O FUTURO DA IMAGEM - #tocadacarla

“o destino da imagem”. ... melancolia cavernosa de Lascaux até o crepúsculo contemporâneo das imagens sintéticas. ... Temos as associações lúdicas de ...

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O FUTURO DA IMAGEM A ESTRADA NÃO TRILHADA DE RANCIÈRE W. J. T. Mitchell Tradução: Gisele Dionísio da Silva

Publicado em: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Orgs.). Culturas das Imagens – desafios para a arte e para a educação. Santa Maria (RS): Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2012.

Este texto foi originalmente escrito após uma conversa com Jacques Rancière na Universidade Colúmbia, na primavera de 2008.1 Sinto constrangimento em admitir que apenas nos últimos quatro anos, motivado em grande parte por meus alunos, é que realmente tomei conhecimento dos trabalhos recentes de Rancière. Obviamente conhecia seus primeiros escritos sobre filosofia e política, bem como tinha vaga noção de sua participação nos eventos de maio de 1968 em Paris e, em especial, de seu rompimento com Louis Althusser em virtude da questão do controle exercido pelo Partido Comunista sobre trabalhadores e estudantes naquele período crítico. Contudo, desconhecia sua tendência mais recente, voltada para questões relativas à teoria da imagem e à estética. A exemplo do trabalho inovador de Gottfried Boehm no âmbito da teoria da imagem, as análises de Rancière referentes à imagem, à relação desta com a linguagem e às implicações para a estética e a política haviam sido conduzidas tal qual um trovão distante no horizonte das barreiras disciplinares e linguísticas. Por isso me surpreendi de imediato ao constatar os vários pontos de convergência que existem entre nossas abordagens a tais questões. Compartilhamos a crença na profunda imbricação entre palavras e imagens, bem como a convicção de que a relação entre elas constitui um intercâmbio dialético, em vez de uma separação rígida em oposições binárias. Tal convergência nos levou a investigar as relações entre literatura e artes visuais, bem como as misturas de elementos que compõem formas de mídia. Por 1

Sou grato a Akeel Bilgrami, diretor do Instituto de Humanidades da Universidade Colúmbia, pela organização desse evento.

caminhos diversos, passamos a nos concentrar no que Rancière denomina “a partilha do sensível” e no que descrevo (na esteira de Marshall McLuhan) como a “razão de sentidos e signos” na mídia. Desde o início de minhas pesquisas sobre estética, estive convicto da afirmação de William Blake de que a função da arte consiste em “purificar as portas da percepção” e em eliminar as hierarquias de sensibilidade, riqueza e poder que dividem as pessoas em classes. Imagine minha animação ao me deparar com um filósofo que adaptou clássicas questões econômicas e políticas de desigualdade humana e encontrou uma forma de traduzi-las na distribuição desigual de coisas como a habilidade ou o direito de ver e de ouvir, de ser visto e de falar, de ter tempo e espaço para pensar e mover-se. Meus próprios esforços em expor as relações entre olho e ouvido, entre visão e voz nos escritos de Edmund Burke sobre estética e política, ou os territórios de tempo literário e espaço gráfico-escultural no Laocoonte de G. E. Lessing pareciam encontrar, nos trabalhos de Rancière, a aventura de um espírito irmão.2 Obviamente também estou propenso a descobrir diferenças de ênfase, método e sensibilidade em nossas abordagens, e as páginas que se seguem constituem uma tentativa de apresentar tanto as convergências quanto as divergências. O tópico que nos foi designado no colóquio de Colúmbia foi “o futuro da imagem”, e nossa tarefa básica consistiu em apresentar nossas respectivas concepções sobre essa questão, salientar as preocupações comuns que nos aproximam e comentar as diferenças entre nossos métodos e objetos de estudo. Pretendo começar, então, com algumas reflexões preliminares sobre esse tema, partindo em seguida para uma relação dos tópicos e das questões que repercutem no trabalho de Rancière, especialmente em seu livro recente The future of the image (2007), cujo título deu nome ao colóquio. Rancière certamente concordaria que esse título não é uma tradução especialmente apropriada do original em francês, o qual poderia ser traduzido, de forma mais literal, por “o destino da imagem”. Como se estivesse consciente desse erro tradutório, o autor inicia seu livro se negando a fornecer um levantamento panorâmico ou “odisseia”, “que nos conduz da glória auroreal das pinturas de Lascaux ao crepúsculo contemporâneo de uma

2

Ver os capítulos sobre Burke e Lessing em meu livro Iconology: image, text, ideology (1986).

realidade devorada por imagens midiáticas e de uma arte fadada a monitores e imagens sintéticas” (2007, p. 1). Rancière oferece, em contrapartida, reflexões sobre o “labor da arte” em imagens que fornecem suas matérias-primas. A imagem não artística constitui, para Rancière, uma simples cópia – “que basta como um substituto” (p. 1) para o que quer que ela represente. Pretendo seguir o caminho que Rancière se negou a trilhar, traçando a odisseia desde a melancolia cavernosa de Lascaux até o crepúsculo contemporâneo das imagens sintéticas. Para atribuir consistência a esse tema, gostaria de seguir esse caminho como uma trilha “animal”, que começa com os típicos bisões e cavalos de Lascaux e termina com uma imagem futurista de um animal também futurista – um dinossauro digital do filme Jurassic Park. O leitor deve estar se perguntando: por que a longa jornada da imagem desde o passado primitivo e distante ao momento contemporâneo de futuros virtuais e imaginários deveria ser ilustrada não com a “imagem do homem”, criador e observador implícito de imagens, mas com imagens de animais? Por que estas fornecem uma pista sobre toda a odisseia da imagem e nos permitem vislumbrar seu futuro? Antes de abordar essa questão, gostaria de refletir acerca das situações das imagens propriamente ditas. Dentre as diversas especulações sobre a função exercida pelas imagens de Lascaux está a noção de que constituíam uma “máquina de ensinar” ritualística, em que um cinema quase platônico era encenado antes da caça para familiarizar os caçadores com sua presa. Tal encenação produziria um ensaio virtual que garantiria, por meio de uma magia icônica e homeopática, o sucesso da caça (Lewin, 1968). Sem dúvida o ambiente esfumaçado e a ingestão de estimulantes adequados ajudariam a acentuar a atmosfera alucinógena e onírica da caverna, que passa a ser um local em que se usam imagens para projetar e controlar um futuro imediato e possível. De modo semelhante, a cena de Jurassic Park se passa na sala de controle do parque que acaba de ser invadida por um velociraptor real, não imaginário, o qual acidentalmente liga o projetor que exibe o filme de orientação do parque. O dinossauro aparece no feixe de luz do projetor no momento em que o filme mostra a sequência de DNA que possibilitou a clonagem de um dinossauro real a partir de seus restos fósseis. Se imaginássemos um bisão real galopando para dentro das cavernas de Lascaux e

ameaçando pisotear os caçadores em transe, teríamos uma versão paleolítica do efeito produzido na sala de projeção de Jurassic Park. Considere essas duas imagens, então, como uma alegoria do início e do fim da odisseia da imagem. Elas ilustram vários de nossos pressupostos correntes sobre o passado e o futuro dessa narrativa, estendendo-se desde semelhanças primitivas e pintadas a mão que ainda “bastam para substituir” os objetos que representam, até um objeto altamente técnico, um produto da computação de alta velocidade e da engenharia genética que é representado

cinematograficamente

pelo

mais

recente

avanço

em

imagem

cinematográfica – a animação digital. Diversos outros contrastes podem ser formulados: a imagem da magia primitiva com o artefato técnico-científico; o ritual mítico de um passado longínquo e a narrativa de ficção científica de um futuro possível; o bicho a ser caçado na natureza e o ser vivo clonado a ser produzido como atração de parque temático. E, no entanto, quanto mais contemplarmos essas duas imagens, mais evidente se tornará o fato de que oposições binárias entre passado e futuro, natureza e tecnologia, selvagem e domesticado, caça e cativeiro não resistem a um exame minucioso. Ambas as imagens são produções técnicas, situadas em “salas de controle” cinematográficas, bem como objetos de consumo do presente a serem “capturados” por suas imagens. Muito interessante é a inversão temporal que as duas imagens demandam. A imagem que representa o passado nesse par acaba sendo muito mais jovem que a imagem que representa o futuro. O dinossauro digital não é, tal como o bisão paleolítico, um animal que de fato exista no presente; trata-se de uma criatura típica da ficção científica, uma reanimação viva e corpórea de um animal que viveu neste planeta muito antes dos bisões ou dos artistas primitivos que os pintaram. Nesse sentido, nosso animal futurista, se não sua imagem, é muito mais antigo que os animais de Lascaux. Talvez o único contraste, então, que realmente resista à desconstrução seja o fato natural mais literal sobre os objetos representados por essas imagens: Lascaux retrata herbívoros e Jurassic Park encontra nos carnívoros sua principal atração. As funções de predador e presa são invertidas. Na imagem primitiva, somos nós que desejamos matar o objeto selvagem

representado; na imagem contemporânea e futurista, o objeto artificial criado por nós tornou-se selvagem e ameaça nos matar.

Quero retomar agora a pergunta com a qual dei início a essa discussão. Por que a odisseia da imagem deveria ser esboçada pelo animal, e por que a imagem desse animal oferece pista tão crucial para o futuro, se não o destino, da imagem? Por que, ademais, a imagem do animal aparece no início e no fim, bem como no passado e no futuro, dessa narrativa? Recordemos brevemente alguns dos principais argumentos relativos às prioridades temporais da imagem, além de sua íntima associação com o animal como figura de futuridade. Os animais têm sido, obviamente, associados a divinação, augúrio e profecia desde tempos imemoriais. Se há um futuro a ser previsto, concernente a imagens ou a qualquer outra coisa, este é delineado pela imagem ou pela realidade do animal. O que quer que seja feito contra animais será, como John Berger (1999) bem observou, feito previsivelmente contra seres humanos no futuro: domesticação, escravidão e industrialização em massa de morte, extermínio e extinção são todas experimentadas em animais antes de serem aplicadas em seres humanos, que são então reduzidos ao status de animais. Experiências são conduzidas em animais com o intuito de prever quais serão seus efeitos no corpo humano. De forma mais notável, a clonagem de animais (ovelhas, ratos, sapos e cavalos) é largamente concebida como um prenúncio da clonagem de seres humanos, sejam estes criaturas sobre-humanas purificadas de quaisquer defeitos de nascença ou doadores sub-humanos de órgãos e buchas de canhão, como aquelas dos “exércitos clonados” retratados pela saga Guerra nas estrelas. Devemos também recordar neste momento a seguinte afirmação de Berger (1999, p. 5): “o primeiro tema da pintura foi o animal. Provavelmente a primeira tinta foi o sangue animal. Antes disso, é razoável supor [como também o fez Rousseau] que a primeira metáfora foi o animal”. Temos o mito bíblico da criação, em que os animais precedem a fabricação da imagem humana a partir do barro. Temos as associações lúdicas de Jacques Derrida referentes à forma primitiva de escrita conhecida como “zoografia” (1974) e à imagem do animal como aquilo que o ser humano “segue” (2002), tanto no sentido de “vir depois” dos animais na odisseia evolutiva quanto no de “persegui-los”, tal qual um

predador caça sua presa. Temos, de modo ainda mais funesto, a narrativa arquetípica da iconofobia e do iconoclasmo: a produção de uma imagem de animal que atua como ídolo, criada (segundo a definição dos israelitas) para “precedê-los” em sua busca pela Terra Prometida.3 A imagem do bezerro de ouro é o que “basta como substituto” (para usar a expressão de Rancière) do líder desaparecido Moisés – que promete guiar os hebreus ao futuro prometido –, ao mesmo tempo em que é imediatamente denunciada por Moisés como um retorno ao passado de cativeiro e idolatria no Egito. A temporalidade da imagem animal, portanto, abarca passado e futuro, tanto o que precede o humano quanto aquilo que o guia ou o “antecede” em um tempo por vir, como uma narrativa de retorno ao Éden Utópico – onde a natureza humana finalmente alcança seu potencial – ou como um regresso (através do “culto aos brutos”) à existência cruel, brutal e curta de zoē em lugar de bios. É por isso que o gênero específico da imagem animal é tão fundamental para se compreender o futuro da imagem como conceito geral e, além disso, toda a questão da temporalidade da imagem. A imagem como tal sempre envolve a temporalidade, seja como a lembrança de um passado perdido a ser reevocado e re(a)presentado, como o presente percebido de uma representação “em tempo real” – como uma sombra, um reflexo, uma apresentação dramática ou uma transmissão televisiva “ao vivo” – ou como a imaginação de um futuro aguardado ou temido. Quando debatemos o “futuro da imagem”, então, devemos perceber que estamos considerando uma dupla imagem ou o que chamo de “metaimagem”: a imagem de uma imagem por vir. Uma imagem daquilo que ainda não chegou, mas que está no horizonte, tal qual a “besta bruta” que William Butler Yeats espiona curvando-se rumo a Belém em seu poema “The second coming” (“A segunda vinda”). Portanto, o futuro da imagem é sempre agora, na mais recente e mais nova forma da imagem, quer sejam as maravilhosas aparições de Lascaux quer seja a constatação tecnológica contemporânea do antigo sonho de produzir não apenas uma imagem “viva” de um ser vivo, mas uma imagem que é ao mesmo tempo uma cópia, uma reprodução e um ser vivo. 3

Eis as palavras exatas do Livro de Êxodo (32,1): “Mas vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão, e disse-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses, que vão adiante de nós…”. Esta cena, frequentemente apontada como o exemplo máximo de idolatria, também pode ser lida como um bom exemplo de democracia populista em ação, em que “as pessoas” comissionam, de forma consciente, um indício visível de sua união sagrada como nação.

Em nossos contatos que antecederam o colóquio, Jacques Rancière identificou corretamente esse aspecto de minha abordagem às imagens como uma espécie de vitalismo, e o contrastou com sua própria ênfase nas “operações artísticas” que “produzem seres cujo apelo consiste justamente no fato de que nada fazem e nada desejam” (e-mail, terça-feira, 8 abr. 2008). Rancière chama essa discrepância de “diferença de sensibilidade”, que decorre, inegavelmente, de uma diferença de formação. Na condição de garoto criado dentro da Igreja Católica, fui indubitavelmente doutrinado em todo o repertório de imagens animadas, desde a poética da Eucaristia, passando pelos ícones e pelas relíquias de santos, até a figura do ser humano como uma imago dei propriamente dita. Percebo certo ceticismo no comentário de Rancière acerca da noção de uma “vida de imagens”. Na verdade, compartilho esse ceticismo apesar de nutrir seu oposto – uma “suspensão voluntária de descrença” nas descrições animistas e vitalistas da imagem. Em meu livro What do pictures want? (Mitchell, 2005), até mesmo sugeri que uma forma de descrever o objetivo máximo do labor da arte em imagens poderia ser a produção de uma imagem que não desejasse nada, uma espécie de utopia estética além do desejo, um campo lúdico e (na expressão de Rancière) uma “re-distribuição do sensível” de natureza emancipatória. Mas o que poderia explicar a suspeita de Rancière relativa a uma abordagem vitalista da imagem? O mais próximo de um diagnóstico a que posso chegar encontra-se nas páginas finais de seu ensaio “The future of the image”, no livro de mesmo título. Em seu levantamento das “imagens exibidas em nossos museus e galerias nos dias atuais”, Rancière (2007, p. 22-30) identifica três grandes categorias: 1) a “imagem nua”, exemplificada por fotografias do Holocausto e por outras imagens de degradação e atrocidade, que “excluem o prestígio da dissimulação” associado ao “labor da arte” – esse tipo de imagem exige, a meu ver, uma resposta ética e política em vez de estética; 2) a “imagem ostensiva”, que insiste em “seu poder como presença pura” e emprega meios estéticos para produzir um efeito semelhante àquele do ícone religioso; 3) a “imagem metafórica”, que se dedica ao jogo crítico “com as formas e os produtos da imagética”, bem como rompe as fronteiras entre imagens artísticas e não artísticas em uma “dupla metamorfose” que transforma imagens significativas em “imagens opacas, estúpidas” –

assim, por um lado, a imagem metafórica “interrompe o fluxo midiático”, e, por outro, “recupera objetos utilitários apagados [...] com o intuito de criar o poder de uma história compartilhada neles contida”. Os principais exemplos de imagem metafórica são encontrados na instalação e na montagem de Godard, especialmente em seu filme enciclopédico e poético Histoire(s) du cinema. Duas questões chamam minha atenção no que tange aos “três modos de consolidar ou negar a relação entre arte e imagem” propostos por Rancière (2007, p. 26). A primeira é o fato de que, segundo o estudioso, “cada um deles se depara com um ponto de indecidibilidade [...] que o obriga a tomar algo emprestado dos outros”. Até mesmo a “desumanização” antiartística apresentada pela “imagem nua” vagueia pela estética “porque a vemos com olhos que já contemplaram o boi esfolado de Rembrandt [...] e equipararam o poder da arte com a obliteração das fronteiras entre o humano e o inumano, os vivos e os mortos, o animal e o mineral” (p. 27).

A segunda questão que chama a atenção é a de que esses resultados das operações artísticas dificilmente podem ser considerados como produtores de objetos que “nada fazem e nada desejam”. A linguagem do poder, do desejo e do vitalismo subjaz às descrições do próprio Rancière acerca dessas categorias: a imagem nua rejeita a separação entre arte e vida; a imagem obtusa dá vida a suas imagens tal qual ícones sagrados; a imagem metafórica produz metamorfoses. Meu palpite é o de que Rancière se refere a esse modo de falar, certamente comum em discussões contemporâneas sobre arte, mas sem endossá-lo. De fato, se investigássemos essa questão em períodos anteriores da história da arte, encontraríamos a linguagem da vida, se não do vitalismo, em todo lugar. O próprio Rancière reconstitui a genealogia da imagem ostensiva moderna ao “Cristo morto” de Manet, com seus “olhos abertos”, uma imagem que faz o Cristo ressuscitar “na pura imanência da presença pictórica” (p. 29). E o discurso artístico da Antiguidade e do início da Idade Moderna é repleto de variações do imperativo de produzir imagens “vivas”. Talvez Rancière queira vislumbrar o “labor da arte” em imagens como forma de acalmar sua tendência incorrigível de assumir vida própria, de se comportar como vírus que se

espalham e sofrem mutação mais rapidamente que nossos sistemas imunológicos conseguem evoluir a fim de combatê-los. Uma arte capaz de produzir “seres cujo apelo consiste justamente no fato de que nada fazem e nada desejam” é possivelmente uma estratégia de desmistificação, uma cura para a “praga de imagens”, inclusive o fetichismo de commodities e a idolatria do espetáculo.4 Seria um conceito de arte que não apenas funcionaria em face das tendências vitalistas e animistas inseridas no discurso estético, mas que resistiria àquelas narrativas paralelas extraídas da religião, da magia e da ciência que invocam a noção de uma imagem literalmente viva, desde a criação de Adão do barro inerte da terra ao golem judaico medieval, ao mito do monstro de Frankenstein e aos robôs e cyborgs do século XX. A versão do século XXI da imagem viva é o clone, que não constitui meramente a literalização da imagem viva, mas sua efetiva realização científica, ao menos no plano do animal. O clone humano ainda precisa se mostrar, exceto em inúmeros filmes de Hollywood e em obras de arte sombrias como The clone, de Paul McCarthy, que o retrata como a figura anônima e encapuzada do doador de órgãos – uma imagem que tem estado em circulação pelo menos desde as reflexões de Jean Baudrillard (2000) referentes ao que este denominou “clone acéfalo”. De várias maneiras, desde o famoso “homem encapuzado” de Abu Ghraib à fotografia Star gazing, de Hans Haacke (que retrata um capuz feito da bandeira norte-americana), essa figura encapuzada e sem rosto tornou-se o ícone contemporâneo da “encaração” que Rancière associa à “imagem obtusa” contemporânea. 4

Nesse ponto, é pertinente remeter ao ensaio de Walter Benjamin escrito em 1919-1920, “Categories of aesthetics” (“Categorias de estética”), no qual, como argumenta Judith Butler (2008), ele distingue a “aparência” sedutora e viva, ou símbolo mítico, da “marca” mágica. Butler (2008, p. 68) afirma: “Na medida em que uma obra de arte é viva, ela se torna aparência, mas como aparência perde seu status de obra de arte para Benjamin. A tarefa da obra de arte, pelo menos nesse momento da carreira de Benjamin, consiste justamente em romper tal aparência ou até mesmo em petrificar e imobilizar sua vida. Apenas por meio de certo grau de violência contra a vida é que a obra de arte se constitui, e, portanto, é apenas por meio de certo grau de violência que possivelmente seremos capazes de ver seu princípio norteador e, por conseguinte, aquilo que é verdadeiro sobre a obra de arte”. Reformulo a questão da seguinte maneira. Tendo em vista que uma imagem adquire as propriedades de uma forma de vida, torna-se necessário indagar acerca do tipo de vida que ela retrata. Trata-se de uma vida viral, infecciosa? Uma imitação de vida inumana ou para-humana, em uma escala que parte da célula cancerígena aos primatas mais evoluídos? Talvez assim estaríamos aptos a examinar a obra – ou, mais precisamente, o “labor” – de arte em tal imagem, podendo esta adquirir tantas formas quantas são as variedades de vida com que se depara, desde o nível celular da imunização e do anticorpo até a conjuração com o auxílio do animal totêmico, a imagem do animismo. A questão então poderia apontar o fato de que a obra de arte não busca tanto matar a imagem viva, mas sim imobilizá-la, colocá-la em um estado de animação suspensa. Ver minha discussão sobre as permutas lógicas da imagem viva em What do pictures want?, na qual proponho três contrapartidas à noção de objeto “vivo”: o morto, o inanimado e o morto-vivo (2005, p. 54).

Portanto, se existe um denominador comum entre Rancière e eu, este talvez resida em uma certa ambivalência referente ao conceito de imagem viva e ao discurso vitalista da iconologia e da história da arte. Ambos desejamos resistir a essa ambivalência, mas também quero explorá-la, ver aonde ela me conduz, no encalço (com Roland Barthes) de um fio ao centro do labirinto de imagens onde o minotauro, metade homem, metade touro, está à espera. Isso implica em certa rendição ao feitiço de imagens, artísticas ou não. Rancière e eu compartilhamos uma aversão à concepção básica do iconoclasmo: a de que uma imagem pode ser destruída (imagens, em minha opinião, não podem ser criadas ou destruídas. A tentativa de eliminar ou de matar uma imagem apenas torna-a mais poderosa e virulenta).5 Dentre outras razões, é por isso que a crítica “iconoclasta” e destrutiva vence tão facilmente diante de imagens ruins. Prefiro a estratégia adotada por Nietzsche referente aos ídolos: acerte-os com um martelo, não para destruí-los, mas para fazê-los soar e revelar seu oco ressonante. Melhor ainda, deveríamos tocar os ídolos com um diapasão (Nietzsche, 1998, p. 3), para que o som da imagem fosse transmitido à mão do observador. Rancière e eu claramente dividimos um fascínio pela relação entre literatura e artes visuais, mas acredito que concebemos o fluxo de influência e de ação como se seguisse em direções opostas. Tenho a impressão de que ele considera a literatura, em especial a novela realista, como produtora de uma nova “distribuição do sensível” que determina os mecanismos da narrativa fílmica. Seus comentários acerca da mídia e da independência absoluta da imagem em relação à especificidade do meio escandalizarão os teóricos da mídia, mas atingem um ponto crucial. Uma imagem é uma configuração ou convergência daquilo que Foucault (1970, 1992) denominou “o visível e o dizível”. O bezerro de ouro aparece tanto no texto quanto na imagem, circulando pelos meios da escultura, da pintura e da narrativa verbal. Toda imagem é realmente uma “imagem/texto” ou uma “imagem frasal”, como diria Rancière. Cabe indagar: qual termo adquire prioridade e em que sentido? Para Rancière, trata-se da palavra; para mim, da imagem. Rancière defende que a pintura holandesa tornou-se “visível” de uma maneira inovadora e moderna no século

5

Para uma abordagem brilhante dessa questão, ver Michael Taussig (1999).

XIX como resultado de um novo discurso, principalmente de Hegel. Penso que havia algo na pintura esperando ser descrito de um novo modo, esperando que a linguagem conseguisse alcançar uma figura pungente. Nesse sentido, a imagem (como sempre) antecede a palavra, prenunciando o futuro – se ao menos soubéssemos lê-lo. É o signo mais antigo, o signo arcaico, o “primeiro” signo, segundo C. S. Peirce. É por isso que as imagens não apenas “têm” um futuro vinculado à tecnologia e à transformação social, mas são o futuro visto através de um espelho em enigma. Mas quero concluir essa reflexão com o exemplo concreto de uma obra de arte que explora outra esfera comum de nossas abordagens, a saber, a relação entre estética e política. A maravilhosa instalação de Mark Wallinger, State Britain, é uma obra que transpõe a fronteira entre arte e política no sentido mais literal possível. Wallinger apresenta um grupo de réplicas feitas à mão de cartazes que haviam sido removidos (e posteriormente destruídos) pela polícia da Praça do Parlamento, como resultado de uma nova lei que proíbe manifestações políticas em um raio de uma milha do Parlamento. Wallinger notou que a circunferência desse círculo passava bem no meio do corredor central da galeria Tate Britain, o que o motivou a montar os cartazes de modo que atravessassem essa linha, assim desafiando a lei. O efeito criado pela obra é, contudo, profundamente perturbador para um vitalista como eu. Retirar as imagens de seu local próprio atribui a elas um efeito anestesiante, gerando, no todo, uma espécie de transe ou sono criogênico. Há algo de assombroso e melancólico nesse deslocamento, como se a Tate Britain passasse a ter a função de servir de mausoléu para os resquícios abandonados da liberdade britânica. Por isso, prefiro concluir o texto com uma imagem viva, uma obra de arte recente de Tania Bruguera (Figura 1) na galeria Tate Modern. A obra trouxe dois policiais montados à ponte que atravessa a sala de turbinas, onde passaram a organizar o público, demonstrando suas técnicas de controle de multidões. Por que chamo isso de imagem quando a artista declara sua intenção de resistir à imagem como uma operação à distância, como uma separação entre observador e o que é observado? Porque se trata do despertar e do revigoramento de uma imagem que tem sido “anestesiada” em sua

circulação na mídia, ao ser deslocada “da TV para a vida real” (como afirma Bruguera). Ou, melhor ainda, para um lugar entre a TV e a vida real: o espaço da Tate Modern e o regime da imagem estética. Embora desejasse que o público “não soubesse” que tudo aquilo era arte, Bruguera tinha consciência de que precisavam saber, ao menos no sentido de que estavam preparados para enxergá-lo não como uma verdadeira ação policial, mas como um evento artístico. Eles o compreenderam como uma figura, uma representação, mas uma representação na qual haviam entrado como em um ambiente. No plano de fundo da imagem, vemos que as pessoas já estão tirando fotos (Figura 1a).

De forma análoga à obra de Wallinger, tenho dificuldades em precisar o efeito do trabalho de Bruguera. Ele compartilha com State Britain uma encenação do confronto entre poder policial e a fonte básica do verdadeiramente político: a aglomeração de pessoas que podem ou não resistir ao poder que controla suas vidas. Nem Wallinger nem Bruguera engajam-se naquilo que pode ser chamado de arte de protesto ou agitprop, de natureza “diretamente política”. Pelo contrário, ambos deslocam esse tipo de arte e de ação para um espaço de contemplação. É possível interpretá-los, então, como engajados no luto por um tempo de resistência e dissensão revolucionárias que não existe mais, ou na redistribuição de nossa percepção acerca de onde as fronteiras apropriadas entre arte e vida, estética e política, estão situadas – o título da obra de Bruguera é Tatlin’s Whispers

(Os sussurros de Tatlin), um contido eco sotto voce do monumentalismo revolucionário. O regime da estética surge agora como um abrigo para uma concepção de política ameaçada e em vias de desaparecimento, e talvez como uma placa de Petri que a nutra de volta à vida. A galeria Tate Britain acolhe imagens refugiadas de seu verdadeiro lar na Praça do Parlamento, a polícia montada comportou-se bem na galeria Tate Modern, os cavalos estavam bem-treinados, como bons pastores para as ovelhas que arrebanhavam. Essa arte pode não ser propriamente política ou revolucionária, mas sim “útil”, para empregar a expressão de Tania Bruguera – útil para tornar uma das imagens mais comuns de espaço público da atualidade passível de ser experienciada de um modo novo. Trata-se também da imagem de um futuro cada vez mais provável de espaços sociais, demarcados não por “linhas de polícia” fixas e legais, mas por fronteiras flexíveis e animadas, a exemplo dos chamados “postos de controle” que surgem inesperadamente por toda a área rural dos territórios palestinos ocupados. Esse, portanto, é um “futuro da imagem” que já está diante de nós (Figura 1b).

Figuras 1a e 1b. Tania Bruguera, Tatlin’s Whispers # 5, 2008. Descontextualização de uma ação: polícia montada, técnicas de controle de multidões, público. Dimensões: variáveis. Observação da performance na exposição UBS Openings: Live – The Living Currency. Fotografia na galeria Tate Modern: Sheila Burnett. Cortesia: Galeria Tate Modern e a artista.

Finalmente, em um texto sobre o futuro da imagem, em especial sobre seu futuro político, seria estranho deixar de mencionar o surgimento de um novo ícone político e cultural que tem marcado o advento de uma nova era em nosso tempo. Esse ícone sinaliza o fim não

apenas de uma administração política, mas talvez de toda a “era de terror” e a “guerra ao terror” que dominou o mundo nos últimos oito anos. Refiro-me, obviamente, a Barack Obama e à iconografia impressionante que cerca seu rosto, seu corpo e até mesmo sua família. Apenas alguns dias após Obama ter sido eleito, os notórios pôsteres de Shepard Fairey foram associados aos seus inegáveis ancestrais da história da publicidade. Fairey emprega a mesma técnica de solarizar uma imagem fotográfica, reduzindo-a a zonas de cores primárias (vermelho, branco e azul) e combinando-a com um simples slogan verbal: “Esperança”. A similaridade estilística com os pôsteres de Lênin produzidos durante a era soviética foi acionada apenas dias após a eleição de Obama (no blogue de Peggy Shapiro na revista American Thinker), para reforçar a rotulação da direita de que Obama seria socialista, talvez até mesmo (pasmem) comunista.6 Duvido muito que essa “culpa por associação” obterá melhores resultados que as tentativas imagéticas de vincular Obama ao dito “terrorista” Bill Ayers. Ela será superada, pelo menos por enquanto, por imagens como a capa da edição pós-eleição da revista Time, que usa o programa Photoshop para retratar Obama na famosa iconografia de um entusiasmado Franklin Delano Roosevelt sentado no banco de trás de um conversível no dia da posse. A comparação histórica com a imagem de Roosevelt resistirá mais, creio eu, que o pôster de Lênin, com base pelo menos na explicação prosaica de que Obama acaba de assumir o poder por meio de uma eleição democrática, não de uma revolução violenta ou de um golpe militar, e o faz em meio à pior crise financeira desde a Grande Depressão. Ao contrário de George W. Bush, por exemplo, que explorou a tragédia nacional do 11 de Setembro para fomentar “o medo em si” e a declaração de uma interminável guerra ao terror como justificativa para um estado de emergência e para poderes executivos sem precedentes, Obama assumiu o poder com uma mensagem de esperança e o apoio inequívoco dos eleitores. O esforço mais notório de Bush para promover sua imagem consiste na célebre foto “missão cumprida”, na qual aparece vestido como piloto de caça.

6

. (Acesso em 30 de abril de 2009).

Outra razão pela qual a estratégia de culpa por associação não irá funcionar consiste no fato de que o público foi educado e imunizado contra esse tipo de tática imagética, adotado durante a guerra de imagens que, durante um ano, marcou cada fase da campanha presidencial. Um momento notável de imunização aconteceu em julho de 2008, quando a revista New Yorker divulgou uma capa retratando Obama como muçulmano e Michelle como uma revolucionária de estilo à Angela Davis.

A grande maioria de meus amigos esquerdistas ficou horrorizada com essa imagem, mas a acolhi como uma espécie de imunização iconográfica, uma dose calculada dos vírus imagéticos que circulam na esfera midiática. A imagem tinha o efeito de tornar visíveis e manifestamente ridículas as insinuações astutas da propaganda de direita. Algumas imagens (como a de Bush vestido de piloto de caça) adquirem poder apenas por ser parcialmente visíveis e facilmente repudiadas, evitando manifestação direta. Para mim estava claro que a piada nessa imagem não visava a atingir os Obama, mas os idiotas que acreditavam nesse tipo de calúnia e os críticos de esquerda que consideram a maioria dos cidadãos norte-americanos como idiotas incapazes de diferenciar ironia e sátira. A piada focava, mais especificamente, a Fox News e suas especulações despretensiosas sobre se o gesto feito por Michelle e Barack assim que este venceu a eleição do partido constituía um “punho fechado de terrorista”. A New Yorker tinha plena consciência, desconfio, de que suas intenções seriam malinterpretadas e de que revoltaria seus próprios leitores liberais, politicamente corretos e sofisticados. Com efeito, a revista se ofereceu como vítima substituta dos Obama ao fazer do cavalheiro almofadinha retratado em sua logomarca um saco de pancada para seus próprios leitores, como o cartunista da revista The Nation percebeu de imediato ao parodiá-la. O cartum mostra o cavalheiro caído no chão e a revista ofensiva queimando na lareira enquanto os Obama comemoram sua vitória no primeiro round. A New Yorker previu o futuro de sua própria imagem, convidando-o e acolhendo-o. Não se pode dizer o mesmo sobre a mutação evolucionária da foto “missão cumprida” de Bush, que rapidamente degenerou-se em uma imagem de falsidade pueril e promessas enganosas que assombrou o mandato do presidente até seu fim vergonhoso. Esse também é o caso

do cartum deplorável publicado pelo jornal New York Post em 18 de fevereiro de 2009, o qual retrata dois policiais em pé diante de um macaco crivado de balas que representa o autor do pacote de estímulo à economia proposto por Obama – tal imagem nos remete novamente ao domínio do animal, dessa vez como um avatar de imagens racistas do passado, do presente e do futuro. O cartunista Sean Delonas e o editor Rupert Murdoch obviamente negaram com veemência quaisquer intenções racistas. Aparentemente não sabiam que os negros têm sido caricaturados como macacos desde tempos imemoriais, ou que o verdadeiro autor do pacote de estímulo é também o primeiro presidente afroamericano dos Estados Unidos, ou que essa imagem se junta à crescente galeria de imagens que preveem o assassinato do presidente. Essas pessoas devem vir de um planeta onde animais não existem e onde suas imagens não antecipam nem ajudam a produzir o futuro dos seres humanos.

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