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O PLANETA FAVELA (PLANET OF SLUMS) Selene Herculano Professora da UFF/ICHF-PPGCP-PPGSD [email protected]

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O Planeta Favela (Planet of Slums) Selene Herculano

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O autor, Mike Davis, 61 anos, ensaísta, urbanista, professor da Universidade da Califórnia e editor da New Left Review, define-se como um ambientalista urbano marxista. Não é um acadêmico Ph.D., mas um ativista sobretudo, um ex-motorista, ex-açougueiro, autor de Prisioneiros do sonho americano (1986), que ficou mais conhecido entre nós através dos livros Cidade de quartzo (São Paulo: Página Aberta, 1993) e Cidades mortas (Rio de Janeiro: Record, 2001). No primeiro, desvenda a história do condado de Los Angeles através de seus conflitos de classe e étnicos, denunciando os interesses dos grandes agentes imobiliários e financeiros, mancomunados com os políticos e que dão forma ao condado degradando suas paisagens, suas águas e aviltando suas gentes; no segundo, além de Los Angeles, coloca o foco também em outras cidades americanas (Las Vegas, Nova York) para mostrar como a grande cidade capitalista é ao mesmo tempo extremamente perigosa e vulnerável em sua pretensão de dominar a natureza, ao incitar uma economia do medo e ao priorizar a criação de infra-estrutura física para as finanças internacionais às custas do subemprego e da submoradia de sua população trabalhadora local. Se nesses livros o autor nos desvela a presença da pobreza urbana no seio da maior potência econômico-militar do globo, no livro que a seguir resenhamos ele se debruça sobre uma realidade que nos é mais familiar, a

favelização do Terceiro

Mundo, processo que tende, segundo ele, a se generalizar. Em seu novo livro, Planeta favela, Davis se volta para as megacidades do Terceiro Mundo, para a generalização, agudização, extensão e multiplicação das favelas em decorrência das políticas de ajuste do Banco Mundial. As grandes concentrações urbanas estão no Terceiro Mundo (México e Seul, por exemplo, com populações acima de 21 milhões; Mumbai/Bombaim e São Paulo, com mais de 19 milhões, em dados de 2004). Com base em Relatório do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas – UN-Habitat de 2003, intitulado “The Challenge of Slums” (O desafio das favelas) e em farta consulta bibliográfica a pesquisas específicas, Davis mostra o capitalismo neoliberal como o responsável por uma urbanização da população mundial que se caracteriza pela sua concentração nas favelas (um terço da população urbana total): 99,4% da população da Etiópia, 98,5% do Afeganistão, 55,5% da população indiana, 37,8% da população chinesa e 36,6% da população brasileira seriam faveladas. A população favelada mundial cresceria cerca de 25 milhões de pessoas ao ano, ainda segundo a UN-Habitat. Na Ásia, em apenas cinco cidades – Karachi, Mumbai, Délhi, Calcutá e Daca – há 15 mil favelas, somando mais de 20 milhões de habitantes. A falta de habitação digna faz que no Cairo 1 milhão de pobres habitem um cemitério; em Hong Kong, cerca de 250 mil pessoas morem

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em telhados, poços de ventilação e ‘gaiolas’ (cobertura de arame sobre camas suspensas); em Mumbai, vive-se nas calçadas. O processo de favelização é variado: causado pela urbanização forçada, que expele as populações do meio rural, como na estratégia militar apontada como tendo sido usada por Samuel Huntington no Vietnam, para extinguir suas comunidades e solapar a resistência contra a ocupação norte-americana; pela formação de campos de refugiados, como em Gaza; às vezes, pelo processo de enobrecimento ou gentrificação das áreas ocupadas pelos pobres e que passam a ser destinadas ao turismo e aos condomínios de luxo, como em Maroko, em Lagos, Nigéria. Ou, ao contrário, pela degradação ambiental e envenenamento de seu solo, que faz das áreas de despejo de lixo os locais de moradia e trabalho de amplos segmentos da população: são as favelas-lixo de Quarantina, em Beirute; Santa Cruz Meyehualco, no México; Hillat Kusha, em Cartum; Dhapa, em Calcutá. Embora agudizado a partir da década de 1970 pelas políticas neoliberais das grandes finanças globalizadas, o processo de favelização (um misto de adensamento com a inexistência de sistema de saneamento) é apontado como remontando à colonização britânica. Os britânicos teriam sido “comprovadamente os maiores construtores de favelas de todos os tempos” (p.61), obrigando a população africana a morar em barracos precários à margem de cidades segregadas e restritas; recusando-se a melhorar as condições sanitárias na Índia, na Birmânia e no Ceilão. Também os franceses, nas favelas coloniais de Medina (Dacar), Treichville (Abidjã) e Brazzaville, Congo) recusavam infra-estrutura sanitária rudimentar aos bairros nativos; o mesmo era feito pelo stalinismo asiático. Além da alta densidade sem saneamento (em Kimbera, Nairóbi, havia em 1998 dez latrinas do tipo fossa para 40 mil pessoas), o espaço urbano nas megacidades terceiro-mundistas tenderia a se caracterizar pela diminuição da interseção entre a vida dos ricos e a dos pobres, pelos territórios fragmentados, formando enclaves fortificados nos quais elites desenraizadas se autoconfinam em ‘zonas totalmente protegidas’, nas ‘ilhas de cibermodernidade’, como nos condomínios Alphaville, no Brasil e na esterilidade dos shoppings centers, enquanto os mais pobres se acotovelam nas favelas, bidonvilles, gecekondus, superbloques e rumah panjang, agarrando-se a “fissuras de sobrevivência” (p.197). Por que as favelas se multiplicam? Primeiro, porque, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU para 2004, o desenvolvimento recuou nos anos 90,

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porque os programas neoliberais aceleraram a demolição do emprego estatal, promoveram a desindustrialização local e porque o pagamento dos serviços da dívida externa absorveu recursos que seriam dos programas sociais e habitacionais. Mas o autor aponta outras causas para a permanência das favelas: porque assim interessa a muitos. Interessa aos políticos clientelistas; interessa à expansão imobiliária que tolera invasões, como em Manila, para que alagados pantanosos e encostas se transformem em terrenos habitáveis e privatizáveis; porque interessa aos landlords, proprietários que alugam imóveis em favelas, com alta rentabilidade. (Segundo o autor, um proprietário que pague 160 dólares por um barraco de 6 metros quadrados em Nairóbi recupera seu investimento em poucos meses de aluguel. Os lucros oriundos do aluguel de cortiços à pobreza já era conhecido na Londres de Thomas Flight, landlord de 18 mil moradias, e na Nápoles do fim de século, a “Calcutá da Europa”). Interessa às quadrilhas de funcionários públicos, policiais corruptos e intermediários conhecidos como dalals, em Karachi, que favelizam em proveito próprio as terras públicas que supostamente deveriam estar controladas pela agência de desenvolvimento urbano local. Interessa até às ONGs e ao seu ‘imperialismo brando’, que intermedeia programas de dotação de verbas de grandes fundações cujos verdadeiros beneficiários parecem acabar sendo as próprias ONGs e não o povo local. As ONGs usurpariam as vozes dos pobres, praticariam novas formas de clientelismo e, ao focar o tema da capacitação e da governança em ações pontuais com o enfoque em boas práticas, evitariam as questões básicas da dívida e da desigualdade e desencorajariam o debate e a compreensão das políticas globais financeiras. Outra causa apontada para a continuidade das favelas é que a informalidade econômica da marginalidade urbana teria se tornado uma força avassaladora, como em Allahabadad e Jaipur, na índia, e em Huancayo, no Peru. Mas o autor está longe de engrossar o coro daqueles que louvam o empreendedorismo da economia informal e seu pretenso papel macroeconomicamente revolucionário. Davis chama tal setor informal, com expressão que credita a sociólogos brasileiros, de ‘proletarização passiva’. Embora sejam dois quintos da população economicamente ativa mundial, segundo a ONU, esses trabalhadores estão sem abrigo na economia internacional contemporânea. O setor informal empreendedor urbano seria um mito segundo o autor, e isso por várias razões: porque seus defensores confundem micro-acumulação com sub-subsistência; porque, em lugar do estereótipo do autônomo heróico, a maioria dos trabalhadores informais trabalha para outrem; porque há desigualdades internas e redes invisíveis de exploração, com o

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abuso do emprego de mulheres e de crianças; porque pesquisas teriam demonstrado o baixo impacto do microcrédito e do empréstimo cooperativo na redução da pobreza; porque solapa a cultura da doação e ajuda mútuas... As estratégias de sobrevivência nas favelas sobrecarregam sobretudo suas mulheres e encurtam o horizonte de vida de seus jovens. A regularização fundiária defendida por muitos também é criticada pelo autor porque

individualizaria a luta por moradia, solapando a solidariedade, instalando a

competição, cooptando os moradores e fazendo disparar os preços. Seria mais uma estratégia cômoda e fácil, um gesto de pena que dá novo alento ao paradigma da autoconstrução, combinando-se com a ideologia anti-estatal dominante, que desobriga os governos de suas responsabilidades. Se as agências governamentais estão corrompidas, se as ONGs agem em causa própria, se o empreendedorismo dos pobres é um mito, se a regularização fundiária mais um engodo, se a política macroeconômica ditada pelos bancos fragmenta o tecido urbano e torna uma humanidade excedente, qual a saída? Para Davis, não há saída. Há, ao contrário, um big bang da pobreza urbana: a Rússia nos espantou com sua riqueza instantânea e sua miséria igualmente súbita; as ‘cidades-cinderela’ indianas – Bangalore, Pune, Hyderabad e Chennai – são bolhas de alta tecnologia e de novos milionários que se fizeram acompanhar de mais 56 milhões de pobres (p.172). Em Bangalore haveria mais catadores de papel e crianças de rua (90 mil) do que gênios de software (60 mil). Lá, em dez favelas locais, pesquisadores teriam contabilizado apenas 19 latrinas para 102 mil moradores (p.174). A ‘saída’ tem sido o êxodo forçado, a repressão e a ação direta de financiadores como o Banco Mundial que, independendo de votos locais, constroem ilhas de bemaventurança e de crescimento para poucos e promovem eventos internacionais de alto nível que banem a população local a pretexto de campanhas de embelezamento. Para os estrategistas militares criticados por Davis, a saída estaria em ações de guerra aos pobres, identificados como terroristas em potencial, através de ações MOUT (military operations on urbanized terrain) e em uma “guerra mundial de baixa intensidade e duração ilimitada contra segmentos criminalizados dos pobres urbanos” estudada pela Rand Corporation (p.202-205). Na disputa pelas áreas, uma outra ‘solução’ mais imediata tem sido o fogo. Ermínia Maricato, ilustre urbanista da USP com passagem recente no Ministério das Cidades do governo Lula, em seu posfácio ao livro critica o autor pela falta de

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alternativa, por uma bibliografia unicamente em língua inglesa e por erros nos dados estatísticos sobre o Brasil (aliás e felizmente, pouco citado nesse imenso rosário de miséria urbana). Maricato endossa a crítica de um certo Tom Angotti, que teria acusado Davis de estar no grupo dos TINA (aqueles para quem there is no alternative, isto é, não existe saída) e por promover uma visão antiurbanista ou anticidade. Ainda segundo Maricato, no Brasil as tendências são outras: as metrópoles crescem menos do que as cidades de porte médio, houve uma queda na taxa de fecundidade e de mortalidade infantil. E há saída na descentralização da gestão urbana, sim. Maricato, todavia, concorda em que políticas locais que ignorem a macroeconomia e a esfera nacional são armadilhas, e afirma que Davis acerta “quando remete a fonte principal das mazelas às forças globais dominadas por interesses financeiros e garantidas militarmente pelos Estados Unidos ou por aquilo que David Harvey denomina de Novo Imperialismo” (p.224).

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