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leiga, buscando apenas os significados das palavras desconhecidas, ignorando seus limites e ... palavra escolhida foi “velhice”, considerando a prolif...

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JOCELMA DA SILVA CONCEIÇÃO

O DICIONÁRIO E AS PRÁTICAS DE LEITURA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção do título de licenciado em Letras, Habilitação Português e Respectivas Literaturas. Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva

Brasília 2007

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________ Dra. Mariza Vieira da Silva

______________________________________________ MSc. Andréa Márcia M. A. Coutinho

______________________________________________ MSc. Fabíola Gomide Baquero

À minha familia pelo apoio e incentivo em todas as horas, mas, especialmente à minha querida e estimada Mãe – Amiga - perfeita que traz luz e calor a formação do meu ser.

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Agradeço primeiramente a Deus por todas as maravilhas realizadas em minha vida. À professora Mariza Vieira da Silva pela contribuição ao meu crescimento pessoa, pelo carinho e dedicação que transcenderam em muito as exigências do seu papel e da sua responsabilidade durante a elaboração deste TCC.

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... o conhecimento não é só conteúdo, um conjunto de informações, ele é um elemento estruturante do ser em uma sociedade capitalista. (Eni P. Orlandi)

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Resumo

Este Trabalho de Conclusão de Curso inscreve-se no campo da História das Idéias Lingüísticas no Brasil e tem como objeto de estudo o dicionário tomado como um instrumento lingüístico e um objeto histórico e discursivo que produz seus efeitos de sentidos, tendo como dispositivo teórico de leitura a Análise do Discurso. Propusemo-nos a compreender a estrutura e o funcionamento do dicionário, a partir de como o dicionário significa a “velhice”, em duas edições do Novo Dicionário da Língua Portuguesa – o AURÉLIO -, a de 1975 e a de 1999, sendo esta última em formato eletrônico. Uma análise discursiva significa trabalhar com um texto concreto, sabendo que ali está o resultado de condições específicas de produção, para se chegar ao discurso: efeito de sentido entre interlocutores. Nesse sentido, estruturamos o nosso TCC em quatro capítulos para situar o nosso objeto de estudo e o tema da velhice, explicitar o nosso dispositivo de leitura e realizar a descrição e análise do dicionário. Os resultados mostraram os efeitos de sentido do funcionamento da estrutura própria de um dicionário, o sistema de remissão e de circularidade entre verbetes, construindo e reproduzindo sentidos em relação à velhice, enquanto “condição do velho”, mostrando, assim, como o dicionário com sua força de instrumento objetivo, neutro, legítimo, contribui pra construir um tipo de subjetividade. Com isso, buscamos apresentar uma outra prática de leitura do dicionário.

Palavras-chave: 1. História das idéias lingüísticas; 2. Gramatização; 3. Dicionário; 4. Velhice; 5. Análise do Discurso

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Abstract

Sumário

Resumo ______________________________________________________________ 7 Abstract______________________________________________________________ 8 Introdução____________________________________________________________10 Capítulo 1 - O dicionário e a história das idéias lingüísticas_____________________ 13 Capítulo 2 - Dicionário: um objeto discursivo, um saber histórico_________________21 Capítulo 3 - A velhice e suas representações__________________________________25 Capítulo 4 - O percurso de um verbete______________________________________35 Conclusão____________________________________________________________ Referências Bibliográficas _______________________________________________

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INTRODUÇÃO Durante meu período de estudo e experiências acadêmicas, muito se falou sobre a linguagem, a língua, as teorias, os conceitos, as práticas de ensino da língua: questões importantes para a formação de um professor de Português. Mas, poucas foram às vezes em que pude trabalhar e/ou estudar o dicionário. Meu contato com ele era como uma usuária leiga, buscando apenas os significados das palavras desconhecidas, ignorando seus limites e possibilidades. Agia, assim, como age a grande maioria dos usuários, ou melhor, dos leitores de dicionários, ou seja, tratando-o como um instrumento de consulta e/ou de tirar dúvidas, como algo neutro e objetivo, colada a uma representação determinada (ingênua?) do dicionário. Nunca fui, na verdade, percebo agora, antes da universidade, durante o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, instigada a refletir sobre seus significados, suas verdades, seu uso, sua estrutura e funcionamento, como faremos no decorrer deste Trabalho de Conclusão de Curso (TCC); de conhecê-lo como um objeto histórico que produz história e conhecimento, como um instrumento tecnológico (ferramenta intelectual de trabalho) e como um objeto discursivo que produz seus efeitos de sentidos, o que ocorreu cursando a disciplina Tópicos Especiais de Lingüística, no segundo semestre de 2006. Ali tive a oportunidade de realizar um primeiro trabalho com o dicionário, deixando pouco a pouco o meu lugar de usuária leiga para assumir o de uma profissional que tem nele uma ferramenta de trabalho imprescindível. Os resultados obtidos em termos de conhecimento sobre este instrumento e sobre uma nova prática de leitura do mesmo, bem como a vontade de aprofundar alguns pontos ali detectados, me levaram a tomá-lo como objeto de estudo de meu TCC. É importante ressaltar que o dicionário é um objeto utilizado por leitores de diferentes classes sociais, segmentos culturais e faixa etária, que o vê, de modo geral, como algo que contém (todas?) as palavras de uma determinada língua, dando-lhe, pois, uma característica de completude enquanto saber sobre a língua, mesmo que ali não estejam todas as palavras e significados de uma língua. Sabemos, hoje, que se trata de um efeito: efeito de completude. Por outro lado, os significados ali existentes também produzem um efeito de verdade sobre o mundo, sobre a sociedade, sobre o sujeito, sobre a própria língua, produzindo e reproduzindo certas representações que afetam as relações pessoais e sociais. Efeitos ideológicos. Propusemo-nos, então, a trabalhar com uma palavra específica que fosse nos ajudando a compreender a estrutura e funcionamento dos dicionários, e nos permitisse estabelecer e

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compreender as relações que se estabelecem entre a Ciência e a Sociedade, entre a produção e circulação de conhecimento lingüístico e a história, entre os dicionários e a ideologia. A palavra escolhida foi “velhice”, considerando a proliferação dos discursos sobre a velhice (condição do sujeito velho), sobre a “terceira idade”, como muitos a chamam atualmente. Nesse sentido, nosso TCC se inscreve, pois, no campo da História das Idéias Lingüísticas. Sempre tive vontade de analisar as práticas de leituras dentro e fora da Escola. Conforme o título deste TCC, é o que pretendemos fazer ao conceber o dicionário de um outro modo. Ao trabalhar o percurso de um verbete, pudemos verificar que o dicionário pode nos possibilitar outras práticas de leituras do mesmo. Há, pois, uma relação entre teoria e prática. E, ao contrário do que muitas vezes se pensa, para mudar a prática, é preciso, antes, mudar a teoria. Escolhemos a Análise de Discurso como instrumento de leitura e interpretação de textos – dos autores e dos dicionários -, pois ela considera a produção de sentidos como sendo histórico, como sendo um fato de memória, em que o dito funciona em relação ao não-dito. E o dicionário, com seu sistema de remissão de um verbete para outro, pode ser entendido como um espaço de linguagem em que esse funcionamento se concretiza. Pudemos observar, assim, a construção de uma rede semântica em torno da palavra “velhice”. Como ponto de partida, formulamos uma pergunta para estruturar o TCC e delimitar um “corpus” para descrição e análise. Como o dicionário significa a “velhice” em nossa sociedade em momentos históricos determinados? Considerando as mudanças ocorridas nas últimas décadas do século XX na sociedade brasileira referentes à “velhice”, construímos o nosso corpus com o dicionário mais utilizado pela sociedade – o AURÉLIO –, em edições com um espaço de 24 anos: uma produzida em 1975 e outra de 1999, em formato eletrônico, período em que a questão da velhice vai tomando corpo como problema social e como objeto de análises acadêmicas de diferentes áreas, sobre o que trataremos no Capítulo 3. Conceber o dicionário como um instrumento lingüístico, situa-o em um campo de conhecimento denominado História das Idéias Lingüísticas, que no Brasil institucionalizou-se através de um projeto com o mesmo nome. Nesse sentido, no primeiro capítulo, como modo de estabelecermos as condições de produção deste TCC, trazemos um pouco dessa história das idéias, mais especificamente, do processo de dicionarização no Brasil. Em seguida, explicitamos alguns conceitos básicos da Análise do Discurso como forma de dar corpo ao nosso instrumento de leitura e interpretação de textos.

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Como modo de avançar na compreensão dessas condições de produção de sentidos sobre a velhice e suas representações, tomamos para uma leitura discursiva, textos de outras áreas e dali tiramos algumas questões e dados que nos ajudaram na descrição e análise dos verbetes, propriamente ditos, que irá ocorrer no Capítulo 4. Os resultados mostraram os efeitos de sentido do funcionamento da estrutura própria de um dicionário, o sistema de remissão e de circularidade entre verbetes, construindo e reproduzindo sentidos em relação à velhice, enquanto “condição do velho”, mostrando, assim, como o dicionário com sua força de instrumento objetivo, neutro, legítimo, contribui pra construir um tipo de subjetividade. Com isso, buscamos apresentar uma outra prática de leitura do dicionário.

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CAPÍTULO 1 O dicionário e a história das idéias lingüísticas Começaremos nosso TCC, refletindo, a partir de estudos e pesquisas já produzidos no campo da História das Idéias Lingüísticas no Brasil e do dispositivo teórico de leitura da Análise de Discurso, sobre a delimitação histórica do nosso “velho” dicionário. Com isso, iremos estabelecer as bases para uma nova forma de leitura, lembrando que essa forma de leitura não é a única, mas uma das que possibilita sentidos e interpretações outras, diferentes das tradicionais. Veremos que, como afirma Guimarães (2002), “as coisas são referidas enquanto significadas e não enquanto simplesmente existentes” (p.10). Então, podemos pontuar que as referências produzidas sobre algo não dependem da existência (ou não) desse algo, mas de sua significação. Significação produzida por um sujeito que, individualmente ou coletivamente, ocupa um lugar no tempo e espaço de linguagem, ou seja, posições de sujeito que têm uma memória. Mas, não devemos nos esquecer de que esse sujeito faz uso de uma língua(gem) que também se constrói e se usa em determinado lugar e tempo, e tem uma memória. E é nessa relação de sujeito, linguagem e mundo que observaremos e compreenderemos, ainda conforme Guimarães (2002), que: ... não se pode pensar a linguagem sem considerar que ela fala de algo fora dela, não se pode também considerar que as palavras significam aquilo que referem, e nem mesmo que a significação, o sentido seja um modo de apresentação do objeto. (p.91).

Assim, refletiremos sobre o dicionário enquanto um objeto que possui relação com o mundo, que significa para o mundo e traz significado do mundo, dá e produz sentido, nomeia e é nomeado, tem e possibilita referência, designa e é designado, dentre outras características, já que, de acordo com Guimarães (2002): O que um nome designa é construído simbolicamente. Esta construção se dá porque a linguagem funciona por estar exposta ao real enquanto constituído materialmente pela história. (p. 91).

A partir dessa compreensão estamos caminhando em direção ao saber construído pelo dicionário, saber que traz uma interpretação que liga língua e história. O dicionário é um objeto histórico, que acompanha o homem em sua ação em diferentes sociedades ao longo do tempo, primeiramente em forma de listas de palavras, depois de glossários, de

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vocabulários e, posteriormente, de dicionários propriamente dito, transformando-se ao longo da história em símbolo de nacionalidade (ao legitimar uma língua nacional, ao registrar as formas, os sentidos, os usos do léxico de uma dada língua) e em lugar onde atesta-se (imaginariamente) a existência, o sentido(s), a(s) verdade(s) da unidade lexical de uma língua (SILVA, 1996). Para compreendermos a história do processo de produção de dicionários, precisamos levar em conta as condições de sua produção, os diversos fatores sociais e históricos aí envolvidos. Produções essas que Auroux (1992) considera que se deram em longo prazo, desde as primeiras listas de palavras (3.000 a.C.), passando pelos glossários medievais e chegando aos dicionários monolíngües e bilíngües (a partir do século XVI). Segundo Nunes (2002), apoiado também nos trabalhos de Auroux (que aparece nas expressões entre aspas), ele é: ... um ‘instrumento lingüístico’, e como tal ele ‘prolonga a fala natural’, dando acesso a formas que não figuram na ‘competência’ de um locutor. Trata-se de um ‘instrumento tecnológico’ que não corresponde a algo que estaria inscrito na mente do sujeito, mas a algo que lhe é exterior. (p. 101).

Vamos, pois explicitar esses processos, as condições e a história desse instrumento tecnológico, mais conhecido como dicionário: um saber sobre a língua, distribuído alfabeticamente, aberto a interpretações a partir de uma série de condições históricas relativas à sua produção. Segundo Guimarães (2005), tratando-se do funcionamento das línguas, esse aspecto histórico é fundamental, pois as línguas “funcionam sempre em relação a outras. Por outro lado, as línguas são sempre divididas e é por isso que se tornam, historicamente, outras” (p. 8). O conhecimento lexicográfico brasileiro será construído nesse espaço multilíngüe que é o Brasil, ajudando a produzir a unidade – a língua nacional –, o que é marcado pela transformação, renovação, ampliação, apagamento, na articulação da língua, da linguagem, do sujeito e da história. Em primeiro lugar é preciso dizer que o processo de dicionarização se inscreve no processo de gramatização, sendo que este se define como: ... o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário. (AUROUX, 1992, p.65).

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Este conceito tem sido fundamental para quem trabalha com a História das Idéias Lingüísticas, dentro e fora do Brasil, pois considera a gramática e o dicionário como tecnologias de língua, como lugares de produção de saber sobre as línguas, da maior parte das línguas. Além disso, as gramáticas e os dicionários de diferentes línguas foram produzidos usando o modelo greco-romano, o que ajudou a produzir uma homogeneização das línguas e das práticas de ensino de língua. Esses instrumentos são, pois, saberes sobre a linguagem e as línguas, necessários à prática de ensino em uma língua nacional; são saberes que se escolarizam, que se sustentam na língua escrita, pois para as sociedades letradas a oralidade é fortemente marcada pela escrita. Sabemos, contudo, que as duas têm estrutura e funcionamento próprios. Daí podermos dizer que a noção de oralidade é uma noção complexa e não transparente. Não levar em conta, por exemplo, que temos duas formas de oralidade derivadas de duas histórias diferentes faz com que se queira fazer o aluno passar, com violência, de uma oralidade que faz parte da história de sua língua para uma escrita que tem uma oralidade que corresponde a “outra” história. Isto é impossível.[...]. Desconhecer – como em geral desconhecemos – a existência de um momento de nossa história em que a língua falada no país era a “língua geral” e inicialmente que a língua escrita foi o latim e depois o português, não tendo a “língua geral” merecido a legitimação de sua escrita (houve mesmo a interdição pelo Marquês de Pombal), faz com que não tenhamos em conta esse fato fundamental da cultura brasileira que é sua relação com uma tradição oral “outra”. Forte traço de nossa história cultural esse da tradição oral, que mostra porque os brasileiros têm – diferentemente dos europeus – uma relação frouxa com a escrita e um apego forte à oralidade. Na comunicação administrativa, por exemplo, as pessoas lêem os papéis mas “acreditam” mais no que lhes é dito oralmente, confirmado verbalmente. (ORLANDI, 2002, p. 28).

Falar em instrumento lingüístico – dicionário e gramática – e em prática de ensino do Português, é falar é língua nacional. Uma língua nacional não é única, no sentido de ser homogênea, mas, sim, uma língua que tem relações com outras e que, conseqüentemente, num longo processo histórico tornou-se outra, no caso, o Português do Brasil (GUIMARÃES, 2005), com efeitos sobre o processo da constituição do léxico. Uma língua que se constitui, nesse espaço de diversidade, de heterogeneidade, enquanto espaço de falantes que falam/ouvem e escrevem/lêem. Nessa relação com a construção de uma unidade, via história das idéias, via processo de dicionarização, foi que o povo do Brasil foi constituindo sua nacionalidade, sua identidade de brasileiro. No decorrer da história da constituição do sujeito brasileiro e em um meio multilíngüe, tanto o sujeito como o léxico foram/são afetados por essa diversidade lingüística. Em meio à diversidade, ao funcionamento do Português do Brasil em relação às outras línguas aqui existentes, o conhecimento lexicográfico foi sendo criado, transformado,

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renovado, ampliado, em meio a tantos outros processos que o léxico sofreu e ainda sofre, com a articulação entre linguagem/língua, sujeito/história, contribuindo para a criação, assim, de várias categorias de línguas: Língua materna: é a língua cujos falantes a praticam pelo fato de a sociedade em que nascem a praticar; nessa medida ela é, em geral, a língua que se apresenta como primeira para seus falantes. Língua franca: é aquela que é aquela praticada por grupos de falantes de línguas maternas diferentes, e que são falantes dessa língua para o intercurso comum. Língua nacional: é a língua de um povo, enquanto língua que o caracteriza, que dá a seus falantes uma relação de pertencimento a esse povo. Língua oficial: é a língua de um Estado, aquela que é obrigatória nas ações formais do Estado, nos seus atos legais. (GUIMARÃES, 2005, p 11).

É, pois, em meio aos processos históricos e multiculturais, que o Português do Brasil vai também se construindo enquanto saber metalingüístico nos estudos e pesquisas, que procuram esclarecer descrever e instrumentar a língua, mostrando as diferenças existentes entre o léxico do Português de Portugal e o do Brasil. Assim, no século XIX, quando se dá a gramatização do Português do Brasil, surgem conceitos como os de brasileirismos, tupinismos, regionalismos, dentre outros, que irão fazer parte da estrutura dos dicionários, produzindo seus efeitos de sentido. Como diz Orlandi (2002, p. 102): “Essa questão das diferenças e dos brasileirismos permanecerá sempre, por assim dizer, ‘mal resolvida’, em termos de sua representação quanto à unidade do português de Portugal e do Brasil”. Com esse “mal resolvida”, Orlandi evidencia essa relação língua/história/ciência, pois foi uma forma de administrar as diferenças e desigualdades existentes entre línguas e falantes. Nunes (2001) afirma que: Os brasileirismos eram considerados como ‘empréstimos’ ou ‘influências’ das línguas com as quais o português teve contato no Brasil, a saber, sobretudo, as línguas indígenas e africanas. Formou-se assim um domínio lexicográfico particular. Os dicionários de brasileirismos foram elaborados até o início do século XX. Em seguida, eles caíram em desuso. Mas os brasileirismos sobreviveram na lexicografia geral. Desde o século XIX eles são incluídos nos dicionários de língua portuguesa em nossos dias, eles aparecem em massa, de forma marcada, em vários dicionários brasileiros de língua portuguesa, inclusive no Aurélio, o mais utilizado no Brasil. (pp.71-72).

Mas quando os dicionários começaram a ser produzidos no Brasil? Eles surgiram, de acordo com Nunes (2002), desde a gramatização da língua Tupi, quando foram produzidas listas de palavras e comentários, a partir de 1500. A nossa gramatização (Gramática de José de Anchieta) e dicionarização tem a ver, diretamente, pois, com a colonização do Brasil. A gramática e o dicionário foram instrumentos fundamentais para catequese e para que os colonizadores pudessem se comunicar com os povos da terra.

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Esses dicionários, chamados vocabulários, eram bilíngües: Português-Tupi. Com eles, tal como hoje, os colonizadores que aqui chegavam podiam aprender mais rapidamente a língua (uma das existentes) que permitiria o trabalho de catequese e de colonização. A língua escolhida para ser gramatizada foi o Tupi que passou a se chamar Língua Geral. E foi a língua mais utilizada no Brasil por mais de 250 anos, até que o Marquês de Pombal proibiu que ela fosse usada nas escolas e os jesuítas foram expulsos do Brasil. É a partir do século XVIII, que o processo de gramatização do Português do Brasil passa a contar com a produção dos dicionários monolíngües (em 1757, aproximadamente). No século XIX, no entanto, é que essa produção aumenta, influenciada pelo movimento de idéias e influências vindas não só de Portugal, mas também de outros países. A primeira tentativa de descrever o vocabulário brasileiro foi feita por Antônio Joaquim Macedo Soares, conforme Nunes (2002). Soares seria: ... o primeiro dicionarista a descrever o português brasileiro se sua obra tivesse sido publicada integralmente no século dezenove. Contudo, só a primeira parte, até a letra C, foi publicada em 1888. Seu dicionário contém definições claras e precisas bem como informações de natureza fonética e etimológica. A posição nacionalista de Macedo Soares que pugnava pelo reconhecimento da individualidade do português brasileiro está evidente nesta passagem: “... no Brasil (...) todos (...) falamos e escrevemos nesta nossa língua que os críticos de Lisboa censuram” (Soares, 1954: XXI). Afirma ainda no Prólogo da 1ª parte do dicionário, publicado em 1888, que “já é tempo dos brasileiros escreverem como se fala no Brasil”. Desde os tempos em que fora juíz no interior do Paraná, Macedo Soares começara sua recolha de vocábulos e expressões brasileiras, pretendendo preencher a lacuna relativa a nosso léxico, que não era contemplado pelos dicionários produzidos em Portugal. Infelizmente, a publicação desta obra ficou inacabada. O dicionário completo só será publicado em 1954-1955 pelo Instituto Nacional do Livro. Da letra C em diante, o material recolhido por Macedo Soares foi compilado por seu filho, Julião Rangel de Macedo, que preparou os originais deste dicionário publicado em dois volumes já nos meados do século XX. O repertório dessa obra não é grande: cerca de 4.000 verbetes. (p. 71).

Compreender a história do dicionário, ou seja, a dicionarização nos traz uma noção mais precisa sobre o processo que nos levou a compreender os sentidos das unidades lexicais que se entrelaçam em uma rede discursiva relativa à “velhice”, nosso tema de estudo; uma rede em que os sentidos das unidades lexicais estão sempre abertos à interpretação. Nunes (2002) afirma que na “unidade imaginária” do dicionário monolíngüe, no caso deste TCC, o AURÉLIO, inscreve-se uma série de relações de intertextualidade e de interdiscursividade. Como já dissemos, há vários tipos de dicionários: listas de palavras, glossários, dicionários de verbos, de expressões, de idéias afins, etimológico; há os monolíngües, os bilíngües. Eles ainda podem ser específicos como os de médicos, escolares, literários, de

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domínios regionais como, por exemplo, o “Vocabulário Pernambucano”, de Pereira da Costa (1976). Eles são, portanto, muitos, ou seja, são múltiplos instrumentos tecnológicos indispensáveis em toda e qualquer sociedade letrada. São necessários ao sujeito urbano escolarizado, pois eles como instrumentos lingüísticos trazem consigo o saber sobre uma língua. Gostaríamos de apresentar alguns dicionários produzidos no Brasil ao longo dessa história. Isso nos pareceu interessante em um trabalho como este, pois não sei até que ponto tem-se conhecimento em um Curso de Letras dos inúmeros dicionários existentes e das possibilidades de trabalho acadêmico que eles trazem. 1. “Diccionário da Lingua Portugueza”, de Antonio de Moraes Silva (1789), produzido e publicado em Portugal, apesar de seu autor ser brasileiro. Serviu, no entanto, de base para todos os outros dicionários brasileiros. Teve 10 edições, sendo a última de 1945; 2. “Diccionario Brasileiro para Servir de Complemento a Lingua Portugueza”, de Costa Rubim (1853). Este foi um dos dicionários do Português do Brasil elaborados a partir do século XIX, o qual tinha fins escolares e foi considerado o primeiro dicionário “bem sucedido” da língua portuguesa, conforme Dias e Bezerra (2006); 3. “Dicionário da língua tupi chamada língua geral dos indígenas do Brasil”, de Gonçalves Dias (1858). Neste, temos a presença de denominações da língua tupi, da língua geral e de línguas indígenas; 4. “Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”, de Antônio Joaquim de Macedo Soares (1888), que nos permite observar diferenças do Português do Brasil em relação ao de Portugal; 5. “Dicionário de Vocábulos Brasileiros”, de Visconde de Beaurepaire-Hohan (1889), que nos remete à questão de dicionários com vocábulos do Brasil; 6. “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”, de Gustavo Barroso e Hildebrando Lima (1939), do qual não constava na primeira edição o Estado da Bahia; 7. “Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa”, de Laudelino Freire, (193944). O mais completo e atualizado em relação aos anteriores; 8. “Dicionário Popular Brasileiro”, de J. B. da Luz (1966); 9. “Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa”, de F. da Silveira Bueno (1974); 10. “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1975), o maia conhecido e utilizado até hoje;

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11. “Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa”, (1998), o “que se diz politicamente correto”, conforme Orlandi (2002, p. 106); 12. “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”, de Antonio Houaiss e Mauro de Salles Villar (2001). 13. “Dicionário de usos do português brasileiro”, de Francisco S. Borba (2002). Este parece tentar apagar/cortar as relações existentes entre o Português do Brasil e o de Portugal, pois contém verbetes de “usos do português brasileiro”; Gostaria, ainda, nessa História das Idéias Lingüísticas, mostrar que a escrita aí também é tratada como uma tecnologia, segundo Auroux (1992). Além disso, ela foi condição para que os estudos da linguagem pudessem ter início, pois ela fixou uma língua, permitindo a observação, a separação das unidades, a sistematização, o estabelecimento de paradigmas, a descrição, a análise dessa mesma língua. Assim, ao falar em dicionário e/ou gramática é importante colocar que as reflexões existentes sobre a linguagem humana vêm desde os primórdios da invenção da escrita, antes de Cristo, quando o homem apresentou a necessidade da escrita, por razões, inicialmente, econômicas. A escrita, então, aparece como “uma nova dimensão de conhecimento sobre as línguas, como uma visão que passou a ser simultânea e espacializada da fala”. (AUROUX, 1998). Mas, ainda segundo Auroux (1998), embora a linguagem seja social, ela é “uma manifestação individual que coloca em jogo o corpo e o domínio de um grande número de controles psicomotores” (p. 63) que não se limita ao sistema áudio-oral, que vai além, como “um suporte transposto”. Isso significa que há uma mediação entre a fala e a escrita, constituindo um novo espaço simbólico de linguagem. Dessa forma, também devemos pensar a linguagem que se encontra nos dicionários, como não transparente, como um lugar onde podemos obter outras práticas de leitura em que o dito que significa em relação ao “não dito” e o “já dito”, como um lugar de representação de um objeto imaginário: a língua. A linguagem escrita apesar de ser relativamente tardia em relação ao surgimento da falada, pode ser considerada a primeira revolução tecnolingüística da história da humanidade1. Ela é uma tecnologia intelectual criada pelo homem, ou seja, a escrita não é natural ao homem, ela foi inventada por ele. Ela tem uma história, assim como o dicionário. Por outro lado, ela guarda relações com o poder. Auroux (1992) afirma que “o escrito só aparece e se

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A segunda revolução tecnolingüística seria a da gramatização.

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mantém, incontestavelmente, em sociedades fortemente hierarquizadas que se entrelaçam, desde a origem, às diversas instâncias de poder”. Trabalhar neste campo de conhecimento da história das idéias permitiu, pois, que nós fizéssemos deslocamentos em termos, conceitos, práticas que já tinham se tornado evidentes, óbvias, não necessitando, pois, de reflexão, de análise, de interpretação. Permitiu também pensar na necessidade de os profissionais de linguagem, de línguas, como nós, deixarmos de tratar os dicionários como meros usuários e compreendermos de modo mais aprofundado essa ferramenta imprescindível no ensino das línguas dentro e fora da Escola.

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CAPÍTULO 2 Dicionário: um objeto discursivo, um saber histórico Os dizeres presentes nos dicionários não são mensagens a serem decodificadas, mas efeitos de sentidos entre locutores, quer dizer, entre autor e leitor. Efeitos estes presentes no modo de construir os verbetes e em condições determinadas, deixando vestígios interpretativos, que irão permitir a análise do processo discursivo presente em cada verbete e na relação entre verbetes. Assim, em um dicionário, uma palavra, além de trazer consigo um saber histórico, resultante de um processo de transformações da significação e das teorias lingüísticas no contexto histórico-social-ideológico, traz também, na memória significante, certos sentidos que se tornaram verdadeiros, corretos, adequados, mas também aqueles que foram apagados ou excluídos. Fazer essas afirmações nos coloca no interior da Análise do Discurso (AD), que tem como objeto de estudo, o discurso: um objeto teórico, definido por Pêcheux (o criador dessa teoria) em sua primeira proposta de 1969, como “efeito de sentidos entre locutores” e “parte do funcionamento geral da sociedade”. (1990, p. 82) Para a AD, a memória, o que fica e o que se apaga, em termos de significação, é muito importante, pois ela se constituiu como um campo teórico (de idéias lingüísticas) tendo como base o Materialismo Histórico de Marx e de Althusser. O sentido é, pois, construído historicamente por diferentes formas, sendo o dicionário uma das mais marcantes em uma sociedade letrada como a nossa. Nesse sentido, não se separa, por exemplo, sentido literal e sentido figurado. Dizemos, em AD, que alguns sentidos se tornaram literais, por força de práticas –científicas e pedagógicas – de instrumentos como os dicionários. Em um verbete, o que aparece inicialmente, é considerado como o sentido literal, vindo, depois, os sentidos figurados, brasileirismos, gírias, etc. Daí, podermos falar de hierarquização de sentidos. Podemos, assim, dizer que o dicionário não contém todas as palavras da língua, mas produz o “efeito” de completude, pela forma como se organiza, se estrutura e circula na sociedade. É como se ele contivesse todas as palavras e sentidos de uma língua e nós vamos lá apenas para “achá-las”, quando, na verdade, ali se estabelecem outras relações entre palavras e entre sentidos, como veremos em nossa análise. E essas relações não são neutras, nem objetivas. Pêcheux irá dizer que na relação entre os indivíduos não temos apenas troca de informações ou atos comunicativos, mas efeitos de sentido.

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Nesse sentido, veremos que a “velhice” se insere num eixo de sentidos diversos a uma primeira leitura. Em uma leitura mais atenta e sustentada por uma teoria, veremos que essa diversidade é na verdade a presença do mesmo sob outras formas lingüísticas, em uma discursividade em que o indivíduo “velho” se inscreve em uma sociedade marcada por desigualdades. Discurso que se estruturou e se materializou, pela conjunção de sujeito, língua e história, conforme veremos na leitura dos verbetes. O dizer não é propriedade particular. As palavras não são nossas. Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele. (ORLANDI, 1999, p. 32)

Com isso veremos que os sentidos possíveis estão em um jogo que relacionam a posição do sujeito que se constitui nos discursos dicionarísticos com a posição em que o “velho” é representado e se representa, projeta-se no mundo. Em outras palavras, o lugar que este ocupa e significa na sociedade. Sociedade esta que se fixa pelo escrito, pelo materializado sob a forma de texto, o que nos leva a ver a significação como um “tecido”, que se confecciona, que se constrói, marcado pela relação sujeito-língua-história. Sentidos esses tecidos por sujeito(s), para sujeito(s) e entre sujeitos. A Análise de Discurso, uma teoria e um instrumento de leitura e interpretação de textos, criada na década de 60 do século passado, por Michel Pêcheux, na França, produz deslocamentos também nas noções de língua e de sujeito (no sentido de sua não transparência) com o apoio teórico da Lingüística e da Psicanálise. Assim, como a noção de história é fundamental para a AD, também o são as de língua e de inconsciente. A noção de língua pensada como uma estrutura que funciona a despeito do indivíduo empírico, é a base, segundo Pêcheux para atingirmos os processos discursivos. Assim, a análise deve partir do texto concreto, do efetivamente dito/escrito, pois o sujeito deixa ali aqueles vestígios de que falamos inicialmente. Assim, os sentidos não estão ocultos ou nas entrelinhas, estão no que se chama materialidade lingüística. Mas, diferentemente dos lingüistas, para a AD, esse sistema não é completamente autônomo porque tem a história pelo qual ele é afetado. Assim, as marcas da história aparecem no texto, no caso, no verbete. O dito significa, pois, em relação ao não dito, mas também em relação ao já dito (histórico) Nessa relação entre língua e história é que falamos em ideologia, ou seja, a direção que os sentidos têm em cada discursividade. Redefinindo, assim, ideologia discursivamente, podemos dizer que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. A ideologia, por sua vez, é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus

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mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação, mas função da relação necessária entre a linguagem e o mundo. (ORALNDI, 1996, p. 31)

A Psicanálise irá, com a noção de inconsciente, por exemplo, ajudar a deslocar a noção de indivíduo empírico para a de sujeito como posição de fala, e a compreender outras dimensões do processo de significação: o dos sentidos que ficam na memória institucional e na memória do sujeito, fazendo com sentidos que foram apagados voltem em determinados momentos, em certas situações. Assim, a AD não trabalha com o sujeito intencional, mas com as posições de sujeito (que são históricas) que estão funcionando em determinado discurso, como o do dicionário. A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. (ORLANDI, 1999, p. 31)

Qual será a posição de sujeito velho que o dicionário ajuda a construir e a reproduzir fazendo trabalhar essa memória do dizer? Como a ideologia produz aí os seus efeitos construindo sentidos que ajudam a transformar ou a manter atitudes e comportamentos individuais e sociais? Neste TCC, estaremos trabalhando, pois, mais diretamente, com alguns conceitos de dispositivo teórico da AD: conceitos que nos permitam atravessar a não transparência da linguagem; conceitos que nos ajude a compreender o processo de significação presente nos dicionários e o modo como o sujeito se individualiza ali. ‘Uma vez interpelado em sujeito, pela ideologia, em um processo simbólico, o indivíduo, agora, enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individual(izada) concreta... (ORLANDI, 2001, p. 107). No nosso caso, estamos querendo compreender como a velhice, o velho – uma posição de sujeito – é individualizada no dicionário. Uma dessas noções é a de formações imaginárias, enquanto parte das condições de produção do discurso no que diz respeito aos seus interlocutores e ao referente. As condições de produção significam que quando analisamos um texto, um verbete, temos o produto, o resultado de determinadas condições de produção do discurso. Nessas condições estão implicados os interlocutores (eu/tu), a situação empírica (aqui/agora) e o contexto histórico mais amplo, o interdiscurso. E que formações imaginárias são essas que fazem parte dessas condições?

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Em AD, os conceitos estão intimamente ligados e para compreendermos um precisamos conectá-lo a outros. Já havíamos dito que para Pêcheux no chamado processo de comunicação (que também pode servir para não comunicar), não temos apenas troca de informação, e que os interlocutores nele envolvidos não são os indivíduos empíricos, mas posições de fala: da mãe, do patrão, do aluno, do velho, da velha... E que essas posições se constituem historicamente e o indivíduo ao assumir esse lugar (de velho, por exemplo) passa, inconscientemente, a falar, a se comportar, a se ver conforme os sentidos dominantes ali, que o representam para si e para o outro. As formações imaginárias seriam, pois, essas representações que os interlocutores fazem de si e do outro, e que estão presentes no processo de interlocução. Ele diz ainda que o referente, aquilo sobre o qual esses interlocutores falam/ouvem, lêem/escrevem, também é um objeto imaginário, como a “velhice”. Mas cada um não constrói uma imagem diferente. Essas imagens (sentidos) são construídas histórica e socialmente, daí termos certos sentidos que se tornam dominantes, produzindo efeitos ideológicos. Que formações imaginárias do “velho” estão em jogo quando falamos de “velhice” em diferentes momentos históricos e em diferentes discursos? A leitura histórica e discursiva do dicionário explicita as camadas constitutivas dos procedimentos lexicográficos, as superposições, as substituições, os deslocamentos. A um certo momento, a combinação desses elementos produz um novo objeto, que não deixa entretanto de apresentar os traços de sua historicidade e dos gestos de leitura que os constituíram. (NUNES, 2006, p. 45).

O trabalho feito no primeiro capítulo, a explicitação de parte do referencial teórico, a formulação de questões referentes à palavra escolhida para compreendermos a estrutura e o funcionamento do dicionário, enquanto um instrumento lingüístico, um saber histórico e discursivo, nos ajudaram a delimitar o nosso “corpus” de descrição e análise, que “não segue critérios empíricos (positivistas) mas teóricos” (ORALANDI, 1999, p. 62) Que dicionários escolher? Sabíamos que a questão da “velhice” sofrera transformações significativas a partir da década de 1980 e queríamos ver esse campo semântico operando em um dicionário que fosse acessível a um maior número de brasileiros. Optamos, então, por trabalhar com o Dicionário Aurélio impresso (1975) e o Dicionário Aurélio eletrônico (1999) – daqui para frente simplesmente AURÉLIO –, descrevendo e analisando nos gestos de interpretação, ali existentes, os efeitos de sentidos produzidos.

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CAPÍTULO 3 A velhice e suas representações Dos artigos que tivemos oportunidade de ler nesse curto período de elaboração deste TCC sobre a velhice, gostaríamos de trabalhar aqui com três deles que nos deram oportunidade de aumentar a compreensão das formações imaginárias, representações que íamos encontrando no contato com os verbetes do dicionário2. E gostaria, ainda, de iniciar com o artigo “Grupo de sala de espera: sentidos do envelhecimento humano” (2003), de César Sandoval Moreira Jr e Marisa Japur, professores e pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeiro Preto/USP. Este artigo nos chamou a atenção por trazer a fala de pessoas idosas, ou seja, de nos permitir um contato com o discurso “do” velho sobre a velhice em contraposição ao discurso “sobre” o velho do dicionário. Com isso poderíamos compreender melhor essa relação entre sentido e sujeito nos processos de individualização e de identificação de uma posição de sujeito em nossa sociedade. Conforme Moreira e Japur: Este trabalho parte da consideração do envelhecimento humano como experiência heterogênea. Busca pôr em diálogo o grupo de sala de espera, recorrendo ao construcionismo social, para descrevê-lo como prática discursiva. Problematizando essa modalidade de intervenção psicológica, nesse estudo objetivamos descrever o processo de produção de sentidos sobre o envelhecimento humano nesse contexto. Dez grupos de sala de espera, gravados e transcritos, foram pré-analisados favorecendo a escolha de um deles para análise extensiva. Essa análise apontou que, nesse processo conversacional, a vivência do envelhecimento como experiência individual vai sendo paulatinamente reconstruída pelos interlocutores como de natureza sócio-interacional, apontando para posições mais ativas na produção de qualidade de vida no envelhecimento. Assim, os participantes em co-autoria, falando de seus cotidianos, abrem possibilidades de novas descrições sobre si mesmos enquanto pessoas idosas, nesse contexto interativo. (p. 1).

Segundo os autores, os sentidos do envelhecimento são gerados no tempo histórico e a velhice tem sido cientificamente construída a partir de duas perspectivas hegemônicas: como 2

Em AD, há um constante ir e vir entre a teoria e a análise, daí, por efeito de estruturação do TCC, este

Capítulo vir antes da análise do “corpus”.

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“período de perdas, involução, estagnação, falta de engajamento, disfuncionalidades, doenças, deterioração, vulnerabilidade e proximidade com a morte”, e como “período de aprendizagem, de atividade, de sabedoria, de liberdade, de despreocupação e de prazer”. E complementam. “Em ambas as perspectivas, em detrimento dos fatores sócio-históricos, a velhice vem sendo produzida sobretudo como atributo e responsabilidade individuais”. (p. 2). Podemos, pois, também pensar nos sentidos que o dicionário nos traz sobre a “velhice”, enquanto ciência do saber lexicográfico brasileiro. Para esses autores é, pois, importante a desnaturalização de certas concepções e sentidos dominantes em nosso cotidiano (construídos historicamente), que acabam por dificultar nossa compreensão sobre a velhice, e por contribuir para a manutenção de certas atitudes e comportamento na sociedade por parte inclusive do próprio velho, reforçando nossa concepção acerca da velhice. Nessa perspectiva, podemos pensar nos discursos dos dicionários que também ajudam a construir e reproduzir sentidos através de seus verbetes, a estabilizar a significação através de determinada rede semântica. Para Moreira Jr. e Japur, a linguagem é uma prática social, e trazendo como referência outros pesquisadores – Spink & Medrado (1999) – situam as condições de produção de sentido na articulação entre o tempo histórico (onde são forjados os conteúdos culturais discursivos de uma época), o tempo vivido entre ( da ressignificação das construções históricas nos processos de socialização ao longo do curso de vida) e o tempo curto (tempo de interanimação dialógica no aqui-e-agora). Assim do dispositivo lingüístico socialmente legitimado opera-se a produção cotidiana de sentidos.” (p. 5).

O que reafirma a proposta da AD sobre a não transparência da linguagem, e sobre a relação de existente entre o mundo-história-sujeito. A pesquisa por eles desenvolvida (este artigo apresenta resultados da mesma), foi realizada na sala de espera de uma instituição pública de saúde voltada para a população idosa, freqüentada por pacientes e acompanhantes. Foram gravados dez grupos de sala de espera, sendo um por semana, em dez semanas consecutivas, com o consentimento dos participantes. Houve registro dos grupos, das falas, da movimentação e da interação; e o pesquisador registrou também o que observava. Neste artigo, os autores escolheram um grupo para descrever o processo de produção de sentidos e delimitaram a conversa do grupo em cinco momentos:

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1. “Um Corpo que Envelhece” (pp. 6-7); 2. “Com quem Contar?” (pp. 7-8); 3. “A Família Assume a Centralidade” (pp. 8-9); 4. “Quando a Família Fracassa” (pp. 9-10); 5. “O que Ainda Resta de Vida?”. (pp. 10-11). Pensando em nosso trabalho, destacamos as seguintes falas como materializações do discurso “do” velho “sobre” a velhice e que serão retomadas (algumas) por ocasião da descrição e análise dos verbetes no próximo Capítulo. Momento 1: Um Corpo que Envelhece João – (...) nós começa com gatinho, e se lerdá acaba no gatinho outra veiz, nenê!(...) a pessoa idosa ... igual nós ... vai voltando. Se lerdá, ele volta de gatinho outra vez! João – (...) trata, trata ... um dia manda uma perna, outro um braço, outro dia é uma coisa, outro dia é outra, né! (ri) A idade vai ... Tiana – Eu acho só que a gente não deve se entregar, né! (...)a gente deve lutar ... Joaquim – (...) nós vai lutando (...) ô, mais essa árvore agora secou! “Era uma árvore tão bonita, molhada de olhar ... assim é nós, num é? Gertrudes – É, agora esses dia eu machuquei o braço (...) minha menina tá nervosa comigo (...) “que é isso mãe, a senhora tá se entregando! Reage!” (...) tô com medo de andar (...) fiquei assim ... num tô aguentanto muito as mão, né! (...) Tiana – Lutar (...) num pode entregar (...) num ter medo de abrir, ver a claridade, de sair na rua! Não! Vamos levantar a cabeça pra cima, vamo! (...) (pp. 6-7).

Momento 2: Com Quem Contar? Guilhermina – (...) a gente trata uma roseira (...) se nóis deixar de mão (...) Ela morre, né! Nóis tem que ta regando (...) Se todos nós pensar igual ele pensou (...) Já se torna abaixo, né! Vamos pra trás! (...) nós tem que ir pra frente! (...) subir na vida (...) Com todos nossos semelhantes, né! (...) Tiana – (...) a minha filha fala assim, “mãe, a senhora só sabe falar não!” (...) isso num é orgulho! (...) é uma força que a gente tem com Deus!” Gertrudes – (...) algumas vezes, a senhora deve fazer a vontade dela, prá ela ficar alegre, a senhora come com ela! Né! Tiana – Sabe o que que eu acho, filha? (...) nós põe mais alegria na nossa filha (...) de que se nós se entregar! (...)

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Gertrudes – Não. Mas de domingo ela fala, ‘mãe, hoje a senhora (...) vem “almoçar!’ ... é bom demais (...) Às vezes nós trocamos misturas (...) Joaquim – (...) se nós começar a brigar assim, de gato e rato (...) Responsabilidade, que nós tudo tem (...) de pegar o encargo da família! (...) tratar esses filho (...) dar tudo de bom pra eles (...) (pp.7-8).

Momento 3: A Família Assume a Centralidade Tiana – (...) esse negócio de falar assim, nós velho é crí-crí (...) crí-crí vem de nós, esse negócio de nó na cabeça, vem de nós! (...) ‘nossa aquela senhora num gosta de barulho, de criança (...) gosta de ficar sozinho, quietinho’ (...) se a pessoa por a cabeça, conveniar em Deus, pensar, tudo, num chega nesse ponto! Guilhermina – Nós tendo a cabeça no lugar (...) Nóis vai em frente, né! Tiana – (...) a mocidade, temo tanto conselho, tanta coisa boa pra nóis dá (...) Guilhermina - (...) fim de semana, eu to num mar de rosas! Pra mim, é a coisa melhor (...) Os filhos, os netos (...) satisfação que eu tenho (...) Mara – (...) minha família é muito valorizada! (...) num gostava nem de ouvir música! Ensinando a gente, coisa que a gente não viveu! (pp. 8-9).

Momento 4: Quando a Família Fracassa Hermosa – (...) meu problema, eu tenho vergonha de dizer! (...) sinto envergonhada diante de tanta coisa bonita que eu acabei ouvindo aqui! (...) fico nervosa demais (...) num sei se eu devo ter algum problema! (...) de cabeça, nervosia, ou alguma coisa que eu preciso tratar com um médico, um neurologista ... ou se eu preciso de uma religião (...) num consigo, às vezes entender nem eu! (...) Sem querer eu me descontrolo! (pp. 9-10).

Momento 5: O que Ainda Resta de Vida? Joaquim – (...) é dever nosso! Proteger o nosso tempo! Que o tempo tá duro, vamo aproveitar o tempo! (...) cada um de nós tamo caminhando um puquinho do barco, né! (...) vamo procurar sempre equilibrar o barco no canto certo! Porque no tempo que nós tá se nós desequilibrar ele, pronto, como que faz agora?! O tempo tá poco!? Então vamo equilibrar ele no caminho certo! (...) tamo colhendo, e quando nós chegamo lá fora (...) que a gente sente que ofende, a gente tem esse reforço prá evitar aquele momento! (...) outra hora que eu estiver cá, e estiver no jeito, eu quero tá colhendo, tá participando ... até nóis levá o barco, porque se o barco desviar, depois é duro tocar prá frente! (p. 11).

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Após uma análise de cada momento, os autores concluem, de acordo com o seu referencial teórico, que o trabalho permitiu dar visibilidade a dois processos de produção de sentidos no grupo escolhido para esta apresentação: - a ampliação das descrições do envelhecimento como possibilidade de vida, à medida que os participantes foram se reconstruindo discursivamente como capazes de ações e atitudes relacionais em direção a um envelhecimento saudável; e - a progressiva incorporação dos aspectos sócio-interacionais nas descrições das possibilidades de qualidade de vida no transcorrer do processo de envelhecimento. De responsabilidade exclusivamente individual, a perspectiva de um envelhecimento saudável vai sendo reconfigurada aos contextos sócio-interacionais dos participantes. (p. 12).

Fazendo um salto cronológico, mas também simbólico e social em direção a uma compreensão do modo como se constroem os sentidos em uma sociedade, ou, ainda, como se constroem as formações imaginárias, as filiações de sentido, as posições de sujeito (no que aí possa ter de reprodução e de transformação), tivemos acesso a um livro para crianças, denominado “Quem sou eu?”, de Oscar Brenifier (2005), traduzido por Paula B. P. Mendes, da Coleção Filosokids (2005), que diz em sua Apresentação para os Pais, tratar-se de um livro que: “faz a criança começar a pensar numa questão que talvez seja a mais difícil que todos nós enfrentamos – o autoconhecimento, um tema complexo que sempre despertou e ainda desperta discussões dos grandes pensadores”. E aí encontramos como um dos temas abordados no enfrentamento desse autoconhecimento: a “velhice”. O livro está estruturado em 6 grandes questões, conforme o Sumário: Você é um animal? Você fica feliz por estar crescendo? Você é igual aos outros? O que você deve aos seus pais? Você gosta de se olhar no espelho? Você escolheu ser quem é?

A questão da velhice vai aparecer no item 2, que trata da Idade. Em cada tópico, o autor vai apresentando os prós e os contras, o que se ganha e o que se perde, os limites e possibilidades, ou seja, o fato de que somos sujeitos históricos, temos um passado, um presente e um futuro. Seguindo a estrutura do livro, reproduzimos a seguir a página relativa à velhice.

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Lendo estes enunciados, verificamos que o autor coloca questionamentos não sobre a “velhice”, enquanto algo em si, mas sobre os sentidos estabilizados, cristalizados sobre a velhice produzidos em uma sociedade determinada: a capitalista, em que sujeitos e sentidos se produzem ao mesmo tempo, no interior de uma memória histórica – o interdiscurso. Uma sociedade que tem determinadas relações com a morte, com o tempo, com o consumismo, com a negação do passado, com o sofrimento, com a perda. Sentidos que se criaram a respeito de aproveitar a vida antes que a morte ou a velhice chegue, já que em numa visão estereotipada, socialmente construída, a vida se suprime ao chegarmos ao estado ou na condição de velhos. Esses questionamentos ganham força teórica com o artigo de Márcia Dourado e Annette Leibing, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental da UFRJ e antropóloga do Instituto de Psiquiatrai da UFRJ, respectivamente, intitulado “Velhice e suas representações: implicações para uma intervenção psicanlítica” (2002). De acordo com Dourado e Leibing: “A cultura contemporânea conceitua representações específicas de velhice, de forma a tentar solucionar o problema social em que esta se transformou”. E reproduzem, inicialmente, esta história.

Um dia a senhora NTS se viu no espelho e se assustou. A mulher do espelho não era ela. Era outra mulher. Por um instante pensou que fosse uma brincadeira do espelho, porém descartou esta idéia e correu a se olhar no grande espelho da sala. Nada. A mesma senhora. Foi no banheiro, no corredor, nos pequenos espelhinhos que carregava na sua bolsa, e nada. Aquela mesma senhora desconhecida estava lá. Decidiu sentar e fechar os olhos. Sentia vontade de fugir para um lugar bem longe onde não pudesse se encontrar com aquela pessoa. Porém era mais prudente ficar por perto, não deixá-la sozinha. Observá-la. Parou para refletir: quem poderia ser essa senhora? Talvez a que morou antes de mim neste apartamento? Talvez a que morará aqui quando eu sair? Ou, quem sabe, a mulher que eu mesma seria se minha mãe tivesse casado com seu primeiro namorado? Ou, quem sabe, a mulher que eu mesma teria gostado de ser? Lancei uma rápida olhada no espelho e decidi que não. De jeito nenhum eu teria gostado de ser essa senhora. Depois de pensar muito tempo, a senhora NTS chegou à conclusão de que todos os espelhos da casa tinham enlouquecido, agiam como atacados por uma doença misteriosa. Tentei aceitar a situação, não me preocupar mais, e simplesmente parar de me olhar no espelho. A gente pode viver muito bem sem se olhar no espelho.

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Guardei os pequenos espelhos de bolsa para tempos melhores e cobri com panos os maiores. Um belo dia, quando, por força do hábito, estava me penteando frente ao espelho do armário, o pano caiu, e ali estava a outra me olhando, aquela desconhecida. Desconhecida? Parece-me que já não tanto assim. Contemplo-a durante longos minutos. Começo a achar que tem um certo ar de família. Talvez esta dama compreenda minha situação e por pura bondade tente se adaptar a mim, a minha imagem que por tanto tempo habitou meus espelhos. Desde então olho-me ao espelho todos os dias, a toda hora. A outra, não tenho dúvidas, se parece cada vez mais comigo. Ou eu com ela? (Frenk-Westheim, 1992).

No desenvolvimento do artigo, as autoras nos apresentam a velhice como uma relação íntima com a morte, e que ela entrou em evidência a partir do momento em que o “problema dos velhos” passou a ser considerada como algo não mais passível de esquecimento, e para solucioná-lo, a sociedade contemporânea passou a criar denominações para o “velho”. Velhos que, no Brasil passaram a representar uma “catástrofe demográfica”. Para elas, nenhuma das diversas formas de “categorização – sociais, culturais, psicológicas –” que definem os limites das idades são capazes de descrever “o experienciar a velhice”, mas que nos últimos 30 anos essas categorias ganharam força em virtude de políticas sociais que pressionavam pela criação de categorias que se adaptassem “às novas condições e ao objeto velho” (p. 2). Nesse processo, a velhice é desnaturalizada e historicamente delimitada.

E para

explicar essas transformações, Dourado e Leibing, apresentam como exemplos as seguintes denominações/classificações: “terceira idade”; “longa idade”; “melhor idade”; “jovens velhos”; “idoso – velhos respeitados”. A “terceira idade”, segundo elas, é parte de um novo vocabulário para o envelhecimento através de estereótipos em que “’maniacamente’ se tenta negar o sofrimento da estigmatização da velhice como dor e perdas” (p. 3). Assim, a “terceira idade” implica uma descronologização da vida, pois a juventude em meio à sociedade contemporânea deixa de ser uma faixa etária da vida e passa a ser “ um a ser adquirido através de estilos de vida e formas de consumo adequadas”. Atualmente, os indivíduos são convencidos a assumir a responsabilidade pela sua própria aparência, comportamento e talvez, até mesmo, seu adoecimento. Isto porque envelhecer está normalmente conjugado com a impotência, declínio e morte e, assim, uma vez que a velhice é percebida como um estágio deprimente do desenvolvimento humano, então ser

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velho e acometido por doenças, como a demência, por exemplo, seria uma trapaça armada pelo destino que nos faria das boas-vindas à morte e ao esquecimento. (p. 3).

Os “jovens velhos”, segundo as autoras e Debert (1998), são sinônimos derivados de “terceira idade” e representam os aposentados dinâmicos que se inserem em atividades sociais, culturais e esportivas. Já o “idoso” pode ser denominado como “velhos respeitados”, o qual transformou-se em uma categoria social que implica no desaparecimento do sujeito, de sua história e de suas particularidades. As autoras trazem Birman (1995) como referência, o quae afirma que como categoria social o idoso é “alguém que existiu no passado, que realizou o seu percurso psicossocial e que apenas espera o momento fatídico para sair inteiramente da cena do mundo.” (p. 3). Para Dourado e Leibing nos assistimos impotentemente ao envelhecer de nossas imagens sem sentir os efeitos do envelhecimento, onde o velho é sempre o outro em quem não nos reconhecemos (ver texto inicial do artigo). Elas afirmam que a velhice é encarada como um dos mal-estares da nossa cultura e que: O corpo envelhecido, marcado pela passagem do tempo, poderia representar uma ferida narcísica, incontinente e em declínio, totalmente compatível com a noção cultural de corpo como significante de velhice. (p. 5).

E ainda: Para a psicanálise, o velho não deve ser pensado apenas como produto da responsabilidade individual ou da deformação decorrente do desgaste do corpo, já que precisam ser consideradas as implicações que os fatores físicos, sociais, culturais e psicológicos engendram. A associação destes fatores nos confronta com os diversos mitos sob os quais o velho se apresenta na clínica: a velhice como o estranho, a velhice como doença, a velhice das manias e enrijecimento, a velhice sábia e boa, a velhice liberta das paixões da alma e das exigências da carne, a velhice como sinônimo da morte. (p. 6).

Com a leitura deste artigo e dos anteriores, observamos que a partir dos 60 anos, as pessoas começam a ser consideradas como velhas. Assim, as pessoas que se enquadram nessa faixa etária são consideradas por grande parte da sociedade brasileira como: incapazes, inútil, dentre outros sentidos pejorativos. Formações imaginárias circulando. Mas, como uma pessoa

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lerda, inútil, incapaz pode dar conta do “encargo da família, conforme podemos notar no “momento 2”, do Capítulo 2, com a fala do senhor Joaquim? Sabemos que o processo de envelhecimento é uma característica natural de todo ser, porém, de todas as fases da vida este é um percurso que o ser humano não gosta de atingir. Pelo menos em sociedades como a brasileira, pois ao atingirmos a velhice temos nosso padrão de vida deteriorado: a família cresce, o espaço físico diminui, a aposentadoria é reduzida, as doenças aparecem, o atendimento da saúde é precário... E como se não bastasse, a sociedade associa a esse processo as demais fragilidades físicas e psíquicas que são naturalmente agregadas ao homem, na velhice, conforme os fragmentos discursivos já apresentados (e os que ainda iremos trazer com a análise dos verbetes). Nesse sentido, convidamos você a ler os nossos gestos de interpretação. E a refletir que, apesar de estarmos ou não na velhice, envelhecer é um processo natural de nossas vidas, assim como a morte. Por isso, sugerimos que ao ler cada verbete que traremos para análise, você associe os sentidos que circulam em nossa sociedade aos dos dicionários, em relação à pessoa “velha”, o que todos seremos.

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CAPÍTULO 4 O percurso de um verbete Neste Capítulo, estaremos percorrendo um caminho de desconstrução do dicionário como mero objeto de consulta, e estaremos empreendendo um trabalho de descrição e análise de um objeto histórico e discursivo, que circula em um espaço-tempo determinado e que se modifica e modifica as relações do sujeito com a língua, consigo mesmo e com o outro, o que, esperamos possa possibilitar novas práticas de leituras e interpretação. Com esse outro modo de conhecer o dicionário, através de uma análise discursiva, procuraremos também desconstruir a imagem do leitor (individualizado) tirando dúvidas em um dicionário, como mero usuário, de um instrumento a-histórico, objetivo, neutro, portador de verdades eternas. Isso irá nos possibilitar compreender que o discurso lexicográfico presente nos verbetes dos dicionários, não depende unicamente do sujeito e de suas intenções, mas, sim, da complexidade de relações ali presentes com o mundo exterior, sendo a objetividade e a neutralidade efeitos de sentido, efeitos ideológicos. Os sentidos são a língua em movimento, e o discurso possibilita tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive, pois a linguagem é uma mediação necessária entre homem e realidade natural e social. Neste Capítulo, vamos iniciar nosso percurso pelo verbete “velhice” no corpus selecionado: o Dicionário Aurélio impresso (1975) e o Dicionário Aurélio eletrônico (1999) – daqui para frente simplesmente AURÉLIO –, descrevendo e analisando nos gestos de interpretação, ali existentes, os efeitos de sentidos produzidos, procurando mostrar que os sentidos não estão apenas nas palavras, nos exemplos ou nos significados apresentados pelos dicionários, mas, sim, na relação destes com a exterioridade. Começaremos nossa descrição e análise com o verbete “velhice” e, aos poucos, veremos que uma palavra puxa outra, que uma palavra pode nos levar a muitas outras e de diferentes formas.

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AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Velhice. S. f. 1. Estado ou condição de velho. 2. velhice [De velho + -ice.] Idade avançada. 3. P. ext. Antiguidade, S. f. vetustez. 4. As pessoas velhas. 5. Rabugice ou 1. Estado ou condição de velho. disparate próprio de velho. 2. Idade avançada. 3. P. ext. Antiguidade, vetustez. 4. As pessoas velhas. 5. Rabugice ou disparate próprio de velho.

Lendo os verbetes acima, observamos que eles diferem basicamente em relação à forma, considerando ser um dos dicionários eletrônico, em formato CD. Temos, assim, a palavra de entrada em maiúscula e minúscula, a disposição dos enunciados definidores, à indicação do processo de formação da palavra em separado, além da presença de cores e negritos no AURÉLIO eletrônico. Considerando ainda a tecnologia do dicionário de 1999, temos a possibilidade de obtenção dos significados dos termos abreviados apenas posicionando o indicador do mouse sobre o termo abreviado (“P. ext.) Já quanto aos enunciados definidores não encontramos nenhuma diferença semântica existentes nas duas edições; nem a inclusão de outros enunciados, embora tenha havido mudanças significativas ocorridas entre as edições no modo de a sociedade encarar a questão da velhice. O primeiro enunciado nos diz que velhice é um “estado ou condição de velho”, algo diretamente ligada ao sujeito. E o AURÉLIO de 1999 nos informa que se trata de uma palavra derivada, em que se usa o sufixo “ice”, que de acordo com o próprio AURÉLIO, trata-se de um sufixo latino que indica “qualidade”, “propriedade”, “estado”, “modo de ser”. Que condição seria essa? Que modo próprio de ser do velho estaria aí implicado? Em seguida, temos um enunciado ligado à idade cronológica. E embora sua classe gramatical seja a de um substantivo, em 4. temos “as pessoas velhas”, em que aparece como adjetivo. A velhice designaria o ser ou a qualidade do ser, essência ou contingência? Por extensão pode também significar “antiguidade”, “vetustez”. Extensão a quê, a quem? Finalmente, temos “Rabugice ou disparate próprio de velho” Esses enunciados definidores nos remetem a outros verbetes que importa analisar, para que vejamos como o próprio dicionário, constrói esse campo semântico de velhice, que tem sua origem em “velho” e que, segundo o verbete, tem um “estado” e uma “condição” específicos, algo que lhe é “próprio”.

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AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Rabugice. S. f. 1. Qualidade ou modos de rabugento; impertinência, rabugem. 2. Mauhumor permanente de pessoa rabugenta, ranzinza: r a b u g i c e de velho. [Sin. ger.: rabuja.]

rabugice [De rabug(em) + -ice.] S. f. 1. Qualidade ou modos de rabugento; impertinência, rabugem. 2. Mau humor permanente de pessoa rabugenta, ranzinza: rabugice de velho. [Sin. ger.: rabuja.]

AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Disparate. [Dev. de disparar.] S. m. 1. Dito ou ação desarrazoada; absurdo. 2. V. asneira (1). 3. Desvario, desatino, despropósito. 4. Bras. V. quantidade (3): Herdou da avó um d i s p a r a t e de bens.

disparate [Do esp. disparate (< esp. ant. desbarate, com infl. do v. esp. disparar), com infl. do lat. disparatus, ' oposto' .] S. m. 1. Dito ou ação desarrazoada; absurdo. 2. V. asneira (1). 3. Desvario, desatino, despropósito. 4. Bras. V. quantidade (3): Herdou da avó um disparate de bens. 5. Jog. Inf. Jogo de salão, feito em roda, em que cada participante deve escutar uma pergunta segredada pelo vizinho de um lado e uma resposta cochichada pelo outro vizinho (que não ouviu a indagação), para só então anunciar ambas, em geral disparatadas.

Lendo cuidadosamente esses verbetes, vemos que o que se considera “próprio do velho”, seu “estado ou condição”, é algo que diz respeito até mesmo à sua sanidade. Todo velho é, então, um mal humorado, um desvairado, alguém que não contribui em nada para o bem estar da família, para uma convivência harmoniosa na sociedade? Essa rede significante é tão presente e forte no dia-a-dia dos cidadãos, que o próprio velho se vê e se significa como tal, fazendo funcionar aquele jogo das formações imaginárias e contribuindo para a identificação do sujeito com determinado modo de ser. Retomemos a fala de um dos entrevistados do artigo de Moreira e Japur (2002): Tiana – (...) esse negócio de falar assim, nós velho é crí-crí (...) cri-crí vem de nós, esse negócio de nó na cabeça, vem de nós! (...) ‘nossa aquela senhora num gosta de barulho, de criança (...) gosta de ficar sozinho, quietinho’ (...) se a pessoa por a cabeça, conveniar em Deus, pensar, tudo, num chega nesse ponto! (p. 8).

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O AURÉLIO de 1999 apresenta um novo sentido relacionado a um jogo de salão, que possibilita estender a questão para outros domínios da vida em sociedade, ampliando a rede significante que significa o velho. Pensar em um novo lugar de significação para o velho na sociedade, significa, pois, produzir deslocamentos nesse imaginário de sentidos estabilizados em que essa pessoa se vê marcada por estereótipos e preconceitos. Como falar em “melhor idade” nesta circunstância? Será que basta a mudança de nomes para se referir ao velho, para apagarmos toda uma história de significação negativa? Como produzir deslocamentos efetivos? Como pensar que essa condição possa se transformar na “melhor idade”? Por outro lado, como é na repetição que se produzem também rupturas, resistências, mostrando a complexidade e opacidade da cadeia significante, é que podemos retomar a fala de Joaquim em que ele, cuidadosamente, vai tentando “equilibrar-se” no barco da vida. Joaquim – (...) é dever nosso! Proteger o nosso tempo! Que o tempo tá duro, vamo aproveitar o tempo! (...) cada um de nós tamo caminhando um puquinho do barco, né! (...) vamo procurar sempre equilibrar o barco no canto certo! Porque no tempo que nós tá se nós desequilibrar ele, pronto, como que faz agora?! O tempo tá poco!? Então vamo equilibrar ele no caminho certo! (...) tamo colhendo, e quando nós chegamo lá fora (...) que a gente sente que ofende, a gente tem esse reforço prá evitar aquele momento! (...) outra hora que eu estiver cá, e estiver no jeito, eu quero tá colhendo, tá participando ... até nóis levá o barco, porque se o barco desviar, depois é duro tocar prá frente! (p. 11).

Mas o que é ser velho, segundo o dicionário, uma vez que a “velhice” coloca em questão uma posição de sujeito da nossa sociedade: a de velho? Vamos, então, conhecer como o dicionário significa esse lugar.

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AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Velho. [Do lat. Vetulu, art. de uma f. *vetlu, pronunciada veclu.] adj. 1. Muito idoso: homem velho. 2. De época remota; antigo: os velhos homens tinham outros costumes. 3. Que tem muito tempo de existência: Esta casa é velha, mas está em bom estado. 4. Gasto pelo uso; usadíssimo: camisa velha. 5. Que há muito possui certa qualidade ou exerce certa profissão: É um velho advogado. 6. Desusado, antiquado, obsoleto. 7. Empregado ou usado há muito: método tão velho quanto eficaz. ~ V. – Mundo, Testamento, ferida –a, ferros –s e negro S. m. 8. Homem idoso. 9. Bras. Fam. Pai, papai: O meu velho comprou um carro. [Aum. (da acepç. 8): velhacas. Dim. irreg. (das acepç. 1 e 8):

velho [Do lat. vetulu, pela f. *vetlu, pronunciada veclu.] Adj. 1. Muito idoso: homem velho. 2. De época remota; antigo: Os velhos homens tinham outros costumes. 3. Que tem muito tempo de existência: Esta casa é velha, mas está em bom estado. 4. Gasto pelo uso; usadíssimo: camisa velha. 5. Que há muito possui certa qualidade ou exerce certa profissão: É um velho advogado. 6. Desusado, antiquado, obsoleto. 7. Empregado ou usado há muito: método tão velho quanto eficaz. ~ V. - Mundo, - Testamento, caboclo -, ferida a, ferros -s, macaco -, negro -, noite -a e velhote, velhusco, velhustro.] Meu velho, República -a. S. m. Bras. Tratamento de intimidade, de 8. Homem idoso. camaradagem, dado a quem não seja velho; 9. Bras. Fam. Pai, papai: O meu velho velhinho: Ânimo, meu velho!. comprou um carro; "Meu velho morreu cedo." (Flávio Moreira da Costa, Nem Todo Canário é Belga, p. 121.) [Aum. da acepç. 8: velhaças. Dim. irreg., das acepç. 1 e 8: velhote, velhusco, velhustro.] Velho e relho. 1. Muitíssimo velho; velho e revelho. Velho e revelho. 1. Velho e relho. Meu velho. Bras. Tratamento de intimidade, de camaradagem, dado mesmo a quem não seja velho; velhinho: Ânimo, meu velho!

No verbete “velho”, assim como no discurso dos idosos do Grupo de sala de espera, encontramos o indivíduo (velho) comparado a coisas, ou seja, a uma casa, “mas está em bom estado” diferentemente do “velho”, que está gasto pelo tempo (como o velho da “terceira idade” ou da “melhor idade”). Assim como uma “uma camisa velha”, que se enquadra na categoria do “velho”, por estar “antiga”, por ser “de época remota”, e “muitíssimo velha”, por estar gasta pelo tempo de uso. A velhice, que nos aproxima da morte, assim como uma roseira que seca e morre, como um barco que vira e afunda. No item 9, do AURÉLIO de 1999, temos um exemplo de brasileirismo, temos: “Meu velho morreu cedo”. Um exemplo que foi retirado do livro “Nem Todo Canário é Belga”, evidenciado a circulação dos sentidos, bem como o

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modo de estabilizar determinados sentidos, relacionando diferentes discursos, como o do dicionário e do da Literatura. Nesse sentido de velho aplicado a “coisa”, de um outro, revelando a possibilidade de produção de outros sentidos, trazemos dois trecho da revista “Ecologia e desenvolvimento” que nos apresenta o seguinte: “Revitalização do Velho Chico garante água para o sertão.” (frase encontrada na capa) e “O Velho Chico faz o semi-árido voltar a viver.” (p. 14). O “velho Chico”, pode ser revitalizado, diferentemente do ser “velho homem”. Parece haver uma movimento contrário de humanização do rio. Lendo minuciosamente os enunciados dos dois do verbete “velho”, no Aurélio de 1975 e no de 1999, podemos observar que nos exemplos 7. há a inclusão de algumas expressões que não são apresentadas na edição de 1975, como por exemplo, “caboclo -”, “macaco -“, “noite -a” e “República -a”, onde o hífen está substituindo a palavra “velho(a)”. Além disso, mais adiante, temos, após o brasileirismo, em 8. novos termos “relho” e “revelho”, que nos incita a continuar o percurso.

AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Relho. adj. (Forma sincopada de revelho?). relho Adj. Pop. Usada na loc. velho e relho. Com a 1. F. sincopada de revelho, us. somente na loc. significação de velho e revlho; muito velho. velho e relho (q. v.). [Flex.: relha, relhos, relhas. Cf. relho (ê), s. m., relha (ê), s. f., pl. relhas (ê), e relho (ê), relhas (ê), relha (ê), dos v. relhar1 e relhar2.]

AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Revelho (é). adj. e s. m. (re+velho). Muito revelho (é). [De re- + velho.] Adj. velho, decrépito; macróbio. 1. Muito velho: “As nuvens passavam baixas sobre o telhado musgo e revelho” (João da Silva Correa, Farândola, p. 94). [Cf. relho.]

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Estes verbetes nos redireciona a “velho”, mostrando uma outra estrutura do dicionário que é a da circularidade, ajudando a retomada de sentidos. Leva-nos ainda a outros termos, como “decrépito” e “macróbio”, que preferimos, no momento, não ir até eles. Preferimos ir em outra (ou quem sabe a mesma) direção e dar uma olhada no feminino de velho, para ver como a questão do gênero aparece aí.

AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Velha. [Fem. substantivado. do adj. velho.] S . f. velha [F. subst. do adj. velho.] 1. Mulher idosa. 2. Fam. Mãe: A v e l h a que S. f. me quer muito. 3. Pop. A morte. 1. Mulher idosa. 2. Fam. Mãe: A velha que me quer muito. 3. Pop. A morte.

Podermos notar que a palavra “velha” é colocada em oposição à de “velho”, não só na diferença de gênero, mas na de classes gramaticais, assim como nos exemplos apresentados pelos dois dicionários, trazendo sentidos diferentes para o sujeito, conforme seja de um sexo ou outro. Isso nos mostra que a questão de gênero, gramaticalmente falando, não é uma questão só morfológica, mas semântica, em uma interface necessária. O homem aparece como “macaco-velho”, ou seja, espertalhão, aproveitador. Já a mulher é direcionada para a maternidade e para a maior das angústias humana, aquilo que não conseguimos significar, a morte. Mulher, velhice, morte. Que efeitos de sentido se produzem nessa relação? Um outro termo sempre presente nos verbetes e nos textos que circulam em nossa sociedade, marcando diferenças significativas ao ser atribuído a um sujeito3, é o de “idoso”. Não é comum usarmos essa palavra, por exemplo, para velhos de classe social mais baixa. Além disso, é o termo usado pelo Estado para referir ao cidadão velho, como nas placas do DETRAN. Vejamos o que nos dizem os dicionários.

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Ver texto de Dourado e Leibing, Capítulo 3 deste TCC.

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AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Idoso. (ô). [De *idadoso, por haplologia.] Adj. idoso ô). [De idadoso (< idase + -oso), com Que tem bastante idade; velho. haplologia.] Adj. 1. Que tem bastante idade; velho. S. m. 2. Indivíduo idoso (1).

Este parece um termo não comprometedor, pois fica apenas no que é relativo à “idade”, ao natural, ao cronológico, apagando os outros sentidos. Naturaliza o velho. Um velho sem história, sem marcas, sem dor, sem sofrimento. Mas, ao remeter a “velho”, naquela circularidade de que falamos, anteriormente, retoma os sentidos que o colocam o sujeito velho no lugar da rabugice, do disparate. Por outro lado, os verbetes para a” idade”, ajuda-nos a perceber de onde pode ter vindo certos termos como “melhor idade”, “terceira idade”. AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Idade. [Do lat. aevitate.] S. f. 1. Número de anos de alguém ou de algo: Tem 25 anos de i d a d e. [Sin. (bras., pop.): era. ] 2. Duração ordinária da vida: A i d a d e do cachorro é, em média, de uns oito anos. 3. Época da vida: Foi feliz em todas as i d a d e s. 4. Estádio da existência; fase: A adolescência é a i d a d e das ilusões. 5. Velhice (1): São achaques da i d

idade [Do lat. aetate.] S. f. 1. Número de anos de alguém ou de algo: Tem 25 anos de idade. [Sin. (bras., pop.): era. ] 2. Duração ordinária da vida: A idade do cachoro é, em média, de uns oito anos. 3. Época da vida: Foi feliz em todas as idades. 4. Estádio da existência; fase: A adolescência é a idade das ilusões. 5. Velhice (1): São achaques da idade. ... ♦ Idade da maré. Ocean. Fís. 1. Intervalo de tempo entre a lua cheia ou a lua nova e seu efeito máximo sobre a amplitude da maré ou a corrente de maré; idade de desigualdade de fase. ♦ Idade da onda. Ocean. Fís. 1. Relação entre a celeridade da onda e a velocidade do vento que a está gerando. [É um índice do grau de desenvolvimento da onda.] ♦ Idade da pedra lascada. 1. Período paleolítico. ♦ Idade da pedra polida. 1. Período neolítico. ♦ Idade de Cristo. 1. A idade de 33 anos: ... ♦ De idade. 1. Idoso (pessoa): um senhor de idade. ...

a d e. ... Idade da maré. Ocean. Fís. Intervalo de tempo entre a lua cheia ou a lua nova e seu efeito máximo sobre a amplitude da maré ou a corrente de maré; idade de desigualdade de fase. Idade da onda. Ocean. Fís. Relação entre a celeridade da onda e a velocidade do vento que a está gerando. [É um índice do grau de desenvolvimento da onda.] Idade de Cristo. A idade de 33 anos. ... De idade. Idoso (pessoa): um senhor de i d a d e.

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Se voltarmos ao verbete “velho”, ainda veremos que teremos que percorrer outros caminhos (velhos ou novos trajetos de sentidos?), como os de: “antigo”, “usadíssimo”, “desusado”, “antiquado”, “obsoleto”, “velhacas”, “velhote”, “velhusco”, “velhustro”, “velhinho”, “de época remota”, sendo que ao procurar os sentidos destes últimos nos deparamos como os seguintes quadros, colocados logo abaixo, que nos apresentam a conjugação do verbete “velhice”. Vamos ver e ler estes quadros de verbos: Verificamos que no nosso dia-a-dia, muitos brasileiros fazem brincadeiras desconfortáveis

com

relação

à

idade,

outros

escondem,

fogem

da

“velhice”,

conseqüentemente, passam a buscar/lutar por sua “melhor idade”, “maior idade” ou, ainda, sua “terceira idade” (palavras/expressões não dicionarizadas, mas que trazem consigo muitos sentidos), pois sabemos agora o que significa ser velho. Cada denominação funciona como um tabuleiro de jogo de xadrez, onde cada peça (denominação) funciona para fixar, cristalizar os sentidos em determinadas direções. O termo “velhice” é tanto um estigma quanto uma classificação. Chegar à velhice, à melhor/maior/terceira idade (estas três últimas ainda não são dicionarizadas), ou à fase de “velhacar”, “velhaquear”, de ser velho, torna-se um estado miserável, sem valor. Estes dois últimos termos/verbos ainda se encontram, se mantêm dicionarizados, e no dicionário informatizado, encontramos quadros em que eles são conjugados. Interessante observar que esses recursos do mundo digital que podem parecer à primeira vista como só trazendo benefícios (basta colocar o “mouse’), na verdade pode ser significados também como dando mais velocidade na difusão de determinado imaginário sobre as coisas, o sujeito, a sociedade, o mundo. Além disso, com esses quadros de conjugação, observamos o estabelecimento de uma relação direta entre dicionário e gramática, em um processo de legitimação recíproca; algo que sempre se deu no processo de gramatização e que, em princípio, podemos considerar como algo útil na descrição e instrumentação das línguas. Mas, quando pensamos nessa aliança para produzir determinados efeitos de sentido como no caso de “velhice”, podemos ver a complexidade de tal aliança. Cabe ressaltar que podemos ficar admirados e até mesmo assustados, pois sabemos que o dicionário tem como estrutura essa remissão de verbetes. Mesmo sabendo disso, foi espantoso ver essa estrutura em funcionamento, construindo/reproduzindo sentidos, imagens, representações para o sujeito. Essas palavras aparecem uma embaixo da outra, cada uma fazendo novas remissões, novos sentidos e, conseqüentemente, conduzindo a nossa leitura e interpretação para determinada direção (ideológica).

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1. Quadro A:

2. Quadro B:

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E os verbetes o que dizem? Vejamos.

AURÉLIO (1975) Velhacar. V. int. 1. Proceder como velhaco; velhaquear. T. d. 2. Bras. Ludibriar em negócio; velhaquear. 3. Não pagar dívida a, como velhaco. [Conjuga-se como trancar.]

AURÉLIO (1999) velhacar [De velhaco + -ar2.] V. int. 1. Proceder como velhaco; velhaquear. V. t. d. 2. Bras. Ludibriar em negócio; velhaquear. 3. Não pagar dívida a, como velhaco. [Conjug.: v. trancar.]

AURÉLIO (1975)

AURÉLIO (1999)

Velhaquear. V. int. 1. Proceder como velhaco; velhacar. 2. Bras., S. Dar corcovos (o cabalo); corcovear . T.d.3. Burlar, enganar, principalmente, em negócio; velhacar. [Conjuga-se como frear.]

velhaquear [De velhaco + -ear2.] V. int. 1. Proceder como velhaco; velhacar. 2. Bras. S. Dar corcovos (o cavalo); corcovear. V. t. d. 3. Burlar, enganar, principalmente em negócio; velhacar. [Conjug.: v. frear.]

Ao ler cuidadosamente esses dois verbetes, vemos que se considera o “velho’ como um indivíduo que “procede como velhaco”, “burla, engana, principalmente em negócio”, ou seja, ser velho possibilita ao individuo agir com esperteza, enganar o outro. Todo velho é, então, um velhaco, um enganador, alguém que ludibria e/ou pratica fraudes? Pensando nestes e nos outros sentidos criados e associados à velhice, como também no processo sócio-histórico, ou seja, na “análise desses espaços de memória que os dicionários constroem e trabalham, que é um espaço atravessado de repetições, de divisões heterogêneas, de rupturas, de conflitos e contradições, de silenciamento”, vemos a importância de se criar “condições teóricas e metodológicas para questionar a evidência do saber construído no e pelo dicionário, abrindo espaço para a interpretação” (SILVA, 2004, p. 117), e finalizamos percurso pelos verbetes e as interpretações ali presentes, esperando ter evidenciado a possibilidade de outras práticas de leitura do nosso “velho” dicionário.

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Conclusão Neste TCC, de posse de outra concepção de dicionário e a partir do verbete “velhice”, fomos aos poucos caminhando (e entrelaçando-nos) em direção ao fantástico mundo labiríntico do dicionário, que o seu funcionamento de palavra-puxa-palavra nos levava. Um labirinto em que, mesmo com um referencial teórico de leitura, sentíamo-nos prestes a nos perder. Ou pior, a nos achar reproduzindo também o imaginário ali presente, a buscar justificativa para a repetição do mesmo, querendo achar o sentido novo. Um labirinto que se construía de diferentes formas: seja por uma palavra agregada a estrutura da palavra velhice, como por exemplo, “velho”, “velhaco”, “velhacar”, seja por outras que não possuem relação com a estrutura da palavra, mas com os sentidos, tais como “rabugice”, “disparate”, “idoso”; seja, ainda, pelas surgidas com o passar dos anos, tais como “terceira idade”, “melhor idade” “de idade”; seja pela junção da gramática com o dicionário ou da língua com a literatura nos exemplos. Interessante também foi ver que com o passar dos anos a linguagem não fica “idosa”, “inútil”, “surda”, “gasta”, “sem utilidade”, “rabugenta”, nem “à beira da morte”; fica sempre significando; a memória do dizer fica sempre funcionando. Mas, o importante, vejo, agora, pensando em um outro percurso, o de aluna, de usuária de dicionário, de pesquisadora (como agora me sinto), como a linguagem, o saber sobre a língua é algo fascinante, mesmo que perigoso, mesmo que arriscado; algo que nos prende em suas teias. Essa imagem de labirinto que atribuímos ao dicionário, talvez, não tenha surgido à toa, mas sirva também para significar o próprio trabalho de aprendizado, de desenvolvimento deste TCC. Quantas vezes me senti perdida? Inúmeras. Quanto aos resultados, mesmo que não conclusivos, mostram a força do saber que se constrói sobre a língua, evidenciam as relações entre saber e poder: poder de produzir/reproduzir sentidos, de produzir/reproduzir referentes, com que o sujeito irá significar o mundo e a si mesmo, como vimos nas falas daqueles pesquisados que apresentamos no Capítulo 3. Como é difícil produzir rupturas, sentidos novos, mas não é impossível. E de novo, voltando às falas daqueles sujeitos da sala de espera, vemos nas hesitações, nas frases não terminadas, nas perguntas freqüentes lançadas como ao léu, o sujeito buscando criar brechas para romper com o que está estabelecido, ao que o identifica de forma negativa. Vimos como as mudanças demoram a ser incorporadas pelos dicionários. Ou quem sabe as mudanças não são mesmo mudanças, se pensarmos um pouco mais no artigo de

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Dourado e Leibing e o dicionário está justo sinalizando isso. Parece que o sistema de remissão, de circularidade entre verbetes, também funciona em outras discursividades da e na sociedade, ajudando a manter certos estereótipos, certos preconceitos relativos à velhice. Nesse sentido, as facilidades postas à disposição do usuário no dicionário eletrônico têm, como dissemos, seu lado positivo, mas também permitem que os sentidos estabilizados se transmitam em alta velocidade. Seria esse um dos efeitos ideológicos da tecnologia? É preciso mais pesquisa para responder a essa questão. E a muitas outras que nos fizemos durante todo o desenvolvimento deste TCC.

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