Larva migrans cutânea em idade pediátrica: a propósito de

NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2003, vol. XII, n.º 4 casos clínicos 261 Larva migrans cutânea em idade pediátrica:...

16 downloads 295 Views 33KB Size
NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2003, vol. XII, n.º 4

Larva migrans cutânea em idade pediátrica: a propósito de um caso clínico Cristina Ferreira1, Susana Machado2, Manuela Selores2

RESUMO A Larva Migrans Cutânea (LMC) é uma dermatose infecciosa provocada por parasitas nemátodes que, habitualmente, não infestam o Homem. É uma doença endémica em países tropicais, de diagnóstico pouco comum noutros países. Os autores descrevem um caso clínico de LMC numa criança do sexo feminino, de 3 anos de idade, regressada de uma viagem a zona endémica, com lesões serpiginadas típicas em ambos os pés. A evolução foi favorável com a terapêutica instituída (Albendazol oral e Tiabendazol tópico). A propósito deste caso, os autores fazem uma revisão da epidemiologia, manifestações clínicas e opções terapêuticas em idade pediátrica. Palavras-chave: Larva migrans cutânea, pediatria. Nascer e Crescer 2003; 12 (4): 261-264

INTRODUÇÃO A Larva Migrans Cutânea é uma infecção cutânea, auto-limitada, habitualmente provocada por parasitas de animais domésticos que infestam o ser humano acidentalmente, com endemicidade documentada em zonas tropicais. A maior parte dos casos diagnosticados em países industrializados refere-se a turistas que regressaram de áreas tropicais. O diagnóstico é clínico e baseado na história (com a referência a uma viagem para uma zona endémica) e no exame objectivo do doente com lesões cutâneas típicas em regiões expostas do corpo. 1 2

Serviço de Pediatria - Hospital Santo António Serviço de Dermatologia - Hospital Santo António

Os autores apresentam o caso clínico de uma criança infectada durante uma viagem ao Brasil e fazem uma revisão da doença no que se refere à distribuição geográfica, agentes infecciosos, aspectos clínicos, diagnósticos diferenciais e tratamento.

CASO CLÍNICO Criança do sexo feminino, de 3 anos de idade, previamente saudável, orientada para a Consulta Externa de Dermatologia Pediátrica por ter lesões eritematopruriginosas no dorso de ambos os pés, com cerca de 1 mês de evolução, adquiridas durante a estadia na região do Nordeste Brasileiro. De acordo com a mãe, as queixas de dor e prurido cutâneo em ambos os pés iniciaram-se no dia em que a criança foi brincar numa caixa de areia do parque infantil do Hotel onde estavam instalados. Foi efectuado o diagnóstico de “micose” por um farmacêutico local e iniciou tratamento com tópico contendo antifúngico e corticóide bem como antihistamínico oral. Como não obteve melhoria da sintomatologia, foi observada pelo Pediatra assistente após o regresso da viagem e medicada com corticóide oral durante 2 dias. Ao exame dermatológico a doente tinha múltiplas lesões eritematopapulares, serpiginosas, com bordos elevados localizadas a ambos os pés (fig. 1 e 2). O aspecto das lesões e a história da viagem recente a uma área endémica permitiu o diagnóstico clínico de Larva Migrans Cutânea. Foi instituído tratamento com Albendazol 400 mg/dia durante 3 dias, associado à aplicação tópica nas lesões de Tiabendazol em creme a 15%. Constatou-se uma evo-

lução favorável com melhoria subjectiva em 48 horas e regressão completa das lesões 1 semana depois. Sem recidiva após 5 meses de seguimento. Os pais da criança queixavam-se de prurido interdigital e na planta dos pés, apresentando lesões escoriadas. Foram medicados com o mesmo esquema terapêutico obtendo rápida melhoria da sintomatologia.

DISCUSSÃO A Larva Migrans Cutânea ou “Creeping Eruption”, descrita pela primeira vez em 1874, é uma dermatose ubiquitária e auto-limitada originada pela infestação por larvas de nemátodes que penetram e migram através da pele1. As espécies mais frequentemente implicadas são o Ancylostoma braziliense e o Ancylostoma caninum, parasitas de gatos e cães, respectivamente1. Outros parasitas animais ( Uncinaria stenocephala e Bunostomum phlebotomum) e parasitas humanos ( Necator americanus, Ancylostoma duodenale e Strongyloides stercoralis ) também podem originar a doença2. Os parasitas adultos, que vivem no aparelho digestivo destes animais domésticos, produzem ovos que são eliminados pelas fezes e depositados no solo. Em condições de humidade, temperatura e oxigenação favoráveis, os ovos originam larvas em cerca de 7 dias. Estes locais são habitualmente quentes e húmidos como praias com vegetação próxima, parques infantis 3,14,15 ou sob varandas2. Embora sendo uma parasitose ubiquitária, há uma grande prevalência da doença na região das Caraíbas, África, América do Sul, Sudeste asiático e Sudeste dos Estados Unidos1.

casos clínicos

261

NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2003, vol. XII, n.º 4

caninum atinge a derme e entra na

Figura 1

Figura 2

O ser humano é um hospedeiro ocasional e infectado acidentalmente após contacto com as larvas infectantes que penetram na pele através dos folículos pilosos, glândulas sudoríparas, fissuras cutâneas ou através da pele intacta. Os pés são os locais mais frequentemente afectados embora outras partes do corpo também possam ser atingidas – coxas, períneo, braços, couro cabeludo e, raramente, mucosas 3. No ser humano as larvas não são capazes de completar o seu ciclo vital e morrem semanas ou meses depois4. Permane-

262 casos clínicos

cem confinadas à junção entre a derme e a epiderme por não possuírem colagenases específicas para atravessar a membrana basal 3 e migram nesse plano a uma velocidade de 1 a 2 centímetros por dia2. A migração das larvas desencadeia uma resposta inflamatória local devido à libertação de secreções constituídas fundamentalmente por enzimas proteolíticas1. O trajecto de migração é marcado por uma lesão eritematosa, linear, serpiginosa e muito pruriginosa (principalmente durante a noite). Raramente, e em infestações maciças 3, o A.

circulação desencadeando um Síndrome de Loffler caracterizado por febre, broncospasmo, infiltrados pulmonares, eosinofilia, eritema polimorfo e, ocasionalmente, urticária7. O diagnóstico é fundamentalmente clínico a partir da observação das lesões cutâneas típicas e de uma história de viagem recente a uma região endémica. Raramente se justifica o recurso a exames auxiliares de diagnóstico. Outras dermatoses que evoluem com lesões lineares ou serpiginosas são o Granuloma Anular, Poroqueratose de Mibelli e o Eritema Anular Centrifugum que podem mimetizar a LMC3. O diagnóstico diferencial é, na maioria das vezes, possível pela história clínica, sintomatologia e aspecto morfológico das lesões. Alguns exames auxiliares de diagnóstico podem ser utilizados nos casos atípicos ou nas lesões modificadas por fármacos. A microscopia de epiluminiscência permite, por vezes, a identificação da larva no seu trajecto9. A biópsia cutânea só raramente é necessária 6,8 e as alterações anatomopatológicas – dermatite espongiforme com vesículas contendo neutrófilos e eosinófilos6 - não são específicas desta condição nem permitem o diagnóstico definitivo. A visualização de partes da larva no produto de biópsia é raramente conseguida pelo facto de a lesão eritematosa não traduzir a posição exacta do agente mas uma reacção inflamatória de hipersensibilidade retardada6,7. O tratamento é feito através de meios físicos (azoto líquido), fármacos por via sistémica (Tiabendazol, Albendazol e Ivermectina) e tópica (Tiabendazol). A crioterapia através do azoto líquido não está actualmente recomendada para uso pediátrico por ser muito dolorosa e associada a taxas de recidiva relativamente altas1,7. O tratamento tópico está indicado nas situações autolimitadas, com Tiabendazol creme a 15% aplicado 2 vezes ao dia durante 3 a 5 dias7. O tratamento sistémico é possível através de diversos fármacos. O Tiabendazol (25 a 50 mg/Kg/dia durante 2 a 4

NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2003, vol. XII, n.º 4

dias) é eficaz mas associado a muitos efeitos laterais como náuseas, vómitos, dor abdominal, anorexia, cefaleias e vertigens2,3,7. Este fármaco não está comercializado em Portugal. O Albendazol, anti-helmíntico heterocíclico de terceira geração12, é o fármaco mais utilizado em doses de 400 mg/dia durante 3 dias 7. Alguns autores preconizam tratamentos mais prolongados de 5 a 7 dias para evitar recidivas 4,5 . Os efeitos laterais são mínimos e auto-limitados, habitualmente ocorrem apenas em tratamentos prolongados e consistem em queixas digestivas, febre, elevação transitória das transamínases e alopécia reversível4. Não está recomendada a sua utilização em grávidas pois foi constatado ser teratogénico e embriotóxico em ratos e coelhos7. A Ivermectina ( 200 mg/Kg em toma única) é uma recente proposta terapêutica com bons resultados e raros efeitos laterais,3,13 não estando disponível actualmente no nosso país. A infecção secundária deve ser tratada com antibióticos. O prurido regride em cerca de 48 horas12 com o tratamento anti-helmíntico, não sendo necessário a utilização de anti-histamínicos sistémicos.

CONCLUSÕES A Larva Migrans Cutânea é uma dermatose habitualmente auto-limitada, relacionada com locais frequentados por animais domésticos em zonas tropicais, cada vez mais procuradas como destinos turísticos. O turista é infectado, na maior parte das vezes, quando anda, brinca ou se deita em areais contaminados por fezes de animais domésticos. As medidas preventivas consistem em evitar um contacto directo com areia seca.

Cutaneous Larva Migrans in children - case report ABSTRACT Cutaneous Larva Migrans (CLM) is an infectious dermatosis caused by ne-

matodes parasites, which do not usually parasite men. It’s endemic in some tropical and subtropical areas and rare in industrialized countries. The authors present a case of CLM in a female child aged three, which had recently travelled to an endemic area, with typical serpiginous lesions affecting the feet. The child was treated with oral Albendazol and topical Tiabendazol with complete resolution of the complaints. The authors review the epidemiological and clinical features and summarise the therapeutic options in pediatric ages. Key-words: Cutaneous Larva Migrans, pediatrics. Nascer e Crescer 2003; 12 (4): 261-264

BIBLIOGRAFIA 1 - Davies HD, Sakuls P, Keystones JS. Creeping eruption. A review of clinical presentation and management of 60 cases presenting to a tropical disease unit. Arch. Dermatol 1993 May; 129 (5): 588-91. 2 - Hotez PJ. Hookworms (Ancylostoma and Necator americanus). In: Behrman RE, Kliegman RM, Jenson HB, editors. Nelson Textbook of Pediatrics. 17th ed. Philadelphia: Saunders; 2003. p.1156-8. 3 - Alonso FF. Cutaneous Larva Migrans. In: Harper J, Oranje A, Prose N, editors. Textbook of Pediatric Dermatology. Volume 1. 1st edition. Oxford: Blackwell Science; 2000. p.527-531. 4 - Rizzitelli G, Scarabelli G, Veraldi S. Albendazol: a new therapeutic regimen in cutaneous larva migrans. Int J Dermatol 1997 Sept; 36(9): 700-3. 5 - Veraldi S, Rizzitelli G. Effectiveness of a new therapeutic regimen with Albendazol in cutaneous larva migrans. Eur J Dermatol 1999; Jul-Aug; 9 (5): 352-3. 6 - Balfour E, Zalka A, Lazova R. Cutaneous Larva Migrans with parts of the larva in the epidermis. Cutis 2002 May; 69 (5): 368-370. 7 - Grassi, Alessandra MD; Angelo, Corrado MD; Grosso, Maria Gabriella MD; Paradisi, Mauro MD. Perianal Cutaneous Larva Migrans in a Child Case

Report. Pediatr Dermatol 1998; SeptOct; 15(5): 367-369. 8 - Nakamura-Uchiyama F, Yamasaki E, Nawa Y. One confirmed and six suspected cases of cutaneous larva migrans caused by overseas infection with dog hookworm larvae. J Dermatol 2002 Feb; 29 (2): 104-11. 9 - Elsner E, Thewes M, Worret WI. Cutaneous larva migrans detected by epiluminescent microscopy. Acta Derm Venereol 1997 Nov; 77 (6): 487-8. 10 - Sugathan P. Massive infestation of cutaneous larva migrans. Dermatology Online Journal. 8 (2): 21. 11 - Peter Hotez, MD, PHD. Hookworm disease in children. Pediatr Infect Dis J 1989; 8: 516-520. 12 - Caumes E. Treatment of Cutaneous Larva Migrans. Clinical Infectious Diseases 2000; 30:811-814. 13 - Bouchaud O, Houzé S, Schiemann R, Durand R, Ralaimazava P, Ruggeri C, Coulaud P. Cutaneous Larva Migrans in Travellers: A Prospective Study, with assessment of Therapy with Ivermectin. Clinical Infectious Diseases 2000; 31: 493-498. 14 - Araújo FR, Araújo CP, Werneck MR, Górski A. Larva migrans cutânea em crianças de uma escola em área do Centro-Oeste do Brasil. Revista de Saúde Pública 2000 Fev; vol 34 nº1 São Paulo. 15 - Nunes CMN, Pena FC, Negrelli GB, Anjo CGS, Nakano MM, Stobbe NS. Ocorrência de larva migrans na areia de áreas de lazer das escolas municipais de ensino infantil, Araçatuba, SP, Brasil. Revista de Saúde Pública 2000 Dez; vol 34 nº6 São Paulo.

Correspondência: Cristina Ferreira Serviço de Pediatria Hospital Geral de Santo António Largo Prof. Abel Salazar 4099-001 Porto

casos clínicos

263

NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2003, vol. XII, n.º 4

Ema comissão de Coordenação da Revista Nascer e Crescer Os autores Cristina Ferreira, Susana Machado e Manuela Selores vêm por este meio solicitar a publicação do artigo “Larva migrans cutânea em idade pediátrica: a propósito de um caso clínico”, classificado como caso clínico.

264 casos clínicos

Pedem deferimento Porto e Hospital Geral de Santo António, 05 Junho 2003 Os autores Cristina Ferreira, Susana Machado e Manuela Selores, cedem os direitos de propriedade do artigo “Larva migrans cutânea em idade pediá-

trica: a propósito de um caso clínico” à Revista Nascer e Crescer. Porto e Hospital Geral de Santo António, 05 Junho 2003