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DEMOCRACIA, CIDADANIA E CULTURA POLÍTICA: O REFORÇO DA CIDADANIA LIBERAL NA PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS DE CAMPOS DOS GOYTACAZES Gisele dos Reis Cruz Profa. Adjunta da Universidade Federal Fluminense E-mail:
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Natalia dos Reis Cruz Profa. Adjunta da Universidade Federal Fluminense E-mail:
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O presente trabalho é um resultado parcial da pesquisa integrada “A Percepção social sobre os Direitos Humanos em Campos dos Goytacazes” e “A Percepção da Prática Democrática e dos Direitos Políticos no Processo Participativo. O Processo de Construção de Direitos e de Justiça Social no Norte Fluminense”. A partir dos dados empíricos colhidos em entrevistas semiabertas com lideranças da sociedade civil de Campos, faremos uma reflexão sobre a concepção de cidadania, democracia e direitos humanos predominante entre os atores sociais pesquisados. Num contexto de globalização, vivemos a hegemonia do neoliberalismo, que vem acompanhada da reafirmação das instituições políticas democráticas, no sentido liberal do termo. O fracasso do socialismo, a perda da capacidade hegemônica da cultura da esquerda, a consolidação da sociedade de consumo de massas e a internalização do individualismo na vida cotidiana auxiliam ao liberalismo a se tornar uma idéia dominante na formação social brasileira. Ocorre também a fragmentação dos movimentos sociais e de classe, contribuindo para reforçar o capitalismo. As falas dos entrevistados revelam uma cultura política profundamente influenciada pelos valores dominantes da democracia liberal, de modo que vêem a democracia como acesso aos direitos sociais e políticos, reforçando a democracia formal. As ações paternalistas são reforçadas pela prática política de alguns sindicatos, corroborando a ausência do Estado no fornecimento dos serviços sociais básicos, enquanto a atuação é extremamente limitada a determinados setores da classe trabalhadora. Percebem a idéia de autonomia como auto-suficiência, sem relação com transformações no sistema. Houve, portanto, a subestimação do legado histórico autoritário e superestimou-se a capacidade dos movimentos da sociedade civil de superar os obstáculos efetivos à democratização plena. O Brasil, ao excluir grande parte de sua população do pleno exercício dos direitos civis e sociais, acabou se constituindo em “democracia sem cidadania”. Agradecemos às alunas Olívia Alves da Fonseca A. Nunes e Larissa dos Santos Vasco Maia, bolsistas de Iniciação Científica do projeto em andamento. "Trabalho apresentado no 4º Seminário de pesquisa do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal Fluminense - UFF, realizado em Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil, em março de 2011".
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Introdução Este artigo aborda os resultados preliminares da pesquisa integrada “A Percepção social sobre os Direitos Humanos em Campos dos Goytacazes” e “A Percepção da Prática Democrática e dos Direitos Políticos no Processo Participativo. O Processo de Construção de Direitos e de Justiça Social no Norte Fluminense”, cujo objetivo é apreender a percepção de membros da sociedade civil e do governo da cidade de Campos dos Goytacazes sobre cidadania, democracia e direitos humanos. O método utilizado é o qualitativo, cujo foco é a análise de conteúdo das falas dos entrevistados, visando detectar sua visão de mundo e da realidade que os cerca. Consideramos de fundamental importância contextualizar social e historicamente as percepções apreendidas, apontando para o atual predomínio de um discurso hegemônico, baseado nos preceitos da democracia liberal, na administração dos conflitos e no descrédito de qualquer possibilidade de transformação estrutural da sociedade. As análises de cunho marxista vêm sendo confrontadas com um olhar denominado pós-moderno da realidade, cujas principais características são: a negação de uma totalidade sistêmica; a crítica às grandes narrativas direcionadas para a compreensão da sociedade e para uma transformação num futuro vindouro; a desconsideração dos conflitos e identidades de classe como instrumento de mudança e de atuação política e social; a fragmentação dos sujeitos sociais em múltiplas identidades em oposição à idéia de essência humana. As reflexões pós-modernas acabam por contribuir para o fortalecimento e legitimação de um único discurso que se tornou hegemônico, em favor do capitalismo, já que as próprias ações características do sistema são vistas como uma das partes integrantes desta realidade multifacetada, não havendo, portanto, o que transformar. Faremos uma discussão teórica sobre a democracia liberal à qual seremos remetidos a partir das falas dos entrevistados, cujo conteúdo revela a introjeção dos valores liberais dominantes em conseqüência da vivência, sem contestação ou capacidade crítica, de um contexto neoliberal. A fala dos atores sociais de Campos dos Goytacazes: o reforço da cidadania liberal “Democracia é o direito de todos para com todos, é você saber onde começa,onde termina o seu direito e começa o meu.” “Cidadania é oferecer às pessoas as condições mínimas para que ela possa crescer se desenvolver, ter os direitos e deveres assegurados.”
3 Iniciamos a discussão, citando os fragmentos de duas falas ligadas a membros do poder público local, que revelam uma percepção de democracia e cidadania pautada na definição liberal. É importante enfatizar, como nos mostra Bobbio (1995), que a preocupação com a democracia não fazia parte do pensamento liberal em seu início, sendo, inclusive, antitéticos. A concepção de democracia que estava em voga até meados do século XVIII era baseada no significado adotado pelos gregos: governo do “povo” – demos. Ellen Wood (2003) aponta que a democracia passou, desde a antiguidade até a modernidade, por uma redefinição: do duplo status, cívico e social, presente em Atenas na antiguidade à democracia meramente formal condizente com o avanço do capitalismo na era moderna. Em Atenas, os considerados cidadãos adquiriam não só o direito de participar ativamente das decisões políticas, mas também a possibilidade de ascensão social já que a cidadania que lhes era outorgada os colocava fora do alcance de qualquer tipo de exploração econômica e social, havendo, portanto um conteúdo social na democracia ateniense. Para retratar isso, o simples camponês alcançava um grau de liberdade em relação aos modos tradicionais de exploração (obrigação por dívida, servidão ou pagamento de impostos). A velha relação dicotômica entre o Estado apropriador e os súditos camponeses produtores foi rompida de alguma forma nos lugares onde havia uma comunidade cívica unindo proprietários e camponeses, ou seja, onde os camponeses possuíam status de cidadãos. (Wood, idem) Devido a esse conteúdo social, a idéia de democracia existente até então foi questionada e evitada em diversos lugares no período em questão e também durante os séculos posteriores. O próprio Platão, importante filósofo da antiguidade grega, negava a cultura democrática, ao reproduzir a tão comum divisão entre governantes e produtores, afirmando que os encarregados das ações governamentais não deveriam se ocupar de qualquer tipo de trabalho, pois tinham que se dedicar à tarefa filosófica de acessar o Mundo das Idéias, onde estariam inscritas as verdadeiras concepções de justiça, ética e moral. (Platão, 2003) No século XVII, o chamado liberalismo clássico, reconhecido no pensamento dos autores contratualistas, como Locke, por exemplo, limitava-se a defender os direitos naturais dos indivíduos, relacionados com a liberdade, a vida e a propriedade, e em assegurar limites ao poder do Estado. A democracia não estava presente no pensamento dos liberais desse período, pois a participação nas decisões políticas limitar-se-ia aos detentores de propriedade, e a idéia de igualdade era restrita ao corpo de proprietários. (Locke, 1978) No século XVIII, a democracia voltou às discussões após passar por uma redefinição iniciada pelos Federalistas nos EUA. Como nas antigas colônias inglesas da América não era possível tirar a democracia da pauta dos assuntos importantes, era necessário a elaboração de uma nova concepção de democracia mais condizente com os interesses oligárquicos. Os federalistas tinham pela frente a tarefa de conceber uma nova idéia de democracia que não ameaçasse a divisão entre massa e elite no contexto de franquias crescentemente democráticas. Uma das principais medidas foi o distanciamento cada vez maior entre identidade cívica e ação no espaço público, isto é, as decisões foram
4 transferidas das localidades para o centro federal. Outra medida importante foi limitar o número de representantes, levando a uma desproporcionalidade entre uma elite política e as massas representadas. Já que não era possível manter um corpo exclusivo de cidadãos (conforme o liberalismo clássico apregoava), tratava-se de criar instituições políticas que corporificariam e limitariam o poder popular, ou seja, o corpo de cidadãos seria inclusivo, porém passivo, revelando, na verdade, um projeto de domesticação da idéia clássica de democracia. Nasce assim a democracia representativa, que formaliza a idéia de igualdade e liberdade, tornando-as algo meramente jurídico, mas que na prática mantém intacta a estrutura social e econômica desigual. (Wood, op cit) Se na antiga Atenas o corpo de cidadãos era pouco inclusivo, mas os cidadãos eram de fato ativos e progrediam social e economicamente, na era moderna, a inclusão de cidadãos é maior, porém, sua atuação é passiva (limitando-se ao voto) e não lhes garante a igualdade social e econômica. No entanto, essas mudanças na concepção de democracia estão ligadas à consolidação do capitalismo, que não poderia continuar negando às massas a sua integração no cenário político. O afastamento do conteúdo social presente na democracia ateniense foi possibilitado pela autonomização da esfera política em relação à econômica, de forma que ter direitos políticos não significa uma mudança na posição sócio-econômica do cidadão, conforme ocorria em Atenas. Lá não havia separação entre a economia e a política, ou entre o Estado (o reino do governo e da ação política) e a sociedade civil (o campo da produção econômica). No século XIX, o liberalismo teve que se confrontar com o problema da democracia. Entre os liberais, Stuart Mill foi um dos autores que defendia a extensão do sufrágio, pois percebia que o aumento da organização das massas não permitia deixar de fora dos direitos políticos a grande maioria da população. Assim, o autor pode ser considerado o maior exemplo das contradições que formaram o liberalismo neste século, pois, de um lado, criticava as tendências niveladoras e a mediocridade coletiva da democracia de massas; de outro, defendia os direitos da mulher e o sufrágio universal. (Wood, idem) A partir de então, cada vez mais a democracia passou a ser identificada com o liberalismo, pois mudou-se o foco da democracia como exercício ativo do poder popular para o gozo passivo das salvaguardas constitucionais e processuais, e do poder coletivo das classes subordinadas para a privacidade e o isolamento do cidadão individual. (Wood, ibidem) A passividade que faz parte do modo de funcionamento da democracia liberal está presente no ideário que muitos entrevistados apresentam sobre a cidadania, conforme podemos perceber nas duas falas citadas no início deste item. Quando o sujeito social fala que “democracia é respeitar o direito do outro” significa que, para ele, a base da democracia é o indivíduo com direitos iguais, o que nos conduz quase que à idéia liberal clássica de indivíduos atomizados que têm os seus direitos naturais assegurados pelo Estado. Por outro lado, dizer que “Cidadania é oferecer às pessoas as condições mínimas para que ela possa crescer se desenvolver, ter os direitos e deveres assegurados” nos remete à perspectiva liberal de limitar a ação do Estado ao fornecimento de condições que permitam a igualdade de oportunidades,
5 restando aos indivíduos lutarem no mercado para alcançar o progresso social e econômico, fazendo com que o sucesso ou fracasso recaiam sobre os próprios indivíduos, dependendo de sua capacidade e eficiência. Percebe-se que a idéia de cidadania e democracia que perpassa os segmentos sociais de Campos dos Goytacazes, de uma forma geral, vai ao encontro do pensamento neoliberal hegemônico, uma perspectiva limitada e que não oferece riscos à manutenção das estruturas capitalistas dominantes. Alguns movimentos sociais mais organizados provenientes da sociedade civil campista fogem um pouco desse padrão, apresentando um discurso mais elaborado e até um certo ponto crítico, visualizando as limitações da democracia formal existente no país. É o caso do MST, como nos indica a fala abaixo: “Tem alguns conceitos da democracia, e esse conceito da democracia representativa, para mim, não é democracia. Eu acho que democracia de fato tinha que ser a democracia participativa, tem que haver um estímulo de participação, a democracia direta, o povo mais organizado, se o povo não se organiza, se a sociedade civil não estiver organizada [...] A sociedade civil desorganizada ela não é democrática. Mas, infelizmente, o que a gente ver é que não tem espaço nessa estrutura que a sociedade traz [...] Esse conceito de cidadania implementado hoje é partir do momento que você tem um documento, e isso não é cidadania. Acho que a gente tem que rever o conceito de cidadania. Cidadania deveria ir muito mais além.” No entanto, apesar do entrevistado chegar a reconhecer a importância da cidadania ativa e da democracia direta, ao final de sua fala acaba reforçando os princípios da democracia liberal. Ele complementa a frase de que a cidadania deve ir mais além com o seguinte raciocínio: “No meu conceito é o direito de acessar em condições iguais a saúde, educação, cultura, lazer, isso seria cidadania”. Percebe-se nesta fala a interiorização do paradigma da regulação analisado por Boaventura de Souza Santos, quando aborda a modernidade. Segundo o autor, modernidade é um projeto sócio-cultural muito amplo, cheio de contradições e de potencialidades que, em seu início, aspirava a um equilíbrio entre dois pólos. O pólo da regulação – formado pelo mercado, pelo Estado e pela comunidade e o pólo da emancipação. A trajetória da modernidade teria levado, no entanto, a um desequilíbrio entre esses dois pólos, caracterizandose pela absorção ou colapso da emancipação na regulação, e convertendo as energias emancipatórias em energias regulatórias. Isso ocorreu porque o projeto da modernidade se misturou com o desenvolvimento histórico do capitalismo. As principais tensões da modernidade, entre subjetividade individual/subjetividade coletiva e subjetividade contextual/subjetividade abstrata, são resolvidas, sob o impulso do capitalismo e do liberalismo, priorizando-se a subjetividade individual e a subjetividade abstrata. O triunfo da subjetividade individual propulsionado pelo princípio do mercado e da propriedade individual acarreta consigo, pelas antinomias próprias do princípio do mercado, a exigência de um super-sujeito que regule a cidadania dos indivíduos: o Estado liberal. Desta polarização entre indivíduo e Estado perde o
6 princípio da comunidade, inspirado em Rousseau, que visava, em vez da contraposição entre indivíduo e Estado, uma síntese complexa e dinâmica entre eles, o ideal da participação direta e ativa dos cidadãos. (Santos, 1997) O que Santos enfatiza é que a concessão de direitos sociais, políticos e civis no decorrer da era moderna significaram nada mais do que uma regulação por parte do Estado capitalista, pois criar indivíduos cidadãos não entrou em contradição com a estrutura capitalista, ao contrário, levou à amenização dos conflitos de classe através da inserção de diversos segmentos sociais no mercado consumidor e no cenário político. Assim, a emancipação no sentido do alcance da verdadeira essência humana foi subjugada pela regulação da cidadania por parte do Estado, que faz com que os indivíduos percebam apenas os benefícios desta cidadania, e não a estrutura do sistema por detrás deste processo. Por mais que, em determinados momentos, esta regulação social passe por crises, estas ocorrem sem perda de hegemonia da dominação capitalista, ou seja, a própria idéia de emancipação também está em crise, fazendo com que a dificuldade em aceitar e suportar as injustiças e irracionalidades da sociedade capitalista conviva com a dificuldade de se pensar uma sociedade distinta e melhor que esta. (Idem) Algumas falas do entrevistados denotam a corroboração da sociedade existente, exatamente pela incapacidade de pensar em uma sociedade alternativa, daí a limitação das perspectivas em relação à cidadania e à democracia, que são pensadas estritamente sob o prisma liberal. As oportunidades que surgem para uma participação mais ampla da população em assuntos que lhes dizem diretamente respeito geralmente não são aproveitadas, em função de uma cultura política influenciada pela visão do Estado regulador como responsável pelo provimento dos bens públicos e direitos. O próprio cidadão não se sente co-responsável pela discussão, elaboração e implantação das políticas públicas, pois se espera sempre a ação do Estado. Esta fato acaba contribuindo para a reprodução da cidadania liberal, pois a participação se dá somente no momento do voto. Muitas lideranças entrevistadas enfatizaram a dificuldade de estimular a participação da população local: Os maiores problemas que nós temos é uma verba orçamentária no município de grande importância, que é maior que alguns estados do Brasil [...] falta as pessoas estarem discutindo saneamento básico, questionando também as dificuldades que as pessoas estão encontrando no dia-a-dia. A questão dessa verba que tem que ser usada e as pessoas não participam. A gente tem uma Câmara de Vereadores que a população tem que estar presente lá pra estar discutindo todos os problemas da nossa cidade, e eu não vejo essas questões sendo discutidas.” “Acho que é muito falha, muito distante, porque normalmente, só participam aqueles que têm um interesse particular. Quando alguém quer certa coisa, vai atrás, para ele mesmo. Fora isso, não existe muita participação.”
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A fala acima ilustra uma das tensões da modernidade aludidas por Santos: entre a subjetividade individual e a coletiva, de modo que a preocupação com ganhos coletivos fica subjugada ao interesse individual ou corporativo, contribuindo para a manutenção da ordem existente. Um outro fator que leva à baixa participação é a assimetria das relações sociais, representada por uma sociedade organizada hierarquicamente, de modo que as relações de poder limitam e aprisionam a livre participação da população que, por receio de represálias ou perdas de benefícios, acaba reforçando o poder das elites locais. Ou seja, a inserção no cenário político se dá de forma desigual, fazendo com que extensão da cidadania não rompa com a estrutura político-social. Dessa forma, a cidadania numa sociedade capitalista liberal acaba por não garantir nem os próprios direitos presentes na Constituição que conduzem a uma cidadania regulada. A fala abaixo ilustra com bastante clareza essa questão: “Aqui em Campos a população tem medo de discutir as coisas. Com medo eu digo assim, as pessoas tem medo de falar perante o público porque tem alguém que depende da política da nossa cidade, alguém que depende daquilo ali. Fica pensando assim „se eu falar alguma coisa de errado, nós vamos ser prejudicados‟. Então as pessoas ficam mais retraídas pra falar de política.” O contexto neoliberal e a fragmentação da ação política: a repercussão nas práticas políticas locais É importante relacionarmos algumas práticas políticas percebidas nas falas dos entrevistados com o atual contexto neoliberal. Diversos estudiosos dos impactos da globalização e do neoliberalismo apontam para o que chamam de fragmentação e divisão dos trabalhadores e de suas organizações representativas, como conseqüência das mudanças no mundo do trabalho, ligadas à chamada reestruturação produtiva. Em função da globalização e do aumento da competitividade entre os capitais, a necessidade de cortar custos de produção impera em toda a cadeia produtiva do capitalismo. Isso tem gerado a flexibilização das relações de trabalho, levando à precarização e à perda de direitos trabalhistas tradicionalmente garantidos pelo paradigma do Estado provedor. Uma das características do mundo do trabalho imerso no contexto atual é a fragmentação e a setorialização dos sindicatos e entidades representativas dos trabalhadores, de forma que as questões coletivas ligadas aos interesses da classe como um todo são deixadas de lado, e os sindicatos passam a defender bandeiras ligadas aos interesses exclusivos dos setores que representam. Santos (Ibidem) enfatiza que um dos fatores da realidade atual é o isolamento político das classes trabalhadoras na produção, que constitui a outra face da difusão social da produção. São importantes as diferentes estratégias de
8 flexibilização e precarização do trabalho, sujeitando os ritmos da reprodução social aos ritmos da produção, gerando insegurança entre as famílias trabalhadoras e a concorrência, neutralizando politicamente o movimento operário. A coexistência de várias relações salariais e a segmentação dos mercados de trabalho produzem a fragmentação e heterogeneização do operariado, tornando mais difícil a macro-negociação coletiva e enfraquecendo estruturalmente as organizações sindicais. Percebemos isso nas declarações de vários líderes sindicais de Campos dos Goytacazes. Abaixo, estão algumas citações mais expressivas: “O objetivo é fundamentar e fortalecer uma determinada categoria. No caso a nossa, os professores. Mobiliza-se através do interesse do coletivo, buscamos sempre procurar saber o que está faltando, os problemas e lutamos por essas coisas, pode ser aumento salarial, benefícios médicos, gratificações por tempo de serviço [...]” “O primeiro objetivo do Sindicato é defender a categoria. Cada categoria tem o seu sindicato, Campos não foge disso, o nosso, por exemplo, é sindicato dos comerciários. Quem trabalha em bar e restaurante tem o sindicato dos hoteleiros, quem trabalha em obra tem o sindicato da construção civil, então a nossa primeira idéia é defender a categoria. Mas, defender de que? De abuso dos patrões, pagamentos irregulares, horas extras não recebidas. Isso é levado ao Ministério do Trabalho ou a Justiça do Trabalho.” Fica claro nas falas acima a limitação das atuações dos sindicatos locais à defesa dos interesses apenas de suas categorias, não havendo nenhum tipo de mobilização ou discussão de questões mais coletivas, que englobem os trabalhadores como um todo. A preocupação central hoje é com a sobrevivência e a manutenção do emprego e dos direitos trabalhistas de quem está empregado. Antunes (1995) demonstra que o processo de fragmentação, heterogeneização e complexificação da força de trabalho questiona a permanência da organização sindical tradicional, construída com base no segmento estável dos trabalhadores. Dessa forma, as taxas cadentes de sindicalização, mais do que expressar o resultado do emprego, indicam a dificuldade de os sindicatos representarem um conjunto dos trabalhadores que têm em comum somente o fato de viverem do trabalho. Muitos sindicatos, além de serem extremamente setoriais, oferecem serviços sociais como uma das formas de atrair membros, contribuindo assim, para reforçar a ausência do Estado nas políticas sociais, uma das marcas do Estado neoliberal. O déficit financeiro estatal, resultado, em grande parte, das políticas de financiamento e subsídios ao capital levou à necessidade de corte nos gastos públicos, servindo para justificar a desconstrução da idéia de política social como um direito de todos. O Estado se retira de muitas funções tradicionalmente assumidas por ele e transfere-as para a sociedade civil. Em Campos dos Goytacazes, vemos sindicatos oferecendo serviços sociais no lugar do Estado, e como grande parte da população não tem realmente acesso
9 a esses serviços da parte do Estado neoliberal, acaba por procurá-los em outras organizações sociais e políticas não-estatais. Os sindicatos fazem parte desses grupos “de apoio”, como vemos nas falas abaixo: “As vezes o sindicato oferece outras coisas como médico, dentista, parque esportivo, biblioteca...Então o sindicato oferece outras coisas que eu acho que não deveria oferecer, mas o governo algumas vezes não oferece e o sindicato passa a oferecer essas coisas que seriam de responsabilidade do governo; é isso que o sindicato faz”. “Nós temos também um médico e um dentista pra atender a população, os associados, mas ainda é pouco, nós estamos tentando correr atrás de convênio, porque precisamos também de um oftalmo, e precisamos também de um pediatra.”
Na verdade, esta setorialização, própria da atuação dos sindicatos, pode ser analisada à luz da fragmentação existente na ação política, tida como uma das características da pós-modernidade. Assim como os sindicatos direcionam suas reivindicações e ações para setores específicos do mundo do trabalho, contribuindo para a fragmentação da classe trabalhadora, a própria multiplicidade de vínculos de identificação conduz à particularização das relações. Este fato leva à crítica às análises de cunho marxista, de modo que a classe é vista como mais um dos aspectos que criam a identidade do sujeito, não havendo portanto possibilidade de organização da ação coletiva em torno de alguma coisa que signifique a essência humana. È o mesmo que dizer que o sistema capitalista é o fim da história, pois não há como se lutar contra ele a partir do momento em que o atual contexto dificulta a concentração das resistências emancipatórias em projetos coerentes e globais. Embora esse discurso pós-moderno possa ser contradito através de análises marxistas, pois o confronto capital/trabalho continua a ser a tônica do sistema, a vivência por parte dos atores sociais de um mundo fragmentado e particularizado, onde as reivindicações se voltam para questões individuais ou setoriais, não tem conduzido a uma visão crítica desta realidade por parte dos sujeitos. O que se nota é uma adequação a esta realidade, com atuações direcionadas para questões imediatistas, sem relação com perspectivas mais amplas de transformação social, visível no discurso dos entrevistados de Campos dos Goytacazes. A limitação da visão dos entrevistados é tão clara que se manifesta em suas próprias definições do que seja emancipação que, para a maioria deles, significa acesso a direitos e o alcance à auto-suficiência, uma perspectiva claramente liberal. Este discurso ocorre mesmo entre os movimentos sociais mais organizados da cidade, pois a atuação destes sempre é movida pelo interesse da categoria ou do grupo que defendem, no sentido da ascensão econômica ou social destes. Assim, palavras como sustentabilidade, direitos, igualdade de condições aparecem no discurso dos entrevistados, utilizadas no sentido da reprodução da lógica liberal, sem que isso seja avaliado criticamente. As ações instituídas por conselhos e movimentos sociais são no
10 sentido do resgate da cidadania liberal. “Depende do conceito de emancipar. Eu tenho medo de políticas publicas que tornam as pessoas cativas. Toda nossa recomendação é que essas ações (dos conselhos municipais) sejam ações de sustentabilidade, que as pessoas ao receberem recursos públicos, principalmente dos conselhos, sejam no objetivo de resgatar essas pessoas para uma ascensão social. Mas aí a gente ter certeza que com isso todos os problemas estão sanados, eu seria ingênuo. Mas o objetivo é esse, que esses projetos financiados pelo fundo, assegurem para os seus assistidos, a conquista da sua cidadania.” “As ações do sindicato (dos trabalhadores rurais de Campos), a fim de informar o associado do direito que ele tem. Acho que emancipa sim, você percebe que quando eles vão dar entrada no seu pedido na Previdência Social, eles estão mais informados ...” “Aqui na sede (Associação Zumbi dos Palmares) temos uma série de cursos, temos um pré-vestibular para os jovens menos privilegiados economicamente, cursos dos mais variados; capoeira, uma escola de música que funciona aqui, nós temos aula de dança [...] Eu acho que essas ações abrem portas, porque quando você faz um curso prévestibular, a gente sabe que hoje para o jovem, o sonho dele é ingressar em uma universidade pública, mas acontece que a pública acaba sendo acessível pra quem tem condição de se preparar melhor. A gente está oferecendo um curso pré-vestibular de qualidade, pra que esses jovens pobres possam disputar a vaga em igualdade de condições” Conclusão O conceito de cidadania liberal vem sendo introjetado pelos movimentos sociais e por membros do governo, de modo que podemos falar em um discurso hegemônico na realidade atual. As práticas liberais e neoliberais perpassam todo o tecido social, partindo inclusive de setores e movimentos ligados historicamente à defesa dos trabalhadores ou de grupos marginalizados. A fragmentação dos sujeitos e a particularização das ações políticas conduz à reprodução da lógica neoliberal, dificultando uma atuação em direção à emancipação humana, nos dizeres do marxismo clássico. As falas dos entrevistados revelam que a participação política popular é muito fraca na sociedade campista, pois os que participam são sempre os mesmos grupos, não havendo mudança ou adesão de novos grupos. A cidadania é percebida como direitos e deveres dos cidadãos, de forma regulada, corroborando um tipo de cidadania que não leva à emancipação do indivíduo, reforçando a cidadania liberal que se apresenta como forma hegemônica, nos dizeres de Gramsci. A democracia é vista como direitos iguais ou o “governo
11 do povo para o povo”, sem ligação com a igualdade social ou econômica. A perspectiva de emancipação apresentada pelos entrevistados relaciona-se a um estado de auto-suficiência e de acesso a direitos, sem vínculo com a autonomia do cidadão diante deste sistema a que estamos postos. Entre os membros de sindicatos, pudemos constatar o assistencialismo quando oferecem serviços como saúde, reforço escolar, estes que deveriam ser prestados pelo Estado, fortalecendo assim a lógica liberal onde o Estado está ausente. Membros de sindicatos criticam a política assistencialista da prefeitura, sem perceber que a reproduzem dentro de seus próprios espaços, quando oferecem serviços que deveriam ser prestados pelo Estado, e não lutam por uma sociedade mais igualitária.
Referências Bibliográficas ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? (ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho). São Paulo: Cortez, 1995. LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Nova Cultural, 1978. (Coleção Pensadores) PLATÃO. A Republica. trad. Pietro Nasseti 2° ed. São Paulo-SP Martin Claret, 2003 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice. O social e o político na transição pós-moderna. São Paulo: Cortez, 1997. WOOD, Ellen. Democracia contra Capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo, Boitempo, 2003.