e Chaves da narração de histórias. 2004, pp. 06-14.
11. HAVELOCK, Eric. A equação oralidade – cultura escrita: uma fórmula para a mente moderna. In: Cultura escrita e oralidade. 1997, p.31. 12. Id. p. 31. 13. Menino de engenho, p. 38. 14. Id. p. 69. 15. Id. pp. 77 - 78. 16. Id. p.77. 17. Id. pp. 117 – 119. 18. SHEDLOCK, Marie L. Da introdução de A arte de contar histórias. In: Baús e chaves da narração de histórias. 2004, p.22.
Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 3ª ed., São Paulo: HUCITEC, 1993. CASCUDO, Luis Câmara. Literatura oral no Brasil. 3ª ed., São Paulo: Ed. USP, 1984. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999. GIRARDELLO, Gilka (org.). Baús e chaves da narração de histórias. Florianópolis: SESC/SC, 2004. OLSON, David R., TORRANCE, Nancy. Cultura escrita e oralidade. 2ª ed., São Paulo: Ática, 1997. REGO, José Lins. Histórias da Velha Totônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. _____. Menino de engenho. 80ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.