Salmos na Liturgia - Abadia da Ressurreição

Teríamos ainda a possibilidade de estudar, em se tratando de Liturgia das Ho- ras, sua distribuição nos diversos esquemas de celebração do Ofício Divi...

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OS SALMOS NA LITURGIA: A ORAÇÃO SILENCIOSA NO OFÍCIO DIVINO

D. André Martins, OSB Abade do Mosteiro da Ressurreição Ponta Grossa, julho de 2000

Introdução O nosso tema, “Os Salmos na Liturgia”, é muito amplo e permite uma grande variedade de abordagens. Por exemplo, poderíamos fixar nossa atenção sobre o motivo pelo qual os salmos foram, desde a origem do cristianismo, utilizados nas assembléias litúrgicas. Outro aspecto interessante, e mesmo valioso para a nossa vida monástica, seria um maior aprofundamento do critério de seleção de vários salmos do conjunto do Saltério. Sabemos que alguns deles foram sempre mais utilizados do que outros. Teríamos ainda a possibilidade de estudar, em se tratando de Liturgia das Horas, sua distribuição nos diversos esquemas de celebração do Ofício Divino. A liturgia da catedral procurou sempre distribuí-los conforme a hora da celebração. Para os monges esse critério não foi tão rígido. Normalmente os salmos eram cantados ou recitados por ordem numérica; quase uma leitura contínua. A execução dos salmos na celebração dos monges também poderia ser um tema interessante. Longe de ser uma forma estereotipada e rígida como em tempos posteriores, eram cantados por todos ou por um grupo, alguns recitados por um solista, outros responsoriais. Um outro elemento de grande interesse para um estudo seria as Coletas Sálmicas. Tratava-se de orações que o presidente da assembléia litúrgica, após o silêncio da salmodia, proclamava em voz alta para “reunir” a oração pessoal de cada participante 1. Vamos voltar a esse tema mais adiante. Mas nesta tarde de estudo quero me deter na oração silenciosa e pessoal que era feita terminada a salmodia. Os salmos provocavam naqueles que salmodiavam em comunidade uma oração pessoal, uma dinâmica de Lectio Divina: Deus fala e nós respondemos.

O ideal monástico de oração Para os antigos monges a tensão entre celebração e oração pessoal não existia. Numa celebração comunitária havia o momento da oração íntima e pessoal de cada 1

Para um estudo mais aprofundado: Pinell, J. Liturgia delle Ore in Anàmnesis pg. 170 ss.

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participante. Nosso Pai S. Bento, herdeiro de uma Tradição e fiel a ela dirá: “Em comunidade, porém, que a oração seja bastante abreviada e, dado o sinal pelo superior, levantem-se todos ao mesmo tempo” (RB 20,5). Para falarmos sobre a oração silenciosa feita na celebração litúrgica, é necessário fixar, de maneira muita clara, o que era o ideal monástico de oração para os pais do monaquismo, e que deve ser ainda hoje para nós. No seguimento do Senhor, os primeiros ascetas desejaram viver com grande intensidade e continuidade a palavra da Escritura: “Orai sem cessar” da Primeira Epístola aos Tessalonicenses. O mandamento do Senhor sobre a oração foi sempre muito levado a sério: “Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto; pois todo o que pede recebe; o que busca acha e ao que bate se lhe abrirá”(Mt 7,7)2. Conciliar a oração intensa e contínua com outros elementos fundamentais da vida do monge, como o trabalho e a caridade para com o próximo, foi algo que sempre provocou grandes controvérsias, desde a origem do monaquismo. O mais antigo tratado oriental sobre o tema nós encontramos em Orígenes, em seu De Oratione. Em S. Basílio3 e nos Apoftegmas4 vemos que a tendência para dedicar o máximo de tempo possível à oração vocal e aos gestos da oração, com o passar do tempo, se tornou cada vez mais forte na espiritualidade monástica oriental. Para Cassiano5, a oração é antes de tudo uma condição estável, de todo o momento. Está inserida em toda a existência do monge. Para Evágrio Pôntico 6, o homem deve ser ordenado à contemplação. Portanto, o monge se torna Isangelos, isto é “igual aos anjos”, mediante a verdadeira oração. Por isso, a verdadeira teologia para Evágrio é a mística: “Se tu és teólogo, rezarás verdadeiramente; e se oras verdadeiramente, então serás um teólogo”7. Uma característica importante, e aparentemente contraditória que aparece no monaquismo primitivo sobre a oração é que ela deve ser contínua, isto é, abranger toda a vida do monge, mas também “pura, breve e freqüente”. Aos poucos os monges foram buscando um justo equilíbrio, de modo a tornar acessível a todos o empenho de orar sem cessar, com a finalidade de que muitos não se esquecessem desse aspecto de sua vocação. Disso resultou a tendência de elaborar uma “técnica”, da qual deriva a conhecida “oração de Jesus” dos místicos bizantinos. No Ocidente, as jaculatórias estiveram sempre presentes na espiritualidade religiosa. O rosário, piedade tipicamente ocidental, também foi uma forma, não só de “substituir” a celebração litúrgica daqueles que dela não participavam, mas também de manter o religioso numa permanente “liturgia do coração”. A meditatio também teve  e tem  seu espaço singular na Tradição. Ruminar, memorizar a Palavra de Deus, também constitui um esforço de corresponder ao 2

Lc, 18, 1 (parábola do juiz iníquo e a viúva importuna); Ef, 6,18. S. Basílio, Sermo Asceticus, I, 4,4 4 Verba Seniorum, V, 12,6 5 Cassiano, colações, X,14 6 Evágrio Pôntico, De oratione, 113 7 Evágrio Pôntico, op. cit. 60. 3

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ideal da oração incessante e contínua. Para S. Bento, essa é uma das tarefas fundamentais no tempo de noviciado. O jovem iniciante aprenderá o Saltério de memória para recitá-lo durante todo o tempo: na oração litúrgica, na devoção pessoal e durante o trabalho8. Nunca é demais recordar que, para os antigos, a oração emergia da escuta da Palavra de Deus, comum ou particular. Deus fala e o homem responde. Este interroga e Deus responde pela Palavra. Não se concebia dirigir-se a Deus a não ser pela Palavra de Deus ou a partir dela. A oração desvinculada da Palavra proclamada na liturgia ou emergida da Lectio só ganhou espaço na espiritualidade cristã a partir do movimento da devotio moderna. Toda a formação monástica se fundamentava na Sagrada Escritura, pela prática da Lectio Divina, que foi sempre o elemento substancial da espiritualidade dos monges, e que acentua o aspecto bíblico da oração quer privada quer em comum. A oração monástica em comunidade se distingue sempre da secular pela sua austeridade e não tanto pelo esplendor dos ritos. Quando organizada, sem perder seu aspecto de verdadeira liturgia, os monges continuaram, em suas celebrações discretas e tranqüilas, a dinâmica da Lectio Divina. A Igreja monástica reunida, qual Esposa fiel, prolongava no tempo o louvor que o Senhor iniciara ao Pai, até seu retorno, mas num “rito” próprio que acentuava o aspecto de uma Lectio Divina. Esta será sempre sua característica fundamental. Somente muito mais tarde o “rito monástico” terá o esplendor de um basílica ou de uma catedral. Enfim, o mandamento do Senhor presente na Sagrada Escritura (Lc18,1; Mt 7,7; Ef 6,18; 1Ts 5,17) será levado muito a sério pelas primeiras gerações de monges. Essa será uma das formas privilegiada de obediência à vontade do Cristo. Procuraram sempre mais condições para realizar tal vocação. A vida separada  anachóresis  favoreceu a prática contínua da oração e determinou toda a ascese dos monges do deserto, e também das comunidades cenobíticas.

Os Salmos na oração monástica Seria supérfluo constatar que o Saltério sempre foi um alimento primário e insubstituível na oração monástica. Entretanto, houve da parte dos monges uma preocupação constante de “cristianizar” os salmos dando-lhes títulos, como no monaquismo irlandês9. A salmodia foi sempre considerada como um instrumento ideal para obter a compunção, a quietude (Hesiquia), as lágrimas e o silêncio interior. Os monges eram convidados a assimilar o texto dos salmos para fazer dele sua própria oração. As palavras do salmista deveriam ser as suas próprias palavras10.

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S. Bento, Regula Monasteriorum, 58, 5 Penco, G. La Preghiera, pg 277 10 Cassiano. Conferências. X, 11. 9

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Quando a Liturgia das Horas se organizou como oração comunitária, a partir do século IV, os salmos já constituíam uma sua parte essencial. As orações da manhã e da tarde possuíam salmos, adequadamente escolhidos, que o povo sabia de memória 11. Esta particularidade entrou também nos esquemas de Ofícios Monásticos. Sem dúvida alguma, os salmos foram rezados pelo Senhor, “enquanto passou fazendo o bem”. São orações que abrangem a vida inteira do homem de fé. Foram utilizados na celebração do Templo e nas Sinagogas. O povo da Antiga Aliança legou à Igreja esse rico patrimônio de oração. Os cristãos em suas assembléias utilizaram os salmos, mas numa nova perspectiva: sob o prisma do Evangelho. Por isso, logo sentiram a necessidade de em silêncio ou em alta voz, dirigir ao Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, na força do Espírito Santo presente na Igreja, uma oração pessoal ou que reunisse a oração de todos em assembléia, as famosas “coletas”. Homens e mulheres do Novo Testamentos, discípulos do Cristo, precisavam ler os salmos e com eles rezar sob o prisma do mistério pascal do Senhor. Outros elementos constitutivos da celebração das Horas foram tendo seu espaço. Juntamente com a Palavra de Deus proclamada, os salmos recitados ou cantados sempre foram a base de toda a celebração das Horas Canônicas, sobretudo no “Rito Monástico”.

O espírito da oração monástica No monaquismo primitivo, muito mais importante que a hora da sinaxe e de sua estrutura e conteúdo era o espírito dessa oração comum. O Ofício Copta, por exemplo era mais uma meditação feita em comum sobre a Sagrada Escritura que uma cerimônia propriamente dita. “Na origem a liturgia não fazia parte da vida monástica. Até a celebração da Eucaristia não ocupava um lugar particular. Tudo isso era atividade do clero, e não dos monges. O dever do monge era orar em seu coração sem interrupção. Este era o seu “Opus Dei”, o “Ufficium”, isto é: jejuar, vigiar, trabalhar, ter a contrição do coração e guardar silêncio12. Hoje temos o costume de diferenciar oração privada da oração litúrgica. Para os primeiros monges havia apenas uma só oração, sempre pessoal, algumas vezes feita em comum, outras vezes no segredo do coração. A oração contínua e o trabalho eram pedras angulares e o paradoxo do monaquismo primitivo. Não faltaram conflitos e busca de solução para que a natureza humana do monge pudesse viver o ideal da oração sem interrupção. Mais tarde, à medida que a liturgia foi se organizando teológica e efetivamente nas comunidades monásticas, as horas canônicas vêm auxiliar o monge em tão grande ideal de orar sem cessar. Basicamente o dia era interrompido de três em três horas aproximadamente, para que o monge tomasse alento na oração do coração, que já era feita mesmo em assembléia. As pausas de silêncio para nutrir o coração e mantê-lo em 11 12

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Martimort, A. G. La Iglesia en Oración, pg. 1092. Taft, R. La liturgia delle ore in Oriente e in Occidente, pg. 99.

oração era uma prática generalizada entre as mais diversas formas de monaquismo. A oração do coração sem interrupção levava o monge a uma maior união com Deus e o fortalecia no combate contra os demônios.

A oração silenciosa após a salmodia Nos primeiros séculos de história do Ofício Divino, Atanásio13, Etéria14 e Cassiano15 descrevem com precisão a seqüência salmo-oração durante a celebração. Todos os três mencionam, no fim da oração, uma conclusão pronunciada pelo presidente da assembléia, ou por outra pessoa competente. Após o tempo de silêncio para a oração pessoal, se proclamava a oração que reuniria a de todos: a coleta sálmica. Em S. Basílio também encontramos menção explícita de orações entre os salmos, mas não menciona as coletas como conclusão da oração silenciosa após os salmos 16. Enquanto a Liturgia das Horas se organizava na catedral sob um aspecto mais ritualístico, mais celebrativo, os monges, organizando sob sua influência o que diz respeito à distribuição do saltério, da estrutura do Ofício, ainda mantiveram a oração pessoal com suas prostrações após recitado ou cantado o salmo. A oração pessoal fazia parte de suas celebrações. Nas catedrais se compôs orações que eram proclamadas terminado o salmo17. Cassiano, porém, nos informa que as coletas sálmicas, isto é, as orações pronunciadas após a oração silenciosa, faziam parte do ofício monástico anterior ao uso na catedral. “Quando o cantor terminou o salmo, todos ficavam em silêncio, vindo imediatamente a seguir a oração.”18 Entre os séculos V e VII surgem muitas composições de orações sálmicas, cuja coleção temos até hoje. Entretanto, não encontramos menção alguma de tais orações sálmicas na Regra do Mestre. O Mestre não indica nenhuma oração após a silenciosa. Possivelmente para o Mestre, e depois para S. Bento, o Gloria Patri veio substituir a oração sálmica feita para concluir a oração pessoal de cada monge, feita sempre em silêncio. Porém, para o Mestre, o Gloria vem imediatamente após o salmo e em seguida a oração silenciosa. “Convém, ao contrário, terminá-los todos, um depois do outro, com o Gloria, de modo a não se perderem as orações intercaladas e não dar a impressão de omitir os gloria do louvor de Deus, estando obrigados, para abreviar, a dizer com negligência os salmos ininterruptamente...” 19 Quando S. Bento e a Regra do Mestre propõem a celebração da Liturgia das Horas para seus monges, a celebração do Ofício Divino tem a estrutura “oficial” da Igreja. A fusão dos elementos da celebração catredalícia e monástica já é um fato. Já

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Atanásio, De virginitate, 20 Peregrinação de Etéria, 24, 1 8. 12. 15 Cassiano. Instituições, 2, 7, 3, pg. 12 16 S. Basílio, Ep. 207, 3 17 Pinell, J, Liturgia delle Ore, pg. 170ss. 18 Cassiano, J. Instituições, VIII, pg. 13 19 Regra do Mestre, Cap. 33, 43 -44, pg. 115 14

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se tem a dimensão de Oração oficial da Igreja, oração de todo o povo de Deus. O mo naquismo urbano contribuiu muito para que ambas as tradições se fundissem 20. Sabemos que o Diretório Litúrgico da Regra de São Bento é anterior à sua composição. A suposição é confirmada pelo cap. 47, sendo possivelmente um acréscimo posterior ao texto, com a finalidade de esclarecer certos pormenores. Um outro aspecto que nos confirma ser o Ofício Divino na Regra Beneditina de “proveniência” romana e portanto “catedralícia” em alguns aspectos, é a informação que temos no capítulo 13,10: “Nos outros dias, diga-se um cântico dos Profetas, um para cada dia, como canta a Igreja Romana”. Um dos elementos típicos da Tradição Monástica que permanece e está presente na Regra de S. Bento é exatamente a possibilidade do monge, após cantar o salmo, fazer a sua oração pessoal, num breve tempo de silêncio. “Em comunidade, porém, que a oração seja bastante abreviada e, dado sinal pelo superior, levantem-se todos ao mesmo tempo”. Na Regra do Mestre também encontramos a norma da oração silenciosa após a salmodia: “Por outro lado, se dissemos que a oração deve ser breve, é para evitar que ela, prolongando-se, ocasione entorpecimento, ou que enquanto eles jazem por muito tempo prostrados, o demônio venha colocar sob seus olhos diversas representações ou venha insinuar outra coisa em seu coração”21. Cassiano, fonte de ambas as regras monásticas, relata o costume dos monges do Egito ao celebrarem a sinaxe. “Vi, ainda nessa província, o seguinte uso: chegado o solista ao fim do salmo, todos os presentes entoam, em voz alta e pausadamente Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto. Em lugar nenhum do Oriente vi coisa semelhante. Quando o cantor terminou o salmo, todos ficavam em silêncio, vindo imediatamente a seguir a oração”. 22 A Regra de S. Bento é, não obstante sua escassez de informações, favorável à existência das orações silenciosas durante a celebração do Ofício Divino. Isso, considerando-a no conjunto da tradição, à qual se insere23. D. Adalbert de Vogüé, analisando a questão da oração silenciosa-pessoal na Regra Beneditina cita O. Heiming dizendo: “O silêncio do ordo beneditino não é um argumento válido para negar a existência das orações sálmicas em S. Bento”. 24 D. Gregório Penco diz: “Após a recitação dos salmos seguia-se a oração silenciosa, sendo concluída pela coleta sálmica que, muito difundida no monaquismo primitivo, ainda será conservada por longo tempo em inúmeros manuscritos de origem cluniacense; ainda em Cluny a recitação dos salmos, da qual se nutria toda a piedade cluniacense, era freqüentemente interrompida por pausas de silêncio” 25. “Os antigos costumeiros de Cluny previam uma oração silenciosa durante a celebração litúrgica: 20

Taft, R. La Liturgia delle Ore in Oriente e in Occidente, pg. 128 Regra do Mestre, cap. 48. 22 Cassiano, Instituições, Cap. 2, pg. 13 23 De Vogüé, A. La Règle de Saint Benoit, pg. 580 24 De Vogüé, A. , op. cit. 578. 25 Vagaggini, C. e Penco, G. La Preghiera, pg. 278. 21

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‘Quando tiverem escutado o anúncio da Natividade do Senhor, prostrem-se todos de rosto no chão e cada um faça sua oração conforme a inspiração divina’. A própria recitação dos salmos era intercalada por pausas para que se dedicasse à oração silenciosa”26.

A prática da oração silenciosa na Liturgia das Horas. Sabemos que liturgia é ação. Sabemos igualmente que é objetiva. Celebramos o Mistério Pascal do Senhor Jesus. Celebrando-a somos santificados pela atualização desse mesmo Mistério; anunciamos a vinda de Cristo e somos alimentados espiritualmente, enquanto caminhamos para a Jerusalém do alto. A reforma litúrgica preparada pelo movimento litúrgico teve sua inspiração inicial na reforma monástica de D. Guéranger, abade de Solesmes. Para ele, a espiritualidade monástica é cristã. Buscando as fontes de sua espiritualidade, D. Guéranger constatou que a verdadeira espiritualidade de todo batizado é litúrgica. Portanto, a espiritualidade por excelência de todo monge é a espiritualidade litúrgica. É dela que todos nós recebemos o alimento necessário para viver nossa fé 27. O Movimento Litúrgico deu continuidade à inspiração de D. Guéranger, que preparou a reforma litúrgica da Igreja28. Celebrar bem, que significa participar ativamente da liturgia, foi, sem dúvida alguma, todo o empenho do Concílio Vaticano II29. No entanto, o silêncio na celebração, já requerido pelos documentos da Igreja, nem sempre foi levado a sério. Ainda perdura uma mentalidade de que em liturgia não há espaço para o silêncio, para “subjetividade”, como pensavam muitos. Se há um “rito” monástico, o silêncio para a oração pessoal do monge após a salmodia é elemento fundamental do mesmo. Há toda uma Tradição para nos comprovar sua existência e nos estimular em sua prática. O aspecto de Lectio divina das celebrações monásticas, me parece, fundamental. O esplendor das cerimônias no período feudal do monaquismo, teve e ainda tem ainda seu espaço, atualizado conforme o rito da Igreja. Elas também revelam uma tradição secular que herdamos. Entretanto, estão muito mais relacionadas com a liturgia das catedrais do que propriamente com a sobriedade da celebração original dos monges. Não significa que deva ser excluída de nossos mosteiros. Pode, perfeitamente, ser integrada nos valores mais autênticos de nossa tradição monástica, no que nos diz respeito, a oração silenciosa. O monge que escuta em liturgia muitas vezes ao dia a oração dirigida ao Pai, pelo Filho e no Espírito Santo, poderá perfeitamente, no profundo de seu coração, formular sua oração pessoal. Necessariamente sua oração por ser pessoal não precisa ser psicologizante, isto é, subjetiva, como dizemos. Como em sua Lectio, saberá escutar o Senhor no texto dos salmos e responder-lhe. A objetividade da liturgia jamais poderá roubar o “subjetivo” do participante. Como ser humano celebra-a com todo o seu ser, e 26

Magrassi,M. La Preghiera a Cluny e a Citeaux in La Preghiera nella Bibbia, pg.638 Neunheuser, B. O movimento litúrgico: panorama histórico e linhas teológicas ,pg. 16-23. 28 Neunheuser, B., op. cit. pg. 23-34 29 Sacrosanctum Concilium I, 10 27

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não apenas com sua inteligência que capta a ação do Mistério celebrado. Prova disso eram as prostrações feitas durante essa oração silenciosa. O corpo participava de uma maneira mais ativa na celebração. Deixar para depois da celebração as orações que brotaram da mesma, sobretudo dos salmos, é tarefa do monge enquanto trabalha, pelo menos esse foi sempre o ideal. Mas nada impede que na própria liturgia possa haver o espaço adequado para sua oração, como o fizeram gerações de monges na Antigüidade. A norma de S. Bento, fundamentada na Tradição, deve ser um critério: “em comunidade, a oração deve ser breve e pura” (RB 20,5).

Conclusão Após a reforma da Liturgia das Horas do Concílio Vaticano II, e do trabalho elaborado pelos abades beneditinos no congresso de 1973, o documento Thesaurus, aprovado a 10 de fevereiro de 1977, propôs novamente os momentos de silêncio, retomando assim a mais antiga Tradição eclesial e monástica. Diz o texto: “ No diálogo do Opus Dei não devem faltar os momentos de silêncio, necessários para que o diálogo se estabeleça verdadeiramente a um nível interior. O silêncio da comunidade orante é intervalo requerido para suscitar um outro mais verdadeiro e profundo diálogo: o Espírito orando em nós com gemidos inefáveis que palavra alguma pode expressar, dá forma à oração segundo Deus (cf. Rm 8, 26-27)30”. O Thesaurus confirma a Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas de Paulo VI em seus números 201 e 202: “Nas ações litúrgicas deve-se procurar, em geral, que se guarde também, a seu tempo, um silêncio sagrado; por isso haja ocasião de silêncio também na celebração da Liturgia das Horas. Por conseguinte, se parecer oportuno e prudente, para facilitar a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal com a palavra de Deus e com a voz pública da Igreja, pode-se fazer uma pausa de silêncio após cada salmo, depois de repetida sua antífona, de acordo com a antiga tradição, sobretudo se depois do silêncio se acrescentar a oração sálmica; ou também após as leituras, tanto breves como longas, antes ou depois do responsório. Contudo, evite-se introduzir um silêncio tal que deforme a estrutura do Ofício, ou que ocasione aos participantes mal-estar ou tédio”31. Portanto, o silêncio após a salmodia, não é uma “inovação”, não obstante proposta pela reforma do Concilio Vaticano II. Temos uma rica Tradição que nos orienta para este valor. Uma comunidade monástica, depois da prática da oração silenciosa na salmodia de seus participantes, com certeza, não será apenas fiel à Santa Regra e toda a Tradição que S. Bento herdou, mas também constatará seus frutos.

Bibliografia 30 31

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