Tempo em Bergson Luiza Maria Conti Especialista em Filosofia Clínica
Palavras Chave: Tempo, Duração, Intuição, Exames Categoriais, Bergson
Diante do diagnóstico de um possível melanoma, a partilhante relata: “São mais ou menos 16.00 horas e acabei de tirar o curativo. É incrível como um pedaço minúsculo da lesão possa conter o destino da nossa vida futura. Continuo surpreendentemente calma... Ninguém desconfia de nada, consegui manter segredo. Pensei e sempre ‘coincidentemente’ passei os olhos na Duração de Bergson: ‘Para se prolongar a vida deve-se inventar muitas vezes novos meios e outras direções’. Não é nisso que penso atualmente? Que posso mudar?”
O objetivo desta nossa apresentação é analisar o tempo como um tópico dos Exames Categoriais na Filosofia Clinica. Para tanto, iniciaremos com os gregos antigos que o entendiam a partir dos seus deuses. Em seguida, explicaremos a atuação do tempo dentro dos Exames Categoriais. A Filosofia de Bergson e sua concepção do tempo será o terceiro tópico analisado. Finalmente, buscaremos o vínculo entre essa concepção e a da Filosofia Clínica. Os gregos antigos concebiam o tempo como uma tríade guardada pelos deuses: Aion, Cronos e Kairós. Cada um desses elementos tinha um significado embora representasse desdobramentos do tempo. Aion representa a eternidade, envelopando todos os outros. Ele pode ser entendido, segundo Deleuze, em Lógica do Sentido, como “o instante sem 1
espessura e sem extensão que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos, que compreendem uns com relação aos outros o futuro e o passado.” (DELEUZE, 2007, p.169) Cronos aponta para o limite terreno, hora do cronômetro. É o mensurável, o que passa e carrega consigo tudo e todos ao envelhecimento e à degeneração. Está associado ao corpo e ao deus Saturno, devorador de seus filhos, bela simbologia da passagem do tempo. Kairós, por sua vez, remete ao tempo psicológico, ao amadurecimento interno, significando oportunidade e mudança. É um momento rápido, de criação; efêmero. De acordo com Marilena Chauí, em Introdução à História da Filosofia, se esse instante não for “agarrado no momento certo, no instante exato (...) a ação não poderá ter sucesso e fracassará.” (CHAUI, 2002, p. 503) Podemos lembrar o dito popular: “uma vez que o cavalo selado passa, é necessário montá-lo”. Como sabemos, na Filosofia Clínica, o Tempo é a 4ª Categoria, depois do Assunto Imediato e Ultimo, Circunstância, Lugar e anterior à Relação, que associada àqueles dá a primeira aproximação para a anamnese do partilhante. Ela nos informa como esse lida com o tempo á medida em que ele relata a sua historicidade. Assim, o tempo, para a Filosofia Clinica, não é único, ele não se restringe ao cronológico. Os referenciais dos partilhantes variam, por isso é da maior importância a escuta atenta do desenrolar dessa historicidade pelo filósofo clínico.. Cada partilhante é singular e singular é sua relação com o tempo. Para uns, o tempo é lento e custa a passar; para outros, é rápido demais; há ainda aqueles que não conseguem se ater ao tempo do relógio, tendo por conseguinte dificuldade em sua vida pessoal ou profissional. Em suma, a relação do partilhante com o tempo é, entre outras, um dos esteios da sua subjetividade. Para exemplificar, citaremos um poema de Fernando Pessoa, escritor português da primeira metade do século XX. Nesse poema, o eu lírico une o passado ao presente, rompendo, de maneira poética, a cronologia. Leiamos o poema:
Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te. Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! Eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora. PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio. São Paulo: Companhia das Letras,1998, p 72
Essas análises nos levam à idéia que não é qualquer concepção de tempo que atende à expectativa da Filosofia Clinica. Não é à toa minha escolha recair sobre Bergson. No final do século XIX e início do XX, o filósofo francês expande a concepção de tempo, rompendo com o cientificismo – haja vista o positivismo de Comte - , rompendo com o misticismo ,enfim , com os dogmas do período. As idéias de Bergson influenciam as artes; elas estão presentes nas infinitas gradações da música de Debussy assim como no passado revivido pela 3
memória, na obra de Proust , Em busca do tempo perdido. Além das artes, Bergson influenciou as idéias de William James como mostra a volumosa correspondência entre eles, propiciando mudanças importantes na Psicologia. Na Física, são conhecidos seus diálogos com Einstein. Esses pontos de contato mostram a importância e abrangência do pensamento de Bergson. Neste trabalho, o enfoque recai sobre sua concepção de tempo. Ele não o entende como imóvel, ou seja, algo que possa ser captado de modo estanque e congelado como faz o método científico, na experimentação, a fim de explicar a realidade. O tempo bergsoniano é Duração. Em Duração e Simultaneidade, uma de suas obras mais importantes, a Duração é explicitada como uma “continuidade do que não é mais no que é”. Os estóicos já prenunciavam essa idéia ao afirmar que o tempo não existe, pois o passado já passou, o futuro ainda virá e o presente, quando mencionado, já é passado. Falemos aqui, também, da consciência. Na visão de Bergson, ela é entendida como espírito, uma evolução da natureza que chegou ao Homem. Essa evolução é ponto de intersecção que, focando a memória, mas com os olhos no devir, é sinônimo de criação. Ela ultrapassa a matéria inerte, obstáculo que se opõe a esse movimento. A percepção da Duração é a intuição, ou seja, é o espírito visto pelo espírito, a consciência do Eu profundo. Explico: é um instante, jorro de novidade e criação, entendido por mim como epifania. É importante salientar que não se trata de uma idéia religiosa, dogmática e sim a concepção de uma consciência expandida, uma nova abordagem da metafísica que, diferente das anteriores, não se localiza fora do tempo. Para Bergson, a metafísica não é inatingível. Alcançá-la é uma tarefa árdua, só conseguida por poucos heróis e místicos, na intuição. A inteligência do senso comum, feita para dar conta da vida do ponto de vista utilitário, fica aquém da intuição, pois essa inteligência, tentando alcançar o objeto móvel, o congela,visando seu objetivo. Ao agir dessa forma, a inteligência é puro pragmatismo e não percebe com clareza a mobilidade do tempo. Assim, a leveza, característica de um espírito sutil, é necessária para a percepção do movimento do tempo.
Coloca-se nesse momento o nosso último tópico: a relação entre o tempo em Bergson e a Filosofia Clínica. Escolho três itens para relacioná-los. Não tenho a intenção de esgotar o assunto, entendendo a sua amplitude e complexidade, mas sim apontar algumas possibilidades de relação. A primeira refere-se à maneira como o partilhante compreende a função do tempo em sua vida. Ao contar sua história no momento presente, o partilhante, às vezes, desliza para o passado ou para o futuro. Ele não vive, necessariamente, na clínica, o tempo marcado pelo relógio. Ele o condensa, o modifica, enfim, ele o singulariza. Retomo aqui, o poema de Pessoa que no presente revive o passado da infância, nos versos: Eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora. Retomo também a idéia de Duração bergsoniana, “ a continuidade do que não é mais no que é”. A prática clínica nos ajudou a compreender os versos do poeta e as idéias do filósofo. A segunda possibilidade de relação aponta para o fato de, no momento de relatar sua história, o partilhante, às vezes, compreender ou intuir algo que modifica o seu caminhar para ele problemático. A clínica, local fora da dimensão pragmática da vida, permite isso. A intuição em Bergson exige, do mesmo modo, um olhar que ultrapassa o senso comum. O terceiro ponto de relação indica a necessidade do filósofo clínico respeitar a singularidade do partilhante. Esse filósofo deverá ter uma sutileza de espírito que, quanto mais trabalhada e elaborada na prática, reverterá em benefício do seu partilhante. Como Bergson afirma a respeito do movimento, o filósofo clínico deve ser capaz de perceber a singularidade do movimento vital do seu partilhante. Isso dá à sua atividade uma dimensão criativa que o vincula à arte e não simplesmente à técnica. De todas as artes, penso ser a dança a que expressa melhor o movimento que se dá entre o filósofo clínico e o partilhante. Os passos, no início, ainda técnicos, aos poucos se sincronizam, harmonizando-se: a sintonia se estabelece; já não se sabe quem é o filósofo clínico e quem é o partilhante. A partir desses encontros, as pessoas não serão as mesmas.
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Concluindo, quero deixar claro a importância das visões do tempo aqui apresentadas que, desde a antiguidade clássica até a filosofia e a poesia modernas, assinalam o passado como húmus, matéria de um possível potencial criativo, que incide no presente e projeta o futuro. Rememorar, então, não deve ser apenas um saudosismo, mas sim uma prática terapêutica, na qual se misturam todos os tempos, dando ensejo a um instante de compreensão que pode levar a um movimento criativo e à mudança..
Referências bibliográficas AIUB, M. Para Entender Filosofia Clínica: o Apaixonante Exercício do Filosofar. Rio de Janeiro: Wak, 2004. BERGSON, H. Matéria e Memória: Ensaios Sobre a Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ____________. Simultaneidade e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ____________ . Cartas, Conferências e outros Escritos (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural,1979. CHAUI, M. Dos Pré- Socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DELEUZE, G. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007. PESSOA, F. Ficções do Interlúdio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.