Unidade 4
Concepções de avaliação: pedagogia tradicional, pedagogia nova e pedagogia tecnicista Ao longo da história da educação brasileira, algumas abordagens foram predominantes no que diz respeito aos processos de ensinar e aprender. A escola sempre se embasa em princípios e pressupostos que em determinado período podem ser considerados eficazes, mas parecem equivocados sob a perspectiva de tendências educacionais prevalecentes em outras épocas. Nesta unidade, trataremos de algumas das principais abordagens pedagógicas no contexto da educação brasileira, com ênfase nas diferentes perspectivas que direcionaram a avaliação durante a vigência de cada uma dessas concepções. É importante observar que todas as tendências pedagógicas estão sempre relacionadas aos contextos histórico-sociais em que ocorreram e, portanto, são também reflexos das ideias de seu tempo. Antes do tratamento específico de cada abordagem, é necessário deixarmos um esclarecimento inicial: não se pode dizer que todas essas abordagens já são somente história passada no Brasil. Em razão das dimensões continentais do nosso país, nem sempre as propostas pedagógicas avançam na mesma proporção em todo o território brasileiro. Portanto, não raro (e infelizmente), é possível encontrar nas mais diversas realidades nacionais diferentes exemplos de práxis pedagógicas e abordagens da avaliação educacional. São retratos de um Brasil que luta para fazer educação de qualidade, mas que ainda caminha no sentido da democratização e modernidade das ideias pedagógicas. 39
Na sequência, vamos apresentar especificamente três abordagens pedagógicas, de forma que você possa identificar a concepção de avaliação característica de cada uma dessas perspectivas. Outras abordagens serão tratadas na próxima unidade.
A avaliação na pedagogia tradicional Certamente, você é capaz de, ao recordar-se de suas experiências escolares, mencionar práticas que exemplificam a concepção da pedagogia tradicional, pois essa abordagem teve grande representatividade no ensino brasileiro e vigorou por muitos anos em nosso país. De modo geral, a abordagem tradicional, que predominou no Brasil até a década de 1930, era embasada pela ideia de que os professores detinham todo o saber e deveriam repassá-lo a seus alunos, cabendo a estes, em grande parte, a memorização dos conteúdos transmitidos.
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Os educandos eram classificados por sua capacidade de memorização, sendo alguns rotulados como não inteligentes por não conseguirem memorizar. Nesse sentido, a inteligência era vista como uma faculdade de armazenar e acumular informações. Portanto, quanto mais informações uma pessoa pudesse armazenar, mais inteligente era considerada (MIZUKAMI, 2007, p. 10).
Quase sempre, os educadores seguiam um manual de ensino (ficou estereotipada no imaginário popular a ideia da professora primária que tinha um caderno amarelado pelo tempo, no qual estavam todas as lições que ano a ano seus alunos realizariam), e a práxis escolar se limitava ao docente que falava e ao educando que em silêncio escutava e anotava. 40
Essa maneira de fazer educação acabava por afastar da escola aqueles que não correspondiam às expectativas geradas por essa dinâmica pedagógica. Na pedagogia tradicional (...) os conteúdos e procedimentos didáticos não tinham nenhuma relação com o cotidiano do aluno e muito menos com as realidades sociais. É a predominância da palavra do professor, das regras impostas. (LUCKESI, 1994, p. 55)
Se na perspectiva tradicional o ensino se baseava na memorização, como seria a forma de avaliar coerente com esse princípio? Na abordagem tradicional, o conceito de avaliação era predominantemente aquele em que o educando deveria reproduzir o conteúdo exposto pelo professor, que, por sua vez, deveria medir o desempenho deste em erros e acertos. Provas, exames, chamadas orais e exercícios eram bastante evidenciados, uma vez que possibilitavam que os alunos reproduzissem com exatidão as informações recebidas (MIZUKAMI, 2007, p. 17). Para refletir sobre esse aspecto, consideremos ainda o seguinte: no que em geral se pensa quando se fala em avaliação? Para Luckesi (2011, p. 223-224), muitos de nós pensamos em práticas tradicionais, dadas as experiências que tivemos. O autor lista quatro pontos que estão no imaginário (ou talvez ainda na prática) de muitos educadores acerca do tema “avaliação”. 1. Elaborar um questionário, após certo período das aulas, para coletar dados sobre o desempenho dos alunos. 2. Ao determinar que os estudantes vão responder ao questionário, seguir o mesmo procedimento: dispor todos sentados e distantes uns dos outros para não colarem, distribuir o questionário, fiscalizar os alunos durante a realização da atividade para evitar a “cola” e recolher o documento com as respostas. 3. Corrigir cada um dos questionários, atribuindo-lhes nota classificatória. 4. Por último, registrar tudo na caderneta (ou livro de chamada). Esses quatro pontos citados por Luckesi evidenciam uma prática que perdura há tempos na educação brasileira e que bem ilustra a ideia da avaliação na abordagem tradicional: a de reprodução do conteúdo trabalhado na escola. Ao aluno não cabe refletir, somente reproduzir as informações na sequência em que estas lhe foram apresentadas. Os aspectos mais importantes na avaliação eram os quantificáveis. A base da avaliação nessa perspectiva era realmente a mensuração 41
e, nesse contexto, atribuir uma nota classificatória era fundamental. Muitas escolas tornavam pública uma listagem classificatória de desempenho dos seus alunos como forma de incentivá-los a prosseguir na busca pelas melhores notas. Nesse contexto, castigos físicos e humilhações eram práticas que os professores utilizavam tanto para disciplinar o comportamento do aluno em sala de aula quanto para repreendê-lo por um desempenho inadequado aos padrões vigentes. Outro ponto de destaque no âmbito da pedagogia tradicional diz respeito à periodicidade da avaliação: via de regra, esta era realizada ao término de períodos de aula (bimestrais, semestrais, anuais), o que a caracterizava como um elemento do final do processo (e não do processo em si). Também existia ao final de um ensinamento; assim, por exemplo, o professor ensinava a tabuada do 3 (e, nesse caso, ensinar era fazer os alunos repetirem exaustivamente em coro) e, após esse tempo de memorização, aplicava uma “prova da tabuada”, que consistia em solicitar que as crianças repetissem oralmente aquilo que haviam decorado. Infelizmente, a pedagogia tradicional ainda vigora em muitas escolas brasileiras. Mesmo com a proibição de castigos físicos e humilhações, como consta no Estatuto da Criança e do Adolescente, muitas instituições de ensino ainda acabam fazendo do momento da avaliação uma coleta de informações meramente decoradas, sem qualquer ligação significativa com os alunos ou relação com a vivência deles. Contrapondo-se à abordagem tradicional, em que o centro do processo de ensino-aprendizagem era a figura do professor e as práticas avaliativas tinham como princípios a repetição e a memorização, na década de 1930, surgiu no ambiente escolar brasileiro, derivada das ideias progressistas da Europa, a pedagogia renovada ou pedagogia nova.
A avaliação na pedagogia nova No contexto da educação brasileira, a pedagogia nova trouxe um olhar voltado para o aluno, colocando-o no centro do processo de ensino-aprendizagem e conferindo especial importância às necessidades individuais. Podemos afirmar até mesmo que as necessidades dos alunos eram consideradas tão ou mais importantes que os professores, que eram a peça central na abordagem tradicional. 42
Ao levar em consideração os interesses dos alunos, essa abordagem transformou o conceito que se tinha de conhecimento. Se antes conhecer algo era tê-lo decorado, sem que aquela informação tivesse relação com sua vida, agora se tratava de relacionar os conteúdos ensinados com as necessidades e interesses dos educandos. Conhecer, portanto, era “o resultado da ação a partir dos interesses e necessidades dos alunos” (LUCKESI, 1994, p. 58).
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A pedagogia nova propõe uma educação focada no estudante, em que o professor se transforma em mediador do conhecimento, facilitador da aprendizagem, fazendo com que o aluno encontre nas propostas didáticas temas que venham ao encontro de suas experiências de vida. Além disso, uma grande ênfase é dada à relação professor-aluno. Não se trata, porém, de desconsiderar a importância da transmissão de informações, tão validada na pedagogia tradicional. Trata-se de propor situações significativas para os alunos, compreendendo o papel fundamental do professor na ampliação dos saberes do aluno, como no caso em que este realiza uma pesquisa em casa e, ao apresentá-la para o professor, com a ajuda deste, estabelece novos parâmetros e melhora o que havia feito anteriormente (MIZUKAMI, 2007, p. 54).
Como explica Aranha (2006, p. 263), “a ênfase na educação da Pedagogia Nova não está na acumulação de conhecimentos, mas na capacidade de aplicá-los a situações vividas”. Carl Rogers, um importante autor dessa abordagem, destaca alguns pontos importantes na prática pedagógica do professor: 43
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.
Restaure, estimule e intensifique a curiosidade do aluno. Encoraje o aluno a escolher seus próprios interesses. Promova todos os tipos de recursos. Permita ao aluno fazer escolhas responsáveis quanto às suas próprias orientações, assim como assumir a responsabilidade das consequências de suas opções erradas, tanto quanto das certas. Dê ao aluno papel participante na formação e na construção de todo o programa de que ele é parte. Promova interação entre meios reais. Focalize, por meio da interação, problemas reais. Desenvolva o aluno autodisciplinado e crítico, capaz de avaliar tanto as suas quanto as con‑ tribuições dos outros. Capacite o aluno a adaptar-se inteligente, flexível e criativamente a novas situações proble‑ máticas do futuro. (ROGERS, 1972, p. 182-183, apud MIZUKAMI, 2007, p. 54)
Para saber mais sobre Carl Rogers, um importante psicólogo cuja teoria influenciou muitas práticas educativas, acesse: . Ao ler cada um desses itens, certamente você identificará alguns princípios seguidos em escolas nos dias atuais. Considere, portanto, que as práticas educativas de hoje em dia são reflexo de experiências que tivemos no passado. Alguns métodos de ensino foram criados tendo como base as ideias da pedagogia nova. Um deles é o de Maria Montessori. Para conhecer essa proposta, acesse: . Assista também ao vídeo produzido pela Organização Montessori do Brasil para saber um pouco sobre o trabalho de escolas que atuam de acordo com essa perspectiva. Disponível em: . A avaliação na abordagem da pedagogia nova se baseia na autoavaliação, uma vez que o aluno é considerado a parte mais importante do processo de ensino-aprendizagem. Como poderia ser avaliado por outro que não ele mesmo? Na prática da pedagogia nova, a “autocrítica e a autoavaliação são fundamentais para ajudar o aluno a ser independente, criativo e autoconfiante” (FERREIRA, 2009, p. 20). Retomando os itens 4 e 5 da listagem anterior proposta por Rogers, vemos que, sob a ótica da avaliação, em linhas gerais, orienta-se o professor a tornar o aluno responsável por suas ações (sejam acertadas ou não), bem como a fazer dele parte importante do processo de elaboração do seu conhecimento. Com base nessa lógica, a avaliação perde todo o sentido, sendo admitida somente a autoavaliação. 44
Considerações gerais sobre avaliação no cotidiano escolar 1. Hoje, as provas tradicionais perderam espaço para novas formas de avaliação. Isso significa que elas devem deixar de existir ou devem dividir espaço com as novas atividades? A questão básica é distinguir claramente o que significam as provas e o que significa avaliação. As provas (muito usadas na época da peda‑ gogia tradicional) são recursos (...) pontuais, classificatórios, seleti‑ vos, antidemocráticos e autoritários; a avaliação, por outro lado, é não pontual, diagnóstica, inclusiva, democrática e dialógica. Examinar e avaliar são práticas completamente diferentes. As provas (não confun‑ dir prova com questionário, contendo perguntas abertas e/ou fecha‑ das; este é um instrumento; provas são para provar, ou seja, classificar e selecionar) traduzem a ideia de exame e não de avaliação. Avaliar significa subsidiar a construção do melhor resultado possível e não pura e simplesmente aprovar ou reprovar alguma coisa. Os exames, através das provas, engessam a aprendizagem; a avaliação a constrói fluidamente. (...) 4. Muitos professores ainda utilizam a avaliação como uma espécie de “ameaça” aos estudantes, dizendo “isso vale nota, portanto prestem atenção”. Quais os prejuízos dessas atitudes tanto para alunos quanto para os próprios professores? O uso de “ameaças” nas práticas chamadas de avaliação não tem nada a ver com avaliação, mas sim com exames. Através dos exames, pode‑ mos ameaçar “aprovar ou reprovar” alguém; na prática da avaliação, só existe um caminho; diagnosticar e reorientar sempre. A avaliação não é um instrumento de disciplinamento do educando, mas sim um recurso de construção dos melhores resultados possíveis para todos. A avaliação exige aliança entre educador e educandos; os exames con‑ duzem ao antagonismo entre esses sujeitos, daí a possibilidade da ameaça. (...) LUCKESI, C. C. Considerações gerais sobre avaliação no cotidiano escolar. Impressão Pedagógica, Curitiba, n. 36, p. 4-6, 2004. Entrevista. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2012.
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A avaliação na pedagogia tecnicista A abordagem tecnicista concebia a escola como modeladora de comportamentos. Para isso, eram usadas técnicas específicas, daí o nome tecnicista. Professores e alunos faziam parte de uma relação em que os primeiros administravam a transmissão da matéria, contando com técnicas e conteúdos previamente estipulados e colocados na ordem em que deveriam ser ensinados, e os segundos apenas recebiam as informações, cabendo-lhes apreendê-las e fixá-las. A comunicação professor-aluno, exclusivamente técnica, visava garantir a eficácia na transmissão dos conteúdos. Assim, debates, reflexões e discussões não eram incentivados, bem como qualquer relacionamento entre docente e discente. Era a técnica se sobrepondo à afetividade (LUCKESI, 1994, p. 62). O enfoque tecnicista introduziu no ensino uma visão em que há uma supervalorização dos meios. São dessa época os planejamentos elaborados pelos técnicos da educação, que deveriam ser apenas seguidos pelos professores, e as fichas de acompanhamento dos alunos, buscando-se na educação uma objetividade como se tudo pudesse ser medido e comparado a um padrão. Daí derivam muitos testes que foram realizados com as crianças (entre eles, o de Q.I.) de modo a submetê-las a uma classificação. Com tanta ênfase em instrumentos e técnicas, a avaliação se caracterizava como mais um momento de aplicá-los. Nesse sentido, voltou-se à concepção já adotada na pedagogia tradicional, em que a avaliação era considerada somente uma medida, um resultado final. Entre os vários instrumentos destinados a medir o desempenho dos alunos no contexto da pedagogia tecnicista, podemos citar testes, escalas de atitude, questionários, fichas de registro de comportamento e diversas maneiras de coletar informações sobre o desempenho dos alunos (DEPRESBITERIS, 1989, p. 7). Provavelmente, em algum momento da sua vida como estudante, você deve ter sido colocado em contato com alguns desses instrumentos de medida, que exemplificam perfeitamente como a técnica se sobrepôs ao ensino em grande parte da época de predomínio da pedagogia tecnicista, de 1969 a 1980. Temos de considerar, no entanto, que alguns desses instrumentos (fichas, pareceres etc.) ainda permanecem nas escolas e são úteis em sua função. No caso das fichas, por exemplo, podemos afirmar que podem ser eficientes por permitirem que o professor faça um acompanhamento mais detalhado de cada aluno e, assim, forme uma 46
visão mais ampla acerca dos desempenhos individuais. Já os pareceres trazem informações valiosas sobre os educandos, possibilitando que aspectos do desenvolvimento destes somente conhecidos pelos educadores possam ser compartilhados com os pais. Considerando esses e outros casos, podemos afirmar que o fato de uma escola fazer uso de fichas de acompanhamento dos alunos ou de livros de chamada não significa que ela trabalha conforme a pedagogia tecnicista. Contudo, no que se refere à avaliação, vale uma ressalva: somente avaliar o aluno com questionários, sem que as questões tenham relação com o estudante, sem que possibilitem reflexão e análise é dar muita ênfase à técnica em detrimento da aprendizagem significativa, o que caracteriza a perspectiva da pedagogia tecnicista. A técnica pode ser útil, mas precisa vir acompanhada de reflexão.
Você acha que, atualmente, muitas práticas avaliativas semelhantes às realizadas na pedagogia tradicional, nova ou tecnicista ainda vigoram no Brasil? Nesta unidade, você refletiu sobre o processo de ensino-aprendizagem e o correspondente conceito de avaliação que caracterizaram as abordagens pedagógicas prevalecentes em alguns períodos da história da educação brasileira. Na sequência, vamos continuar nesse percurso histórico com a reflexão acerca das ideias sobre avaliação decorrentes de outras tendências educacionais.
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