A ARTE DE NÃO AMARGAR A VIDA Pensar bem para viver melhor
RAFAEL SANTANDREU
A ARTE DE NÃO AMARGAR A VIDA Pensar bem para viver melhor Tradução de ISABEL HABER
Dedicado à minha mãe, M.a del Valle, uma mulher excecional e a minha primeira professora de felicidade.
PRÓLOGO
Após mais de vinte anos de exercício profissional enquanto médico de família, durante os quais me apercebi de uma fragilização do equilíbrio emocional da população ao mesmo tempo que vi aumentar a prescrição de medicamentos psicoativos, de benefícios duvidosos e eficácia controversa, tive a oportunidade de conhecer Rafael Santandreu. Indubitavelmente, a sua trajetória profissional, o seu trabalho como professor, as suas contribuições e inovações conceptuais tornam-no uma das referências atuais de maior prestígio para os médicos que se ocupam do âmbito da saúde mental. A sua perspetiva terapêutica é herdeira, em parte, de Albert Ellis, o pai da Terapia Racional Emotiva Comportamental. Contudo, a adaptação que dela faz vai mais além, porque enfatiza a exploração dos pensamentos, convencionalismos e crenças irracionais que adquirimos ao longo da vida, que são causa de sofrimento e de frustração e que, por sua vez, podem dar origem a mal-estar emocional e transtornos psíquicos, como ansiedade e depressão. Ao longo do livro, enriquecido por numerosos exemplos de casos reais testemunhados pelo próprio autor, é desenvolvido o conceito de que a nossa perceção da realidade existe, paradoxalmente, em função de como decidimos reagir, e que é 9
igualmente suscetível de ser modificada através do nosso pensamento, das nossas emoções e do comportamento que decidimos exteriorizar. A particularidade de Santandreu consiste no facto de nos oferecer os segredos para recomeçarmos, sem necessariamente aprofundar o passado, e conseguirmos transformar-nos, aceitar os outros, desenvolver-nos como pessoas e, em resumo, obter uma sensação preponderante de felicidade. Como o autor indica, a vida não é fácil e está repleta de desafios e de acontecimentos adversos que precisam de ser resolvidos. A leitura deste livro impele-nos não apenas à reflexão, mas também a passarmos à ação, mesmo se com esforço, ao mesmo tempo que nos prepara para uma vida futura mais plena e gratificante. Espero que o leitor experimente o mesmo entusiasmo que eu senti ao ler este livro, em cuja essência acredito encontrarem-se as bases de uma nova era no que respeita o tratamento dos transtornos emocionais e adaptativos. DOUTOR MANUEL BORRELL MUÑOZ Especialista em Medicina Familiar e Comunitária Prémio de Excelência Profissional do Colégio de Médicos de Barcelona 2009
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PARTE UM
AS BASES
CAPÍTULO
1 É POSSÍVEL TRANSFORMARMO-NOS Uma grande aposta! Certa manhã fria de inverno de 1940, um jovem chamado Robert Capa guardou na mala a sua pequena máquina fotográfica compacta Leica, inúmeros rolos de filme novos e alguma roupa. No bolso direito do casaco, levava um bilhete para embarcar num navio em direção à Segunda Guerra Mundial. Capa foi um dos primeiros fotógrafos de guerra da história do jornalismo e uma personagem fantástica. Bem-parecido, simpático, amigo de beber, corajoso e, por vezes, mesmo romântico, este nova-iorquino nascido em Praga partia à aventura. No Dia D, centenas de milhares de jovens norte-americanos apinhavam-se nas lanchas anfíbias a caminho das praias da Normandia. O terror acompanhava-os ao som do ribombar das bombas das defesas alemãs. Muitos deles vomitavam o pequeno-almoço no interior das barcaças geladas, mas ninguém se queixava do facto. As suas mentes não tinham tempo para se ocupar dessas ninharias. Entre esses jovens, Capa inspecionava temeroso as suas máquinas fotográficas, uma e outra vez, como se o ritual de trabalho conseguisse emudecer o ruído ensurdecedor dos canhões inimigos. 13
De repente, um golpe seco fez tremer a lancha, indicando que tinham chegado à margem. Nessa altura, o ruído das bombas era ensurdecedor, mas a voz do sargento que tinha a seu cargo aquele pelotão conseguiu sobrepor-se-lhe, dizendo: «Saiam, depressa! Agrupamento a vinte metros! Já!», e saltou para a água, espingarda erguida, correndo com o coração a bater a toda a brida. Os rapazes saíram, tropeçando nas próprias pernas, mas mantendo o olhar fixo nas costas do seu superior. O pior que poderia acontecer seria perderem o sargento, o único guia em quem podiam confiar naquele inferno. A confusão era imensa: pelotões a correr por toda a parte, gritos, explosões... Capa seguiu-os e fez como eles, atirando-se para o solo a cerca de vinte metros, cravando o olhar na nuca do sargento. O «veterano» de bigode com 25 anos ergueu novamente a voz para dizer: «Outra vez, corrida de vinte metros e agrupamento! Agora! Já!» E como que impulsionado por uma mola, lançou-se duna acima. Dos vinte jovens que acompanharam Capa naquela manhã, só dois sobreviveram. O fotógrafo só teve tempo para tirar algumas fotografias naqueles primeiros metros de batalha antes de o obrigarem a voltar numa lancha anfíbia para um dos navios aliados. Mas aquelas fotografias ligeiramente desfocadas foram os primeiros testemunhos da libertação da Europa. No dia seguinte, encontravam-se já nas rotativas da Grã-Bretanha e o mundo podia ver a imagem da marcha final da guerra pela libertação do mundo. Quando chegou a Londres, Capa desfrutou de dois dias de licença que aproveitou para passar com a sua nova namorada inglesa. Várias garrafas de scotch depois, encontrava-se já a bordo de um avião do qual iria saltar de paraquedas de 14
máquina fotográfica em punho para seguir o avanço de exército americano na Europa. Qual a ligação da história de Capa com um livro sobre psicologia, perguntará o leitor. Apenas uma: Capa aproveitou os dias, viveu intensamente. Apostou em jogar forte, sem medo, e abraçou o seu destino e a sua vida. Foi o melhor repórter fotográfico da História, casado com Gerda Toro, namorado de Ingrid Bergman e amigo íntimo de Hemingway. O seu espírito indomável levou a que tivesse uma vida digna de um filme, antes de morrer na guerra da Indochina, aos 41 anos.
Uma mente em forma, uma vida emocionante Capa representa, a meu ver, um mestre da vida. Existem muitos outros: o explorador Ernest Shackleton, o músico e escritor Boris Vian, o físico Stephen Hawking, o «super-herói» Christopher Reeve... Falarei de alguns deles ao longo deste livro, pois são bons exemplos a seguir. Para o psicólogo cognitivo representam o contrário daquilo que combatemos, o oposto de viver mal. O principal inimigo dos psicólogos é o denominado neuroticismo, isto é, a arte de se afligir através da tortura mental. A depressão, a ansiedade e a obsessão constituem os nossos principais inimigos e quando nos deixamos apanhar por eles, perdemos a capacidade de viver a vida em plenitude. A vida é para desfrutar: amar, aprender, descobrir... O que só pode ser feito quando tivermos superado as nossas neuroses (ou o medo, o seu sintoma principal). Um dos meus primeiros pacientes, há já muito tempo, foi um homem com 40 anos, Raúl, que veio ver-me porque 15
sofria de ataques de pânico. Chegou ao meu consultório de táxi, acompanhado pela mãe. Raúl vivia aterrorizado com ideia de, a qualquer momento, poder ser acometido por um ataque de ansiedade. Devido a esse medo, pouco saía de casa. Aos 20 anos, tinham-lhe dado baixa permanente do emprego e, desde então, vivia recluso em casa. Vinte anos fechado por causa do medo! O maior receio de Raúl era sofrer um ataque de nervos no meio da rua, longe de casa ou de um hospital onde o pudessem socorrer, mas ultimamente também tinha pavor de ver os noticiários na televisão, porque certa vez tinha sido acometido de um ataque de pânico ao assistir a cenas de guerra. Por isso, já nem sequer via televisão. É verdade que, ultimamente, a programação é muito fraca, mas não poder ver televisão por sofrer de pânico, isso é demais! As vidas de Raúl e de Robert Capa são antitéticas: um encontra-se na zona cinzenta da existência e o outro na de tecnicolor mais brilhante. Quão diferente é surfar a vida sobre as suas ondas ou viver submerso, sempre meio afogado, fustigado pelas correntes marinhas! Desfrutar da vida ou sofrê-la, como se fosse um mar hostil que nos domina! Costumo dizer aos meus pacientes que me procuram no consultório de Barcelona que o meu objetivo último é torná-los fortes emocionalmente. Essa força permitir-lhes-á desfrutar da vida em plenitude. «Aqui não ansiamos por vidas “normais”, cinzentas ou simplesmente estáveis», digo-lhes eu. «Queremos aprender a aproveitar todo o nosso potencial.» A neurose é um travão à plenitude e a saúde emocional um salvo-conduto para a paixão e para a verdadeira diversão. 16
É possível aprender! Muitas pessoas são céticas em relação à possibilidade de se tornarem pessoas fortes e emocionalmente estáveis. Na consulta, frequentemente dizem-me: «Mas se sempre fui assim toda a minha vida, como é possível que uma terapia que vai durar apenas alguns meses logre mudar-me?» A verdade é que fazer esta pergunta tem a sua lógica, porque todos nós temos a impressão de que é impossível mudar a personalidade. O meu avô, um homem duro que tinha lutado na guerra civil, costumava dizer em tom grave: «Se uma pessoa não atingiu a maturidade aos 20 anos, nunca a atingirá!», e de certa forma tinha razão. Porque a verdade é que não é comum mudar-se radicalmente, mas isso não significa que seja impossível fazê-lo. Atualmente, sabemos que, com as indicações adequadas, não só é possível, como todos, até os mais vulneráveis, podem consegui-lo: a psicologia de hoje desenvolveu métodos para tal. Esse é, precisamente, um dos meus primeiros objetivos: informar o leitor de que mudar, transformar-se a si mesmo numa pessoa saudável a nível emocional é possível. Claro que sim! Tenho inúmeras provas que o testemunham. Entre elas, as mudanças que experimentaram milhares de pessoas que consultam psicólogos em todo o mundo. Na realidade, trata-se de milhares de provas, uma vez que cada um destes homens e destas mulheres prova que isso é possível. Sem ir mais longe, no meu blogue (www.rafaelsantandreu.wordpress.com), muitos dos meus pacientes escrevem acerca de si próprios e sobre as suas histórias de superação. Vejo inúmeros pacientes anualmente, centenas, e posso afirmar perentoriamente que a mudança é possível. 17
Como no caso que passo a narrar: María Luisa dirigia-se ao teatro todas as noites para representar uma comédia de muito êxito em Madrid. Quando a cortina subia, ela surgia em cena em todo o seu esplendor, com a graça e a elegância que só os atores clássicos possuem. O final era sempre o esperado: quase dez minutos de aplausos ininterruptos por um trabalho genial. Que boa atriz, que simpática, que dinâmica era María Luisa! Mas o que o público desconhecia era que, de regresso a casa, nessa mesma noite, o ânimo de María Luisa se transformava para afundá-la na mais negra das depressões e inseguranças. Aos 50 anos, encontrava-se no seu pior momento pessoal, mesmo que sem um motivo em particular. O problema, conforme lhe dissera o psiquiatra, encontrava-se na sua mente. Tinha tendência para a depressão e a ansiedade. Por isso, durante longos períodos, ficava na cama praticamente o dia inteiro, saindo apenas para fazer o trabalho que tanto amava, mas do qual já nem conseguia desfrutar. Esta é a história real de María Luisa Merlo, a grande atriz madrilena, conforme narrada pela própria no seu livro Cómo Aprendí a Ser Feliz: O período entre os 44 anos e os 50 anos foi o pior da minha vida. Saía da cama para ir para o teatro e de lá regressava à cama e mais nada. Assim, dia após dia. Temia os problemas económicos (que na realidade não tinha), sentia medo da solidão, medo do «papão», medo de tudo. [...] Na última depressão de que sofri, eu era um ser total e absolutamente fechado sobre a minha própria mente. Quando alguma coisa me preocupava, uma pequena desavença, algo de insignificante... era capaz de remoê-lo vezes sem conta e esse turbilhão mental levava a que por fim explodisse. 18
* Merlo confessa que nunca foi uma pessoa equilibrada. Teve uma infância feliz, mas quando iniciou a sua vida adulta, os transtornos emocionais começaram a fazer-se sentir. Era verdade que tinha uma certa tendência para a depressão (aquilo que denominamos por depressão endógena), mas possuía igualmente uma personalidade, uma perspetiva do mundo que a tornavam vulnerável. No seu caso, o quadro complicou-se com o uso de drogas recreativas e de medicamentos autoprescritos: «Quando tive a primeira depressão começaram a receitar-me hipnóticos e calmantes e comecei a habituar-me a eles. Comprimidos para dormir, comprimidos para despertar, comprimidos para tudo. Havia dias em que era capaz de tomar dez ou quinze comprimidos para coisas diferentes, porque tinha a tendência para depender de algo. Viciei-me igualmente em haxixe e em cocaína.» Por fim, aos 50 anos, a apreciada atriz tinha um mau prognóstico. A sua mente peculiar tornava-lhe a vida muito complicada e o problema ia-se agravando com o passar dos anos. Mas a dada altura, a sua história teve uma reviravolta. Um reduto de esperança, a inesgotável vontade de lutar por si própria que lhe era característica fê-la procurar terapeutas e guias que lhe apontassem a mudança: «E assim, passo a passo, emergi da depressão, com a ajuda de Deus e de mim mesma, porque o fosso onde estava enterrada era muito, muito fundo — explica-nos. — Agora sinto-me melhor do que nunca, apenas comparável a quando era uma criança feliz. E sinto-me orgulhosa do trabalho que fiz comigo própria. Ter emergido das profundezas para onde mergulhara faz-me sentir uma enorme segurança. Posso afirmar que me sinto realizada pela primeira vez na minha vida.» 19
María Luisa transformou-se a si mesma e saiba que todos nós podemos fazê-lo. Precisamos de saber que é possível. A personalidade é formada por uma série de características inatas, mas também por toda uma série de aprendizagens adquiridas na infância e na juventude, e é sobre essa estrutura mental que podemos atuar. Como veremos ao longo das páginas deste livro, podemos criar uma vida livre de medos, aberta à aventura, plena de realizações. Quando tivermos transformado a nossa mente, seremos mais capazes de desfrutar das pequenas e grandes coisas da vida, seremos capazes de amar — e de permitir que nos amem — com maior intensidade e teremos uma imensa dose de serenidade interior. Seremos mais como o fotógrafo aventureiro Robert Capa, grande amante da vida, neste caso amantes da nossa própria vida.
A terapia mais científica Em suma, aquilo que vamos ver em seguida é o á-bê-cê da teoria cognitiva, que partilha alguns princípios com a filosofia antiga e que, ao longo da segunda metade do século XX, se foi desenvolvendo a partir de uma intensa investigação em universidades de todo o mundo. Atualmente, a terapia cognitiva constitui a escola de psicologia com maior base científica e que melhor foi corroborada por estudos de comprovada eficácia. Existem mais de duas mil investigações independentes publicadas em revistas especializadas que comprovam o seu valor. Nenhuma outra forma de psicoterapia conseguiu igualar o seu êxito terapêutico. Este livro pretende ser um manual didático para o grande público e contém histórias, relatos e metáforas para 20
ajudar a compreender as diferentes mensagens, mas é preciso sublinhar que tem por base estudos e ensaios científicos de primeira linha. Milhares de psicólogos em todo o mundo trabalham com a terapia cognitiva e testemunharam o poder dos seus métodos. Centenas de milhares de pessoas transformaram as suas vidas graças a ela, mas estou certo de que, no futuro, ainda encontraremos formas melhores de administrar estes princípios, uma vez que a terapia cognitiva é uma ciência em constante evolução. Como o leitor poderá comprovar, não cito autores ou investigadores ao longo destas páginas para facilitar a fluidez da leitura, mas não gostaria de deixar de mencionar os dois conceituados psicólogos cognitivos que deram grande impulso a esta nossa disciplina: em primeiro lugar, Aaron Beck, professor de Psiquiatria na Universidade da Pensilvânia e, naturalmente, o recentemente falecido doutor Albert Ellis, fundador do Instituto Albert Ellis, em Nova Iorque.
Neste capítulo aprendemos que: 1. É possível mudar. É necessário um esforço continuado, mas pode ser conseguido. 2. Transformar-se em alguém positivo é essencial para desfrutar da vida. A força emocional é o passaporte principal para dar a volta ao mundo.
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CAPÍTULO
2 PENSE BEM E SENTIR-SE-Á MELHOR O jovem Epicteto carregava vários embrulhos, tentando esquivar-se dos transeuntes que com ele se cruzavam sem cessar pela Via Magna de Roma, a principal rua comercial da cidade. À sua frente, o seu amo, Epafrodito, estugava o passo, indiferente às dificuldades do seu escravo que era obrigado a segui-lo apesar de carregado. Epafrodito gostava de Epicteto, o seu jovem criado, sobretudo pela sua incrível inteligência. Quando o encontrou, ainda criança, na sua cidade natal, Hierápolis, na Turquia, reparou que ele era sobredotado e quis tê-lo entre os seus escravos. Este rapazinho, com apenas quatro anos, lia e escrevia em grego e latim e ninguém o ensinara! Aprendera simplesmente lendo os letreiros nas lojas e nos templos. Anos mais tarde, mudaram-se ambos para o centro do mundo, Roma, a capital do Império, onde Epafrodito começaria a prosperar como comerciante de artigos de luxo. Naquela manhã, amo e escravo dirigiam-se a casa de Amalia Rulfa, uma viúva milionária que morava perto do Fórum. Levavam-lhe amostras de perfumes preciosos da Pérsia e tecidos do Oriente. Com tantos embrulhos, Epicteto quase não conseguia ver por onde ia e, nesse momento, dois rapazinhos cruzaram-se com ele na rua. Um deles deu-lhe um encontrão, fê-lo perder o equilíbrio e cair. Como em câmara lenta, Epicteto viu como o frasco do perfume mais caro dava 22
uma volta no ar e descrevia uma curta parábola para acabar por aterrar no pavimento: crash, vidros partidos e salpicos de perfume sobre a sua roupa. O tempo deteve-se durante breves instantes. De repente, um ruído seco e uma dor intensa na perna esquerda devolveram-no à realidade! O seu amo Epafrodito batia-lhe com o duro bastão de carvalho. — Toma, bandido, assim vais aprender a ser mais cuidadoso! — gritava-lhe ele, cego de cólera, enquanto lhe batia uma e outra vez na mesma perna. Epafrodito gostava verdadeiramente do criado — na verdade pagava-lhe até uma dispendiosa educação numa escola de filosofia —, mas possuía um lendário carácter irascível e impulsivo. Epicteto, com o seu espírito razoável, servia-lhe de travão na maior parte das suas discussões com fornecedores e clientes, contudo, quando a ira do amo lhe era dirigida não havia ninguém que o protegesse. De qualquer modo, na Roma antiga, não era invulgar que o amo batesse sadicamente no seu escravo, que não passava de propriedade sua. Naquela manhã, contudo, um grupo reuniu-se em redor dos dois, mas por uma razão totalmente fora do comum. Para surpresa de todos os que assistiam ao que acontecia, o jovem escravo não abria a boca para se queixar ou para expressar qualquer dor. Limitava-se a olhar para o amo com uma indiferença que o enfurecia ainda mais. — Não te dói, insolente? Pois toma lá mais estas! — gritou o comerciante, batendo-lhe com tanta força que transpirava abundantemente. Epicteto continuava impassível, ate que finalmente abriu a boca e disse: — Cuidado, meu amo, porque se continuar a bater-me dessa maneira vai acabar por partir o bastão.
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Epicteto, o protagonista desta história, viveu entre os anos 55 e 135 da nossa era. Foi escravo durante toda a infância e obteve a liberdade graças aos seus prodigiosos dons para a filosofia. Na verdade, transformou-se num dos intelectuais mais prestigiados da sua época, com uma fama que ultrapassou a de Platão, tanto entre Romanos como entre Gregos. Mais tarde também a História lhe fez justiça e atualmente é considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos. As suas ideias deram origem a muitas das correntes de pensamento que hoje conhecemos, cristianismo incluído. Epicteto não deixou testemunhos escritos, mas os seus discípulos reuniram as suas palavras, que podemos encontrar em dois livros, o Enchiridion e os Discursos. Muitas lendas foram tecidas em redor da vida deste filósofo e uma das mais conhecidas é esta que acabei de contar. A fantasia popular explica assim a causa do seu coxear característico. Naturalmente que se trata de uma narração exagerada numa tentativa de resumir a filosofia de Epicteto, ainda que não cumpra o seu objetivo principal. A historieta leva-nos a pensar que o filósofo tinha conseguido controlar por completo as suas emoções, mas essa não era de modo algum a sua intenção. Nem o pretendia, nem isso tinha a mínima relação com os seus ensinamentos. Epicteto ensinava a ter força emocional, o que não significa «não sentir emoções negativas», mas antes «não sentir emoções negativas exageradas», e é isso que vamos aprender neste manual. Através desse controlo mental, apesar de 24
sentirem dor, pena ou irritação, os indivíduos adquirem uma confiança em si mesmos que lhes permite desfrutar das possibilidades maravilhosas que a vida oferece. Se a principal mensagem deste livro é a de que todos — sim, todos — podemos aprender a ser mais fortes e equilibrados a nível emocional, a segunda é que a aprendizagem acontece através da transformação da nossa maneira de pensar — a nossa filosofia pessoal, o nosso diálogo interno —, de uma maneira semelhante à que Epicteto intuiu há vinte séculos. Como o filósofo dizia: «Não é o que nos acontece que nos afeta, mas aquilo que dizemos acerca do que nos acontece.» Milhares de anos mais tarde, em pleno século XX, a revolução cognitiva impulsionada por grandes psicólogos e psiquiatras, como Aaron Beck e Albert Ellis, permitiu que centenas de milhares de pessoas em todo o mundo transformassem a sua mente. Também o leitor se pode juntar a elas. Vejamos mais pormenorizadamente.
A origem das emoções Costumamos ter a impressão de que os acontecimentos externos — aquilo que nos acontece — influenciam as nossas vidas, dando origem a emoções: raiva ou satisfação, alegria ou tristeza... Segundo essa ideia, existiria uma associação direta entre êxito e emoção. Por exemplo, se a minha mulher me abandona, sinto-me triste. Se alguém me insulta, sinto-me ofendido. Temos a impressão de que existe 25
uma relação direta (de causa e efeito) entre acontecimentos e emoções que poderá seguir o seguinte esquema:
Na realidade, a psicologia cognitiva, o nosso método de transformação pessoal, diz-nos que isso não é verdade. Entre os acontecimentos exteriores e os efeitos emocionais existe uma força intermédia: os pensamentos. Se me sinto deprimido pelo facto de a minha mulher me ter abandonado, isso não acontece pelo acontecimento em si, mas porque digo a mim próprio algo como: «Meu Deus, estou sozinho, que horror, vou ser um infeliz!», e estas ideias produzem em mim a emoção correspondente, neste caso, medo, desespero e depressão. São as ideias, a interpretação do abandono, o meu diálogo interno, que me deprimem, e não o facto de a minha mulher se ter ido embora. Na verdade, há homens que fazem uma festa quando a mulher os abandona! Deste modo, o esquema exato do nosso funcionamento mental será:
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É isto, exatamente, que Epicteto dizia: «Não é o que nos acontece que nos afeta, mas aquilo que dizemos acerca do que nos acontece.» Todos nós temos a sensação de que os acontecimentos dão origem — automaticamente — às emoções e este erro é o principal inimigo do crescimento pessoal. Por exemplo, dizemos frequentemente frases do estilo: «O Pepe irrita-me», e aqui estamos já a cometer o erro que referimos. O Pepe não me irrita, sou eu quem me irrita! Se analisarmos cuidadosamente o nosso processo mental, veremos que o Pepe leva a cabo determinadas ações (supostamente inconvenientes) e eu manifesto no meu interior ideias do estilo: «Isto é intolerável! Não consigo suportar!» São essas ideias que têm o poder de me irritar, não a forma de agir do Pepe que, no que diz respeito a emoções, é neutra. A verdade é que nem todas as pessoas reagem da mesma maneira quando estão com o Pepe: a umas ele irrita mais do que a outras. Há mesmo pessoas às quais nem origina qualquer tipo de mal-estar. Tudo depende do diálogo interno de cada um. É o diálogo interno o verdadeiro produtor — por vezes oculto — das emoções.
O estudante suicida Para que o conceito seja mais facilmente compreendido, passo a narrar o caso real de Jordi, um adolescente com depressão. Lembro-me que foi a mãe quem o trouxe à consulta, muito angustiada, porque o filho tentara suicidar-se há duas semanas. Tratara-se de uma tentativa real, não 27
de uma chamada de atenção. Jordi cortara os pulsos dentro da banheira enquanto os pais passavam o dia fora. Por acaso, regressaram a casa mais cedo e encontraram-no inconsciente. Quando ele se sentou à minha frente, perguntei-lhe diretamente: — Diz-me, por que razão desejavas acabar com a tua vida? — Porque tive três negativas na escola — respondeu, ao mesmo tempo que escondia o rosto com as mãos, olhando o vazio. Jordi sentia-se infeliz, invadido por um profundo sentimento de fracasso que o impedia de desfrutar da vida. Acordava diversas vezes durante a noite com uma imensa sensação de angústia no peito. Segundo ele próprio dizia, o problema eram as três negativas. Mas, como veremos mais adiante, essa não era a verdadeira causa das suas emoções. Falei com ele durante várias sessões e, aos poucos, fui descobrindo a verdadeira causa do seu mal-estar, que consistia na sua forma peculiar de pensar, o diálogo que habitualmente mantinha consigo próprio. — Compreendo, Jordi. Tiveste três negativas e isso é aborrecido. Mas creio que dás demasiada importância a isso, não? — disse-lhe eu. — Deixe-me explicar-lhe. O que você não sabe é que na minha escola não permitem passar se no final do ano nos faltarem mais do que duas disciplinas. Claro que pensei que, se calhar, não vou conseguir recuperar as três negativas. E se isso acontecer... tenho de repetir o ano! Compreende agora? Do que eu tenho medo é de reprovar o ano! — respondeu ele, irritado. 28