TEMA 2 – QUAIS AS RELAÇÕES ENTRE SAÚDE E CULTURA? Texto2. Euro, etno e outros centrismos A História ocidental é bastante etnocêntrica. Revisá-la é uma forma de enxergar o que negamos e restituir o lugar da alteridade. Urpi Montoya Uriarte Uns fumam, outros bebem álcool, alguns ingerem infusões. Ao longo da História, diversos povos do mundo inventaram meios variados para atingir o que no Ocidente se convencionou chamar de “estados alterados de consciência”. Eles são geralmente vistos como normais pela sociedade que os provoca: os indianos têm consumido tradicionalmente a folha da cannabis sem considerá-la uma droga, assim como os habitantes da região andina plantaram e consumiram durante milhares de anos a folha da coca sem que esses atos fossem tratados como ilegais. No noroeste peruano, foram encontrados resíduos de folha de coca mastigada, datados em mais de 8.000 anos. Esse consumo se reveste de diversos sentidos para o homem andino – energético, terapêutico, religioso, identitário. Mas, de repente, o costume milenar se transforma: de “legal” passa a ser “ilegal”. E o etnocentrismo é um importante elemento dessa transformação. Em 1950, preocupadas com o crescimento, nos países ocidentais, do consumo de cocaína – um dos componentes químicos presentes naquela planta –, as Nações Unidas formaram a chamada “Comissão da Folha da Coca”, que tinha como meta a elaboração de um informe sobre a produção e o consumo de coca nos países andinos. Esse informe criou um consenso com relação à nocividade da folha da coca, e o ato de mastigá-la passou a ser enxergado como um vício indígena que precisava ser extinto. Afinal, provocava “alterações psíquicas”, “introspecção”, “prostração moral”, “escassa capacidade de atenção”, e, portanto, “grande prejuízo econômico”. O documento serviu de sustentação para a Convenção Única de Estupefacientes, assinada em 1961, que normatizou, entre os países assinantes, a erradicação do cultivo da coca e do hábito de mastigação num prazo de 25 anos. 1
O etnocentrismo daquela Comissão se manifestou num pequeno detalhe: a população que fazia uso da planta havia milênios sequer foi consultada. Todos os supostos efeitos da coca sobre o corpo e a mente foram avaliados a partir de uma série de prejulgamentos e especulações dos membros da Comissão, todos educados numa cultura alheia aos andinos e distante deles. Sempre que nos deparamos com costumes diferentes e os interpretamos a partir da nossa própria cultura, estamos cometendo um ato etnocêntrico. O gravíssimo problema do etnocentrismo é que ele não nos permite enxergar a lógica, as razões ou as motivações daquele que é diferente de nós, simplesmente porque não admitimos conceder-lhe a palavra, achando que bastam a nossa opinião, impressão ou julgamento. Um exemplo claro é o surgimento do nome Yucatán para designar a península do México, no século XVI. Os conquistadores perguntaram aos nativos, em língua espanhola, como se chamava aquele lugar em que tinham acabado de desembarcar. Os nativos, em sua própria língua, responderam algo que os espanhóis entenderam por “Yucatán”. E assim batizaram o local. Na verdade, o que os nativos disseram foi: “Não te entendo”. Para os colonizadores, qualquer resposta serviria, e, graças àquela incompreensão básica, o nome erroneamente dado por eles é até hoje um monumento ao etnocentrismo: “Não te entendo”. Para o etnocentrismo, tudo o que é diferente se torna inferior, feio, ridículo, injusto, cruel, selvagem ou irracional. Ao julgar as distinções de forma negativa, o etnocêntrico passa a querer modificar os costumes ou crenças diferentes, em nome da superioridade dos seus próprios costumes ou crenças. Dito de outra forma: ser etnocêntrico é acreditar que só existe uma verdade (a nossa) e uma beleza (a nossa), assim como também só existem a nossa justiça e a nossa racionalidade. Em O que é etnocentrismo, o antropólogo Everardo Rocha escreve: “Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”. Todos os povos do mundo tendem a ser etnocêntricos. Os cheyenes (índios das planícies norte-americanas) se autodenominavam “os entes humanos”; os akuáwas, 2
grupo tupi do sul do Pará, consideram-se “os homens”; os navajos, grupo indígena norte-americano, também se intitulavam “o povo”; os xavantes acreditam que seu território tribal está situado bem no centro do mundo, tanto quanto os incas dos Andes peruanos achavam que sua capital, Q’osqo (ou Cuzco, como foi pronunciada a palavra pelos conquistadores espanhóis), era o “umbigo do mundo”. Por que tendemos ao etnocentrismo? Na medida em que todos os indivíduos são educados em uma cultura, e que toda cultura distingue o bem do mal, o feio do bonito, o certo do errado, é natural sermos etnocêntricos quando deparamos com outros povos. Mas há diversos graus de etnocentrismo. Alguns povos simplesmente menosprezam quem é diferente e dele quer se afastar. Outros, além de menosprezar, acham que têm o dever de transformá-lo, e chamam isso de “civilizar” ou “evangelizar”. E há aqueles que vão ainda mais longe: menosprezam e não acreditam que seja possível transformar quem é diferente. Ele deve ser eliminado. Durante a Idade Média – após a queda do Império Romano e com o fechamento do Mediterrâneo pela expansão islâmica nos territórios que o margeiam – , a Europa se encerrou em si mesma, trazendo como resultado uma nova forma de conceber o Outro. Sem possibilidades de conhecer esse Outro, os europeus passam a imaginá-lo, mas sempre de forma deturpada, “anormal”. Surgem, assim, as imagens dos povos de gigantes, pigmeus, amazonas, canibais, entre outros. Com a expansão das navegações nos séculos XV e XVI, os europeus acabaram se defrontando com um continente até então desconhecido para eles: a América. Pensando inicialmente que tinham desembarcado nas Índias, chamaram os nativos de “índios”. E mesmo tendo percebido logo que não estavam nas Índias, isso não os impediu de continuar chamando os que aqui moravam com esse nome imposto e equivocado, “índios”. Quanto etnocentrismo por trás de denominações generalizantes que uns acham que podem impor aos outros! Tupis, Chibchas, Cheyenes, Astecas, Incas, Mapuches, Maias, Dakotas, Sioux, Inuits e tantos milhares de outros povos foram todos colocados numa única categoria porque não interessava ao europeu conhecer 3
suas particularidades ou singularidades. Conhecer o Outro não estava entre as prioridades do europeu conquistador. Ver e tratar alguém como inferior autorizou os europeus a nomear (mudando os nomes que os povos davam a si mesmos), excluir, conquistar, dominar, matar, sempre em nome de sua suposta superioridade cultural e religiosa. Ao não se permitirem perguntar, escutar e dialogar, os etnocêntricos se vêem privados de aprender sobre os povos diferentes, e, assim, aprender sobre si mesmos. Ao ver no Outro apenas um “índio”, os europeus dos séculos XVI e XVII não acharam necessário perguntar, por exemplo, o que era aquela série de canais subterrâneos, para que servia, como funcionava. Simplesmente deixaram o assunto pra lá – porque era “coisa de índio” –, enquanto se enchiam de pó, terra e lama durante séculos. Hoje, sabemos que esses canais foram construídos pelos incas com uma altíssima tecnologia hidráulica, para irrigar locais onde agora há apenas desertos (a estreita franja litorânea do Peru atual). Lamentavelmente, não temos mais a quem perguntar como é que eles conseguiam juntar água (e de onde) para fazê-la passar por esses canais. O etnocentrismo passado alimenta nossa ignorância no presente.
Urpi Montoya Uriarte é professora de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e autora de Entre fronteras: convivencia multicultural, Lima, siglo XX. Sur/Concytec, 2002). Fonte: Revista História – Biblioteca Nacional - 01/12/2012
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