Artigos OS DOGMAS MARIANOS. O FUTURO DA EXPERIÊNCIA CRISTÂ *
The marian dogmas: the future of the christian experience Teresa Forcades I Vila** RESUMO: É conhecida a afirmação de Karl Rahner: o cristão do século XXI será místico ou não será que, ao que parecer, parafraseava uma frase atribuída a André Malraux: o século XXI será religioso ou não será. Pode-se dizer também: O cristianismo do século XXI será teologal ou não será. A autora deste artículo se propõe falar não do futuro do “cristianismo”, mas do futuro da “experiência cristã”. A palavra ‘experiência’ nos recorda que nossa pergunta sobre o futuro não pode ignorar o espaço de liberdade e de amor irredutível que constitui nossa interioridade. O recurso à interioridade não implica em uma renúncia ou um menosprezo da dimensão política da fé, mas em um reconhecimento de suas raízes mais autênticas: o compromisso social e político, sem o qual o cristianismo não tem futuro nem no século XXI nem em nenhum outro, é simultâneo e indissociável da experiência pessoal do amor de Deus. E nesse sentido, a autora desenvolve a tese que: A experiência cristã no século XXI será mariana ou não será. PALAVRAS CHAVE: Experiência; Virgem; imaculada; cristão; maternidade. ABSTRACT: It is well known the statement of Karl Rahner: the Christian of the 21st century either be mystic or will not be; paraphrasing this opinion, a phrase has been attributed to André Malraux: the 21st century will be religious or it won’t be. It could be affirmed also: the Christianity of the 21st century will be theological or it won’t be. The author of this article proposes to speak not of the future of “Christianity”, but the future of the “Christian experience”. The word ‘ experience ‘ reminds us that our question about the future cannot ignore the space of freedom and love which is irreducible as it
* Esta é uma condensação realizada por Dolors Sarró do artigo publicado originalmente na revista espanhola Encrucillada 175 (2011) 511-526, e concedida pela autora a nossa Revista Studium. ** TERESA FORCADES I VILA, espanhola de Barcelona, licenciada em Medicina pela Universidad de Barcelona em 1990,especialista em Medicina Interna pela Universidade Estatal de Nova York- EUA, master em teologia protestante pela Universidad de Harvard, doutora em teologia pela Facultad de Teología de Catalunya , doutora em Saúde Pública pela Universidade de Barcelona e posdoutorado em teologia na universidade alemã de Humboldt (Berlin). Publicou entre outros livros: La teología feminista en la historia(2007), Valors femenins emergentes (2003), La Trinitat, avui (2005), Los crímenes de las grandes compañías farmacéuticas(2006), Ser persona, avui: Estudi del concepte de “persona” en la teología trinitària clàssica i de la seva relació amb la noció moderna de llibertat(2011),La teología feminista en la historia (2011), Está en nuestras manos (2015).
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constitutes our interiority. The use of interiority does not imply to renounce or disregard the political dimension of faith, but a recognition of its more authentic roots: the social and political commitment, without which Christianity has no future even in the 21st century or any other, it is simultaneous and inseparable personal experience of the love of God. And in this sense, the author develops the thesis that: the Christian experience in the 21st century will be Marian or will not be. KEY WORDS: experience, Virgin, immaculate, Christian, maternity
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A figura de Maria tem tido uma relação difícil tanto com o cristianismo progressista em geral como com a teologia feminista muito em particular. A exaltação da figura de Maria se associa com frequência a grupos e movimentos católicos de tendências sociopolíticas conservadoras que advogam o modelo de família patriarcal e tendem a legitimar as injustiças extremas do sistema econômico imperante como se fossem lei de vida. Em contraste com esta desconfiança revolucionaria para com a mariologia, é necessário afirmar que o texto bíblico que mais clara e profundamente apoia à teologia da liberação e a sua opção preferencial por os pobres não é outro que o Magnificat de Maria de Nazaré. Maria, sentindo-se grávida de Deus, proclama que o Todo-poderoso ‘derruba do trono aos poderosos’, ‘exalta os humildes’, ‘aos famintos cumula de bens’ e ‘aos ricos os despede de mãos vazias’. Um cântico politicamente muito pouco correto que cantamos cada dia nas vésperas em honra à Mãe de Deus. Apresentarei uma leitura dos quatro dogmas marianos: Maria mãe de Deus (Theotokos), Maria virgem, Maria imaculada e Maria assunta, que situa a figura feminina de Maria como referência e catalizadora de uma experiência cristã à altura dos desafios que coloca o século XXI. 1. Maria mãe de Deus (Theotokos): concilio de Éfeso, séc. V (431) O título de Theotokos é a primeira afirmação dogmática da igreja referida à Maria . Título muito debatido nos primeiros séculos do cristianismo; de fato, todos os dogmas cristãos tem sido precedidos por séculos de caloroso debate teológico, de polêmica, de lutas e desqualificações pessoais, com o exilio e a excomunhão e inclusive, pela execução por parte do poder civil dos que detinham opiniões contrarias. O objetivo desses debates e o sentido da formulação dos dogmas é evitar que o mistério de Deus fique limitado por qualquer universo conceitual concreto, ao utilizar formulações que obriguem nossa razão a ir mais além de si mesma. A passagem mística só é possível desde a razão, ainda que a ultrapasse.
O dogma trinitário (uma só natureza, três pessoas) e o cristológico (uma só pessoa, duas naturezas) tem obrigado uma e outra vez à razão humana a enfrentar-se com seus próprios limites e a descobrir a própria grandeza no gesto de reconhecê-los. O anônimo do século XIV fala de ‘a nuvem do não saber’ e Kierkegaard do ‘suicídio da razão’, porém para ambos a dimensão mística é uma dimensão antropológica irrenunciável e eminentemente positiva, cujo reconhecimento é um sine qua non para a teologia. Nossa linguagem sobre Deus é sempre insuficiente porém nunca indiferente. Que significa, pois, afirmar que Maria é ‘mãe de Deus’? Se Deus é o Absoluto, como pode ter mãe? Já no século V, Nestório não tinha nenhuma clareza sobre o assunto e considerava que o título que correspondia à Maria não era Theotokos, mas Christotokos, por ser somente mãe da natureza humana de Cristo. Cirilo de Alexandria considerava que Maria não havia gerado nenhuma ‘natureza’, nem divina nem humana, mas que havia dado à luz a uma ‘pessoa’, que –como já havia definido Nicéa - era plenamente Deus, por tanto Maria podia ser chamada ‘mãe de Deus’. A fé cristã afirma que em Jesus é Deus mesmo quem nasce no espaço e tempo de nossa história. Assim, se poderia ver claramente que Deus não criou ‘a história’. Deus criou condições necessárias para que a ‘história’ existisse, porém a noção de história pressupõe um diálogo entre Deus e sua criatura; a história é o espaço comum (de Deus e da humanidade) que dá sentido à Criação. Isso já foi expresso pela teóloga do barroco Maria Jesus de Ágreda (16021665). Em sua obra A mística cidade de Deus afirma que a maternidade de Maria é o lugar teológico de nossa liberdade. Nossa missão como pessoas, à imitação de Maria, é ‘dar a luz à Luz’, gerar Cristo no mundo, e o único modo de fazê-lo é concebendo-o antes em nós por obra - e graça- do Espírito Santo. Esta doutrina é o motivo pelo qual Maria é imagem da igreja. Na economia divina, Maria - que nem é, nem foi, nem será ‘pessoa divina’- não está ‘subordinada’ a Deus porque Deus nos busca como ‘amigos’, não como ‘súditos’. Deus não podia encarnarse em Maria sem seu ‘sim’ livre. Não podia violentar nem a Maria nem a nós, porque Deus é Amor (defender que Deus pode realizar atos de desamor é uma contradição). Afirmar que ‘não pode’ amar, no caso de Deus é o mesmo que dizer que ‘não quer’ porque Deus é total e somente aquilo que quer ser. Deus é totalmente livre e nos fez a nós para que também o sejamos com nossa ativa participação e desejo, igual mutatis mutandis como Maria não foi mãe de Deus sem seu querer. Deus é totalmente livre porque é totalmente Amor. Nós somos livres na medida exata em que amamos.
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Maria de Ágreda expressa assim a tomada de consciência de Maria de Nazaré, esse ponderar tranquilo e lúcido do anúncio do anjo assumindo sua liberdade frente a Deus: “Considerou e penetrou profundamente esta grande Senhora o campo tão espaçoso da dignidade de mãe de Deus para comprar-lhe com um fiat; vestiu-se de fortaleza mais que humana e gostou e viu quão boa era a negociação e comércio da divindade. Entendeu as sendas de seus ocultos benefícios, adornou-se de fortaleza e formosura; e tendo conferido consigo mesma e com o paraninfo celestial Gabriel a grandeza de tão altos e divinos sacramentos, estando muito capaz da embaixada que recebia, foi seu puríssimo espírito absorto e O evado em admiração, reverência y sumo intensíssimo amor do próprio Deus”. Maria é sujeito ativo de todos os verbos desta citação exceto dos do final: “seu espírito foi absorto e O evado”.
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Maria de Ágreda continua descrevendo como o ato de amor livre e consciente de Maria de Nazaré foi o que possibilitou que de seu coração surgissem três gotas de sangue que foram parar no útero e foram o principio material e por sua vez símbolo e expressão do amor de Maria, do dom total, livre e consciente de si sem o qual a encarnação não teria sido possível. A encarnação, segundo Maria de Ágreda, é o resultado da união do Espírito de Deus com o espírito e a carne de Maria. Seu fiat não é seu consentimento para que Deus ‘tome seu corpo’ e se encarne nele. É diálogo interpessoal, união amorosa de duas pessoas livres: a divina do Espírito e a humana de Maria. Deus no teria podido encarnar-se em Maria sem seu amor ativo e consciente. O mistério da encarnação é mistério do amor interpessoal entre Deus (Espírito Santo) e Maria, e nela, cada um de nós. O mistério de Maria é o da nova criação pascal antecipada. A teóloga de Ágreda se fixa nas palavras que Maria dirige ao anjo Gabriel: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.” e se pergunta qual é esta ‘palavra de Deus’ a que se refere Maria. O evangelho de João começa: “No principio existia a Palavra”. Maria de Ágreda, como Tomas de Aquino, relaciona o fiat de Maria com a primeira palavra que Deus pronuncia na bíblia: “Haja luz” (fiat lux). De que ‘luz’ se trata? a citação não pode fazer referência à luz solar porque os astros não tinham sido criados. Essa luz - que faz emergir o cosmos das trevas do caos - é o Logos concebido como “princípio de inteligibilidade” da criação”. O Logos, alfa e ômega da criação, Logos-Palavra que existia desde o principio, segunda pessoa da Trindade, não ‘criado’, senão como ‘condição de possibilidade’ da criação, de que aquilo que não é Deus possa existir e tenha um
sentido. A diversidade da criação e o ‘não’ associado às coordenadas de espaço e tempo que a caracterizam (aqui não é além; hoje não é amanhã) são somente possíveis porque na realidade imanente de Deus existem desde o principio uma forma de ‘diversidade’ e uma forma de ‘negação’’: o Pai não é o Filho e o Filho não é o Pai . A existência do Logos-Palavra caracterizado pela ‘receptividade pura’ e pela ‘alteridade’ possibilita a existência da criação como ‘receptora’ e verdadeiramente ‘distinta’ de Deus. No principio do Gênese, Deus diz: fiat lux. Quando chega a plenitude dos tempos, Maria diz: fiat mihi secundum verbum tuum… e dá a luz à Luz. Só então a criação se pode considerar completada, quando o Logos - Luz habita nela de forma histórica e pessoal. Nossa missão é a de ‘dar a luz à Luz’. O Logos não pode existir no mundo sem nossa colaboração. A maternidade de Maria é extraordinária e única em sua historicidade. Porém, a encarnação e a redenção somente chegam ao seu pleno objetivo à medida em que cada um de nós nos dispomos livremente para o diálogo amoroso com Deus como faz Maria. O cume da criação iniciado em Maria estará completo quando cada um de nós faça como elas o fez e expresse desde o núcleo mais íntimo da própria liberdade o fiat que gera à Luz no mundo. O núcleo decisivo da maternidade de Maria para o cristianismo do futuro é a tomada de consciência de até onde chega o escândalo cristão da encarnação: Além de relacionar-se conosco como Pai (o dador), Deus se relaciona com nós como Filho (o que recebe). Esta é a dimensão trinitária da experiência cristã: Deus é pura doação (Pai, pura recepção (Filho) e puro compartilhar (Espírito). A tarefa de co-criação à qual Deus nos chama, passa pela descoberta da própria responsabilidade na relação com Deus e por a radicalidade da reciprocidade. 2. Maria virgem: concílio de Latrão, séc.VII (649) Que sentido teria pensar que Maria concebeu Jesus por meio de uma relação sexual com José o com outro varão, e que depois ou simultaneamente Deus fez o que O que havia sido ou estava sendo concebido fora ‘ Filho de Deus’ e ‘Deus verdadeiro’? O problema de uma explicação assim seria surpreendente, já que a explicação que concebeu por obra do Espírito Santo é igualmente incrível, mas que suas consequências existenciais, aquilo que esta forma de conceber a encarnação estaria afirmando sobre o potencial de nossa relação com Deus e sobre
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a tarefa de dá-lo à luz no mundo (nossa cristificação) vincularia a possibilidade de realizar-nos humanamente à possibilidade de ter relações de casal. Ou não. A plenitude de nosso potencial humano não depende de se temos ou não casal ou de se temos ou não relações sexuais; depende somente de nossa capacidade de amar a Deus e as demais optando preferentemente pelos pobres. Se Maria não tivesse podido conceber Jesus sem José ou sem outro varão, nossa cristificação não só ficaria vinculada a uma relação de casal, mas a uma relação de casal heterossexual (a única capaz de gerar Filhos biológicos). O dogma da virgindade de Maria situa nossa realização na intimidade de nossa relação com Deus (amando aos outros).
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Por isso o casal cristo é sacramento do amor de Deus no seio da comunidade de fé. O tema da realização pessoal sem casal foi historicamente um ponto particularmente difícil para as mulheres. A sociedade tem tendido a definirnos em função da maternidade e nós, mulheres, temos o costume de associar a felicidade com uma vida de casal plena. Limito-me a assinalar que na medida em que seja certo que nós, as mulheres, tendemos em geral a temer mais a solidão que a dependência e os homens o contrário, o tema da virgindade concebida como espaço interior irredutível e incomunicável e a partir do qual es possível amar livremente, pode ser para nós, mulheres, particularmente relevante. Minha irredutibilidade pessoal é o espaço que não posso entregar nem a Deus mesmo: é a condição de possibilidade da co-criação , o núcleo de minha ‘alteridade’ em relação a Deus e a toda criatura, minha dignidade inalienável, minha liberdade. Não é um espaço que tenha que proteger. Apenas é preciso reconhecê-lo. Quanto mais centrada está a pessoa neste espaço, mais capacidade tem de se doar e de amar. O ponto decisivo da virgindade de Maria para o cristianismo do futuro é indissociável de sua maternidade: à maternidade corresponde a noção de ‘cocriação’ e à virgindade a noção de “liberdade radical’ que a possibilita. 3. Maria imaculada: Pio IX (8 de dezembro de 1854) Afirmar que Maria foi concebida sem pecado original equivale não só a afirmar que o pecado não faz parte de nossa humanidade criada por Deus (quer dizer, pode-se ser plenamente humano sem ter nada que ver com o pecado, como Maria e Jesus) mas também que Deus continua garantindo que - apesar dos horrores passados e presentes - todos podemos chegar um dia a viver sem pecado, a ser plenamente humanos, plenamente divinos.
O pecado não é nunca fruto da liberdade mas unicamente do medo à liberdade e a amar como Deus ama. Pela ausência de pecado (do medo) é a condição de possibilidade de esta plenitude para a qual avançamos. A vida sem pecado de Maria e de Jesus é uma antecipação escatológica na história do que todos poderemos assumir com a graça de Deus: nossa plena divinização , nossa plena humanização . Assim, a dificuldade de ver em Maria um modelo de humanidade plena não teria fundamento? Teria saído do nada? A dificuldade não nasce da ausência de pecado em Maria mas da ausência de tentação. Maria, como Jesus e como nós, teve tentações. Teve que decidir em cada momento concreto de sua existência que é amar. Que Maria nascesse sem pecado original não implica que não pudesse pecar. Poderia. Como Jesus, que também poderia (cf. Mc 1,13 e paralelos). A resposta livre e responsável de Maria tornou possível o advento de Deus na história sem o que não teria havido redenção. Nesse sentido João Paulo II proclamou Maria a corredentora. A dinâmica da corredenção, como a da co-criação , é única em Maria, porém não é exclusiva dela mas que se faz extensiva a todos nós. A redenção não pode se realizar sem nosso “sim” livre e responsável. Deus nos criou sem nós, porém não nos quer salvar sem nós (Santo Agostinho). Essa é nossa dignidade. Nenhum dogma afirma que Maria não fora tentada. A historicidade plena e total de Jesus é a mesma que tem Maria, à qual Simeão anuncia que uma espada lhe atravessará a alma (a psyché). A dor que Maria sofre ao pé da cruz é autentica, como a de Jesus em Getsemani. Maria, como Jesus, não entende tudo; não está protegida contra a dúvida, a angústia; tem que decidir o que é amar em cada momento, também ao pé da cruz, quando o amor parece vencido sem remédio. No início do evangelho de Lucas encontramos um díptico que estabelece um paralelismo e um contraste entre os anúncios do anjo a Zacarias e a Maria. Nos dois casos ou mensagem divina parece impossível de realizar já que não se ocorrem as condições necessárias, os dois demonstram sua perplexidade e sua objeção. E, apesar do estrito paralelismo das objeções, Zacarias é castigado e fica mudo e Maria canta as maravilhas de Deus. A diferença entre Zacarias e Maria, implícita no relato é que Zacarias absolutiza seu horizonte de compreensão e Maria não. Maria dá testemunho com seu fiat, da sua confiança radical que é condição sine qua non de nossa relação com Deus. Viver da fé dispõe a comprometer-nos por amor mais além da própria capacidade de compreensão. O ponto clave da imaculada conceição de Maria para o cristianismo do futuro é que toda pessoa é totalmente redimível porque seu pecado não pertence
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a sua essência e porque o único que Deus pede é um ato de confiança sempre a seu alcance. 4. Maria assunta: Pio XII (1º de Novembro de 1950)
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O dogma da Assunção nos remite al sentido e al valor que outorgamos a nossa corporeidade e ao mundo material em seu conjunto. É sabido que a cosmovisão e a epistemologia cristãs são incompatíveis com o dualismo. Isso não significa que não possamos encontrar múltiplos exemplos de menosprezo do corpo entre os autores cristãos do passado e do presente, já que o dualismo parece a postura mais lógica e a que tem prevalecido na filosofia ocidental em suas versões materialistas e idealistas. As versões materialistas se reduzem ao mundo do que é ou existe na matéria considerando o espírito como pura quimera sem correlação com a realidade; as versões idealistas exaltam a pureza do espírito menosprezando a matéria como realidade contingente e limitada. As versões dualistas do idealismo têm sido as mais influentes já desde Platão. O mundo material é concebido como o que limita o despliegue do espírito. A visão cristã, em troca, considera a matéria em seu conjunto e nosso corpo em particular como totalmente transparentes à ação do Espírito. O que se opõe ao Espírito não é a matéria, mas o medo à liberdade . A criação inteira, em sua materialidade, foi feita por Deus para ajudar-nos e não para ser um obstáculo em nossa tarefa existencial, que é o encontro com Deus, a amizade com Deus que se concretiza na amizade com os que nos estão próximos, especialmente com os desprotegidos. Tudo o que é vivo e o que existe é irmão/ã no sentido de São Francisco; tudo exceto o pecado, fruto da renúncia à nossa responsabilidade de co-criadores. Acabada a criação, Deus a declara “boa ” ou inclusive “muito boa ” (Gn 1,10ss); a matéria criada é totalmente dinamizada pelo Espírito. O que chamamos de mundo material não é uma prisão para nós, mas condição de possibilidade para experimentar tudo aquilo para o que fomos criados: amar a Deus e amar-nos uns aos outros. E nesta tarefa, a matéria é nossa aliada, já que só através de seus limites espaço-temporais podemos ser conscientes de nossa capacidade de optar, de eleger uma direção ou outra na vida e em cada situação. O dogma da Assunção afirma que Maria foi levada ao céu em corpo e alma. São Paulo anuncia a transformação de nosso ‘corpo terrenal’ em um corpo ‘espiritual’ e no credo proclamamos a ‘ressurreição da carne’.
Na terra e no céu, a alma se mantem inseparável do corpo e não podemos conceber uma pessoa sem ambos. O ‘corpo’ é o correlato da dimensão ‘esse in’ da pessoa, de sua liberdade , da virgindade concebida como espaço irredutível que a individualiza e lhe permite ser verdadeiramente distinta de todas as outras pessoas y distinta de Deus. Afirmar este dogma é afirmar que o modo como Maria viveu sua identidade pessoal na terra foi totalmente livre. Maria foi totalmente ‘ela’ sem medo e sem pecado; assumiu plenamente sua responsabilidade de cocriadora na contingência do mundo e nas vicissitudes de sua não fácil trajetória vital. Usando as expressões paulinas podemos afirmar que o ‘corpo terrenal’ e o ‘corpo espiritual’ de Maria se correspondiam em tudo, coisa que a nós não nos ocorre por causa da culpa do pecado, porém que se deu em Jesus. O que significa em concreto a correspondência - no caso de Jesus e de Maria - ou a transformação - em nosso caso - do ‘corpo terrenal’ em ‘corpo espiritual’ não é possível saber enquanto estamos no mundo do tempo e do espaço. Em todos os casos, a podemos afirmar que a alma não habita no céu sem o corpo. A única coisa que fica excluída do céu é o pecado. O ponto decisivo da Assunção de Maria para o cristianismo do futuro é a revalorização da unidade indissociável corpo/espírito que da um sentido absoluto a nossa história e no permite interpretá-la como uma sucessão indefinida de segundas oportunidades. Não há uma segunda vida no espaço e no tempo que me permita aprender a amar melhor, porque os limites de possuir somente uma não é um obstáculo, mas precisamente a única maneira ou condição de possibilidade para aprender a amar. Sem limites não aprenderíamos nunca a amar de verdade. sem risco, nosso amor não valeria nada. Amar é um gesto sensível ao alcance de todos que só depende da capacidade de confiar. Para o cristão, essa capacidade se tiene que exercer nesta vida limitada pelo espaço e pelo tempo, a única que temos, e que, por este motivo, tem una urgência e uma dignidade absolutas. 5. Uma unidade que existe Este breve recorrido pelos dogmas marianos destacou a estreita unidade que existe entre eles desde o ponto de vista teológico. As circunstancias em que foram proclamados são muito distintas e não estão isentas de conflitos, porém tanto em sua formulação como na história de sua interpretação estes dogmas apontam para uma mesma realidade essencial: o Deus cristão, Deus trinitário, não quer nem pode relacionar-se conosco somente como aquele que dá -Padre- mas também como Filho - aquele que recebe. Maria viveu até as últimas consequências essa reciprocidade inaudita com Deus (a
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reciprocidade do Espirito) e se confiou totalmente a esse Deus Todo-poderoso que não teme a vulnerabilidade e a limitação. Em este sentido não podemos menos que afirmar que a experiência cristã do século XXI será mariana ou não será.
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