DOR E CULTURA

A cultura é como uma “lente” através da qual se vê o mundo. A aquisição desta “ lente” é gradual e deve-se principalmente à família, ao sistema educac...

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DOR E CULTURA PIMENTA, C. A. M. & PORTNOI, A. G. Dor e Cultura. In: CARVALHO, M. M. Dor: um Estudo Multidisciplinar. Summus, São Paulo, 1999, p.159-73 “A quantidade e a qualidade da dor que sentimos é determinada pelas nossas experiências prévias e de quanto bem nos lembramos delas; pela capacidade de entender suas causas e compreender suas conseqüências. Ainda, a cultura em que estamos inseridos tem papel essencial em como sentimos e respondemos à dor”. (Melzack & Wall, 1991) Dor no Processo de Socialização Dor foi considerada como uma emoção por Aristóteles e como uma sensação por Descartes. A dor enquanto experiência culturalmente aprendida, embora incluída na definição atualmente aceita sobre dor, não tem sido enfatizada pelos estudiosos do tema. Cultura pode ser definida como “um complexo de conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras habilidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade”. As culturas são “sistemas de idéias compartilhadas, sistemas de conceitos, regras e significados que subjazem e são expressos nas maneiras pelas quais os seres humanos vivem”. Este conjunto de princípios, implícitos e explícitos, ensina ao indivíduo o modo de “ver” os fatos, como percebê-los, como vivenciá-los emocionalmente, como lhes atribuir significados e como se conduzir diante deles. A cultura é como uma “lente” através da qual se vê o mundo. A aquisição desta “lente” é gradual e deve-se principalmente à família, ao sistema educacional, às instituições religiosas, aos

modos de produção e às instituições de trabalho (Helman, 1994). Grande parte dos valores, crenças e atitudes relativos à saúde é adquirida durante a infância no processo de socialização, que é quando os padrões de comportamento característicos de um grupo são aprendidos. Valores são objetivos sociais considerados como desejáveis de obtenção; são também as normas, princípios ou padrões sociais aceitos e mantidos pelo indivíduo e pela sociedade. Valor é algo cuja importância foi estabelecida ou arbitrada de antemão. Crenças são convicções íntimas culturalmente compartilhadas, são noções pré-existentes sobre a realidade, são formas de assentimento que, embora objetivamente insuficientes, subjetivamente se impõem com grande evidência. Atitudes são disposições estáveis e duradouras que implicam na tendência a responder às pessoas, instituições ou eventos tanto positiva quanto negativamente, isto é, envolvem a necessidade de classificar e categorizar. Comportamento pode ser definido como respostas observáveis objetiva e publicamente. Em síntese, valores são os objetivos e princípios de uma sociedade, crenças são noções prévias e convicções íntimas compartilhadas culturalmente e atitudes são disposições organizadas para a ação que se refletem diretamente no comportamento de indivíduos e grupos. (Chaplin, 1986; Lazarus & Folkman, 1984; Ferreira, 1986). O processo de socialização é essencial ao desenvolvimento de valores, crenças, atitudes e comportamentos relativos à dor. A internali-zação destes elementos culturais inicia-se na infância e é denominada socialização primária. O processo de internalização de aspectos do mundo familiar é realizado como “único mundo possível” e não como “um dos mundos possíveis”. Disto resulta que os aspectos 1

culturais internalizados na infância são muito mais arraigados do que os que se originam da socialização secundária. Socialização secundária é a internalização dos “outros mundos possíveis”, isto é das diversas subculturas institucionais tais como escolas, profissões, trabalhos, etc. Estas subculturas constituem realidades parciais que contrastam com o “único mundo possível” da cultura familiar e da socialização primária, o que implica que certos conteúdos, para serem devidamente internalizados, deverão se sobrepuser a outros já existentes (Berger, Luckman, 1996). É importante ressaltar que fatores como genéticos, a idade, o sexo, a aparência, a personalidade, a inteligência, entre outros, interferem, de modo crucial, na internalização da realidade objetiva. No entanto, “a cultura exerce importante influência em muitos aspectos da vida das pessoas, incluindo suas crenças, comportamentos, percepções, emoções, língua e linguagem, religiões, estrutura familiar, alimentação, vestuário, imagem corporal, conceitos de espaço e tempo, além das atitudes em relação à doença, dor e outras formas de infortúnio” (Helman, 1994). Enquanto unidade social básica, a família possui função mediadora entre as demandas individuais e as normas sociais. Para o indivíduo, representa o grupo primário e a primeira fonte significativa de comparação e aprendizado, passíveis de influenciar a atenção dada aos estímulos dolorosos e às lembranças de experiências anteriores. Para a sociedade, a família responde pela formação dos comportamentos precoces relativos à dor permitindo que certas respostas sejam reforçadas e outras ignoradas ou mesmo punidas. Os métodos de educação infantil das diferentes culturas influenciam ativamente a formação de condutas e expectativas frente à dor na idade adulta. O estoicismo diante da dor em meninos e homens é um componente cultural associado a valores como coragem e virilidade, enquanto que a

expressão de dor em meninas e mulheres é mais tolerada por representar fragilidade e vulnerabilidade (Meinhart; McCaffery, 1983; Bates, 1987). A dor é parte integrante de todos os relacionamentos precoces e se associa a sentimentos de acolhimento e conforto, punição e culpa. Desde a infância o choro induzido pela dor provoca respostas de ajuda na mãe ou em terceiros. Crianças quando se machucam e expressam sua dor costumam ser levadas ao colo, acariciadas e consoladas e, quando se “comportam mal”, costumam ser castigadas, taxadas de “más” e induzidas a sentimentos de culpa e arrependimento. Cabe ressaltar que a dor infligida pelo “castigo” corporal representa uma forma de expiação da culpa (Engel, 1959). Tolerância à Dor e Cultura A bagagem cultural tem um poderoso efeito na tolerância à dor, uma vez que estímulos que produzem dor insuportável para uma pessoa podem ser perfeitamente toleráveis por outra. O conceito de dor atualmente aceito compreende três componentes: o sensitivodiscriminativo (sensação física), o afetivomotivacional (emocional) e o cognitivoavaliativo (pensamento). A informação dolorosa é transmitida da periferia para o sistema nervoso central e, ao atingir as estruturas encefálicas, interage com fatores emocionais e culturais que podem interferir e modificar a percepção da informação inicial. A experiência dolorosa resulta da interpretação do aspecto físico-químico do estímulo nocivo e da sua interação com fatores emocionais e culturais individuais que estejam de alguma forma relacionados à dor tais como o humor, experiências anteriores, crenças, atitudes, conhecimento, significado simbólico atribuído à queixa dolorosa, entre outros. A apreciação da dor é uma experiência privada e subjetiva que, como descrito anteriormente, não resulta apenas das características da lesão tecidual (Melzack; Wall, 1991).

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As variações na experiência dolorosa entre as pessoas se devem, entre outros fatores, a diferenças nos limiares de dor. Os limiares de dor são medidos através da aplicação de estímulos (choque, calor, pressão) de intensidade crescente, a uma pequena área da pele. O limiar de percepção à dor representa a menor intensidade em que o estímulo passa a ser percebido como doloroso. A tolerância à dor é a menor intensidade em que o estímulo passa a ser percebido como desconfortável a ponto do indivíduo se retrair e/ou solicitar sua interrupção. Embora o limiar de percepção à dor seja muito semelhante entre os indivíduos, a tolerância à dor varia muito e está relacionada a fatores sensoriais (extensão e localização da lesão tecidual, fatores genéticos (relativos ao sistema nociceptivo e de modulação da dor), emocionais (medo, raiva, ansiedade, depressão), culturais (aprendizagem, experiências anteriores, significado simbólico da dor) e sociais (possíveis ganhos secundários de ordem econômica, social e afetiva). Frente à ampla gama de fatores envolvidos na apreciação e expressão da dor, a sensação de desconforto resultante da estimulação nociceptiva tende a variar muito entre os indivíduos. Os profissionais, cientes do caráter multidimensional, individual e privado da experiência dolorosa, devem atentar que os doentes sejam vistos como autoridades sobre sua dor). Os fatores culturais parecem interferir de maneira determinante sobre os limiares de dor. Existe uma estreita relação entre as reações fisiológicas dos indivíduos e as atitudes relacionadas à dor desenvolvidas durante o processo de socialização. A comparação de limiares de percepção à dor, tolerância à dor e resposta galvânica da pele de donas de casa pertencentes a diferentes grupos étnicos (pioneiros americanos, judeus, italianos e irlandeses) revelou que as diferenças de limiar de percepção à dor não foram significativas, mas a tolerância à dor e as respostas galvânicas da pele apresentaram diferenças

significativas. Essas diferenças se mostraram compatíveis com a diversidade atitudinal frente à experiência dolorosa, previamente conhecida nesses grupos. As mulheres descendentes de italianos apresentaram menor tolerância à dor do que as americanas e as de origem judaica (Sternbach; Tursky, 1965). Em população semelhante à descrita anteriormente, a comparação de outros parâmetros fisiológicos (batimentos cardíacos, potencial e resistência galvânica da pele, temperatura facial e respiração) reforçou o achado de que as diferenças fisiológicas entre os grupos étnicos estudados se comportavam de maneira paralela às suas atitudes com relação à dor (Tursky; Sternbach, 1967). Diferentes grupos étnicos podem se assemelhar na maneira como expressam a dor, entretanto, os fatores que influenciam a expressão individual podem ser bastante distintos. Quando as expressões de dor de pacientes com dores faciais pertencentes a diferentes grupos culturais (negros, irlandeses, italianos, judeus e portoriquenhos) foram comparadas, a análise dos resultados demonstrou que, para a maioria dos aspectos da comunicação da dor, existia uma homogeneidade entre os grupos. No entanto, os fatores que influenciam a expressão apresentavam-se heterogêneos dentro de cada grupo (Lipton; Marbach, 1984). O efeito cultural passa a ser mais evidente no que se refere aos limiares de tolerância à dor. Os indivíduos tendem a mudar significativamente seus padrões de comportamento de acordo com sua associação a diferentes grupos A tolerância à dor de mulheres judias e protestantes foi comparada em dois estudos distintos. No primeiro estudo as pessoas foram tratadas como estudantes voluntárias para participar de uma investigação científica e eram informadas que seu grupo religioso tolerava menos a dor que outros grupos religiosos. No segundo estudo, foram tratadas como membros de um grupo religioso e, em subgrupos, foram informadas que seu grupo tinha como característica tolerar mais 3

ou menos dor do que outros grupos religiosos, deixando claro que a comparação era entre judeus e protestantes. No primeiro estudo apenas as mulheres judias revelaram aumento nas médias de tolerância à dor, e, no segundo, tanto as judias como as protestantes aumentaram sua tolerância à dor (Lambert; Libman; Poser, 1960). Comparações entre grupos tendem a aumentar a tolerância à dor. Os limiares de tolerância à dor induzida por choque elétrico foram comparados entre homens agrupados por diferentes graus de identificação de acordo com a nacionalidade, sexo, religião, vocação, idade, etc. Os limiares foram avaliados através de duas séries de choques, sendo que entre a primeira e a segunda série, os indivíduos recebiam informações falsas sobre o nível de tolerância à dor de seu grupo de referência. Estas informações aumentaram os limiares de tolerância na segunda avaliação, sendo que, quanto maior o grau de identificação maior foi o aumento na tolerância à dor (Buss; Portnoy, 1967). A presença de modelos pode influenciar os limiares de dor. A avaliação de indivíduos expostos a modelos que simulavam diferentes níveis de desconforto e susceptibilidade à dor demonstrou que sujeitos expostos a modelos tolerantes à dor aceitavam mais choques do que aqueles que observavam modelos intolerantes, não tinham modelo ou possuíam um modelo controle. Os registros de medidas autonômicas como resposta galvânica da pele e batimentos cardíacos, entretanto, não revelaram diferenças significativas entre os grupos. Se esses registros forem considerados índices de desconforto, esse estudo mostrou que os indivíduos que aceitaram choques de maior e menor intensidade experimentaram o mesmo nível de desconforto (Craig; Neidermayer, 1974).

Significado Cultural da Dor O aprendizado social é essencial no desenvolvimento dos significados atribuídos à dor dentro do contexto cultural. Este aprendizado se inicia na unidade familiar e se modifica, integra e mantém, na convivência social mais ampla. Em grande parte das culturas, a dor é considerada como uma das possíveis fatalidades que podem ocorrer a seus membros. Diante de uma experiência dolorosa os indivíduos costumam se perguntar: “Porque isto aconteceu comigo?” ou “O que eu fiz para merecer isto?” Em busca de respostas para estas questões recorrerem não apenas à ciência, mas às religiões, às crenças e aos valores morais de sua cultura. As religiões desempenham um papel importante no processo de socialização. Elas representam um conjunto organizado de crenças e práticas, cuja finalidade é a de responder pela orientação ética, filosófica e ideológica de um determinado grupo. As religiões moldam a percepção que o indivíduo tem de si mesmo e também sua resposta à dor. A fé religiosa pode auxiliar muito na tolerância à dor, mas pode, também, levar o indivíduo a interpretar a dor como punição e procurar, em preces e rituais, o perdão para possíveis erros (Wolff; Langley, 1968; Meinhart; McCaffery, 1983). Essas concepções sobre dor foram observadas em estudo realizado em nosso meio, onde cerca de 10% das 800 pessoas entrevistadas considerou, entre outras possibilidades, a vivência de dor como um meio de purificar a alma (Teixeira; Shibata, Pimenta, Corrêa, 1996). Se a dor for vista como punição divina, os indivíduos tentarão experimentá-la sem queixas para que se transforme numa forma de expiação para aliviar sentimentos de culpa. Se for interpretada como conseqüência de transgressões morais, procurarão a cura através de penitências, jejuns ou preces. Se for atribuída à malevolência de terceiros (através de feitiçaria ou encantamentos) tentarão alívio

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de maneira indireta, através de rituais ou exorcismo (Helman, 1994). Para determinadas culturas a dor possui um conteúdo sagrado. Em algumas regiões da Índia, ainda hoje, existe um ritual onde se escolhe um indivíduo como representante do poder dos deuses para abençoar as crianças e os campos de cultivo. Para a realização deste ritual, ganchos de aço são presos por cordas sob a pele e músculos das costas do escolhido, que é então alçado ao alto de um veículo especial que o leva de aldeia em aldeia, balançado-o em grandes giros, sustentado apenas pelos ganchos. Durante todo o ritual ele não demonstra o menor sinal de estar sentindo dor, ao contrário, parece estar em estado de exaltação. Ao final do período cerimonial, os ganchos são retirados e o indivíduo é tratado com as cinzas que se encontram nos altares das aldeias (Kosambi, 1967). Em outras culturas, a tolerância à dor se inclui nos valores morais que fundamentam a identidade de seus membros. Os bariba, um pequeno grupo étnico na África Oeste, são conhecidos por não manifestarem comportamentos de dor, mesmo quando sujeitos a ferimentos, rituais de iniciação e trabalhos de parto. A base da identidade bariba reside na adequação da resposta à dor, isto é, no estoicismo. Quando questionados, evitam falar sobre a dor preferindo discorrer sobre honra e coragem, valores que são enfatizados ao longo do processo de socialização, especialmente durante a circuncisão e a clitoridectomia (Sargent, 1984). Existem culturas onde as crenças em determinadas práticas relacionam-se diretamente com a percepção da dor. Na África Leste, existem indivíduos que, sem anestesia ou outras drogas, submetem-se a uma operação, chamada “trepanação” na qual o couro cabeludo e músculos subjacentes são cortados para expor uma grande área do crânio. Enquanto o crânio é raspado o indivíduo fica sentado calmamente segurando uma vasilha sob o

queixo para aparar as gotas de sangue. Esta operação é culturalmente aceita como um procedimento que produz alívio de dores crônicas (Melzack; Wall, 1991). Comunicação da Dor e Cultura A comunicação é parte essencial do processo de socialização. A dor, embora experiência solitária, só pode ser comunicada e assim compartilhada, através de comportamentos manifestos (incluindose a ausência de reações). A reação inicial à dor, em geral, é involuntária e instintiva, manifestando-se através de um distanciamento súbito da fonte de dor. As reações voluntárias envolvem a remoção da causa da dor, o tratamento dos sintomas e a intervenção de terceiros, sendo que, justamente por envolverem outras pessoas, são estes os comportamentos que têm, entre outras, a função de comunicação da experiência dolorosa e são susceptíveis à influência de fatores sociais e culturais (Helmann, 1994). A dor pode ser comunicada1 através comportamentos motores (retorcer-se, bater os dentes, etc.); verbais (gritar, gemer, queixar-se, etc.) sociais (retração do contato social, alteração no desempenho de papéis, etc.) e mesmo pela ausência de comportamento manifesto, ocultando ou suprimindo sinais de dor extrema (Zborowski, 1969). A comunicação da dor varia de acordo com a bagagem cultural. A avaliação das diferenças nas respostas à dor entre pioneiros americanos, judeus, italianos e irlandeses revelaram que cada grupo apresenta sua própria configuração de atitudes em relação a estímulos dolorosos e à expressão da dor. Os pioneiros americanos tendem a apresentar uma orientação mais fleumática, centrada no problema e na ajuda do médico; os judeus 1

Manifestações neurovegetativas, tais como taquicardia, palidez, suor, etc. embora úteis na comunicação da dor, não são aqui incluídas por serem involuntárias (nota das autoras).

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costumam manifestar preocupação com as implicações da dor e descrédito nas medidas paliativas; os italianos expressam, geralmente, desejo de alívio imediato e os irlandeses tendem a inibir expressões de sofrimento e de preocupação com as conseqüências da dor (Zborowski, 1952). A compreensão da dor comunicada também sofre a influência dos fatores culturais. A comparação de descritores verbais de dor entre orientais (chineses) e ocidentais (americanos e escandinavos) revelou que existem dimensões da dor que são compartilhadas por estas culturas: tempo, intensidade, localização, qualidade e potencial de cura. Entretanto, os conceitos contrastantes de dor “real” e dor “imaginada” (enquanto conflitos psicológicos que se converteriam em dor percebida) são específicos das culturas ocidentais, enquanto que o conceito de “suantong” que engloba dores ósseas, musculares, articulares e odontológicas é tipicamente chinês (Moore; Dworkin, 1988). As diferenças culturais interferem na avaliação que a equipe de saúde faz da dor do paciente. Nos Estados Unidos o modelo cultural de resposta à dor, isto é, o comportamento esperado e valorizado pelos profissionais de saúde, assemelha-se ao dos americanos de origem européia. Espera-se que os doentes sejam calmos, estóicos e que se retraiam quando a dor se torna intensa. Comparados a estes, os americanos de origem mexicana são considerados como queixosos, que demandam alívio imediato para sua dor. As diferenças culturais entre os membros da equipe de saúde e o paciente acabam induzindo à subestimação da dor do paciente. (Calvillo; Flaskerud, 1991). Dor Oncológica e Conceitos Culturais As crenças, o conhecimento e as atitudes dos doentes sobre dor e analgesia influenciam a apreciação, a expressão e manejo da dor e há, na literatura, diversas relatos clínicos desse conceito. Informações

errôneas, medos infundados dos doentes sobre os efeitos colaterais dos analgésicos, medo do desenvolvimento de tolerância e de habituação ao fármaco são freqüentes entre os doentes com dor e câncer e estes conceitos podem influir desfavoravelmente na resposta aos regimes terapêuticos, mesmo que adequadamente propostos. Estudo sobre o significado atribuído à dor pelo doente oncológico observou que doentes que julgavam que a presença de dor era sinal de avanço da doença neoplásica, experimentaram dores mais intensas do que os que não faziam esta relação (Ahles; Ruckdeschel; Blanchard, 1983). Em inquérito populacional acerca das concepções sobre o controle da dor do câncer, que envolveu 496 indivíduos de uma cidade da América do Norte, observouse que a dor oncológica foi imaginada como muito intensa ou extremamente dolorosa por 48% dos entrevistados. Deles, 72% concordava com a frase "a dor no câncer pode se tornar tão forte que a pessoa pode considerar interromper a vida a prolongar o tratamento". Mais de 50% da população demonstrou preocupação com os conceitos de tolerância, dependência psicológica e confusão mental oriundas dos opiáceos (Levin; Cleeland; Dar, 1985). Achados semelhantes foram descritos por outros autores. Entre 82 doentes com dor de origem oncológica 20% tinha preocupação, de moderada a elevada, com o desenvolvimento de dependência psicológica e 23% apresentava preocupação com a tolerância medicamentosa. Encontraram correlação positiva entre a intensidade da dor e a preocupação com o desenvolvimento de tolerância (Jones; Rimer; Levy; Kinman, 1984). Em estudo com 103 doentes com dor relacionada ao câncer, em tratamento domiciliar observou-se que, em 83% dos doentes, as medicações foram utilizadas menos freqüentemente que o recomendado. Em doentes internados em 6

hospitais, isto ocorreu em 60% dos casos. As razões apontadas para a baixa adesão ao tratamento foram: sensação de que a dor não poderia ser tratada, medo de viciar, ocorrência de tolerância e confusão com as doses. A família exerceu papel chave no cuidado ao doente em casa. As atitudes dos familiares sobre dor e analgesia influíram no manejo do quadro álgico. É a família, apoiada nos conhecimentos, crenças e valores que possui sobre dor e analgesia, que decide o que dar e quando medicar. Foi observado que a família tem dúvidas sobre o conceito de administrar os remédios antes que a dor apareça, tem medo de que o doente fique viciado e sente que é sua obrigação evitar que isto aconteça. Suportados por essas concepções os familiares escondem os remédios e tentam limitar a quantidade da medicação utilizada (Ferrell; Scheneider, 1988; Ferrell; Ferrell; Rhiner; Grant, 1991; Ferrell, Cohen, Rhiner, Rozek, 1991; Ferrell, Ferrell, Ahn, 1994). Estudo realizado em nosso meio tinha como hipótese que os doentes possuíam lacunas de informação e crenças errôneas sobre dor oncológica e analgesia e que isto poderia interferir na vivência de dor, o que de fato pôde ser observado (Pimenta, 1995). Foram avaliados 57 doentes com dor neoplásica utilizando-se inventário composto por oito assertivas que visou identificar a opinião dos doentes sobre as questões: a dor oncológica pode ser aliviada; os remédios só devem ser tomados em casos de dores intensas; com tempo, o vício é inevitável; deve-se tomar a menor dose possível para deixar altas doses para o futuro (tolerância); utilizar analgésicos de rotina é melhor do que só quando há dor; as intervenções não farmacológicas são efetivas e analgésicos são perigosos pelos efeitos colaterais. A 8a assertiva avaliou a concepção de que os doentes são medicados em excesso. A nota máxima para cada assertiva foi 10 e o total de pontos 80. Encontrou-se que o conhecimento sobre dor oncológica e analgesia foi muito baixo. Os doentes

acreditavam que: deve-se tomar a menor quantidade possível de remédios para deixar altas doses para o futuro quando a dor é pior (média=2,5), que analgésicos só devem ser tomados quando a dor é muito forte (média = 3,6) e que os remédios para dor são perigosos (média=3,7). A crença de que os indivíduos com câncer que tomam remédios para dor ficam viciados foi também muito importante (média = 4,8). Essas médias indicaram que grande parte dos doentes entendia a dor no câncer como incontrolável e que esta seria, fatalmente, muito mais intensa nas fases finais da evolução da doença oncológica. Os doentes julgavam que os remédios utilizados para controlá-la eram muito fortes e perigosos e que analgésico só se usa quando há dor intensa. Analisando-se a existência de relações entre a intensidade da dor e o conhecimento e a atitude sobre dor oncológica e analgesia encontrou-se correlação negativa. Esta correlação indicou que quanto menor o conhecimento sobre dor oncológica e analgesia, foi maior a intensidade da dor. A confirmação da hipótese de que as opiniões e a percepção do doente sobre sua doença e tratamento repercutem na vivência do quadro doloroso são de extrema importância para subsidiar a atuação educativa, visando melhor controle da dor. A influência de diferenças culturais e de linguagem na apreciação da intensidade da dor oncológica e na interferência desta nas atividades de vida diária, humor e relacionamento com outras pessoas, não foi observada em estudo que envolveu 1106 americanos, 324 franceses, 147 chineses e 267 filipinos. A intensidade da dor e os prejuízos nas atividades de vida diária (sono, atividade física, trabalho e deambulação), no humor, no relacionamento interpessoal e na apreciação da vida, foram avaliados por meio de instrumento de auto-relato. Não se observaram diferenças significativas entre os entrevistados. Estes dados são surpreendentes. Os autores consideram que há muito a se investigar sobre em que 7

tipos de dor, em quais domínios da vivência dolorosa e com que magnitude os aspectos culturais influenciam a queixa álgica (Cleeland; Serlin; Nakamura; Mendoza, 1997). Conclusão A influência dos aspectos culturais na vivência e expressão da dor é assunto inquietante. A compreensão da evolução e das tendências futuras dos conceitos sobre a gênese e manutenção da dor é fundamental para o estabelecimento de estratégias visando ao controle e prevenção das queixas álgicas. Dor aguda e crônica são experiências cotidianas no ambiente das instituições de saúde, de trabalho e familiares e, de sua vivência, resultam alterações biológicas, psíquicas, sofrimento, incapacidade para o trabalho e para outras atividades sociais. Dor é um fenômeno cuja etiologia e manifestação são multidimensionais, com bases teóricas advindas de varias ciências. Na apreciação do fenômeno álgico aspectos sensoriais, afetivos e sócio-culturais estão imbricados de modo indissociável. Este modelo multidimensional nos remete a que as intervenções para o controle da dor devam englobar esta multidimensionalidade. Bibliografia AHLES, T. A; RUCKDESCHEL JC; BLANCHARD EB. The multidimensional nature of cancer-related pain. Pain, v.17, n.3, p.277-88, 1983. BATES, M. S. Ethnicity and pain: a biocultural model. Social Science in Medicine, v. 24, n.1, p. 47-50, 1987. BERGER, P.L.; LUCKUMAN, N.T. A sociedade como realidade subjetiva. In: BERGER, P.L.; LUCKUMAN, N.T. A construção social da realidade . Vozes, Petrópolis, 1996, p.173-97. BUSS, A. H.; PORTNOY, N. W. Pain tolerance and group identification. Journal

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