NOTAS SOBRE A TESE DA NOVA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA ANDRE SALATA1
INTRODUÇÃO Há poucos dias atrás o jornal espanhol "El Pais" publicava uma matéria intitulada "La nueva clase media brasileña dispara la fiebre consumista", onde constatava que nos últimos anos no Brasil mais de trinta milhões de pessoas teriam entrado para a chamada "nova classe média", expandindo assim o mercado interno. 2 Já a revista “The Economist” anunciava em 12 de Maio de 2011 – baseando-se em dados do Banco Africano de Desenvolvimento - que a classe média na
África, que em 2000
representava apenas um quarto da população, em 2010 chegava a um terço da mesma. Em 21 de Julho de 2011 a mesma revista exibia uma reportagem constatando o enorme crescimento da classe média na Indonésia (agora baseando-se em dados do Banco Mundial e do Banco Nomura), que, se em 2004 englobava apenas 1,6 milhões de pessoas (o que é bem modesto quando levamos em conta a população de aproximadamente 238 milhões de pessoas daquele país) passara a englobar quase 50 milhões de pessoas em 2009 e, segundo algumas previsões, chegaria a aproximadamente 150 milhões de pessoas em 2014. Já a classe média Chinesa, segundo projeções do NCAER (Conselho Nacional de Pesquisa em Economia Aplicada, da Índia), deverá crescer 67% nos próximos cinco anos, chegando a 267 milhões de pessoas. De acordo com algumas projeções, inclusive, a classe média global deve ao menos dobrar de tamanho até 2030, chegando a cinco bilhões de pessoas. Mas, quando se faz esse tipo de afirmação, sobre a crescente importância deste segmento social, o que exatamente está se denominando classe média? Como ela tem sido mensurada para formar os dados que servem de base a essas reportagens? E, mais importante, com base em quais argumentos e referências essas definições têm sido construídas e utilizadas?
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Doutorando em Sociologia (IFCS-UFRJ); pesquisador do Observatório das Metrópoles http://internacional.elpais.com/internacional/2012/03/29/actualidad/1333009254_735815.html
São diversas as definições de classe média utilizadas para se chegar a esses dados, podendo haver significativas diferenças na mensuração dessa camada, e no peso atribuído a ela, variando de acordo com a definição utilizada. Mas, por mais que haja tamanha variação, a maior parte dos dados citados anteriormente – e também dos inúmeros outros dados que têm sido produzidos sobre o tema – apresentam um ponto em comum: em geral se utiliza a renda, e somente a renda, como variável para a identificação da classe média. As diferenças dizem respeito à maneira como a renda é trabalhada posteriormente, a fim de se identificar aquela camada, mas não à qual variável original. Como veremos na seção seguinte, essa maneira de se identificar as classes médias surge nos estudos da área econômica, e hoje em dia podemos encontrar uma grande discussão a esse respeito, girando em torno principalmente da “melhor” maneira de se tratar a variável “renda” a fim de se identificar a "classe média". Veremos também que há uma grande distância entre essa forma de se tratar a classe média – ou as classes de uma maneira mais geral -, típica dos estudos econômicos, e o modo como a literatura sociológica procura definir e identificar as classes – ou, mais especificamente, a classe média.
DEFININDO A CLASSE MÉDIA ATRAVÉS DA RENDA: O DEBATE DENTRO DA ÁREA ECONÔMICA O interesse pela classe média na área econômica advém da percepção de que tradicionalmente se olhara muito para os extremos da distribuição de renda, os vinte por cento mais ricos e, principalmente, os vinte por cento mais pobres, deixando de lado os sessenta por cento que formam o setor intermediário dessa distribuição, ou seja, a maior parte da população (Brandolini, 2010). Além disso, a bibliografia sobre este tema costuma enfatizar algumas características da(s) classe(s) média(s) que as legitimaria como objeto de estudo3. Em primeiro lugar, a classe média quase sempre fora tomada como uma força estabilizadora. Como colocado por Thurow (1984), a classe média poderia ser entendida como “a cola social que mantém a sociedade unida”, provendo assim as fundações para uma democracia saudável. Em segundo lugar, esses trabalhos costumam supor que a classe média possui um efeito emancipador, já que a visível 3
Ver Curry-Stevens (2007) e Ravallion (2010)
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oportunidade de mobilidade ascendente produziria uma maior esperança entre os mais pobres. Ou seja, a presença da classe média daria aos pobres a esperança de que também eles poderiam escapar da pobreza. Por fim, há também a ideia que a classe média possuiria uma propriedade pacificadora, já que ela poderia mediar os conflitos entre a burguesia e a classe trabalhadora – aqui numa visão mais marcada pelo Marxismo -, ou, de uma forma mais geral, entre os mais pobres e os mais ricos – os extremos da distribuição de renda. A mensuração da(s) classe(s) média(s) também possuiria uma importância prática, já que através da mesma seria possível se ter uma melhor ideia do tamanho da população em situação de vulnerabilidade, com chances significativas de voltar à pobreza devido à pequenas perdas monetárias. Como já foi dito, na área econômica costuma-se utilizar a renda como variável para mensurar a classe média; mas a maneira como os limites dessa classe são estabelecidos variam bastante. A perspectiva mais comumente utilizada é aquela que estabelece limites – absolutos ou relativos – para a identificação da(s) classe(s) média(s). Dessa forma é possível perceber a variação de tamanho desta classe entre os países e/ou anos. Mas a grande questão que se coloca aqui é a de como estabelecer os limites que definirão o tamanho da classe média; e sobre esse ponto podemos encontrar um grande debate, que buscaremos resumir a fim de captar as principais posições e argumentos. Como dissemos, há duas maneiras de se fazer isso: estabelecendo limites relativos – como em Thurow (1987), Birdsall et al (2000) ou Easterly (2001), por exemplo - ou absolutos – como em Milanovic and Yitzaki (2002), Banerjee and Duflo (2007), Ravallion (2009) e Bhalla (2009). Ambas possuem alto grau de arbitrariedade, não havendo nenhuma base óbvia para a utilização dos diferentes valores, como bem reconhecido pelos próprios autores desses estudos (Ravallion, 2010). A diferença, no entanto, é que quando se utiliza limites relativos os valores de corte definidores da classe média podem variar de país para país (ou de ano para ano); já quando se usa limites absolutos não há essa variação, ou seja, ignora-se as enormes diferenças existentes entre os níveis de renda e poder de compra nos diferentes países. Segundo Ravallion (2010), no contexto dos chamados países desenvolvidos – onde, ao contrário do que ocorre nos trabalhos sobre os países em desenvolvimento, a grande preocupação tem sido a redução do tamanho da classe média, e não seu crescimento – os estudos têm tipicamente definido a classe média por meio de um intervalo que inclui a mediana, e cujos limites – relativos – sejam simétricos a ela. O 3
influente trabalho de Thurow (1987), por exemplo, utiliza como limite inferior 75% da mediana, e como limite superior 125% da mediana. Apesar de haver ainda uma grande variação no valor relativo desses limites, há sinais de que a literatura estaria convergindo para valores bastante semelhantes aos utilizados por Thurow (1987). Por outro
lado, entre
os
estudos que focam nos chamados países em
desenvolvimento, ainda segundo Ravallion (2010), não há indícios tão fortes de qualquer convergência em relação aos limites definidores da classe média. Em contraste com alguns estudos específicos que também utilizam 75% e 125% da mediana como os valores relativos que delimitam aquela camada – como, por exemplo, em Birdsall, Graham e Pettinato (2000) -, podemos encontrar diversos outros trabalhos que fazem uso de valores absolutos, variando entre países ou não. Bhalla (2007), por exemplo, utiliza como limite inferior oito dólares (preços de 1996) - que é a média das linhas de pobreza da OECD (Organisation for Economic Co-operation and Development) -, e como limite superior dez vezes esse valor.4 Continuando, Banerjee and Duflo (2008) definem a classe média como aquela com renda diária entre 2 e 10 dólares (preços de 1993). Já Milanivic and Yitzhaki (2002), por sua vez, classificam como classe média aqueles com rendimento entre a média do Brasil (limite inferior) e a média da Itália (limite superior). Assim como acontece no caso das linhas de pobreza (Rocha, 2003), é notável o grau de arbitrariedade dessas definições, não havendo razões óbvias - ou objetivas - para nenhum dos limites escolhidos por esses autores. Nesse sentido, uma das grandes questões que se coloca entre os estudiosos do tema é saber até que ponto uma definição de classe média aplicada a países desenvolvidos pode ser útil a países pobres ou em desenvolvimento – e vice-versa. Tomar a mediana de renda dos Estados Unidos da América como centro da definição de classe média, e comparar seu tamanho com a classe média Indiana – também definida através da mediana da distribuição de renda daquele país -, por exemplo, pode nos levar a conclusão de que ambos são países de classe média, apesar de grande parte da classe média Indiana ser considerada pobre de acordo com os limites norte-americanos. Ao mesmo tempo, utilizar os mesmos valores absolutos para definir a classe média - por exemplo, como aquelas pessoas com renda diária entre 8 e 80 dólares - em países economicamente tão desiguais, significa ignorar o caráter relativo da definição das diferentes camadas 4
É importante frisar que a premissa de que a classe média começa onde a pobreza termina tem sido bastante utilizada; ou seja, grande parte dos trabalhos procuram na linha de pobreza, ou em alguma medida relacionada a esta, o limite inferior da classe média. No entanto, em relação a seu limite superior não há nenhuma referência tão comumente aceita.
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sociais. Pessoas que poderiam ser consideradas “pobres” segundo os padrões norteamericanos muitas vezes são reconhecidas como pessoas de “classe média” na Índia, ou na China, por exemplo. Tendo em vista estas dificuldades, alguns trabalhos vêm buscando adotar medidas que, se não resolvem completamente esses impasses, procuram amenizar parte de seus efeitos deletérios. Ravallion (2010), por exemplo, utiliza duas definições de classe média: a “classe média do mundo em desenvolvimento” e a “classe média ocidental”. Fariam parte da primeira aqueles que não são considerados pobres de acordo com os padrões medianos do mundo em desenvolvimento, mas que ainda assim são pobres quando vistos através dos padrões dos países desenvolvidos. Aqueles que não podem ser considerados pobres segundo nenhum dos dois padrões se encaixariam dentro da “classe média ocidental.” Ravallion (2010) utiliza, portanto, valores absolutos a fim de mensurar esses grupos, mas, ao mesmo tempo, procura estar atento ao caráter relativo na definição destas camadas, estabelecendo diferentes limites para as classes médias dos países desenvolvidos e dos países em desenvolvimento. Os trabalhos citados nos parágrafos acima estão longe de esgotar a bibliografia sobre o tema. No entanto, já cumprem a função de indicar as referências utilizadas pelos formadores da tese da Nova Classe Média brasileira, o que nos permitirá melhor compreendê-la, assim como melhor entender as críticas já dirigidas à ela. Na seção seguinte descreveremos o surgimento e os desdobramentos desta tese para, na seção subsequente, apresentar as críticas já elaboradas contra esta perspectiva.
A NOVA CLASSE MEDIA BRASILEIRA No dia cinco de Agosto de 2008 o Jornal O Globo noticiava em sua seção de economia: “Duas pesquisas divulgadas nesta quarta-feira uma da Fundação Getúlio Vargas e outra do IPEA mostram que a classe média cresceu e o número de pobres encolheu no país.” Nesta data é possível encontrar inúmeras reportagens em jornais e portais de internet a respeito da constatação do crescimento da “classe média” ou da diminuição do número de pobres no Brasil.
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Essa enxurrada de notícias, como já dito no trecho acima, tem origem na divulgação de dois estudos, um do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e outro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), na mesma data. Apesar das semelhanças, havia algumas importantes diferenças entre as conclusões das duas pesquisas. A pesquisa da FGV, intitulada “A Nova Classe Média”, coordenada pelo economista Marcelo Neri, afirmava que a “Faixa C” (que englobava famílias cuja renda que ia de R$ 1.064,00 até R$ 4.561,00), considerada por eles a classe média no país, passara de 42% para 51% da população entre 2003 e 2008. Ou seja, a conclusão a que chegavam era a de que o Brasil se tornara, ou estava a caminho de se tornar, um país de classe média, onde esta camada representaria mais da metade da população. Já a pesquisa do IPEA, intitulada “Pobreza e Riqueza no Brasil Metropolitano”, e coordenada pelo economista Márcio Pochmann, revelava que nas seis principais regiões metropolitanas do país mais de três milhões de indivíduos haviam deixado de ser pobres entre 2002 e 2006, o que correspondia a uma significativa queda de 8,8 pontos percentuais na taxa de pobreza – que chegava a 24,1%. Enquanto o estudo da FGV atentava para os ganhos conseguidos no mercado de trabalho, em especial através da expansão do mercado formal, a pesquisa do IPEA concentrava-se nos efeitos do aumento real do salário mínimo e dos programas sociais do governo federal. Além disso, o trabalho coordenado por Neri (2008), nas palavras do próprio autor, tocava nas consequências desse aumento da renda para o surgimento da “Nova Classe Média”: “A classe média está comprando computador, automóvel. O Brasil vive um momento interessante na sua classe média. Depois de anos de redução, desigualdade e miséria, floresce a nova classe média.“ (Jornal O Globo, 08 de Agosto de 2008). No decorrer do tempo as páginas de jornais e a imprensa de uma maneira geral acabaram endossando a interpretação da FGV, ao adotar a ideia da expansão da classe média.5 Mas sua origem, e a esfera de discussões que aqui mais nos interessa, se encontra na área acadêmica, particularmente na já citada pesquisa da Fundação Getulio Vargas, coordenada pelo economista Marcelo Neri. Na seção anterior procuramos citar alguns dos trabalhos que, dentro de uma perspectiva mais econômica 5
Para um bom resumo da miríade de matérias sobre o tema, ver a série de reportagens exibidas no Jornal da Globo, entre os dias 13/04/2010 a 16/04/2010. Endereço eletrônico: http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2010/04/nova-classe-media-brasileira-esta-cheia-devontade-de-comprar.html
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do que sociológica, serviram de referência à definição de classe média utilizada por essa pesquisa. Nessa seção veremos como, numa perspectiva próxima, o estudo da FGV chegou à conclusão de que o Brasil se tornara um país de classe média. O estudo coordenado por Neri (2008), principal referência do atual debate, se baseia no chamado “Critério Brasil” e divide a sociedade brasileira em 4 faixas (AB, C, D, e E), cujos limites são dados pela renda. Da faixa E fazem parte aqueles com renda de até 768 reais (limite calculado tendo como base a linha de miséria 6); entre 768 e 1064 (calculado com base na mediana da distribuição7) reais estão aqueles que fazem parte da faixa D; a chamada Nova Classe Média, Faixa C, é composta pelos que têm renda entre 1.064 e 4.561 (nono decil da distribuição) reais; por fim, fazem parte da elite nacional, faixa AB, aqueles com renda de no mínimo 4.591 reais8. Como já dito, os limites definidores dessas faixas são dados somente por valores de renda, tomando como referência algumas medidas como mediana, decis ou linha de miséria. Entre 2002 e 2008 a participação da “Faixa C” na população brasileira passou de 44,19% para 51,89%, resultando, portanto, em um aumento de 17,03%. A elite, “AB”, correspondia a 12,99% da população em 2002, passando para 15,52% em 2008, e configurando um aumento de 19,46%. Já as faixas “D” e “E”, que em 2002 somavam 42,82% da população, em 2008 caíram para 32,59%. Assim, as faixas de menor renda diminuíram sua participação, e as faixas de renda média e alta aumentaram sua presença no seio da população brasileira. É interessante notar, também, que foi a Faixa AB, e não a Faixa C, que proporcionalmente apresentou maior crescimento entre 2002 e 2008. A pesquisa da FGV toma esses dados, sobre o crescimento da “Faixa C” – que no ano de origem da pesquisa se encontrava entre a mediana e o nono decil da distribuição, ou seja, entre os “remediados” e a “elite”, nas palavras do próprio autor -, como crescimento da classe média. Compreendida entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, a Faixa C aufere em média a renda média da sociedade. Por essa razão, Neri (2008) em alguns trechos a define como “classe média no sentido estatístico [...] imagem mais próxima da sociedade brasileira” (p. 05). Fica evidente, dessa maneira, que o estudo desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas pode ser englobado na perspectiva econômica brevemente relatada na seção 6
Definida e calculada pelo Centro de Políticas Sociais (Ferreira, neri, e Lanjouw, 2003). Todos os limites foram calculados levando-se em consideração a renda domiciliar per capita do trabalho, mas os valores apresentados são os equivalentes em renda domiciliar total de todas as fontes. 8 Todos os valores foram definidos tendo como base os preços de 2008. 7
7
anterior. A renda é utilizada como única variável delimitadora da classe média; a nova classe média brasileira, como vimos, é aquela com renda domiciliar entre R$ 1.064,00 e R$ 4.561,00; essa é sua definição, por mais que outras características possam estar sendo atribuídas a ela. É interessante notarmos também que a nova classe média brasileira, da maneira como é mensurada pelo estudo da FGV, não começa onde termina a pobreza, ou seja, seu limite inferior não é a linha de pobreza – que, como já tivemos a oportunidade de mostrar na seção anterior, é normalmente utilizada nesse sentido -, mas sim a mediana da distribuição. Há um grupo intermediário (D), os vulneráveis, entre os pobres (E) e a classe média (C).9 Apesar de não haver muitas referências ou indicações à esse respeito no texto, é a bibliografia econômica citada na seção anterior que parece ter servido de inspiração ao trabalho que deu origem à tese da nova classe média brasileira. Como bem reconhecido por Neri (2008), levando em consideração apenas a renda, ela, a “Faixa C”, é a camada intermediária no sentido estatístico; e esse tem sido o argumento principal através do qual a tese do crescimento da classe media brasileira tem se justificado. Tal argumentação fica muito evidente no texto do Cientista Político Haroldo da Gama Torres, divulgado na internet10. Torres afirma ser um erro entendermos, no Brasil, a Classe Média como aquela que fez curso universitário, paga escola particular, vai a médicos particulares e viaja para o exterior; esses, na opinião de Torres, fariam parte da elite brasileira, já que 90% da população ficaria excluída desse tão seleto grupo. A verdadeira classe média seria aquela formada pela “Faixa C”, cuja renda, valores e aspirações ficam distantes tanto dos ricos como dos pobres brasileiros. É nessa questão dos valores e aspirações que Souza e Lamounier (2010) focam seu estudo. Além dos mesmos grupos de renda do trabalho da FGV, nesse livro os autores também fazem uso de critérios de escolaridade, autoidentificação subjetiva, padrões de consumo e ocupação. Já que não há um critério definido para mensurar a classe média, afirmam eles, seria melhor utilizar vários. No entanto, são os estratos de renda (AB, C, D e E) que predominam em suas análises. 9
De qualquer forma, Sobrinho (2011) afirma que o limite inferior da classe média de Neri (2008) é menor que a metade do salário mínimo estimado como necessário pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) para aquele mesmo mês (R$ 2.194,76). Além disso Sobrinho (2011) também faz ressalvas sobre a escolha feita por Neri (2008) de utilizar dados restritos aos rendimentos do trabalho e inferir os demais componentes dessa renda tomando por base razões obtidas em um ponto do tempo. 10 Endereço eletrônico: http://www.madiamundomarketing.com.br/conteudo/secoes/Opiniao-deEspecialistas/QUEM-aEacute-A-CLASSE-MaEacute-DIA-NO-BRASIL-Haroldo-da-Gama-Torres.php
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A Nova Classe Média seria, segundo Souza e Lamounier (2010), resultado do encurtamento de distâncias sociais em função das recentes transformações econômicas. O que a diferenciaria da classe média tradicional é o fato de esta já ter se estabilizado, se encontrar mais fortemente enraizada em uma posição social, enquanto a Nova Classe Média seria um grupo ainda emergente e extremamente vulnerável – em grande parte devido ao seu frágil capital social -, podendo sua situação mudar abruptamente em um curto espaço de tempo. Com efeito, Souza e Lamounier (2010) trabalham com a expectativa de que a “Nova Classe Média” venha a se integrar à classe média estabilizada. Mais do que isso, têm a expectativa de que aquela possa vir a se constituir como um ator político com projetos “modernizantes” para o país, já que tenderiam a se aproximar da classe média tradicional em termos de valores e perspectivas. Aqui podemos perceber claramente como esta tese compartilha dos mesmos pressupostos da bibliografia sobre classe média citada na seção anterior. Há aqui também a expectativa de que a classe média possa vir a “modernizar” o país, exercendo pressão sobre reformas políticas “essenciais” que possam garantir a continuidade do crescimento econômico. Ou seja, não apenas operacionalmente, mas também em seus pressupostos, há uma forte relação entre a tese da Nova Classe Média Brasileira e os estudos econômicos citados anteriormente. Como veremos na seção seguinte, no entanto, a maneira como a classe média tem sido definida pelo trabalho de Neri (2008), assim como pela perspectiva econômica de uma maneira geral (Ravallion, 2010), pode ser problematizada, e já vem sofrendo críticas – especialmente por parte de autores mais ligados ao campo da Sociologia. Tais críticas, como veremos, poderiam colocar em cheque as expectativas de que esses indivíduos e famílias que recentemente sofreram aumento em seus rendimentos possam vir a fazer parte da classe média brasileira.
CRÍTICAS À PERSPECTIVA ECONOMICA E À TESE DA NOVA CLASSE MÈDIA BRASILEIRA A maior parte dos economistas, assim como Neri (2008), toma os rendimentos, independentemente de sua origem, como centro de suas análises. Sabemos que informações sobre rendimentos estão disponíveis em grande parte dos surveys oficiais aplicados em diferentes países; ou seja, são informações relativamente fáceis de serem conseguidas. Utilizando essas informações, através de operações simples é 9
possível comparar a desigualdade entre países e/ou no decorrer dos anos. Assim os rendimentos, talvez mais por razões mais práticas do que teóricas, vêm ganhando cada vez mais espaço dentro das análises sobre desigualdade. No
entanto,
dentro
da
literatura
sociológica
a
associação
entre
“classe”,
"desigualdade" e “emprego/ocupação” tem bases sólidas que não podem ser desfeitas facilmente - como afirma Crompton (2010). Um grande volume de pesquisas empíricas vem demonstrando, já ha algumas décadas, que a situação ocupacional (ou de trabalho, de uma forma mais geral) dos indivíduos é um “componente causal” importantíssimo de suas “chances de vida”, capaz de exercer influência sobre sua saúde, educação, mortalidade e muitos outros resultados, inclusive sobre os rendimentos e as chances de desemprego (Reid, 1998; Scott, 2002). Não há uma única, correta, definição de classe na literatura sociológica, é verdade. O conceito utilizado varia de acordo com o tipo de questão que está sendo colocada (Wright, 2005), e também conforme o arcabouço teórico utilizado (Crompton, 2008). Mas, apesar dessas variações, desde os fundadores do campo sociológico – principalmente Karl Marx e Max Weber -, a relação entre classe e tipo de trabalho/emprego (em geral mensurado a partir das informações ocupacionais) tem sido estabelecida. Na segunda metade do século XX começaram a ser desenvolvidos os primeiros esquemas de classe (ou agregados ocupacionais) explicitamente sociológicos, como os de John Goldthorpe e Erik Olin Wright (Erikson and Goldthorpe, 1993; Wright, 1997). Desde então os esquemas de classe construídos a partir de agregados ocupacionais tem sido amplamente utilizados e considerados excelentes proxies de classes.11 Dentre suas qualidades destaca-se o fato de através das informações
ocupacionais
podermos
analisar
a
dimensão
estrutural
das
desigualdades, na qual a ocupação (ou tipo de emprego) tem um papel fundamental – como ficará mais claro nas próximas páginas. No entanto, afirma Crompton (2008), nas últimas décadas a utilização dos agregados ocupacionais - junto ao próprio conceito de "classe" - tem sido desafiada pela
11
O Observatório das metrópoles também desenvolveu seu próprio "esquema de classes", denominado de"Categorias Sócio-Ocupacionais - CATs" (Ribeiro e Lago, 2000), construído a partir de informações sobre a ocupação dos indivíduos, respeitando os princípios da divisão entre proprietários e não proprietários, a oposição entre posições de comando e subordinação, o caráter manual ou não-manual do trabalho, considerando as distinções entre trabalho público e privado, e os diferentes setores da atividade econômica. Com base nesses princípios foram construídos oito grandes grupos sócioocupacionais, como segue: dirigentes, profissionais de nível superior, pequenos empregadores, ocupações médias, trabalhadores do secundário, trabalhadores do terciário especializado, trabalhadores do terciário não-especializado, e agricultores.
10
tendência a se analisar as desigualdades do ponto de vista individual, e não mais estrutural. Tal tendência, como já indicamos, está relacionada com a atual descrença, por parte da bibliografia sociológica (Beck, 2007; Pakulski & Waters, 1996; Bauman, 1982), em relação ao conceito de classe como ferramenta de analise a sociedade ocidental contemporânea12, o que tem levado a um crescimento exponencial da perspectiva
econômica,
baseada
nos
rendimentos
individuais
(ou
familiares/domiciliares), nos estudos sobre desigualdades (Atkinson, 1980; Hills, 1996; Goodman et al, 1997), como constatado também por Savage (2000). Em um artigo publicado muito recentemente o famoso sociólogo britânico John Goldthorpe tece uma série de críticas a trabalhos desenvolvidos na área econômica que analisavam as desigualdades única e exclusivamente através dos rendimentos. Goldthorpe (2009) inicia sua argumentação distinguindo duas maneiras de se enxergar e analisar as desigualdades sociais: em termos “atribucionais” ou em termos “relacionais”. A primeira forma olha para as desigualdades em termos da distribuição de atributos entre seus membros individuais, que são ranqueados de acordo com a característica escolhida - no presente caso, os rendimentos. Trata-se, obviamente, de uma interessante e eficiente maneira de se descrever as desigualdades. Mas, por outro lado, as desigualdades apresentariam também um sentido mais profundo, que essa perspectiva não seria capaz de captar. A fim de se captar esse sentido mais profundo, as desigualdades devem ser pensadas, segundo Goldthorpe, em termos das relações sociais – por isso ele denomina essa perspectiva de “relacional” -, no contexto das quais os indivíduos possuem, em algum sentido, vantagens e desvantagens. Trata-se aqui, portanto, de desigualdades de um tipo “estruturado” – não somente como uma questão de destino individual, mas sim inerente a formas prévias de relações sociais que possuem, em certo nível, uma base institucional. As posições que os indivíduos ocupam dentro dessas formas de relações sociais seriam determinantes de suas chances de vida, e nesse sentido a estratificação social poderia ser entendida como crucial para os diferentes tipos de desigualdades observados no nível “atribucional”. Tomando o arcabouço conceitual weberiano como base, o ponto central da crítica de Goldthorpe (2009) aos trabalhos de parte da literatura econômica sobre o tema é que se analisa a esfera econômica somente ao seu nível “atribucional” – sendo a “renda” o atributo preferido -, não atingindo um nível de análise mais profundo, “relacional”. 12
Entrar mais a fundo nessa interessante discussão implicaria em um desvio de rota muito grande. Para uma análise detalhada sobre o tema, ver a bibliografia indicada acima.
11
Assim, nesses trabalhos – como no de Neri (2008) – as “classes” não são entendidas como algo que se refira à estruturas relacionais através das quais padrões de desigualdade que aparecem no nível dos atributos poderiam ser explicados, mas simplesmente como um indicador de desigualdades. Seria justamente esse aspecto “relacional” da desigualdade, mais profundo, que não estaria sendo contemplado pelos trabalhos sobre o tema desenvolvidos na área econômica – já que estes costumam se ater somente aos rendimentos, analisados como atributos desigualmente distribuídos entre os indivíduos. Dessa maneira esses estudos não seriam capazes de enxergar os riscos socialmente estruturados (com origem em relações sociais institucionalizadas), principalmente em torno do mercado de trabalho e das unidades produtivas, onde uma grande quantidade de recursos é criada e sustentada. Em uma perspectiva próxima, Erik Olin Wright (2005) afirma que os diferentes sentidos que a ideia de classe pode evocar estão associados aos diferentes objetivos de pesquisa, ou seja, às diferentes questões que se procura responder - estas, por sua vez, é claro, relacionadas à perspectiva teórica utilizada. Wright então enumera seis importantes questões que normalmente a ideia de "classe" é utilizada para responder, das quais destacaremos duas. Uma das questões que normalmente vêm acompanhadas da noção de classe em suas respectivas respostas é a seguinte: como as pessoas se localizam objetivamente numa distribuição de desigualdades materiais? A fim de responder a uma pergunta como essa, "classe" assume o sentido mais geral de padrão de vida, normalmente mensurado pela renda, formando uma distribuição contínua ou grupos de renda que vão dos mais pobres até os mais ricos, passando pelas setores intermediários da distribuição. Como vimos, é normalmente dessa maneira que os economistas constroem suas classes, de forma que "classe média" significa nada mais do que o agregado daqueles que ocupam o setor intermediário da distribuição de renda. Assim as divisões de classe são concebidas como divisões em grupos diferenciados de acordo com o grau em que possuem a(s) características que formam o critério de divisão - nesse caso, e comumente, a renda13 (Ossowski, 1963, p. 146 apud Wright, 1979).
13
Também a perspectiva funcionalista de status social (Parsons, 1970) e as inúmeras escalas de status derivadas daí poderiam ser incluídas nessa perspectiva.
12
No entanto há uma outra questão extremamente importante a qual uma diferente perspectiva de classe procura dar resposta, que é: o que explica as desigualdades de chances de vida e padrão de vida material? Essa é uma questão mais complexa e difícil de responder do que a primeira, já que o objetivo aqui não é apenas descrever mas também explicar as desigualdades; não se trata apenas de localizar os indivíduos numa distribuição, mas também de analisar os mecanismos causais que ajudam a explicar aquela localização. Nessa segunda perspectiva - denominada relacional -, em oposição à primeira gradacional -, as classes formam um sistema de acordo com suas dependências mútuas, entendendo essas dependências como algo baseado em relações causais (Ossowski, 1963, p. 146). Assim, ao invés de assumir a forma de uma escada (ex: pobre, classe média, classe alta e etc.), temos aqui uma estrutura de classes interdependentes
(ex:
trabalhadores
manuais
não
qualificados,
grandes
empregadores, administradores e profissionais e etc.) cuja desigualdade resultante (em termos de renda, por exemplo) é fruto das relações estruturadas e, muitas vezes, institucionalizadas assumidas por essas classes, seja no processo produtivo (Marx, 1959), mercado (Weber, 1971) ou espaço social (Bourdieu, 2008). Colocado de uma forma mais simples e genérica, na perspectiva relacional as classes são definidas pela relação dos indivíduos com os recursos geradores de renda ou ativos de diversos tipos - que afetam as suas chances de vida. A questão que fica em aberto é a de saber quais recursos devem ser levados em consideração, e também qual a noção de chances de vida que é utilizada. Há diferentes perspectivas nesse sentido. Marx, por exemplo, concentrava-se na divisão entre proprietários e não proprietários; Weber entendia as habilidades (ou credenciais), e outros fatores, também como recursos que poderiam ser utilizados pelos indivíduos a fim de obter vantagens no mercado; Bourdieu é o que possui uma visão mais ampla a esse respeito, reconhecendo o papel que diferentes tipos de capitais (econômico, cultural, social e outros), em suas diferentes formas (institucionalizado, incorporado e etc) poderiam ter sobre as trajetórias dos indivíduos.
Assim, segundo Wright (2005, 1979) - como também para Goldthorpe (2009) - as diferentes abordagens de classe (se gradacional/atribucional ou relacional), mais do que uma mera discordância em relação a operacionalização de um conceito, refletiriam diferentes maneiras através das quais as desigualdades são compreendidas e analisadas.
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A preferência dos sociólogos por essa perspectiva – como as pessoas ganham dinheiro, e não quanto dinheiro elas têm (Hout, 2008) -, advém portanto da importância que é atribuída pelos mesmos às relações (estruturais e/ou institucionais) estabelecidas pelos indivíduos. Classe, nesse sentido, também poderia ser entendida como o conjunto de pessoas com trajetórias provavelmente semelhantes: jovens estudantes de medicina, direito ou administração, por exemplo, apesar de possivelmente apresentarem rendimentos modestos, poderiam fazer parte da mesma classe das pessoas que atualmente ocupam as posição pelas quais eles aspiram (médicos, advogados, administradores e etc.), e que já contam com rendimentos bem acima da média. Acredito que este seja um ponto nevrálgico da crítica que a perspectiva sociológica pode fazer aos estudos da área econômica. O exemplo acima, dado por Hout (2008), mostra como e porque - dentro de uma perspectiva mais sociológica - indivíduos podem se encontrar dentro de uma mesma classe apesar de apresentarem distintos níveis de rendimento; ou, por outro lado, como e porque indivíduos que partilham de um mesmo nível de rendimentos podem se encontrar em classes distintas. No exemplo dado no parágrafo anterior, estudantes de medicina ou direito poderiam apresentar o mesmo rendimento de trabalhadores manuais de baixo status. No entanto, seu baixo rendimento é visto como um curto período que faz parte de trajetórias que culminarão em alguns dos postos de trabalho mais bem pagos. Assim, apesar de momentaneamente apresentarem rendimentos próximos à de trabalhadores de baixo status, é para a origem desses rendimentos que deveríamos olhar. No Brasil, Sobrinho (2011) dirige o mesmo tipo de questionamento que Goldthorpe (2009), Crompton (2010) e Wright (2005, 1979) ao estudo da FGV sobre a classe média, argumentando que a definição de classe utilizada por Neri (2008) não levaria em consideração a dimensão estrutural da estratificação social. A partir daí Sobrinho (2011) coloca uma série de questões à tese da Nova Classe Média, destacando a maneira como tradicionalmente a sociologia trata o tema, e comparando-a com o tratamento dado por aquela tese. Sobrinho (2011) procura mostrar como as características ocupacionais dos indivíduos (propriedade, qualificação, treinamento, recursos organizacionais, autonomia e controle sobre o próprio trabalho e o trabalho de outros etc) e sua inserção no mercado de trabalho são variáveis fundamentais nos estudos de classe. Somente a partir dessas informações seríamos capazes, segundo ele, de captar a dimensão estrutural das desigualdades - principal objetivo de uma análise de classes.
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Haveria nessa tese, portanto, como também observou John Goldthorpe para a literatura econômica de uma maneira geral, uma tendência a se analisar a esfera econômica somente segundo uma perspectiva “atribucional” - ou gradacional (Wright, 2005) -, tomando a renda como característica classificadora dos indivíduos, deixando de lado outras importantes informações que poderiam permitir uma análise mais profunda das desigualdades. Jessé Souza (2010), por sua vez, tece uma série de críticas ainda mais profundas sobre o que Neri (2008) está entendendo como “classe média” e enfatiza outros fatores - próximos das ideias de "capital cultural" e "habitus" desenvolvidas por Pierre Bourdieu - que deveriam ser levadas em consideração num estudo sobre classes. Segundo Jessé Souza (2010), só podemos falar de mudanças efetivas na sociedade quando estas afetam o cotidiano – corpo e alma – das pessoas. Segundo ele, a tese da Nova Classe Média – especialmente em Souza e Lamounier (2010) - peca por não conseguir perceber a realidade das classes sociais quando as define através da renda. Dessa maneira, s tese da nova classe média brasileira não seria capaz de perceber a gênese sociocultural das classes. Como os indivíduos são produzidos diferencialmente por distintas culturas de classe, afirma Jessé Souza (2010), compreender esta dimensão se torna imprescindível neste tipo de análise. Não enxergar os fatores não econômicos – culturais, morais e etc. - da desigualdade impediriam uma melhor compreensão de sua gênese e reprodução no tempo. Assim, não conseguiriam ver a transferência de valores imateriais (estilo de vida, naturalidade, gostos etc.) na reprodução das classes sociais e seus privilégios. Nesse sentido a argumentação de Jessé Souza é visivelmente influenciada pela perspectiva desenvolvida por Pierre Bourdieu, que ainda dentro de uma visão relacional, expande as noções de "chances de vida" e, principalmente, dos "recursos" explicativos da localização dos indivíduos na estrutura das desigualdades (Wright, 2005). Jessé Souza (2010) afirma que as classes deveriam ser definidas, acima de tudo, por seu estilo de vida e visão de mundo, ou seja, por suas práticas inconscientes e involuntárias. Partindo desse pressuposto, a hipótese com a qual trabalha é a de que esses indivíduos “emergentes” não formariam uma “Nova Classe Média”, mas sim uma “Nova Classe Trabalhadora”, denominada por ele de “Batalhadores Brasileiros”. Na tradição sociológica, afirma Souza (2010), a ideia de Classe Média estaria associada a uma preocupação com distinção social. A esta preocupação se vincularia determinado estilo de vida que a afastaria – a Classe Média – dos setores populares e 15
as aproximaria, ou buscaria as aproximar, dos setores dominantes. Ser Classe Média, portanto, envolveria um estilo de vida específico, aliado a busca por distinção em relação aos de baixo e identificação com os de cima. Além disso, implicaria também ter acesso a recursos raros, através da posse privilegiada de determinados tipos de capitais, especialmente, no caso da Classe Média, o capital cultural. Mas, segundo a pesquisa qualitativa empreendida por Jessé Souza e seus colegas (2010), a realidade cotidiana dos membros da chamada “Nova Classe Média” estaria bastante distante do quadro descrito acima. Elas não possuiriam o aporte de capital cultural típico da classe média, o acesso a recursos raros – como empregos de qualidade – que esse capital propicia e muito menos um estilo de vida vinculado a uma busca por diferenciação. Na verdade, para Jessé Souza (2010) essas pessoas fariam parte de uma “Nova Classe Trabalhadora”. Fruto das transformações econômicas recentes, esta se localizaria um pouco acima do grupo denominado pelo autor de “ralé” – aqueles completamente desprovidos. Seria tão esquecida quanto esta “ralé”, mas teria conseguido internalizar certas disposições – ética do trabalho, disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo - que lhe garantiram um novo lugar dentro da estrutura social. O “esforço”, portanto, e não o “jogo de distinção”, seria a marca da “Nova Classe Trabalhadora”.
CONCLUSÕES Destarte, acredito que no geral as críticas à abordagem econômica sobre as classes médias focam na maneira como estas – e, portanto, as desigualdades – devem ser identificadas e analisadas. O exemplo dado por Hout (2008), dos jovens estudantes de medicina e direito que apesar de seus rendimentos modestos não deveriam ser classificados junto a trabalhadores manuais; o apelo de Goldthorpe (2009), Wright (2005, 1979) e Crompton (2010) por uma análise mais profunda da estrutura relacional das desigualdades; as reivindicação de Sobrinho (2011) em prol da utilização de outras variáveis além da renda para a definição da classe média; e a argumentação de Jessé Souza (2010) sobre a necessidade de analisarmos as classes a partir de suas práticas, enfatizando a importância da busca pela distinção e do investimento em capital cultural na definição da classe média. Todos esses pontos convergem para uma crítica à maneira como parte da bibliografia econômica e, mais especificamente, o estudo da FGV vêm definindo as classes médias. 16
Está em jogo, portanto, a interpretação sobre as mudanças que podemos verificar no Brasil da última década – e que podem ter grande impacto nos próximos anos. Mostramos que a versão da FGV, que defendia a tese do crescimento da classe média brasileira, acabou se tornando mais popular do que aquela do IPEA, mais modesta, que via nessas mudanças somente uma significativa diminuição da miséria e pobreza do país. Por razões que fogem ao escopo desse trabalho verificar, a ideia do surgimento de uma nova classe média brasileira, atrelada às expectativas que normalmente se colocam em relação a esse grupo - como mostramos (modernização, estabilização e etc.) -, acabou se impondo. Cabe a nós, nesse trabalho, procurar compreender essas mudanças através de uma perspectiva sociológica. 14 Nesse sentido, alguns dos trabalhos que o observatório das metrópoles desenvolveu nos últimos anos vêm mostrando que a "Categoria Sócio-Ocupacional" dos indivíduos moradores das principais áreas metropolitanas estruturam as desigualdades em termos das (des)vantagens em relação a, por exemplo, educação, mercado de trabalho e, inclusive, rendimentos (Ribeiro, Koslinski e Lasmar, 2010; Ribeiro, Correa e Rodrigues, 2010), mesmo quando controlamos pelo efeito de diversas outras variáveis. Dessa maneira, mesmo reconhecendo a importância de se analisar a distribuição de renda e seus recentes movimentos, acreditamos que somente através de análises mais profundas poderemos compreender melhor as transformações pelas quais a sociedade brasileira vem passando nos últimos anos em relação à maneira como suas (imensas) desigualdades estão estruturadas.
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Não se tratou aqui de afirmar que a maneira sociológica de interpretar as desigualdades - e, portanto, as classes - seja mais correta do que a maneira que normalmente os economistas as entendem. Como colocado por Wright (2005), o mesmo termo pode ser utilizado com sentidos diferentes a fim de responder perguntas distintas. No entanto, o importante é que tenha ficado claro o que o estudo de Neri (2008), que deu origem a tese da nova classe média brasileira, identifica e entende por "classe" e, mais especificamente "classe média"; assim como também é importante que tenha ficado claro como a sociologia, de uma forma geral, vem trabalhando dentro desse tema, e quais os pressupostos e implicações presentes em ambas as perspectivas.
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