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Charles de Seeondat. Baron dc. 1689-1755 - O espirito das leis 2 ... A contribuição de Montesquieu à ... A classificação das sociedades por Montesquie...

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Montesquieu e

Rousseau Pioneiros da Sociologia

Émile Durkbeim

Montesquieu e

Rousseau Pioneiros da Sociologia

Tradução: Julia Vidili

Publicado originalmente em francês sob <>iiu.ilo Mowesqaieu a Rousseau. Direitos de tradução para todos os paises ern língua portuguesa © 20üS. Madras Hditora Ltda. Editor,

Wagner Veneziani Cosia Produção c Capai

Equipe Técnica Madras Tradução:

Julia Vidili Revisão:

Renata Assumpção Liliar.c Fernanda 1’edroso Amanda Maria de Carvalho Neuza Alves Dados Internacionais dc Catalogação na Publicação (CIP) _____________ (Câm ara Brasileira do Livro. SP, Brasil)___________ Durkheim, Lmile. 1S5S-1917. Montcsquicu c Rousseau: Pioneiros via Sociologia / Émile Durkheim : traduçào Julia Vidili. São Paulo: Madras. 2008. Título original: Montesc.uieú ei Rousseau: précurseurS de Ia sociologie ISBN 978-85-370-03 14-5 I . Monlesquieu. Charles de Seeondat. Baron dc. 1689-1755 - O espirito das leis 2. Rousseau. Jean-Jacques. 1712-177S - O contrato social 3. Sociologia - História 1. Tílulo. OS-OÜ15S CDD-30I.09 índices para catálogo sistemático: 1. Sociologia: História 3 0 1.09 Os iirreítos dc traduyào desta obra perleneem à Madras Editora, assim como a sua adaptação e coordenação. Fica. portanto, proibida a reprodução tora5 ou parcial desta obra. de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecâ­ nico. inclusive por meio de processos xcrográíicos. incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Madras hdi-ora. na nessoa de seu editor (í.ei n° 9.610. de 19.2.9S). Todos os direitos desta edição, cm língua portuguesa, reservados pela

índice P re f á c io ....................................................................................................... 7 A contribuição de M ontesquieu à ascensão da C iência S o c ia l.................................................................................... 13 C ondições necessárias para o estabelecim ento da C iência S o c ia l......................................................................................... 17 Até que ponto M ontesquieu definiu o cam po da C iência S o c ia l? ........................................................................................27 A classificação das sociedades por M o n tesq u ieu ..........................35 A te que pom o M ontesquieu acreditava que os fenôm enos sociais estào sujeitos a leis d efin id as?..........................47 O m étodo de M ontesquieu.................................................................... 59 C o n clu são ................................................................................................. 69 O Contraio Social de R o u sse a u ....................................................... 73 O estado de natu reza............................................................................. 75 Origem das so cied ad es..........................................................................85 O Contrato S ocial c o estabelecim ento do corpo p o liiic o ..........99 Da soberania em g e ra l..........................................................................111 Da lei em g e r a l..................................................................................... 121 Das leis políticas em p a rtic u la r......................................................... 127 C o n clu são ............................................................................................... 139

Prefácio A obra de David Ém ile D urkheim ( 1858-1917) exerceu notável influência sobre o desenvolvim ento do pensam ento social, e. em bora vinculado ao Positivism o de A ugustc C om te, que já preconizava a Sociologia com o a ciência da sociedade. D urkheim é considerado o principal fundador da Sociologia m oderna, um de seus “ pais" funda­ dores. Filho de rabino-chefe, teve seu período de m isticism o, tom ando-se agnóstico após algum tem po em Paris. No Lycce Louis-teG rand, localÍ7ado no Q uartir Latin, entre a Sorbonne. o C ollègc dc France e a Facultè de Droit, preparou-se para o baccalauréat, que lhe perm itiu entrar para a Fcole N orm ale Supérieure. estabelecim ento dc* prim eira plana na form ação universitária m undial, em 1879. Em 1872, recebeu a agregação» a condição de agrêgé de Philosophtc. Ensinou Filosofia em vários liceus da província (Sens. St. Quentin, Troves) e interessou-se pela Sociologia. Com o a França, em bora berço da disciplina, não apresentasse cursos regulares desta ciência, tirou um ano de licença (1885-S6) e foi para a A lem anha, onde se deparou com o trabalho de sociólogos da envergadura de M ax Wcber, p o r exemplo. Ao regressar, iniciou seu trabalho de professor universitário ao ser indicado p o r I.iard e F.spinas para m inistrar aulas de Pedagogia e C iência Social na Facultè des Lèttres de B ordcaux. dc I 887 a 1902.

s

M o n te s q u i e u c R ousse.v.i

Hste foi o prim eiro curso de S ociologia que se ofereceu em uma universidade francesa. lendo sido. pelo trabalho desenvolvido por Durkheim . transform ado em cJiaire magistrale cm 1896. Nessa ci­ dade. base dc intenso com ércio, m as calm a, encontrou condições adequadas para p ro d u zir sua obra. a com eçar por suas icses de doutoram ento. A principal. D e la division du tnivail social, que alcançou grande repercussão, foi publicada em IS93 c reeditada no ano em que deixou Bordeaux ( 1902), m ostrando, cm particular, que os ideais do individualismo expressam a em ergência de um novo tipo de ordem soci.il. capaz de transcender as formas tradicionais da socieda­ de pela ' ‘solidariedade orgânica”, envolvendo a m oralização das rela­ ções sociais, m esm o que essa nova ordem contrastasse radicalm ente com a antiga, vencida pelos preceitos da revolução burguesa de 1789. A sua tese com plem entar, escrita em latim , que visava apenas m ostrar a erudição do candidato, foi publicada em iS92, m as em francês, só em 1953. sob o títu lo de M om esquieu et Rousseau: précurseurs de la Sociologie, e é o texto que ora se ap resenta integralm ente vertido do latim a o português. L o g o ap ó s, cm 1895. p u b lico u Les règles de la méthode

so cioiogique c, a p e n a s dois an o s d e p o is, Le su icid e - éiude socioiogique. Três quartos da obra sociológica de D urkheim foram editados em seis anos. com o pudem os ver. Em Paris, foi nomeado assistente de B uisson na cadeira dc Ciên­ cia da Educação na Sorbonnc em 1902 e. em 1906, com a m orte do titular, assumiu com o catcdrático c. já cm 1910. conseguiu transformála em cátedra de Sociologia, consolidando o statas acadêm ico dessa nova disciplina na m aior instituição universitária francesa. Suas aulas na Sorbonne transform aram -se em eventos relevantes, exigindo um grande anfiteatro para com portar o elevado núm ero de ouvintes.

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N'a adolescência. D urkheim testem unhou acontecim entos que m arcaram decisivam ente todos os franceses: em setem bro de 1870, a derrota dc Sedar;; cm 28 de jan eiro de 1871. a capitulação diante das tropas alem ãs: de IR de m arço a 28 de m aio, a insurreição da Com una de Paris; cm setem bro do m esm o ano, a proclam ação da 111 República, com a form ação do governo provisório de T hiers até a votação da C onstituição de 1875 e a eleição do seu prim eiro presi­ dente (M ac-M ahon). T hiers fora encarregado de assinar o tratado de F rankfurt e de reprim ir os communards. A lém disso, acom pa­ nhou a pendenga fraiico-alem à: em 1871. os franceses perderam parte da Lorcna. sua região natal, im portante área de jazidas de ferro situ ad a em V osges, e, com isso, Épinal to m o u -se um a cidade fronteiriça. Durante a Prim eira G uerra M undial, viu p artir para o front vá­ rios de seus discípulos, inclusive seu fílho A ndrês (m orto na retirada sérvia de 1915-16), que parecia vocacionado à Sociologia, entre os quais poucos voltaram . N esse entretem po, por força da derrota, das dívidas de guerra e pelo enfraquecim ento moral decorrente, algum as m edidas políticas acarretaram , à luz de D urkheim . im pactos ao estado dc coisas. A prim eira é a instituição do divórcio na F rança (Lei N aquei) e a se­ gunda, a im plantação da instrução laica, por jules Ferry. M inistro da Instrução Pública, em 1882. A escola tornou-se obrigatória (e gratui­ ta) dos 6 aos 13 anos, c o ensino religioso tornou-se proibido, sendo substituído pela “instrução moral e cívica” . Em 1895. a criação da C onfédêration G enerale du Travail (CG T), no C ongresso de Lim oges, expunha a tensão das relações entre proletários e patrões, mas não excluía um a espécie de euforia, de alegre expectativa com a chegada do novo século e com a expan­ são dc novas tecnologias. Assim , apesar de uma sucessão de crises do C apitalism o em 1900-01.1907,1912-13. o aço. a eletricidade (que

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substituía o carvão) c o petróleo apontavam possibilidades novas de produção em escala e, se isso agravava os problem as de concentração de renda, sugeria, pelo m enos, a m anutenção c o crescim ento do em prego. Essa Segunda R evolução Industrial, a do m otor de com ­ bustão interna, do dinam o e da telegrafia, rem etia a um a sucessão de descobertas que m udariam definitivam ente o destino da H um anida­ de: o autom óvel; o avião, as rotativas c o linotipo; o rádio, o cinem a prefigurando alterações sociais im portantes. E.

se ludo leva à produção em série, à intercam biabilidade da

peças, isto c. à possibilidade de substituir qualquer peça de qualquer organism o m ecânico sem que as demais devam ser adaptadas - sendo esse o grande m arco da produção serial, também o trabalhador precisa ser reeducado para cooperar nesse tipo de produção - . surgem as grandes teorias de produção co m o o fordism o, o fayolism o e o tavlorismo. Essa excessiva necessidade de produzir, tão bem exposta ao ridí­ culo em Tempos Modernos de Chapim , aum enta ainda mais as ten­ sões entre o patronato e operários, e a Igreja trata da questão mediante a enciclica Rerum Novarum , de Leão XIII, impressa em 1891 e que propõe que a desproletarizaçâo, isto é, a inserção do proletário, dc algum a forma na esfera do investimento, poderia reduzir as tensões sociais. S urgem idéias in teressan tes com o o co o p erativ ism o , o corporativismo, a participação nos lucros, a inclusão de operários no planejam ento da atividade industrial, etc., isto é, surge o “espirito mo­ derno”. Na Ecole N orm ale Supérieure, na qual ingressara após dois frustrados vestibulares, o jovem Durkheim convivera com intelectuais brilhantes: Nenri B ergson e Jean Jaurès foram seus veteranos; Jant e Brunot foram seus colegas de classe e todos tiveram o professor Em ile Boutroux corno influência determ inante de seus ensinam entos em uma época m arcada pelo progresso da ciência, agora capaz de

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transform ar a realidade pelo progresso da dem ocracia, cm decorrên­ cia do voto secreto c da m aior participação do povo nos assuntos públicos, além do aum ento do bem -estar geral (W eltare Stare) e do acesso gera! à instrução gratuita e ditusão do m aterial im presso, com o jornais, revistas e livros. M as seu laborioso trabalho de pesquisa e ensino foi interrom ­ pido no fim de 1916, quando teve um ataque e. em bora parcialm ente recuperado, nào mais reuniu condições de prosseguir, vindo a falecer em 15 de novem bro de 1917, na cidade de Paris. O b ra s (le D u rk h e im : i 893 - Da ia division du travai! social. 1895 - Les règles dc la mãthoda socioiogique. 1897 - Le suicide. E rude socioiogique. 1912 - Lesfonv.es êl ementa iras da lu vie religieuse. 1922 - Êducation et Soaologie. 1924 Sociologia d Philosophie. 1925 - L 'êducation moràle. 1928 Le socialisma: sa dáfinition; ses débuts: la doerri ne

saim-simoniénne. 1938 - L 'évoiution pédagogique en Franca. 1950 Leçons de Sociologia: Physiqua dês níoeurs er du Droir. 1953 - M ontesquieu «?/ Rousseau: preeurseurs dela Sociologia. 1955 - Pm gm atism e at Sociologie. 1969 - .Journal Socioiogique. 1970 - La Science sociaie ei l 'aclion. 1975

Te.xtes.

Márcio Pugliesi Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito paia Universidade de São Paulo; Professor da Sociologia do Direito. Teoria Gerai do Direito e Filosofia do Direito no mestrado a doutorado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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A contribuicão de Montesquieu à ascensão da Ciência Social 1 o

Ignorantes de nossa história, adquirim os o hábito dc encarar a C iência Social com o algo estranho a nossos hábiios e ao espirito francês. O prestigio de trabalhos recentes sobre o assunto, escritos p o r em inentes filósofos ingleses e alem àes, fizeram -nos esquecer que essa ciência veio à iuz em nosso país. Não foi apenas um fran­ cês. A ugusto Com te. que firm ou seus prim eiros alicerces, çjisiinguiu suas p an es essenciais e a cham ou S ociologia bárbaro, na verdade

um nom e um tanto

com o tam bém o próprio ím peto de nossa

atual preocupação com problem as sociais veio de nossos filósofos do século X V III. N esse brilhante grupo de escritores. M ontesquieu ocupa um lugar de destaque. Foi ele quem , no livro Espirito das

f.eis. expôs os princípios da nova ciência.

; A tese em latim de Hmile Durklieiti?, Quirí Secundanis poiiticae seiemiae nsrircnàae conndcrii. foi impressa em Hordeaux, em I$9?. pela Imprimcric Gounouiihou: c dedicada a hustel de Coulan&es. tfma irutiução
M o n te s q u ie u e K o u s s e a u

Para ser exato. M ontesquieu nào tratou dc todos os fenômenos sociais nessa obra, m as apenas de um tipo em particular, as t e . A pesar disso, seu m étodo de i nterpretação das diversas form as de direito tam bém é válido para outras instituições sociais e pode, de modo geral, ser aplicado a ela?;. Com o as leis abrangem toda a tfida social, ele traia necessariam ente de quase todos os aspectos d a so­ ciedade. A ssim , para explicar p. nature7a do direito dom éstico, para m ostrar com o as !cis se harm onizam com a religião, a m oralidade, etc., ele é obrigado a investigar religião, m oralidade e a fam ilia, de form a que, na verdade, escreveu um tratado sobre os fenôm enos sociais com o um todo. Nào quero dizer com isso que a obra de M ontesquieu contém m uitas p ro p o siç õ e s q u e a c iê n c ia m oderna pode ac e ita r com o teorem as bem dem onstrados. Q uase todos os instrum entos dc que precisam os para explorar a natureza das sociedades eram inexisten­ tes no tem po de M ontesquieu. A ciência histórica vivia sua infância e com eçava a se desenvolver; o s relatos dc viajantes sobre povos dis­ tantes eram raros e pouco confiáveis; a estatística, que nos capacita a classificar os diversos eventos da vida (m ortes, casam entos, cri­ m es. etc.) segundo um m étodo definido ainda nào era usada. Além disso, com o a sociedade é um grande organism o vivo com uma m en­ te característica com parável à nossa, um conhecim ento da m ente hum ana e suas leis nos ajuda a perceber as leis da sociedade com mais exatidào. No últim o século, esses estudos csiavam cm seu es­ tágio m ais prim itivo. A lém disso, a descoberta de verdades inquestio­ náveis não é, de form a algum a, o único m odo de coniribuir para a ciência. É igualm ente im portante conscientizar a ciência de seu as­ sunto. sua natureza e m étodo e preparar as bases sobre as quais se estabelecerá. Foi exatam ente o que M ontesquieu fez por nossa ciên­ cia. Ele nem sem pre interpretou a história corretam ente, e é fácil

A c o n t r i b u iç ã o d c M o n te s q u ie u à a s c e n s ã o 02 C iê n c ia S o cial

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dem onstrar seus erros. Mas ninguém antes dele fora tào longe na estrada que levou seus sucessores à verdadeira Ciência Social. N in­ guém cmrcvira tão claram ente as condiçòes necessárias para o esta­ belecimento dessa disciplina. C om ecem os por estabelecer essas condições.

Condições necessárias para o estabelecimento da Ciência Social

m ______________________________________________________________________________________ Uma disciplina só pode ser cham ada ciência se tiver um cam po definido a explorar. A ciência traia de coisas, realidades. Se nào tiver um m aterial definido a descrever e interpretar, existe um vácuo. Além da descrição e da interpretação da realidade, ela nào pode ter fcnçào real. A Aritm ética trata de núm eros; a Geometria, de espaço e figuras: as C iências Naturais* de corpos anim ados e inanim ados; e a Psicolo­ gia, da m ente hum ana. A ntes que a C iência Social pudesse com eçar a existir, era preciso atribuir-lhe um assunto definido. A prim eira vista, esse problem a nào apresenta dificuldade: o assunto da C iência Social sào as "coisas” sociais, ou seja, leis, costu­ mes, religiões, etc. Todavia, se olharm os para a história, percebem os que, até bem recentem ente, nenhum filósofo jam ais encarara esses assuntos sob essa luz. Pensavam que todos os fenôm enos dependiam da vontade hum ana e. por isso. nào conseguiram perceber que eles sào os verdadeiros objetos, com o todas as outras coisas na natureza, que têm suas características particulares e, conseqüentem ente, exi­ gem ciências que possam descrevê-los e explicá-los. Parecia-lhes -1 7 -

M o n tesq u ieu e Rousscau

suficiente afirm ar aquilo por q u e a vontade hum ana deve lutar e o que deve evitar em sociedades constituídas. D esse m odo. eles nào procuravam conhecer o que realm ente são os fenôm enos sociais, sua natureza e origem , m as o q u e eles deveriam ser: seu objetivo nào era oferecer um a im agem da natureza tào verdadeira quanto possível, m as confrontar nossa irnaginaçào com a idéia de uma sociedade perfeita, um m odelo a ser seguido. M esm o A ristóteles, que dedicou m uito m ais atenção que Platàc à experiência, tinha com o objetivo descobrir não as leis da existência social, m as a m elhor forma de sociedade. Ele parte d a suposição de que o único objetivo dc uma sociedade deve ser obter a felicidade d c seus m em bros por meio da prática da virtude, e que a virtude reside na contem plação. Nào esta­ belece esse princípio com o uma lei que as sociedades realm ente ob­ servam , m as com o uma que devem seguir para que os seres hum a­ nos possam estar de acordo com sua natureza específica. M ais tar­ de. é verdade, ele se volta para os fatos históricos, m as sem outro objetivo senào o de julgá-los e m ostrar com o seus próprios princípios poderiam ser adaptados a diversas situações. Os pensadores políti­ cos que vieram depois dele seguiram seu exem plo em m aior ou m e­ nor grau. Tenham eles com pletam ente ignorado a realidade ou presta­ do um a cena atenção a ela. têm todos um único propósito: corrigi-la ou transform á-la com pletam ente, cm vez de conhecê-la. Xão tinham pra­ ticam ente qualquer interesse no passado c no presente, m as olhavam para o futuro. E uma disciplina que olha para o futuro carece de um assunto determ inado c, por isso. nào deve ser cham ada de ciência, mas de arte. A firm o que essa arte sem pre envolveu um a ce n a ciência. N in ­ guém já afirm ou que determ inado tipo de Estado c preferível a outro sem tentar apoiar sua preferência com provas, e essas provas têm de se basear em algum a realidade. Se: por exem plo, consideram os a dem ocracia superior à aristocracia, devem os m ostrar que ela é mais conform e à natureza hum ana ou apontar exem plos históricos que dem onstram que as nações que gozaram de liberdade eram superio­ res às que não a tinham , etc. Q uando procedem os m etodicam ente -

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seja ao explorar a natureza ou ao definir regras de com portam ento devem os reverter às coisas, ou seja, à ciência. M as com o os escritores inclinam -se a derivar suas opiniões a respeito desses assuntos da existência hum ana e nào do estado das sociedades, essa ciência - se podem os cham á-la assim - norm al­ m ente nada contém de verdadeiram ente social. Quando um autor dem onstra que os hom ens nasceram para a liberdade ou, ao contrá­ rio, que aquilo de que precisam acim a de tudo é segurança, c a partir disso conclui que o Estado deve ser constituído de tal ou tal forma, onde, nisso tudo, está a C iência Social? Tudo o que se parece com ciência nessas discussões vem da Psicologia e o que se relaciona à sociedade tem a natureza de arte. Quando um a descrição ou interpre­ tação dos fenômenos sociais de fato ocorre, representa um papel ape­ nas secundário. Isso se aplica à teoria de A ristóteles sobre as causas subjacentes ã m odificação ou à derrocada d c regim es políticos. A lém disso, quando a ciência se envolve com a arte, sua natu­ reza especifica tende a ser alterada; ela degenera em algo duvidoso. A rte é ação: é im pulsionada pela urgência e qualquer ciência que possa conter é em purrada junto. O fato é que sem pre que precisam os decidir o que fazer c tais decisões são o papel da arte nào pode­ m os tem porizar dem ais: devem os nos decidir tào rapidam ente quanto possível porque a vida continua. Se o Estado está doente, é impossível continuar duvidando e hesitando ate que a Ciência Social tenha des­ crito a natureza da m oléstia e descoberto suas causas: deve-se tom ar uma atitude sem demora. Porem , som os dotados de inteligência e da faculdade de deliberação; nào tom am os nossas decisões ao acaso. D evem os com preender, ou ao m enos pensar que com preendem os, as razões para nossos planos. Por isso apressadam ente reunim os, com ­ param os e interpretam os os fatos que nos caem nas m ãos; em suma. im provisam os um a ciência conform e prosseguim os, de form a que nossa opinião parece ter um alicerce. Esse ê o tipo de ciência - enor­ m em ente adulterada, com o se pode ver im ediatam ente - que encon­ tram os na aite. M as com o procedem os sem método, essa ciência nào

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oferece m ais do que probabilidades duvidosas, que têm tanta autori­ dade quanto quiserm os lhes eonceder. Se agim os com base nelas, não ê porque o s argum entos em que parecem se basear nào deixam espaço para incerteza, m as porque se adaptam a nossos sentim entos pessoais; elas invariavelm ente levam à m esm a direção que nossas inclinações espontâneas. A lém do mais. quando nossos inteYcsses pessoais estào am eaçados, tudo m exe com nossas em oções. Q uan­ do algum a coisa afeta seriam ente nossa existência pessoal, som os incapazes de exam iná-la com atcnçào e calm a, líá coisas de que gostam os, outras que detestam os; outras, ainda, que desejam os, e a cada situação trazem os nossos gostos, desgostos e desejos, iodos obstáculos à reflexão. Além disso, nào há um a regra firm e e rápida que possa nos capacitar a perceber o que é intrinseeam ente útil e o que nào é, pois a m esm a coisa pode ser útil em um aspecto e danosa em outro. C om o a utilidade e o prejuizo não podem ser com parados m atem aticam ente, cada indivíduo age de acordo com sua própria natureza e. seguindo sua inclinaçào pessoal, concentra sua atençào em um único aspecto da coisa e negligencia o outro. A lguns hom ens, por exem plo, sào tão inflam ados pela idéia d e harm onia entre os cidadãos que nada consideram tão im portante quanto um Estado for­ tem ente unificado e nào se perturbam com a supressão de liberdade que isso possa gerar. Para outros, a liberdade vem antes de tudo. A reunião de argum entos com os quais esses hom ens apóiam suas opi­ niões não refiete fenôm enos, realidades ou a verdadeira ordem das coisas, m as sim plesm ente estados de mente. Esse procedim ento é o oposto da verdadeira ciência. A eiência é tào diferente da arte que apenas pode ser fiel à sua própria natureza ao declarar com pleta independência, ou seja. ao aplicar-se, com total desconsideração pela utilidade, a um objeto definido com o fito de conhecê-lo. D istante de debate público ou privado, livre de qualquer necessidade vital, um cientista deve dedicar-se a seus estudos na paz e na quietude do gabinete, sem que algo o force a apressar suas conclusões além do justificável por seus ar­

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gum entos. M esm o em questões abstratas, sem dúvida, nossas idéias vèm do coração, pois ele é a fonte de toda nossa vida. M as para que nossos sentim entos nào nos façam dispersar, devem ser governados pela razão. A razão tem de ser posta acim a dos acidentes e contin­ gências da vida. pois. de outra form a, tendo m enos força que os d e­ sejos de todos os tipos que nos anim am , inevitavelm ente tom ará a direção p or eles imposta. Isso nào quer dizer que a ciência seja inútil na condução da vida hum ana. M uito pelo contrário. Q uanto m ais definida a distin­ ção entre a Ciência e a A rte. m ais útil a prim eira pode ser à segunda. O que é m ais desejável para um ser hum ano do que ser sadio na m ente e no corpo? A penas a ciência pode nos d izer o que constitui um a boa saúde física e m ental. A C iência Social, que classifica as diversas sociedades hum anas, nào pode deixar de descrever a form a normal da vida soeial em cada tipo de sociedade, pela sim ples razào de que descreve o tipo em si: o que quer que pertença ao tipo é nor­ mal, e o que quer que seja normal ó saudável. A lem disso, com o um outro ram o da ciência trata de doenças e suas causas, som os infor­ m ados não apenas a respeito do que ê desejável, m as tam bém sobre o que deve ser evitado e com o os perigos podem ser afastados. Por isso. é im portante para a própria arte que a ciência seja separada e, por assim dizer, em ancipada dela. M ais que isso, cada ciência deve ter seu objeto específico; pois se com partilhasse seu objeto com as outras ciências, seria in­ distinguível delas.

[ i i i ____________________________________________________________________________________ N em todos os assuntos adm item o estudo cientifico. A prim eira tarefa da C iência é descrever com o são as realida­ des com que lida. M as se essas realidades variarem entre si em um grau tal que não constituam urn tipo, nào poderão ser descritas por q u alquer m étodo racional. Terão de ser consideradas um a a uma. cada qual independente das outras. M as cada caso individual envol­

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ve um núm ero infinito de propriedades, entre as quais nenhum a es­ colha pode ser feita: o que c infinito não pode ser descrito. Ü m elhor que poderíam os fazer seria tratar essas realidades à m aneira dos poe­ tas c contadores de histórias, que retraiam as coisas com o parecem ser, sem m étodo ou procedim ento racional. Se. p o r outro lado, as realidades podem ser reduzidas a um íipo. elas apresentam algo que pode ser acuradam ente definido e que caracteriza o tipo em questão, pois as características com uns ao mesmo tipo sào finitas cm núm ero e sua essência é m anifesta. Precisam os apenas reunir esses indivíduos e notar seus pontos em com um . Em sum a. a cicncia nào pode descre­ ver indivíduos, m as apenas tipos. Se as sociedades hum anas não p o ­ dem ser classificadas, perm anecem inacessíveis à descrição científica. t. verdade que A ristóteles distintos, h á m uito tem po, entre m o­ narquia. aristocracia e KÕÂiTia [politia]. M as os tipos de sociedade nào devem ser confundidos com os diferentes tipos de Estado: duas cidades podem ser de tipos diferentes, m as governadas do m esm o modo. Assim , algum as das ftoX£iç[/w//.v], as cidade-estado gregas, e a m aioria das nações bárbaras poderiam ser corretam ente cham adas de m onarquias e eram de falo denom inadas assim por A ristóteles porque am bos os grupos eram governados por reis. Todavia, eram de natureza diferente. Além disso, uma m udança no sistem a de governo de um a naçào nào envolve necessariam ente um a m udança no tipo prevalescente dc sociedade. C onseqüentem ente, a classificação das sociedades feita por Aristóteles nada nos diz a respeito dc sua nature­ za. Os filósofos posteriores que trataram do assunto aceitaram sua ciassificaçào e nào tentaram estabelecer um a outra, pois julgavam im possível com parar sociedades hum anas sob qualquer outro aspec­ to que não a form a do Estado. Os outros fatores - m oralidade, reli­ gião, vida econôm ica, família, etc. - pareciam tào fortuilos e variáveis que ninguém pensou em classificá-los em tipos. Todavia, esses fatores têm uma fone influência sobre a natureza das sociedades; são o ver­ dadeiro recheio da vida e, conseqüentem ente, o assunto da Ciência Social.

C o n d iç ò è S n e c e s s á r ia s p a r a o e s ta b e le c im e n to d a C iê n c ia ...

IJUULI A descrição, porém , c apenas o prim eiro passo do procedim en­ to cientifico, que é com pletado pela interpretação. F. a inierpretação exige ainda um a condição que, p o r m uito tem po, se ju lg o u faltar nos fenôm enos sociais. Interpretar coisas é sim plesm ente arranjar nossas idéias a res­ peito delas cm um a ordem determ inada, qi;e deve ser a m esm a das próprias coisas. Pressupom os, assim , que um a ordem está presente nas próprias coisas, que elas form am séries continuas, cujos elem en­ tos estão relacionados de tal form a que um dado efeito é sem pre produzido pela m esm a causa e nunca por qualquer outra. Se supu­ serm os. porém , que não existe essa relação causai e que os efeitos podem ser produzidos sem um a causa ou por qualquer causa, tudo se torna arbitrário e fortuito. M as o arbitrário não adm ite interpretação. Por isso, deve-se fazer uma escolha: ou os fenôm enos sociais sào incom patíveis com a ciência ou sào governados pelas m esm as leis que o restante do Universo. Este nào é o lugar para um exam e cuidadoso da questão. D ese­ jam o s apenas m ostrar que se as sociedades nào estão sujeitas a essas leis, nenhum a Ciência Social c possível. E sem C iência nào pode haver Arte, a m enos que. ao estabelecer as regras da vida hum ana, lancem os mão de uma faculdade diferente da razão. Todavia, com o o princípio de que todos os fenôm enos do Universo estão firm em en­ te inter-relacionados foi testado nos outros dom ínios da natureza e nunca se m ostrou falso, ele tam bém é válido, com toda probabilida­ de. para as sociedades hum anas, que são parte da natureza. Parece contrário a qualquer m étodo sensato supor que existem todos os ti­ pos de exceções a essa regra, quando conhecem os apenas um único exem plo. M uitas vezes já se argum entou, na verdade, que a necessi­ dade c irreconciliável com a liberdade hum ana, mas. com o já de­ m onstram os alhures2, esse argum ento deve ser excluído J á que, se a 2. D a d iv is ã o d o tr a b a lh o s o c ia l, pp. 1 c 11.

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M o iu e s c m ic i: c R w is sc .m

liberdade realm ente elim ina a lei. disso advem , um a vez que a vonta­ de hum ana inevitavelm ente se m anifesta em coisas externas, que nào apenas a m ente, m as tam bém o corpo e os Seres inanim ados terào de ser considerados estranhos a qualquer ordem e, portanto, à ciência. M as hoje ninguém ousaria questionar a possibilidade da Ciência Na­ tural. Nào há razão por que a C iência Social não deva gozar do m esm o estatuto. T odavia os hom ens, e m esm o os filósofos, sào naturalm ente inclinados a excluir os princípios que estam os discutindo dos fenô­ m enos sociais. N orm alm ente, pensam os que os únicos m otivos sub­ jacentes a nossos atos sào os conscientes c negam os a existência de outros porque não os sentim os. A ssum im os a m esm a atitude em re­ lação a instituições sociais, atribuindo im portância prim ordial às cau­ sas m ais aparentes, em bora elas derivem seu poder de outras causas. F. urna tendência natural considerar o que vem prim eiro na ordem do conhecim ento com o a prim eira coisa na ordem da realidade. E. no caso das intituiçòes políticas, legais e religiosas, nada h á de mais m anifesto, de m ais pungente, que a personalidade daqueles que go­ vernaram Estados, esboçaram leis e estabeleceram cerim ônias reli­ giosas. Assim , a vontade pessoal de reis, legisladores e profetas pa­ rece ser a fonte da qual nasce toda a vida social. Seus atos sào reali­ zados à vista de todos: nada h á de obscuro a respeito deles. O utros fenôm enos sociais, porém , sào m uito m ais difíceis de perceber. F.ssa é a origem da difundida superstição de que um legislador dotado de um poder quase ilim itado é capaz de criar, m odificar e descartar leis a seu bel-prazer. Em bora os historiadores m odernos tenham dem ons­ trado que a lei deriva do costum e, ou seja. da própria vida, por um processo de desenvolvim ento quase im perceptível não relacionado às intenções com binadas tios legisladores, essa opinião tem raízes tão profundas na m ente hum ana que m uitos insistem nela. M as aceitála c renegar a existência de qualquer ordem determ inada nas socie­ dades hum anas, pois se isso fosse verdade, as leis. costum es e insti­ tuições não dependeriam da natureza constante do Estado, m as do

C o n d iç õ e s n e c e s s á r ia s p a r a o e s ta b e le c im e n to d a C iê n cia.

acaso que deu preferência a um legislador ao invés dc um outro. Se os m esm os cidadãos sob um governante diferente pudessem produ­ zir um E stado diferente, isso significaria que a m esm a causa, agindo sob as m esm as circunstâncias, teria o poder de produzir efeitos di­ versos: nào haveria cio racional entre os fenôm enos sociais. N ada atrasou tanto a C icncia Social quanto esse ponto dc vista, que os filósofos, seja consciente ou inconscientem ente, tam bém acei­ taram . Os outros obstáculos aos quais nos referim os ou que devem os discutir m ais adiante nào podem ser rem ovidos enquanto este ainda tiver força. Enquanto tudo nas sociedades hum anas parecia tão abso­ lutam ente fortuito, ninguém teria pensado em classificá-los. Nào pode haver tipos nas coisas a m enos que haja causas que. em bora operantes em diferentes locais e distintas épocas, sem pre e em toda parte pro­ duzam os m esm os efeitos. E onde está o objeto da C iência Social se o legislador pode organizar e dirigir a vida social com o quiser? 0 assunto da ciência apenas pode consistir de coisas que tenham um a natureza estável e sejam capazes de resistir à vontade humana. Quando as coisas sào infinitam ente flexíveis, nada nos im pele a observá-las e elas nada oferecem que se preste à observação. Pois se tivessem um caráter próprio, seria im possível m anipulá-las ã vontade. Isso expli­ ca p o r que. p or m uito tem po, a C iência Social era apenas um a arte. M as, poder-se-ia argumentar, ninguém jam ais negou que a cicn­ cia da natureza hum ana é indispensável a quem quer que queira go­ vernar seres humanos. Claro. M as, com o dem onstram os, essa ciência devc scr cham ada Psicologia c nào C iência Social. Para que esta de fato exista, é preciso supor que as sociedades possuem um a certa natureza que resulta da natureza e do arranjo dos elem entos que as com põem , c que é a fonte dos fenôm enos sociais. U m a vez que a existência desses elem entos é assegurada, nosso legislador desapa­ rece ju n to com sua lenda.

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MontssqxiSeu e Rou sscau

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Entretanto, nào basta ter um assunto cientificam ente cognoscivcl. Se tipos e leis perm anecem lào escondidos nas profundezas das coisas que nào há m odo de percebê-los, a ciência dos fenôm enos naturais perm anecerá eternam ente em um estado de m era possibili­ dade. Antes que ela possa dc fato p assar a existir, devem os possuir um m étodo apropriado à natureza das coisas estudadas e aos requisi­ tos da ciência. N ão se deve supor que esse m étodo vem espontaneam ente no m om ento em que abordam os um a ciência. Pelo contrário, só o en­ contram os depois de m uitas tentativas. Foi apenas m uito recente­ m ente que os biólogos descobriram com o estudar as leis da vida com a observação de criaturas vivas reais. A Psicologia tam bém tateou p o r m uito tem po antes de conseguir organizar um m étodo próprio. A Ciência Social enfrenta dificuldades ainda m aiores. O s fenôm enos de que trata sào tão diversos q u e aquilo que têm em com um parece estar oculto ã vista. São tào fluidos que parecem enganar o observa­ dor. C ausas e efeitos sào tào entrelaçados que é necessário tom ar um extremo cuidado para desembaraçá-los. Além disso, é impossível fazer experiências com sociedades hum anas e não é fácil encontrar um m étodo que possa tom ar o lugar rfo experim ento. Fica claro que o m étodo nào pode ser estabelecido antes que a ciência com ece a to­ m ar form a; o m étodo deriva da ciência, em bora tam bém seja indis­ pensável à ciência. Vamos agora ver até q u e ponto M ontesquieu, no Espirito das

Leis. obedeceu a essas condições indispensáveis à Ciência.

Até que ponto Montesquieu definiu o campo da Ciência Social? m ______________________________________________________________________________________ Parccc estranho que tenha havido tanla discussão a respeito do propósito de M ontesquieu ao escrever seu livro, pois ele afirm a seu objetivo em diversos trechos: “Este livro trata das leis. costum es e diversas práticas de todos os povos da Terra. Seu assunto é vasto, pois engloba iodas as instituições que vigoram entre os seres hum a­ nos". M ontesquieu tenta chegar ao fundo dos fenôm enos sociais para “buscar as origens e descobrir suas causas m orais e físicas” . Quanto a representar o papel de legislador, ele afirm a com m odéstia que isso está alem de seus poderes. De fato, toma cuidado particular para não im itar aqueles que tentam reconstruir a sociedade a partir do zero: “ Não escrevo para censurar o que quer que esteia estabelecido em qualquer país que seja. Todas as nações encontrarão aqui as razões em que suas m áxim as se baseiam ... Se apenas eu pudesse ter èxito em fornecer a cada hom em novas razões para am ar seu príncipe, seu país, suas leis; novas razões para torná-lo m ais sensível, cm toda -2 7 -

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M ontesquieu e R ousscau

nação c governo, às bênçàos que recebe, poderia considerar-m e o m ais feliz dos m ortais” . Ele cum priu tào bem esse objetivo que m uitas vezes foi censu­ rado por nào achar defeito em nada. por ter respeitado a realidade a tal ponto que nunca se aventurou a julgá-la. Porém , ele estava longe dc encarar os assuntos hum anos com essa serenidade; os que o acu­ sam de tal indiferença certam ente nào conseguiram com preender o significado de sua obra. Todavia. ele acreditava que m uitos costum es que se afastam dos nossos e que todos os povos europeus atualm ente rejeitam têm um a base legitim a na natureza de ecrtas sociedades. Afir­ m ava. p or exem plo, cue a poligam ia, falsas religiões, uma forma m oderada e hum ana de escravidão e m uitas outras instituições desse tipo haviam sido apropriadas para certos países e periodos. C onside­ rava até m esm o o despotism o, a form a de regim e político que mais detestava, necessário aos povos orientais. Disso nào devemos concluir que M ontesquieu m antinha-se afas­ tado dos problem as práticos. Pelo contrário, ele próprio declara estar tentando determ inar “as instituições m ais apropriadas à sociedade e a caca sociedade, as que tém algum grau de virtude em si m esm as e as que nào possuem , e das duas práticas perniciosas, qual o é em m aior e qual é em m enor grau", isso explica por que o livro nào trata apenas dc leis, m as tam bém das regras da vida hum ana; nào som ente com a C iência, m as tam bém com a Arte. De fato. ele pode. com certa justiça, ser acusado de nào ler conseguido distinguirnitidam enre entre Arte e Ciência. Ele não dedica um a parte de seu livro ao que é e outra ao que deveria ser; Arte e C iência estão tão m isturadas que m uitas vezes passam os sem perceber dc uma à outra. Na verdade, há dois conjuntos de problem as envolvidos e seu hábito de discuti-los si­ m ultaneam ente tem suas desvantagens, já que eles exigem m étodos diferentes. Todavia, nào c a m esm a confusão que reinou enire filósofos an­ teriores. Em primeiro lugar, a ciência de M ontesquieu é de fato Ciên­ cia Social. Trata de fenôm enos sociais. e não da vida do indivíduo.

A té QUc p o n t o M o n lc s u u ic u d c ts n r.i o c a m p o á d C iO n d a ._

Essa nova C iência nào é suficientem ente distinta da Arte,- m as ao m enos existe. E longe de ser sufocada sob problem as que envolvem ação. ela é o principal assunto de seu livro. É a senhora, m as nunca a serva da Arte, e por isso é m ais capaz de perm anecer fiel a sua natureza específica. O principal objetivo do autor é conhecer e expiicar o que existe ou existiu. A m aioria das regras que ele define são verdades - declaradas em outra linguagem - que a C iência já com ­ provou com seus próprios m étodos. Ele não está preocupado com a instituição de uma nova ordem política, m as com a definição de nor­ m as políticas. E qual a funçào da C iência se não a definição de nor­ mas? Com o a suprem a lei de todã sociedade é o bem -estar de seus m em bros, e com o um a sociedade não pode se preservar sem prote­ g er sua natureza específica, basta descrever essa natureza para de­ term inar por q u e aquela sociedade deve em penhar-se e o que deve evitar, pois a saúde é sem pre desejável e a doença deve ser evitada. Por exemplo: depois de dem onstrar que a dem ocracia só é possível em pequenos Estados. M ontesquieu nào tem dificuldade cm deter­ m inar que uma dem ocracia deve se abster dc estender suas frontei­ ras. Com o pudem os observar, apenas em casos excepcionais a Arte substitui a C iência sem am pla justificativa. Além disso, corno essas regras são estabelecidas por novos m étodos, sào m uito diferentes daquelas ditadas pelos escritores p o ­ líticos anteriores, que form ularam tipos que supostam ente trans­ cendiam todas as considerações dc local e época adequadas a ioda a hum anidade. Estavam convencidos de que um a única form a de regi­ m e político, um a única disciplina m oral e um a legal, era conform e à natureza de todos os hom ens, e que todas as outras formas encontra­ das na história eram m ás ou. no m inim o. im perfeitas, e deviam sua existência apenas ã inexperiência de seus fundadores. Essa necessi­ dade não nos surpreende. Esses escritores ignoravam a história e nào conseguiram perceber que os hom ens nào sào sem pre os m esm os em toda parte. que. pelo contrário, sào dinâm icos e diversificados, de form a que diferenças de costum es, leis e instituições sào inerentes á

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M o n L esq -u ieu e R o u s s e a u

natureza das coisas. M ontesquieu, porém , com preendeu que as re­ gras da vida variam com as condições de existência. Ao longo de suas investigações.ele observou diferentes tipos de sociedade, todas igualm ente “norm ais”, e nunca passou por sua cabeça estabelecer regras válidas para todos os povos. Eie adaptou suas regras para cada um dos diferentes tipos de sociedade. O alim ento da m onarquia é o veneno da dem ocracia. Porém , nem a m onarquia nem a dem ocracia são, em si m esm as, superiores a todos os outros regim es políticos. A conveniência de um a ou outra forma dc governo depende dc condi­ ções particulares de época e local.' Com o vem os, M ontesquieu nào era inteiram ente indiferente às vantagens das coisas que descreveu. M as tratava desses problem as segundo um novo m étodo. N ão aprovava tudo o que já havia sido feito, m as dividia o que era bom e o que não era baseado cm norm as derivadas dos próprios fenôm enos e. por isso, correspondentes ã sua diversidade.

[ i i ] ____________________________________________________________________________________ M ontesquieu traça uma acentuada distinção entre fenôm enos sociais e os fenôm enos estudados por outras ciências. Na verdade, ele define íeis que derivam da natureza do ho­ mem. qualquer que seja a form a particular de sociedade em que ele vive, c que p o r isso pertencem ao dom inio da Psicologia pura. Cha­ m a-as de leis da natureza. São elas: o direito de preservar a própria vida ou dc viver em paz, o direito de comer, o direito dc ceder à atração pelo sexo oposto e o direito de m anter relações sociais com seus próxim os. A crescenta que uma certa idéia de Deus é a primeira dás leis naturais em im portância, senão em ordem cronológica, em ­ 3. Ele. sem dúvida, admira a monarquia po rq u e vê maior arte em sua estrutura que na dc o u tras formas, tuas a seu ver isso nào é razão suficiente para considerá-la inirinsecamente a melhor forma dc listado. liem ao contrário, se uma monarquia fosse estabelecida cm urna sociedade com um pequeno número de cidadãos, essa sociedade, afirma eíe, estaria destinada a desaparecer.

A t e q u e p o n t o M o n t e s q u i e u d e f in iu o c a m p o d a C iên c ia ...

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bora sua relação com às outras leis não fiqtic bem clara. De qualquer m odo, esses fatores têm seu princípio c fim na vida dos indivíduos c não na da sociedade; no m áxim o, preparam o cam inho para a vida social, pois em bora o instinto que nos im pele a travar relações com outros hom ens abra o cam inho para a sociedade, ele nào produz as form as, a nátureza ou as leis da sociedade. As instituições sociais n ào p o d em ser ex p licad as por esses fatores. O tratam en to que M ontesquieu dá a todo esse problem a c apressado e superficial. O tópico não tem relaçào direta com o tem a dc seu trabalho. O filósofo passa p or ele apenas para definir seu assunto com m ais precisão, ou seja. para separá-lo dos problem as relacionados. D as leis naturais, ele distingue claram ente as leis relacionadas à sociedade, às quais dá um nom e especial porque nào podem ser inferidas pela natureza do hom em . Estas sào o assunto de seu livro, o verdadeiro objeto de sua busca: incluem o direito das nações, o d i­ reito civil, o direito político e todas as principais instituições sociais. M as devem os ter cuidado ao interpretar a term inologia de M ontes­ quieu. t verdade que ele não aplica o termo natural a essas diversas form as de direito, m as isso nào quer dizer que ele as considera estra­ nhas à natureza. Para ele, elas se baseiam na realidade, m as nào do m esm o m odo que as leis naturais, já que resultam não da natureza do hom em , m as da natureza das sociedades. Suas causas devem ser bus­ cadas em condições sociais, e nào na m ente hum ana. Se. por exem ­ plo. desejam os com preender o direito civil dc um a determ inada na­ ção. devem os considerar o tam anho de sua população c a natureza dos laços sociais entre seus cidadãos: se nosso objetivo è interpretar seu direito político, devem os exam inar as situações respectivas dos governantes e dos cidadàos com uns, etc. O bviam ente, com o as so­ ciedades sào com postas de hom ens individuais, sua natureza deve depender, em parle, da natureza dos hom ens. M as o próprio hom em varia de uma sociedade à outra: sua m entalidade nào é sem pre a m esm a, nem seus desejos iguais na m onarquia, na dem ocracia ou no despotism o. Se M ontesquieu aplicou a palavra “natural" apenas às

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M o n te s q u i e u c R o u s s c s u

leis d a vida individual - com o se as outras leis nào m erecessem ser cham adas assim isso deve ser atribuído aos hábitos de seu tempo. Para os filósofos d a época, um ‘‘estado de natureza” era o estado do hom em que vivia sem sociedade, e ‘i e is naturais" eram aquelas ãs quais o hom em se conform ava nesse estado. M ontesquieu aceitava o u so habitual do term o apesar da am bigüidade que envolvia. A visào de M ontesquieu a respeito dos fenôm enos sociais deu origem a um a nova filosofia do direito. A té aquele m om ento, exis­ tiam duas escolas dc pensam ento. De acordo com um a delas, o direi­ to em geral nào tinha raizes na natureza das coisas, m as era estabele­ cido pela Vontade deliberada de seres hum anos por m eio de algum tipo de acordo original. A outra afirm ava que apenas um a parte do direito era natural, ou seja. a pane que podia ser derivada da noção geral de hom em . A penas a natureza do hom em individual parecia suficientem ente estável e bem definida para servir com o um a base sólida para o D ireito. D esse m odo. essa escola tinha uma opiniào m uito parecida com a dos filósofos anteriores. Como apenas os prin­ cípios básicos dos quais havia m uito poucos podiam ser relacio­ nados á natureza do hom em , as incontáveis leis particulares em que abundavam os códigos das diversas nações eram um produto hum a­ no artificial. Esses pensadores, sem dúvida, discordavam de Hobbes. que negava que o hom em íosse im pelido ã vida social p o r um im pul­ so natural. A creditavam ainda que as form as políticas e a m aioria das instituições sociais, senào ap ro p ria sociedade, eram produtos de pura convenção. M ontesquieu, p o r outro lado. declara que nào apenas as ieis gerais, m as tam bém todo o sistem a de leis. passadas c presentes, eram “naturais'5. Todavia, suas leis não vêm da “natureza” do ho­ mem . m as daquela do organism o social. Ele com preendia com es­ pantosa lucidez que a natureza das sociedades não é m enos estável e consistente que a do hom em e que nào é m ais fácil m odificar o tipo de uma sociedade do que a espécie de um anim al. Assim , é bastante injusto com parar M ontesquieu com M aquíavel, que via as leis com o m ero s in stru m en to s que o s p rín c ip e s p o d iam u sa r co m o lhes aprou\ esse. M ontesquieu estabeleceu o Direito em um a base tão fir­

A te q u e p o n t o M o n t e s q u ie u d e í i n k i o c a m p o

C i c n c i.i - _________

m e quanto G rócio e seus discípulos, em bora, com o dissemos» de um m odo inteiram ente novo. É verdade cue em diversos trechos ele parece falar de certos princípios, inclusive princípios de D ireitos civil e politico. com o se eles fossem auto-suficientes e independentes da natureza das socie­ dades. “ A ntes que as leis fossem feilas” . ele escreve, “havia relações de possível justiça. D izer que nada há de justo ou in justo senào o que é ordenado ou proibido por leis positivas é o m esm o que falar que antes da descrição de um circulo nem todos os raios eram iguais." Xão obstante, esse trecho nào é. de forma algum a, conflitante com a interpretação apresentada acim a. D izer que os sistem as legais das sociedades tèrn raízes na natureza não é concluir que não há sem elhança entre as leis e costum es d e diferentes povos. Assim como todas as sociedades, m esm o as m ais dessem elhantes têrn algo em com um , tam bém certas leis podem ser encontradas em todas as soci­ edades. Essas são as leis que M ontesquieu considera adequadas à sociedade em geral. Presentes onde quer que a sociedade exista, es­ tão im plícitas na própria noção de sociedade e podem ser explicadas por ela. Assim , sua verdade pode ser dem onstrada, não im porta se foram de fato estabelecidas pelo hom em ou se as sociedades existem ou se nunca existiram . B asta concebê-las com o possíveis. Em outro trecho, M ontesquieu cham a a essas leis de lei ern um sentido absolu­ to e universal e declara que elas não são mais que a razao hum ana considerada com o o poder que governa iodas as sociedades, ti a s podem ser deduzidas, pela pura força da razào. a partir da definição de sociedade, logo que se tenha essa definição. Talvez porque pos­ sam ser encontradas em todas as nações e sejam concebidas, em cer­ to sentido, com o anteriores ao estabelecim ento das sociedades, ele nào as distingue claram ente das leis da natureza. I lá apenas um a objeção justificada a essa doutrina: é que ela divide o Direito e a Ética, que sào um só. ern duas partes diferentes em origem e em natureza. Nào é fácil perceber com o elas se unem . principalm ente porque m uitas vezes estão em desacordo. O D ireito

M cm U rsquieu c R otisscau

natural e o direito civil ou politico às vezes exigem atitudes conflitantes. Se não tiverem um a base com um , com o se pode decidir a qual obe­ decer? M ontesquieu p arece pensar que devem os d ar .prioridade às leis da n atu reza.1 M as por que a natureza do hom em seria m ais sa­ grada em todos os casos do que a da sociedade? Ele deixa a questão sem resposta. Essa dificuldade nào existia para os filósofos anterio­ res, já que estes derivavam o direito dc um único princípio. M as se houver dois princípios, nossa vida é arrastada cm duas direções, muitas vezes diam etralm ente opostas. Há apenas um m odo de sair desse im passe, que é pressupor q u e todas as regras do Direito e do costu­ me. m esm o as pertencentes à vida individual, resultam da existência social. M as. nesse ponto e em m uitos outros. M ontesquieu, apesar da inovação de seu ponto d e vista, perm anece prisioneiro das con­ cepções m ais antigas.

4 . V er L iv r o X X V I, c a p s . 3 . 4 e. e s p e c ia lm e n te , 5.

A classificacão das sociedades por Montesquieu

m __________________________________________________________________________________ M ontesquieu não classificou as sociedades, m as antes os modos corno são governadas. C onseqüentem ente, ele sim plesm ente utili­ zou as categorias tradicionais com ligeiras m odificações. D istinguiu três tipos: a república - que inclui aristocracia e dem ocracia . a m onarquia e o despotism o. C om te o criticou duram ente por deixar de lado o plano estabelecido no início do livro e retom ar um a con­ cepção aristotélica.' M as, se exam inarm os a obra m ais de perto, per­ ceberem os que a sem elhança com A ristóteles c apenas aparente. Para com eçar, sua classificação não é. corno a deste, baseada no núm ero de governantes. M ontesquieu considera a dem ocracia e a aristocracia com o variedades de um m esm o c único tipo, em bora na prim eira iodos os cidadãos participem do governo e na últim a ape­ nas um pequeno núm ero. M as. em bora o poder esteja nas m ãos de urna única pessoa, tanto na m onarquia quanto no despotism o, essas form as não são apenas dessem elhantes, m as tam bém antagônicas. M uitos críticos disseram que essa distinção é confusa e am bígua, e 5. Cóurs dv philaçaphie positiva, IV, 18 1 (cd Schlcichcr. IV. 129). -35-

M o r ite s q in é u c K o u s s e a u

essa acusação seria ju stificad a se fosse verdade que M ontesquieu levava em consideração apenas os regim es políticos das sociedades. M as o alcance de sua visão é muito m ais am plo. pois. da forma com o os descreve, os três tipos d c sociedade diferem não apenas no núm e­ ro de seus governantes e n a adm inistração dos negócios públicos, m as em sua natureza com o um iodo. Pode-se perceber isso logo que vem os o m odo com o distingue um do outro. A ristóteles e seus seguidores derivam «ua classificação de um a noção abstrata dc Estado, porém M ontesquieu baseia-se nos próprios fenômenos. File não deduz seus três dpos a partir de um prin­ cípio a prioris m as dc uma com paração das sociedades que conheceu com seus estudos de H istória, em relatos de viajantes ou cm suas pró­ prias viagens, ü . de fato. o significado que dá aos termos nos escapa, a m enos que descubram os prim eiro a quais nações ele se refere. Ele não dã o nom e de “república” a todas as sociedades adm i­ nistradas por todos ou parte de seus m em bros, m as às cidades-estado gregas e italianas da A ntiguidade e às grandes cidades italianas da Idade M édia. Todavia, cie eslá preocupado principalm ente com as antigas cidades-estado. e sem pre que se refere à form a republicana fica claro que tem em m enle Rom a. A tenas e Esparta. Isso explica por que atribui tanto à dem ocracia quanto à aristocracia a caicgoria de repúblicas. Com o am bas as form as eram encontradas nas antigas cidades-estado e, em alguns casos, um a até m esm o sucedia a outra na m esm a nação, não era possível separá-las com pletam ente. Na verdade, as nações bárbaras, em bora freqüentem ente governadas por todo o corpo dos cidadãos, nào foram , com o verem os, incluídas na citada categoria, e podem os ter certeza de que se M ontesquieu esti­ vesse fam iliarizado com a forma política da França atual ele não a teria considerado republicana. Q uanto ã m onarquia, ele só encontra essa estrutura social entre ;ís grandes nações da Europa m oderna. Ele dem onstra que cia nào podia ser conhecida pelos povos da A ntiguidade e que apareceu pela prim eira vez quando os germ ânicos invadiram e dividiram o Im p ero

A c la s s ific a ç ã o d a s s o c ie d a d e s p o r M o n te s q u ie u

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Romano. O bviam ente, ele sabia que os gregos e latinos haviam sido governados por reis p o r m uito tem po, m as a natureza de seu regim e parecia-lhe algo bern diferente da verdadeira m onarquia. Q uanto ao despotism o, em bora em certo sentido pudesse ap arecerem qualquer forma política por m eio da corrupção, ele acredita que tivesse exis­ tência natural apenas no O riente. Tinha em m ente os turcos, os persas e m uitos outros povos asiáticos, aos quais devem ser som adas as nações da Europa Setentrional. Mas quem poderia duvidar que as an­ tigas cidades-cstado, os reinos orientais e as nações européias m o­ dernas representam três tipos totalm ente distintos de sociedade?

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M ontesquieu distingue os três tipos de sociedade nào apenas porque sào governadas de forma diferente, m as tam bém porque di fe­ rem em núm ero, arranjo e coesão de suas partes com ponentes/' A form a republicana prosperou em pequenas cidades e nunca conseguiu estender-se além de seus estreitos lim ites; as cidades da A ntiguidade são exem plos dessa form a. O F.stado despótico, por ou­ tro lado. é encontrado em grandes sociedades que se estendem por vastas áreas as nações asiáticas, por exem plo. O Estado m onárquico é de tam anho médio e, em bora tenha unia população maior que a república, tem m enos súditos que o despótico. Além disso, a estrutura dessas diversas sociedades nào é sem ­ pre a m esm a, nem seus m em bros sào unidos pelos m esm os laços. Em um a república, particularm ente em um a dem ocracia, todos os cidadãos são iguais e m esm o indistintos. A cidade-esiado parece ser uma espécie de bloco form ado por com ponentes hom ogêneos, ne­ nhum superior aos outros.’ Todos zelam igualm ente pelo bem co ­ m um . A queles que ocupam posições de autoridade nào estào acim a 6. Sabemos que esses são os elementos que o próprio Durkhcim usa como base para aquilo a que chama "morfologia social" [Nota do tradutor para o inglês] ' . H a isse que Dwrkhciin chama, na Divisão do trabalho social. "so-idariedade mecânica". (Nota do tiúdu-or para o ingdêsj

Montcsq-.iieu e Rousseau

dos outros, pois exercem o oficio apenas por um determ inado período. M esm o na vida privada h á pouca diferença entre eles. De Falo, é o principio da república, ou ao m enos o objetivo pelo qual ela se em ­ penha, que os recursos pessoais de um hom em nào excedam em muito os dc seus concidadãos; p o is em bora seja difícil atingir a igualdade absoluta, as leis de qualquer república form am urna barreira a dife­ renças excessivas dc fortuna, e essa igualdade seria im possível sem restrições ã riqueza individual. O s bens de todos os hom ens devem ser m odestos se tiverem d e ser m ais ou m enos iguais. “Com o rodo indivíduo deve gozar d a m esm a felicidade e das m esm as vantagens", diz M ontesquieu. “eles devem , conseqüentem ente, provar os m es­ m os prazeres e form ar as m esm as esperanças, o que só se pode espe­ ra r de um a frugalidade geral". F.m tal Estado, as fortunas privadas nào represcnlam um papel im portante 11a vida c no pensam ento dos indivíduos, que estão mais preocupados com o bem -estar com um . Assim , a principal fonte de diferença entre os hom ens é elim inada. Até m esm o a vida privada é m ais ou m enos a m esm a para iodos; a condição m odesta de todos os cidadàos. estabelecida por lei. elim ina quase lodo o estim ulo ao co­ m ércio, que m al pode ex istir sem um a certa desigualdade. C onse­ qüentem ente. a atividade de todas as pessoas é aproxim adam ente a m esm a. Eles lavram um pedaço de terra, que é do m esm o tam anho para todos, e dali retiram a subsistência. Em sum a, nào há divisão de trabalho entre os m em bros do corpo político, a m enos que aplique­ m os o term o à rotação do oficio público. Esse é notavelm ente um retrato da dem ocracia. Q uanto á aris­ tocracia. M ontesquieu a considera um a forma corrom pida de dem o­ cracia (quanto m ais se pareça com urna dem ocracia, m ais perfeita é), e podem os, p o r isso. deixá-la de lado. Ê fácil im aginar o q u e a voniade unânim e dos cidadàos pode realizar em uma sociedade assim . A idéia d a nação c a principal no espirito dos hom ens. C om o praticam ente não há propriedade priva­ da. o indivíduo é indiferente ao lucro pessoal. Nào há partidos anta­ gônicos para criar a desunião entre os cidadàos. Essa é a virtude que

V

A c la s s if ic a ç ã o d a s s o c ie d a d e s p o r M o n te s q u ie u ______________ 3y

M ontesquieu considera a base da república. Ele nào se refere ã virtu­ de ética. m as ã virtude política que reside no am or pelo pais e leva os hom ens a p ô r os interesses do Estado acim a dos próprios. O term o se presta a criticas, pois é am bíguo, mas o uso que dele faz M ontesquieu não deve nos surpreender. N ós m esm os nào o aplicam os a qualquer atitude moral que estabeleça lim ites ao interesse pessoal? F.m um a república, em todos os casos, todos os cidadãos de­ vem necessariam ente ter essa m esnií. atitude, j á que todos têm o "es­ pírito social"

se puderm os usar esse term o

e em vista da frugali­

dade geral, o am or-próprio não tem do que se alimentar. A p an e da consciência individual que é um a expressão da sociedade e que é a m esm a para todas as pessoas é am pla e poderosa. A p an e relaciona­ da ao indivíduo e seus assuntos pessoais c fraca e lim itada. Os cid a­ dãos nào têm dc ser estim ulados por uma força externa, m as por um im pulso natural subordinam seus próprios interesses aos do Estado. A natureza da m onarquia é bastante diferente. Nela. todas as fun­ ções da vida pública, assim com o as da vida privada, são divididas entre as diversas ciasses de cidadãos. A lguns se ocupam de agricultu­ ra; outros, de com ércio; outros, ainda, das diversas artes e ofícios. A l­ guns fazem as leis. outros as executam com o juizes ou governantes e ninguém tem a perm issão de afastar-se de seu papel ou de prejudicar o dos outros. Assim, a m onarquia não pode ser definida com o o poder de um a só pessoa. M ontesquieu acrescenta que mesmo que um a socie­ dade seja governada por um único indivíduo, não deve ser cham ada m onarquia a m enos que tenha leis estabelecidas segundo as quais o rei governa e que ele não pode m odificar arbiirariam cntc. Isso pressupõe que haja ordens estabelecidas que lim item seu poder. Embora ele seja superior a elas. elas devem ter um poder próprio e nào estar tào abaixo a ponto de não poder resistir a ele. Pois se não houvesse barreiras à autoridade do príncipe, nào poderia haver lei limitando sua vontade, já que as próprias leis dependeriam inteiram ente dela. F. esse o principio que distingue a m onarquia de outros regim es políticos. A divisão de.

trabalho, que nào existe na república, tende a seu desenvolvim ento

M o n te s q u ie u c: K ou.sscai:

máximo na m onarquia. A sociedade m onárquica pode scr comparada a um organism o vivo, do qual cada pane realiza uma função especifica de acordo com sua natureza. Isso explica por que M ontesquieu considera a liberdade política peculiar à m onarquia. A s classes - ou. para usar um rerm o contem ­ porâneo. o s órgãos - do corpo social lim itam nào apenas a autorida­ de do principc, m as tam bém uns aos outros. Com o cada um é im pe­ dido pelos outros de tom ar-se dem asiado poderoso e absorver todos os poderes do organism o, ele é livre para desenvolver sua natureza especial, m as com m oderação. Estam os agora em posição de enten­ der o papel representado pela famosa teoria da divisão dc poderes no pensam ento de M ontesquieu. E sim plesm ente um a forma particular do principio de que as diversas funções públicas devem ser realiza­ das por diferentes pessoas. Se M ontesquieu atribui tanta im portân­ cia ã distribuição da autoridade, nào é para elim inar toda discordância entre os diversos poderes, m as antes para forjar um a tal rivalidade que nenhum dentre eles p o ssa ser capaz de erguer-se acim a dos ou­ tros e reduzi-los ã insignificância. O vinculo social em um a m onarquia nào pode ser o m esm o que o de um a república. Com o cada classe se relaciona a um a área limi­ tada da vida social, ela nada vê além da função que realiza. A m ente dos hom ens estã im buída d a idéia dc sua ciasse, não da do pais. Cada ordem tem apenas um objetivo, que não é o bem com um m as o autoenaitecimcnlo. M esmo o indivíduo pr ivado preocupa-se principalmente com seus próprios interesses. Enquanto na república a igualdade de todos os cidadàos resulta inevitavelm ente em um a frugalidade geral, a diversidade de condições característica da m onarquia desperta a am bição. Q uando há diversos graus de posição, honra e riqueza, cada indivíduo tem diante dc seus olhos pessoas com um padrão de vida superior ao seu e que inveja. Assim , os m em bros da sociedade igno­ ram o bem -estar geral em favor de seus interesses pessoais, dc forma que inexistem as condições para aquela virtude que é o fundamento da república. M as essa m esm a diversidade das partes com ponentes

À c la s s ific a ç ã o d a s s o c ie d a d e s p o r M o n te s q u ie u

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contribui para a coesào. A am biçào que prom ove a rivalidade entre as classes e indivíduos tam bém as leva a realizar suas funçôcs parti­ culares da m elhor m aneira possível. Desse modo, trabalham incons­ cientem ente para o bem com um, em bora em sua m ente estejam pro­ m ovendo apenas seus interesses pessoais. A em ulação resulta em urna harm onia entre os diferentes elem entos da sociedade. M ontesquieu cham a a esse esiirnuio ã vida pública em uma m onarquia honra. Usa o lerm o para designar as am bições partícula res de indivíduos ou classes que fazem os hom ens sc em penhar para atingir a condição m ais elevada possível. Essa atitude sò ê possivel se os hom ens tiverem um a certa preocupação com a dignidade e a liberdade. A ssim , a honra nào deixa de ter sua grandeza, m as pode dar origem a um am or-próprio excessivo e tornar-se facilm ente um defeito. Em diversos trechos. M ontesquieu fala com uma certa seve­ ridade de honra e dos costum es m onárquicos em geral. Todavia, ele nào tem a intenção de depreciar a m onarquia. Esses inconvenientes nascem som ente do desenvolvim ento dos negócios particulares e da m aior liberdade de que gozam os indivíduos na busca de seus inte­ resses. A Virtude, para ele. é tào rara e ditlcil de atingir que o gover­ nante prudente deve usá-la com a m aior das cautelas. Essa sábia or­ ganização ca sociedade, que sem exigir a virtude estim ula os ho­ m ens a grandes em preendim entos, é tào adm irável, na opinião dc M ontesquieu, que ele prontam ente lhe perdoa cenas im perfeições. Pouco direi sobre o despotism o, j á que o próprio M ontesquieu parece ter se preocupado m enos com ele. Essa forma de governo fica a m eio cam inho entre as sociedades que acabam os dc discutir. Um despotism o pode ser um a variedade de m onarquia em que todas as ordens foram abolidas e não há divisão dc trabalho ou um a dem ocra­ cia em que todos os cidadàos, exceto o governante, são iguais, m as iguais em estado de servidão. Por isso. tem o aspecto de um m onstro, no qual apenas a cabeça c viva. tendo absorvido todas as energias do organism o. O princípio da vida social nessa sociedade não pode *er a virtude, porque o povo não participa dos assuntos da com unidade.

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M o n te s q u ie u e R o u sscau

nem a honra, porque não há diferenças de condição. Se os hom ens concordam com um a sociedade assim , c porque se subm etem passi­ vam ente ã vontade do príncipe, ou seja. som ente por medo. O que foi dito basta para deixar claro que M ontesquieu distinguia tipos definidos de sociedade. Isso seria ainda m ais evidente se entrássem os em detalhes, pois eles nào diferem apenas em princí­ pios estruturais, m as cm todos os aspectos da vida. C ostum es, práti­ cas religiosas, família, casam ento, criação de filhos, crimes e castigos nào são iguais em um a república, em um a m onarquia ou em um des­ potism o. M ontesquieu parece ter se interessado m ais pelas diferen­ ças entre as sociedades que por suas sem elhanças.

um______________________ O leitor pode se perguntar p o r que, se M ontesquieu dc fato classificou e descreveu tipos de sociedades, ele as definiu assim e lhes deu esses nomes. Ele nào as distingue e nom eia baseado na divi­ são do trabalho ou na natureza de seus laços sociais, m as apenas de acordo com a natureza da autoridade soberana. E sses diferentes pontos de vista nào são incom patíveis. Era ncccssário definir cada tipo em term os dc sua propriedade essencial, a partir da qual as outras se seguiriam . A prim eira vista, a forma de governo parece atender a essa condição. Nenhum aspecto da vida pública é m ais aparente, m ais evidente a todos. C om o o governante está no topo. por assim dizer, da sociedade, e ê m uitas vezes, nào sem razão, cham ado de "cabeça" da nação, tudo, acredita-se, depen­ de dele. A lém disso, os predecessores de M ontesquieu ainda não haviam descoberto nenhum outro aspecto dos fenôm enos sociais que pudesse servir com o um princípio de classificação e. apesar da origi­ nalidade de sua abordagem , foi-lho difícil rom per inteiram ente com o ponto de vista antigo. A ssim se explica por que ele classificou as sociedades de acor­ do com a form a de governo. \ a verdade, esse m étodo está sujeito a m uitas objeçôes. A lorm a de governo nào determ ina a natureza de

s A c la s s ific a ç ã o d a s s o c ie d a d e s p o r M o n t e s q u i e u

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uma sociedade. Com o dem onstram os, a natureza do poder suprem o pode ser m odificada, ao passo que a estrutura social perm anece into­ cada. ou. inversam ente, ela pode perm anecer idêntica em sociedades que diferem ao extrem o. M as o erro reside nos term os m ais do que nas realidades, pois além do regim e político M ontesquieu m enciona m uitas outras características pelas quais as sociedades podem ser diferenciadas. Se deixarm os de lado sua term inologia, p.*ovavelmente nào poderem os encontrar algo m ais confiável ou mais penetrante em todo o trabalho do que essa classificação, cujos princípios sào válidos até hoje. As très form as de viria social descritas constituem três tipos realm ente distintos e ele dá um relato bastante exato de suas nature­ zas específicas, assim com o das diferenças entre eles. O bviam ente nào havia tanta igualdade e frugalidade nas antigas cidades-estado quanto supôs M ontesquieu. M as é verdade que naquelas sociedades o escopo dos interesses privados era m ais lim itado e os assuntos da com unidade ocupavam um lugar m aior que rias nações m odernas. M ontesquieu tinha um a adm irável com preensão rio fato de que o cidadão individual de Roma e de A tenas linha pouquíssim as posses pessoais e que isso contribuía com 2 unidade social. Na sociedade m oderna, por outro lado. a vida individual tem um cam po m ais am ­ plo. Cada um dc nós tem sua própria personalidade, opiniões, reli­ gião e modo de vida; caria um traça um a distinção profunda entre si próprio e a sociedade, entre suas preocupações pessoais e os assun­ tos públicos. Por isso. a solidariedade social nào pode ser a m esm a, nem pode v ir da m esm a fonte: ela resulta da divisão de trabalho, que torna os cidadãos e a ordem social dependentes uns dos outros. Com grande visão. M ontesquieu distingue aquilo a que cham a de governo despótico de outros tipos de organização, pois os im périos persa e turco nada tinham em com um com as cidades gregas e italianas ou com as nações cristãs da Europa. Pode-se argum entar, porém , que 0 governo despótico é sim ­ plesm ente um a form a de m onarquia, pois m esm o em um a m onar­ quia 0 rei tem o direito de m odificar leis, de form a que sua vontade é

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M o n te s q u ie u c R o u s s c a u

a lei suprem a. M as as estruturas dessas sociedades sào bastante distintas. A s diferenças cie condição peculiares à m onarquia nào exis­ tem no Estado despótico. A lém do m ais. em um a m onarquia nào c im portante o fato de o rei ter ou não o direito de m odificar as -eis: na prática real ele nào pode fazê-lo porque seu poder é lim itado pelo po d er das ordens. Já se objetou, com razão, que nenhum déspota jam ais teve poder ilim itado. M as o próprio M ontesquieu corrige sua prim eira definição e reconhece que m esm o em um Estado despótico há certos controles sobre o poder soberano, em bora sejam diferentes» dos que agem na m onarquia, já que não têm sua fom e 110 poder rias diversas ordens, m as na autoridade suprem a e única representada pela religião, nào apenas ju n to ao povo. m as tam bém no espírito do déspota. Sem som bra de dúvida, a religião tem esse poder nessas sociedades. Ela não apenas independe da vontade do príncipe, m as tam bém , com o M ontesquieu observa com pertinência, ê a fonte de seu poder exorbitante. A ssim , nào surpreende perceber que a religiào lim ita seu poder. Para com preender claram ente o ponto de vista de M ontesquieu sobre esse assunto, devem os acrescentar um quarto tipo de socieda­ de. que seus com entaristas costum am ignorar m as que requer nossa atenção p or ser a fonte da m onarquia. C onsiste nas sociedades que vivem da caça ou da criação de gado. Sào diferentes das outras em m uitos aspectos im portantes. Por exem plo, sua população é muito pequena; a terra nào ê dividida entre os m em bros; nào têm leis. mas apenas costum es; os anciãos têm a autoridade suprem a, m as sào tão ciosos da liberdade que nào toleram um poder duradouro. Inquestio­ navelm ente essas sào características de sociedades inferiores - po­ deriam ser classificadas com o dem ocracias inferiores. M ontesquieu div id e esse tipo em d u as categorias: quando os hom ens vivem dispersos em pequenas sociedades sem ter laços cnlre si. ele os cha­ ma.'$elvagens\ quando vivem em sociedades, unidos para lbrm ar um todo maior, ele os denom ina bárbaros. Os prim eiros geralm ente são caçadores; os últim os, sào criadores de gado.

A c ía ^ s itic a ç ã o d a s s o c ie d a d e s p o : M o iU e s o u ie u

A classificação das sociedades de M ontesquieu é apresentada na tabela que se segue:

SOCIEDAD ES C'om um poder soberano claram ente definido

M onarquia A ristocracia R epública: D em ocracia Despotism o

Sèm um poder soberano clara­ mente definido

Povos bárbaros Povos selvaeens

D eve-se considerar esta tabela e a am pla variedade de povos que ela abrange para pereeber que M ontesquieu não utilizou sim ­ plesm ente a classificação dc A ristóteles com leves alterações, m as produziu um sistem a original.

Até que ponto Montesquieu acreditava que os fenômenos sociais estão sujeitos a leis definidas?

m ________________________________________________________ M ontesquieu não se lim ita a classificar as so ciedades. Kie acre­ dita que os fenôm enos sociais, sobretudo aqueles de que {rala especi­ alm ente. recaem em um a ordem determ inada e sào, p o r isso. adequados a um a in lerp relaçào racio n al. P.ssa id éia e d eclarad a no início do livro, em qu e en co n tram o s a fa m o sa d efinição: ‘‘L eis sào relações n ecessárias que surgem d a n atu reza das co isas", fcssa d efin ição sc aplica nào ap en as à s leis da n atu reza, m as tam b ém às q u e governam as so cied ad es hum anas. De acordo com A ugusto C om te, M ontesquieu sub seqü en tem en ­ te se afasta desse p rin cip io , resultand o em que n en h u m a o rd em pode se r p erceb id a n a m assa de fatos qu e acum ulou.* Hssa aeu saçào é in ­ fundada. S em p re qu e M o n tesq u ieu form ula um a lei. m o stra que ela S. Cours de phihsophie positive. cd. Schleicher, IV. I S 1

•1S

M o n te s q u ie u c R o u ssc a u

d e p e n d e de c o n d iç õ e s d e fin id a s. E stas s ã o de dois tip o s: p rim eiro ,
p o is em

tal so c ie d a d e a sim p le s fa lta de e sp aço to m a a d iv e rsid a d e im p o ssí­ vel

o m o d o d e vida c m a is ou m enos o m esm o para to d o s. M esm o

os q u e e stã o n o p o d e r são a p e n a s primi inter pares, pois sào in v e sti­ d o s a p e n a s de u m a a u to rid a d e lim itad a co n fo rm e aos lim ite s d a so ­ cied ad e. S em p re p re se n te n o e sp irito d e to d o s, o p en sam e n to de seu p ais tem m u ita força p o rq u e não é lim itad o p o r q u a lq u e r o u tro. Essa c cla ra m e n te um a d e s c riç ã o d a rep ú b lica. M as se a so c ied a d e cresce, tudo m uda. Fica m ais d ifíc il p a ra o c id a d à o in dividual ter um se n ti­ m ento c s b em p ú b lic o , p o is ele p e rc e b e ap e n as um a p eq u en a parte d o s in te re sse s d o p a ís. A d ife re n c ia ç ã o c re sc e n te da so c ie d ad e dá o rig em a p o siç õ e s e o b je tiv o s d iv erg en tes. M ais q u e isso. o poder so b eran o sc to m a tào g ra n d e q u e a p esso a q u e o ex erce está m uito acim a d as o u tras. A so c ie d a d e n ã o p o d e d e ix ar de m udar da form a rep u b lican a para a m o n á rq u ic a . M as sc o volum e au m e n ta ainda m ais e se to rn a ex cessiv o , a m o n a rq u ia ab re c a m in h o ao d e sp o tism o , pois

A té C|t;e p o n to M onstesciuteti a c re d ita v a q u e OS lenõm er.os...

um v asto im p ério n ã o p o d e so b re v iv e r a m en o s que o p rín c ip e ten h a um p o d e r a b so lu to q u e o cap a c ite a m a n te r a u n id a d e e n tre p o p u la ­ ções esp a lh a d a s p o r u m a área tào a m p la. E tào p ró x im a a relação entre a n a tu re z a de u m a so c ie d a d e e seu v o lu m e que o p rin c ip io p e­ c u lia r a cad a tip o d e ix a de a g ir se a p o p u la ç ã o a u m en ta ou d im in u i em ex cesso . O b v ia m e n te , m u ita s o b je ç ò e s ap a re c em n esse m o m en to , M u i­ tas n a ç õ e s c u ja p o p u lação é lim itad a ou m esm o b a sta n te p eq u en a sào g o v e rn a d a s p o r d é sp o ta s. O u tra s, c o m o a n aç ão ju d a ic a , c u ja p o p u la ç ã o era b e m m a io r q u e as d a s c id a d e s g re g a s e ita lian as, tin h a m u m a certa fo rm a dc o rg a n iz a ç ã o d e m o c rá tic a. E se o lh a rm o s em d e ta lh e , m u ita s v ezes d e sc o b rim o s alg o b a stan te vago e incerto na pró p ria ex p licação . A p e sa r d isso . M o n tesq u ieu d em o n stra gra n d e percepção ao atribuir essa influência ao n úm ero de unidades sociais. Esse fator é realm ente da m aior im portância para determ inar a natureza das sociedades e. em nossa opinião, está na origem das m aiores diferen­ ças entre cias. A religião, a ética, o direito, a fam ília, etc. não podem ser o s m esm o s em um a soeiedade grande e em um a pequena. H á um ponto, porém , que M ontesquieu deixou de notar, ou seja. que o essencial não c o núm ero de pessoas sujeitas à m esm a autoridade, m as o núm ero ligado p o r algum tipo de relacionam ento. Pois p o r m aio r que seia o núm ero de pessoas que obedece a um m esm o líder, se a distância ente grupos for tào grande que só possa haver pouca ou nenhum a relação entre eles. o tam anho da população nào tem q ualquer efeito. M o n te sq u ie u m en cio n a m u ito s o u tro s fatores que afeta m a n a ­ tu reza das so cied ad es, e foi n eles q u e os co m e n ta rista s co n cen traram sua aten ção . P o r e x e m p lo , há a c a ra c te rístic a g e o g ráfica do te rritó ­ rio. P la n íc ie s am p las e in in te rru p ta s fav o recem o e sta b ele cim en to do E stad o d esp ó tico p o rq u e g ra n d e s im p é rio s p o d em se e sp a lh a r m ais facilm e n te em um terren o d esse tip o . R egiões m o n ta n h o sa s e ilhas, p o r o u tro lado, sã o c id ad elas d e lib erd ad e p o rq u e m o n ta n h a s e m ar sào o b stá c u lo s à a u to rid a d e de u m líder. N ão ap en a s a lop o g rafia. m as tam b ém a n a tu reza d o s o lo d e v e se r levada cm c o n sid eração .

M o n t e s q u ie u e R ousücüu

U m solo estéril c p ro p ic io à in d ú stria e ã fru g alid ad e, o que abre c a m in h o à rc p ú b lic a . U m s o lo fértil, p o r o u iro lado. e stim u la o inte­ re sse p ró p rio c o a m o r p e la riqueza c c o n d u z à m o n a rq u ia . U m solo e x c e ssiv a m e n te fértil c o n v é m às fo rm as inferio res de dem o cracia, p o is u m a v ez q u e é n a tu ra lm e n te p ro d u tiv o nào p recisa ser cu ltiv a ­ do, n em . c o n se q ü e n te m e n te , d iv id id o entre o s m e m b ro s do grupo. P o r fim , um c lim a q u en te d e b ilita a m en te e o co rp o e fo rça os h o ­ m en s ã serv id ão . E sses fa to re s p a rc ia lm e n te d e te rm in a m nào ap en as a n atureza rie u m a so cied ad e e su a e s tru tu ra legal ern g e ral, m as m esm o a su b s­ tân cia d e leis c m p a rtic u la r. A ssim , um c lim a ex trem a m en te quente dá o rig em à e sc ra v id ã o c iv il, à po lig a m ia e a d e term in ad o s co stum es d o m é s tic o s . A in d if e r e n ç a d e m e n te e c o rp o r e s u lta n te tra z a im u tab ilid ad e d as leis. d as p ráticas re lig io sa s e do s co stu m es. Isso ex p lic a p o r q ue o c o m é rc io é tào d ife re n te no O rien te e na E uropa. E m b o ra M o n tesq u ieu nào ponha n to p o g rafia e o clim a 110 m es­ m o g rau q u e o ta m a n h o d a p o p u la ç ã o e em b o ra re co n h e ça q u e sào d o m in a n te s a p e n a s en tre p o v o s selv ag en s, d e v e -se a d m itir que sua in flu ên cia n ào foi. em p a rte algum a, tào g ran d e q u anto ele pensava. A v irtu d e d o m éstica, p o lític a e p riv ad a é en co n tra d a e m países to ta l­ m en te d ife re n te s em c lim a e fe rtilid a d e do so lo . T odavia, m esm o esse e x a g e ro m o stra 0 q u a n to M o n tesq uieu a c h a v a q u e os fenôm e­ nos so c ia is e stã o su jeito s a leis d efin id as. () q u e foi dito até a g o ra p o d e se r re su m id o d a seg u in te form a: o tip o de so c ie d a d e , as leis e in stitu iç õ e s d e um país po d em s e r d ed u zi­ d o s a p a rtir d o tam a n h o d c s u a p o p u lação , de sua top o g rafia, clim a e solo. M as d isc u tim o s a p e n a s u m a p a n e d a d o u trin a ap re se n tad a por M o n te sq u ie u rio Espirito das Leis. V am os p assar a u m a o u tra, que p arece c o n tra d iz e r a p rim e ira . A c o n tra d iç ã o d e v e se r exam inada m u ito de p erto , p o is nos p e rm itirá o b te r u m a c o m p re e n sã o m elhor nào ap en as d a s id éias de n o sso autor, m as tam b ém das d ificu ld ad es en c o n tra d a s p e lo d e se n v o lv im e n to d a C iê n cia S o cia l, n ào so m en te no tem p o de M o n tesq u ieu , m as tam b ém no nosso.

A te q u e p o n t o M o n s tc s q u ie u a c r e d i ta v a q u e 0 5 f e n ô m e n o s ,.

m ________________________________________________________ C o m o v im o s, iogo q u e n o s c e rtific am o s de que h á um a ordem dete rm in a d a na ex istê n c ia so cial, n e c e ssa ria m en te red u zim o s o p a ­ pe! do leg islad o r. Pois se as in stitu iç õ e s so ciais v êm da n atu re za das coisas, nào d e p e n d e m da v o n ta d e d e q u a lq u e r c id a d ã o ou cid adãos. N a o b ra d e M o n te sq u ie u , po rém , o le g isla d o r ap arece co m o o in d is­ pensáv el artesão das k is . Em d iv e rsa s p a ssa g e n s, ele fala d a s leis dc R om a. F.spaita e A te n a s c o m o se e la s tiv e sse m sido c ria d as co m to ­ das as p eças p o r R ô m u lo , N u m a, S ò lo n e L icurgo. Q u an d o , em o u tra obra. e le co n ta o inicio da h istó ria d o E sta d o ro m an o , assu m e com o prin cíp io qu e as in stitu iç õ e s d as n o v a s n a ç õ e s são c riad a s p elo s lid e ­ res e q u e ap e n a s d e p o is o s lid e re s siio fo rm ad o s p elas in stitu içõ es. P o r essa razão, ele d istin g u e c la ra m e n te en tre leis e co stu m es: os co stu m es su rg em e sp o n ta n e a m e n te a p a rtir da e x istê n c ia so c ial; as leis são e sta b e le c id as p eia v o n ta d e e sp o n tâ n e a do legislador. E sse é o sen tid o da se g u in te a firm a ç ã o n o p rim e iro cap ítu lo do livro: ‘'F o r­ m ad o p a ra v iv er em so c ie d a d e , e le p o d e ria e sq u e c e r seu s d ev eres sociais; e p o r isso o s le g isla d o re s o co n fin am a seus d ev ere s’'. O b v i­ am en te, M o n te sq u ie u n ào a c red itav a q u e as leis p u d essem se r feitas a rb itra ria m en te : afirm av a q u e o s c o stu m e s e co m a re lig ião estavam a c im a d o p o d e r d o le g isla d o r e q u e m e sm o as leis re la c io n a d a s a o u tro s assu n to s tin h am de se r co m p a tív e is co m os c o stu m es e co m a religião . M as o v e rd ad eiro e sta b e le c im en to d essas leis está nas m üos do leg islad o r. 1lá até m e sm o so cied ad es em q ue n ào ap en a s as leis, com o tam b ém a relig ião e o s c o stu m e s p o d em , ate c e rio p o n to , ser m o ld a d a s p e lo p rín c ip e . E m b o ra isso seja raro . a afirm a ção m o stra a im p o rtâ n c ia d ad a p o r M o n tesq u ieu à au to rid a d e politica. Isso p o d e se r fa c ilm e n te e n te n d id o se p e rg u n ta rm o s o que M o n tesq u ieu q u eria d iz e r ao d e c la ra r que as leis h u m an a s su rg em da n a tu reza d a s coisas - porque isso pode ser interpretado de duas m anei­ ras. P ode q u erer d izer q ue as leis se seguem à n atureza das coisas ou seja, d a s so cied ad es

assim co m o um efeito se seg u e à causa

M o n tc sm iie u e K ousscau

q u e o p ro d u z; ou ain d a, p o d e q u e re r d iz e r que são sim p le sm e n te in s­ tru m e n to s q u e a n atu reza da so c ie d a d e e x ig e p a ra se realizar, ou seja. p a ra a tin g ir seu fim . E m o u tra s p a la v ra s, será q u e teríam o s de e n te n d e r que o e sta d o da so c ie d a d e é a causa eficien te das leis ou ap en as su a cau sa fin al? M o n tesq u ieu p a rec e nem m e sm o suspeitar q ue p o s s a e x istir o p r im e iro sig n ific a d o . E le nào d iz q u e as leis de u m a d e m o c ra c ia re s u lta m n e c e s s a ria m e n te do n ú m e ro lim ita d o dc s e u s c id a d ã o s a ssim c o m o o c a lo r re s u lta n e c e ssa ria m e n te do fogo, m as a n te s q ue ap en as elas p o ssib ilitam a fru g alid ad e e a ig ualdade g erais q u e estào na n a tu re z a d esse tip o de so c ie d ad e. D isso tam bém n ào a d v ém q u e as leis p o d e m s e r feitas a rb itra ria m en te J á q u e , sob d e te rm in a d a s co n d iç õ e s so c ia is, ap e n a s um co rp o dc leis é a p ro p ria ­ d o e n e n h u m o u tro p o d e ria s e r im p o s to a u m a s o c ie d a d e sem eorroro.pè-la. M as o que é a d e q u a d o a um a so c ie d a d e e m p articu lar p ode se r d e te rm in a d o a p e n a s p o r h o m en s q u e ten h am um a visào p e rsp ic a z de su a n a tu reza e sejam c a p a z es de in d ica r p o r q u e o b je ti­ vo ela d e v e se e m p e n h a r e co m o . E ssa é a tarefa do s legisladores. A ssim , n à o é de s u rp re e n d e r que M o n te sq u ieu lhes a trib u a um a c e r­ ta p rim a z ia . Se su p u se rm o s, p o rém , q u e as leis sà o p ro d u z id a s por c a u sa s e fic ie n te s d as q u ais o s h o m e n s m u ita s v e z e s p o d e m nào e s­ tar c o n sc ie n te s, a fu n ção d o leg islad o r é red u zid a . F.la co n sistirá, então, sim p le sm e n te de e x p re s s a r com c la rez a su p e rio r aquilo que é fracam en te p e rc e b id o p e la m en te d o s o u tro s. M as o le g islad o r nada p ro d u z - o u q u a se n a d a - de novo. M e sm o q u e e le nào ex istisse, seria p reciso h a v e r leis, m e sm o q u e fo sse m m en o s c la ra m e n te d e fi­ nidas. T odavia, so m e n te ele p ode re d ig i-la s. C erto. M as ele é ap e n as o in stru m e n to de su a prom u lg ação » n à o su a cau sa g eradora. F.ste n à o é lu g ar c e rto p a ra d is c u tir se h á in stitu içõ es so ciais que d e p e n d a m in te ira m e n te de cau sas finais. D e q u a lq u e r m odo, p o d em o s te r a c erteza d c q u e ex istem m u ito p o u c as. A vida social inclu i ta n to s fen ô m en o s q u e n ào h á m en te c a p a z de c o n sid erá-lo s todos. P o r isso. não existe u m m o d o fácil de p re v e r o que se ria útil c o q u e seria p reju d icial. M esm o sc esse cálcu lo não estivesse, na m aior

A~c g » c p o n t o .V o r .s lc s q u ie u a c r e d i ta v a qiu~ o s fe n ô m e n o s ...

p arte, alem dos p o d e re i da m en te h u m an a, d c seria tão o b sc u ro que p ouco in flu en ciaria a s aç õ e s d e lib e ra d a s dos hom ens. O s fen ô m en o s so c ia is não são, v ia de regra, p ro d u to dc ação c a lcu lad a. A s leis não sào d isp o sitiv o s p e n sa d o s p elo le g isla d o r p o rq u e p arecem e sta r em h arm o n ia co m a n a tu re z a da so c ie d a d e . E las su rgem co m m ais fre­ q ü ên cia de cau sas q u e as e n g e n d ra m p o r um Tipo d e n ecessid ad e fisica. Em c o n se q ü ê n c ia da situ a ç ã o p a rtic u la r da so c ied a d e , a vida co m u n al d e v e n e c e ssa ria m en te a ssu m ir u m a certa form a d efinida. E ssa form a e e x p re ssa p elas leis, q u e assim a cab am p o r ter a m esm a in ev ita b ilid a d e d as c a u sa s e fic ie n te s. N e g á -lo seria a d m itir q u e a m aio ria d o s fen ô m en o s so c ia is, p a rtic u la rm e n te os m a is im p o rta n ­ tes, nào têm q u a lq u e r cau sa. A s leis ad e q u a d a s à so c ied a d e ro m an a n u n c a p o d eriam te r sid o d ed u z id a s a p a rtir cio p eq u en o ta m a n h o da R om a p rim itiv a. A ig u ald ad e e a fru g alid ad e, q u e de aco rd o com M o n te sq u ie u eram im p o stas p eias leis. n à o foram criad as p o r essas leis. E las re su lta ra m de um m o d o de v id a e fo ram sim p lesm e n te c o n ­ so lid a d a s p elas leis. M o n tesq u ieu sem d ú v id a teria visto isso caso re co n h ec esse que as leis n ão d iferem , em n atu reza, d o s c o stu m e s, m as, p e lo c o n trá rio , d e riv a m d e l e s . S à o sim p le sm e n te c o stu m e s m ais n itid a m e n te d e fi­ nidos. C o m o iodos sab em , os co stu m es nào sào criados d elib e ra d a­ m ente. m as engend rad o s por causas q ue p roduzem seus efeitos quase sem co n h ecim en to dos hom ens. O m esm o se aplica à o rig em da m aior parte das leis. Isso n à o sig n ific a que e la s sejam inúteis. B em pelo contrário . E las não p o d eriam c o n tin u a r fo n e s se n à o c u m p rissem certas fun çõ es so c iais ú teis. M as n à o foi essa u tilid ad e q u e as fez v ir a ser. L o n g e de d e lib e ra d a m en te lu ta r p o r ela» os h o m e n s em geral

9. Na verdade, ele exige que o legislador se conform e aos costum es e ao gênio peculiar de um determ inado povo (L ivro X IX. caps. ?.-<>) c n; ostra que as lc:s tem uma certa influência na formação dos costum es {ib id . ca p. 27). 'lodavia. cie distinyue os dois a ponio de considerar o que foi estabelecido por lei com o imuiãve'.. cxceiò pela lei. assim com o apenas o costum e pode mudar o que porience ao cos­ tume {ibin . cap, 14). Por isso é difícil entender com o essas coisas se m isturam no caso de certos povos (ibid.. cap. 16 c ff.).

5'í

M o n te s q u ie u ^ R u u sseau

n ào tê m m u ita c o n sc iê n c ia d e su a ex istê n cia . S en tim o s q u e as reg ras do d ire ito e d o c o stu m e sào b o as. m as $e rios p e rg u n tassem p a ra que se rv e m , a d isc u ssã o seria in fin ita . E m b o ra p o ssa m o s co m p reen d er co m o u m a d e te rm in a d a lei é útil à s o c ie d a d e , isso nào e x p lic a sua o rig e m . Por isso. q u em q u e r q u e lim ite su a b u sca às cau sas finais dos fe n ô m e n o s so ciais p erd e de visla su as o rig en s e é infiel à C iência. É o q u e a c o n te c eria à S o c io lo g ia se se g u ísse m o s o m éto d o de M o n tes­ qu ieu .',0

[ m i ______________________________________________________ A s re g ra s d o D ireito n ã o n ascem n e c e ssa ria m e n te da natureza de u m a so c ie d a d e , jã q ue p e rm a n e c e m e sc o n d id a s nas pro fu n d ezas da re a lid a d e a m e n o s q u e u m le g isla d o r as d istin g a e as tra g a à lu /. M ais que isso . de a c o rd o c o m M o n te sq u ie u , ela s p o d e m até m esm o a ssu m ir u m a fo rm a d ife re n te d a q u e la re su lta n te das c au sas que as p ro d u z. E le atribui à$ so c ie d a d e s h u m a n a s u m a esp é cie d e h ab ilid a ­ de p a ra d e sv ia r-se de su a pr ó p ria n atu reza. Para ele. os h o m e n s nào o b se rv a m as leis n a tu ra is in e re n te s ã su a co n stitu iç ã o co m a m esm a n ec e ssid a d e d as co isas in a n im a d a s, e p o d em em ce rta s o casiõ es sa ­ c u d ir o ju g o . M o n te sq u ie u in tro d u z assim n o s fen ô m en o s so cia is um e le m e n to de in certeza q u e p a re c e , ao m e n o s à p rim eira vista, irree o n ciliáv el co m a ex istê n c ia dc u m a determ in ad a ordem , já que. onde essa in certeza p re v a le c esse, a rclaçào en tre c au sa e efeito d eixaria de s e r c o n sta n te e im u táv el. E e ssen cial q u e d e fin a m o s essa incerteza, p o is há razo es p a ra te m e r q u e ela p o ssa d e stru ir os p ró p rio s fu n d a­ m en to s d a C iê n c ia S ocial. P o d e -se su p o r que M o n te sq u ie u ap re sen to u esse p rin cip io p o r­ q u e o ju lg a v a in d isp en sáv el ao c o n c e ito de lib e rd ad e h u m an a. M as se essa fosse a v e rd a d e ira ra z ã o , a in certeza nào ad m itiria ex ccçào e

10. A qui se p o d e d iz e r q u e D u rk h e im
A le
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sc este n d e ria a to d a a vid a. N ã o e sp e ra ría m o s que n o sso autor, que diz tão d efin itiv a m e n te que os h o m e n s e as so c ie d a d es sà o g o v e rn a ­ do s por leis q ue ele se esfo rç o u p o r desco b rir, se c o n tra d isse sse d e s ­ sa m an eira. M a is q u e isso . p arece b a sta n te im p ro v ável q u e seu ponto de v ista se b aseie em q u a lq u e r m e ta físic a . N ada. em to d o seu tra b a ­ lho. sug ere a m ais leve p reo c u p a ç ão com p ro b le m a s m etafísico s. Fim nenhum a p arte su rg e a q u e stã o d o liv re-arb ítrio . C o n seq ü en tem en te, não h á razão para s u p o r q u e u m a h ip ó te se filo só fic a d e v e sse a ssu m ir ta m a n h a im p o rtân cia p ara ele. E h á um trech o no p rim e iro cap ítu lo do livro q ue vai d istin ta m e n te c o n tra essa in terp retação . A li, M o n ­ tesquieu afirm a q u e esse e le m e n to d e incerteza n à o é p e c u lia r ao hom em . E le tam b ém o en c o n tra em an im ais e m e sm o as p la n ta s n ào p arecem in teiram en te d e sp ro v id a s d ele. F.le n o s co n ta q u e ele p ró p rio o c o n c e b e ra ap enas c o m o um m eio de e x p lic a r a o rig e m d o erro. Sc n u n ca c o m e tê sse m o s erros, d ev e ría m o s o b e d e c e r ãs leis de n o ssa n a tu re z a so b q u a isq u e r c ir­ cu n stân cias. Se d e se ja m o s d e s c o b rir o q ue o levou a essa op in ião , d ev em o s an tes d e te rm in a r o q u e q u er d iz e r com a "n a tu re z a das c o i­ sas". A o u sa r esse te rm o , cie n ào se re fe re a tod as a s p ro p ried ad es de um a co isa, m as a p en as àq u eias q u e in clu em as o u tras e d eterm in am a esp écie à qual a co isa p erten ce: em su m a . su a essência. A lé m disso, ele acred ita h a v e r um laço ló g ico en tre a n a tu re z a de um a coisa e su as fo rm as norm ais, estan d o as últim as im p líc ita s na p rim eira. A s­ sim . se é v erd ad e que h o m e n s e so c ie d a d e s n u n c a se d esv iam de sua n atu rez a , eles serào se m p re e em to d a p a rte o q u e d e v e m ser. M as ta n to a vida individual q u an to a v id a social sào, so b m u ito s asp ecto s, im p erfeitas. H á leis in ju stas e in stitu iç õ e s d e fe c tiv a s que as s o c ie d a ­ des receberam dos erro s d o s legisladores. N a o p in iào de M ontesquieu, isso tudo p arece in d ic a r q u e o h o m em tem u m a c e rta fa c u ld a d e de se d e sv ia r d a s leis da n atu reza. Isso n ào ju s tific a fa la r d e fatos q u e nào têm causas. M a s e ssa s cau sas sào fo rtu itas e. p o r assim d izer, ''a c i­ d e n ta is'’. For isso n à o p o d em se r re d u z id a s a leis: elas co rro m p em a n a tu re z a d as coisas, q u e as leis. ao c o n trá rio , ex p ressam .



M o n te s q u ie u e R o u sscau

() princip io d o qual io d a essa lin h a d c arg u m en tação depende é c e n a m e n ie falso. N a m e d id a ein q u e esses erros se relacio n am á ex is­ tência social, são sim p le sm e n te d o en ças do o rganism o social. M as a doença, assim c o m o a sa ú d e , e inerente ã n atureza d o s seres vivos. O s dois estad o s nào são co n trário s. Pertencem ao m esm o tipo. P odem , po r isso. ser co m p arad o s e a interp retação de am b o s se beneficia dessa co m p aração . M as essa falsa o p in ião se en caixa tào bem com a ap arên ­ cia e x te rn a d as c o isa s q u e p e rsistiu p o r m u ito tem p o , m e sm o em P sico lo g ia. C o m o p a re c ia e v id e n te q ue o s seres vivos eram n a tu ra l­ m en te sau d áv eis, c o n c lu iu -se que a d o e n ça e u m a v io laç ão do estad o da n a tu reza p o rq u e é um o b stá c u lo à saiklc. A ssim . A ristó te le s a c re ­ d ita v a q u e a d o e n ç a , os m o n s tro s e to d a s a s fo rm as aberrantes da vid a eram o resu ltad o de alg u m a incerteza obscura. N ão seria possível liv rar a C iência Social d esse erro de u m a vez só. p articularm ente por­ que a d o en ça n ào ocu p a, em lu g ar a lg u m , um lugar tão im portante quanto n as so cied ad es h u m an as e p orque o estad o n o rm al n ào é tào indeterm inado e m q u alq u er outro lugar, n em tào difícil de definir. A ssim se ex p licam d iv e rso s tre c h o s em q u e M o n tesq u ieu pa­ rece a trib u ir ao le g isla d o r o estran h o p o d e r d e fa z e r vio lê n cia ã p ró ­ pria n a tu re z a . P o r e x e m p lo , em p a íse s n o s qu ais o c a lo r ex cessiv o inclina os h ab itan tes à in d o lê n c ia , eie re c o m en d a q u e o le g islad o r a re p rim a d e io d a s as m a n e ira s p o ssív eis. M as em b o ra esse vício n a s­ ça de c a u sa s tísic a s. M o n te sq u ie u nào acha que se o p o r a ele seria v io la r as leis da n atu reza, m a s a n te s que isso re p re se n ta ria u m esfo r­ ço para tra z e r os h o m en s d e volta a su a n atu re za n o rm a l, que é in­ co m p atív el corri essa in d o lê n c ia . Pela m esm a razao . e le diz q u e em so c ie d a d e s d e p e sso a s so b e rb a s e d e ste m id a s d e v e m -se e m p reg ar se v e ra s p u n iç õ e s p a ra d im in u ir esse ardor. Se o le g isla d o r tem todo esse p o d e r e m to d o s esses c a so s, nào é p o rq u e as so c ied ad es c are­ çam de leis ou de n a tu re z a d e fin id a , p o d en d o , p o rtanto, se r org an iza­ das da m a n e ira q ue ele d e se ja , m a s a n te s po rq u e sua aç ào será no se n tid o de m a n te r a natureza, n o rm al do h o m e m e d as so c ied ad es e se lim itará a p en as a au x iliá-la.

A t c. qiic p o n to M o n sto sq u icr. a c re d ita v a q u e os feiK>:;i
A ssim , o pon lo d c visia d c M o n lesq u ieu n à o im p lica u m a v e r­ d a d eira co n trad ição . E!e nào c!z q u e u m a d e te rm in a d a ord e m existe ou falie cm rcla ç à o ao s m e sm o s falos so ciais. S em p re q u e as c o isa s são n o rm ais, elas se g u em leis n ecessárias, e essa n ec essid ad e cessa ap enas q u a n d o há u m d e sv io d o cSlado n o rm al. C o n seq ü en tem en te, o ele m en to d e in c e n e z a não d csiró i a C iên cia S o cial, m as ap en as lim ita se u alc a n c e. A C iê n c ia S ocial irata quase q u e ex clu siv a m en te das form as n o rm ais d e vida em sociedade: na opinião de M ontesquieu. as d o en ça s csiào p ra tic a m e n te além d o a lc a n c e da ciên c ia, porque não e stã o su je ita s às le is da n atureza. M esm o su a c o n c e p ç ão de lei n atu ral, q u e é fu n d am en tal a to ­ d as as su a s id éias, p e rm a n e c e m u ito o b sc u ra e im p recisa. L eis são as relaçõ es n e c e ssá ria s e n tre as c o isas, m as se p o d em se r v io la d as às vezes, a n ec e ssid a d e n à o é m ais real. m as p u ra m e n te lógica. N esse caso. elas ex p re ssa rã o o que está im p lic a d o na d e fin iç ão de um a so ­ cied ad e. m as ta lv e z ;i d e fin iç ã o n ào su rja ra c io n a lm e n te da n atureza da so cied ad e em q u e stã o . E las nos d irã o en tão o q u e é racio n al, em vez do q u e de falo existe. E rea lm e n te , e m b o ra M o n tesq u ieu . lo nge de a c h a r q u e os h o m e n s sem p re, o u m e sm o freq ü en tem en te, se d e s­ viam do cam in h o reto . m o stre um tip o de resp eito e sp o n tâ n eo pelo que foi c o n firm a d o p ela ex p e riê n c ia g eral p ro lo n g ad a, ele reco n h ece m esm o assim q u e to d o s o s in d iv íd u o s de um a esp é c ie id ên tica rev e­ lam c ertas a n o m a lia s. N ào c o n se g u e v e r que. o q u e q u er q u e esteja u n ifo rm em e n te p re se n te em u m a esp é c ie in teira, não p o d e d e ix a r dc c o rre sp o n d e ra n ec e ssid a d e s d efin id as. Por exem plo: em b o ra a insti­ tu ição da e scrav id ão e x istisse em io d as as c id a d e s g re g a s e italian as, ele diz se r re p u g n an te à n atu reza d a s rep ú b licas. E m b o ra ap e n as os h o m en s g o zem d o d ire ito de re p u d ia r su a e sp o sa em so c ie d a d e s nas q uais as m u lh eres v iv em em um reg im e d c e scrav id ão d o m é stic a, ele insiste cm q u e n e ssa s m e sm a s so c ie d a d e s o co n trário d ev e ria ser v erdade. C h eg a até m e sm o a d iz e r que a p e n a s um tip o de so cie d ad e é in eren tem en te •*’

tiv o e co rru p to , o d e sp o tism o , em b o ra re c o ­

n h eça q u e é n ecessário cm c e rto s lugares. S ob essas circu n stâ n cias, a

M o n te s q u ie u e R o u sseau

o rd em q u e a ciên cia d ev e b u s c a r seria d ife re n te de qu alq u er co isa que j á existiu. C o n se q ü e n te m e n te , as leis q u e a ex p re ssa m po d em ter a p e n a s um a fo rm a id e a l, p o is d em o n stram o que d e v eria ser. e nào o que é. F.ssas leis n ão sào. c o m o as o u tras leis da n atu re z a , inerentes ao s fe n ô m e n o s, o u a n te s n ã o sã o o s p ró p rio s fen ô m e n o s co n sid e ra ­ d o s so b um a sp e c to p a rtic u la r; estão ac im a d o s fen ô m en o s, em bora nem se m p re su a a u to rid a d e seja resp eitada. N esse asp ecto . M o n te sq u ie u reto rn a, até certo p o n to - m as a p e ­ n as a té c e rto p o n to

à a n tig a c o n c e p ç ão de C iê n c ia S ocial. A lgum as

vezes* na v erd ad e, ele n ào fic a longe d e c o n fu n d ir leis natu rais com reg ras q ue p re sc re v e m a c o n d u ta a p ro p riad a . M as está lo nge de se ­ g u ir as p e g a d a s d o s a n lig o s filósofos q ue ignoram a n atu re za c o m o é e m o n tam u m a o u tra n a tu re z a pró p ria. M e sm o sem form ular um prin­ cíp io ex ato a esse resp eito , e le co m p reen d eu instintivam ente que um a c o isa raram en te p ode se r u n iv e rsa l a m e n o s q u e seja sau d áv el e ra­ cional ao m esm o tem po. F o i p o r isso q u e te n to u , com o v im os, d e s­ c rev er e e x p lic a r os tip o s s o c ia is seg u n d o um a b ase h istó ric a. Ele n à o se av en tu ro u a c o rrig i-lo s até d e sc o b rir alg o que lhe p a re ce sse in co n sisten te com su a e ssê n c ia da form a co m o a co n ceb era a partir da o b se rv a ç ã o da re a lid a d e . E m b o ra a c o n cep ção que M ontesquieu fazia da lei natural não se e ste n d a ã to ta lid ad e da ex istên cia social, ela se ap lic a à m a io r pa rte d e la . Sc seu trab alh o ain d a g u ard a algo da a n tig a co n fu sã o e n tre A rte e C iên cia, alg o v ag o e incerto, esse d e fe i­ to só se m a n ife sta o c a sio n a lm e n te .

O método de Montesquieu

m _______________________________________

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E n q u an to a C iên cia Social era a p e n a s u m a arte , o s q u e e sc re ­ viam a re sp e ito d e q u e stõ e s so c ia is e m p re g a v a m p rin c ip a lm e n te o m étod o d ed u tiv o . A p a rtir da n o ção g eral de h o m em , ele s deriv av am a form a de s o c ie d a d e co n fo rm e a n a tu re z a h u m an a e os p re ce ito s a serem o b se rv a d o s n a v id a so cial. É p re c iso falar u m p o u co so b re as d e ficiê n c ias d e sse m élo d o . M e sm o na arte. a d e d u ç ão só fo rn e ce hi­ póteses sim ples. Se u m a regra n ào tiv er sido testad a pela experiência, nào é -possível e s ta b e le c e r su a u tilid a d e ap e n a s p e la razào . P artic u ­ larm en te na c iên cia - q u a n d o d istin ta d a a rte

o papel da d ed u ção sò

pode se r se c u n d á rio , ao m en o s q u a n d o tra ta m o s dc realid a d es e nào de no çõ es ab stra ta s com o n a M atem ática. O b v ia m en te , a dedução n o s traz id éias q u e n o s g u iam p e la s o b sc u rid a d e s d a exp eriên cia, m as, a m en o s q ue essas id éias sejam c o n firm a d a s p ela o b serv ação , não p o d e m o s d iz e r se. de fato , ex p re ssa m a realid ade. O único m odo de d e sc o b rir as leis d a n a tu reza é e stu d a r a p ró p ria n atu rez a. M ais que isso, nào b asta o b se rv a r a n atu reza. Hla deve ser q u estio n ad a, perseg u id a, su b m etid a a teste de m il e u m a m an eiras. C o m o a C iê n ­ cia S o cial trata dc fen ô m en o s, e la só p o d e re a liza r seus o b je tiv o s com o m é to d o ex p erim en tal. N ào é fácil a d a p ta r esse m éto d o ã C iên cia S ocial, pois é im p o s­ sível fazer e x p e riê n c ias com so cied ad es. T o d av ia, há um m o d o de - 59 -

co

M o iu e sc ju ie u c R o u sseav

co n to rn a r essa d ific u ld a d e . Para d e sc o b rir as leis da natu reza, basta fa z e r um n ú m e ro su ficien te de co m p a ra ç õ es entre as div ersas form as d e u m a c o isa d ad a. D esse m o d o , as re la çõ e s c o n sta n te s e im utáveis ex p re ssa s na lei sào d is tin ta s d a q u e la s que sã o a p en as e fê m e ras e acid en tais. A essê n c ia da e x p e rim e n ta ç ã o e sim p le sm en te v a ria r li­ v re m e n te os fe n ô m e n o s de fo rm a q u e o fe re ç a m um c a m p o am p lo e ric o p a ra c o m p a ra ç ã o . M a s n ão h á o b je ç ã o a c o m p a ra r fen ô m e n o s so c ia is da m e sm a c ia s s e d a fo rm a c o m o a p a re c e m ern d ife ren te s so c ie d a d e s e n o ta r a q u e le s q u e se m p re c o n c o rd a m , o s q u e d e s a p a ­ re c e m sim u lta n e a m e n te e o s q u e v a ria m no m e sm o te m p o e nas m esm as p ro p o rç õ e s. E m b o ra nào se ja p ossive! fa ze r e ssa s c o m p a ra­ ções re p e tid a m e n te, e la s p o d e m , m e sm o assim , a te n d e r à n e c e ssid a ­ de dos e x p e rim e n to s na C iê n c ia S ocial. E m b o ra M o n te sq u ie u n ào tenha d isc u tid o o a ssu n to , rec o n h e ­ ceu in stin tiv a m e n te a n e c e ssid a d e d esse m éto d o . S eu p ro p ó sito ao re u n ir u m g ra n d e co rp o dc d ad o s a p a rtir da h istó ria d e d iv e rsa s na­ ções era c o m p a rá -lo s e d e riv a r leis deles. D e fato. iodo seu trab alh o é c la ra m e n te um a c o m p a ra ç ã o d as leis o b serv ad as p e lo s m ais d iv er­ sos p o v o s e ê p e rfeitam en te c o rreto afirm a r que. n o Espirito das Leis. M o n tesq u ieu in stitu iu um n o v o c a m p o d c estu d o , a q u e a g o ra ch a­ m a m o s Direito Comparado. E m b o ra a d e d u ç ã o te n h a d a d o lu g ar à e x p e riên cia em sua obra. ela a in d a re p re se n ta um p a p e l m a io r d o q u e o p e rm itid o pela C ien cia. E m seu p re fá c io , in fo rm a o leitor d c qu e pre te n d e tratar da Cièri • cia S o cial d e m an eira q u a s e m a tem ática, q u e ele a p resen ta p rin c íp i­ os dos q u a is as leis p a rtic u la res d as so c ie d a d es d e riv am -se de m a n ei­ ra lógica. O b v ia m e n te , ele p e rceb ia q u e esses p rin c íp io s d everiam ser tira d o s d a o b serv ação da realid ad e, m as ac re d ita v a que to d a a c iê n c ia e stav a im p líc ita , p o r assim dizer, e m tal o b se rv açã o , d c for­ m a q u e um a v e z d e riv a d o s o s p rin c íp io s, o ed ifício p o d eria se r co m ­ p le ta d o p o r p ura d ed u ção . N à o hã d ú v id a d c q u e ten to u ag ir seg u n d o e ssa s linhas.

O m é to d o dc M o n te s q u ie u

G1

E xam inem os antes de tudo seu m odo de u sar o m étodo indutivo. Ele n à o co m eça re u n in d o to d o s o s fatos re le v a n te s ao assu n to , arranjando-o s p ara que p o ssam se r e x a m in a d o s e a v a liad o s o b je tiv a m e n ­ te. Na m aio r p a rte d o te m p o , cie ten ta, p o r p u ra d e d u çã o , p ro v a r a idéia q u e j á form ou. M o stra q u e ela e stá im p lícita n a n a tu re za o u , se preferir, n a essência do h o m e m , so c ie d a d e , co m ercio , re lig ião , cm sum a. na d e fin iç ã o d a s c o isa s em qu estão . A p en as en tão eie a p rese n ­ ta o s fatos que. em su a o p in iã o , c o n firm a m .;ua h ip ó te se .11 M as se ac red ita m o s q ue as relaçõ es en tre as co isas só p o d em se r dem onstra­ das po r experim entos, n ào po d em o s su b o rd in ar o ex p erim en to à d e d u ­ ção. N ão pod em o s d ar p rim azia a arg u m en to s em que nào co n fiam o s e que co n sid e ra m o s rela tiv a m e n te in ú teis p ara fin s de d em o n straç ão . P rim eiro , o b se rv a m o s o s fen ô m en o s e a p en as d ep o is in terp retam o s d e d u tiv a m e n te a q u ilo q ue o b serv am o s. Sc ex am in arm o s as p ró p ria s d e m o n stra ç õ e s de M o n tesq u ieu , é fácil p erc e b e r q ue sào e sse n c ia lm e n te d ed u tiv as. E v erd a d e q u e ele n o rm alm e n te co n firm a su a s c o n c lu s õ e s c o m o b se rv a ç õ e s, m as to d a essa p a n e d e su a a rg u m e n ta ç ã o é m u ito fraca. O s fato s q u e e m p re s­ ta da H istó ria sào a p re s e n ta d o s d c fo rm a b re v e e su m á ria e não se e sfo rç a p a ra e s ta b e le c e r su a v e ra c id a d e , m e sm o q u a n d o sào c o n ­ tr o v e r s o s .: Ele os e n u m e ra a esm o . Se a firm a q u e n à o ex iste relação cau sai en tre dois fatos, nào se in co m o d a cm m o strar q u e em todos ou. ao m enos. na m aioria dos caso s, eles ap a re c em sim u ltan eam en te,

11. Q u a lq u er nú m ero d e e x em p lo s po d e ria sei c ita d o ao longo do :ial>a!lio. A ssim , d ep o is d e d e fin ir os irôs tipos d c so c ied a d e, e ie d e riv a se u s p rin c íp io s d a s d e fin i­ ções. - is s o " , c scrcv c c>c, " m e c ap a cita a d e sc o b rir se u s p rin cíp io s
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M o n tesq u ieu e Rousseau

d e sa p a re ce m ao m e sm o te m p o ou v a ria m d a m esm a m a n eira. C o n ­ tenta-se ern aleg ar alg u n s ex e m p lo s q u e correspondem grosseiram ente à lei su p o sta . P or v ezes, c h e g a a a trib u ir a todo um tipo um a p ro p ri­ edade q u e o b se rv o u em a p e n a s urna so c ie d a d e . T o m e-se. por e x e m ­ p lo . a se p a ra ç ão d o s p o d e re s. E m b o ra se ja en c o n trad a so m e n te na In glaterra, ele diz que é a característica essencial da m onarquia, acres­ c e n ta n d o a in d a q u e a lib e rd a d e é u m a c o n seq ü ên c ia d essa se p a ra ­ çào . e m b o ra n à o sa ib a se a lib erd ad e de falo ex iste entre os próprios in g leses. E m su m a . em v e z de u sa r a d e d u ç ã o para in te rp retar o que foi p ro v a d o p ela e x p e riê n c ia , ele u sa a e x p e riê n c ia para ilu strar as c o n c lu sõ e s da dedução. U m a v ez e fe tu a d a a d ed u ção , ele supõe que a d e m o n stra ç ã o está c o m p le ta . V am os e x a m in a r o a ssu n to m ais a fundo. C o m o v im o s, M ontesq u ieu a c re d ita v a que h o u v e sse ce rta s in stitu iç õ e s q ue. em bora e x istissem o u tiv e sse m e x istid o em d iv e rsa s so cied ad es, eram . m es­ m o a ssim , in a d e q u a d a s a e ssa s m e sm a s so cied ad es. M as essa afir­ m ação só p o d e se b a se a r em um a d e te rm in a d a co n sid e ra ção , ou seja. q u e p a ra e le aq u elas in stitu iç õ e s n à o p o d eria m ter n a scid o d o s p rin ­ cíp io s q u e ele já e sta b e le c era . M o stra que a in stitu ição d a escrav id ão en trav a em c o n flito c o m a d e fin iç ã o d e re p ú b lic a. D a m esm a m a n e i­ ra. d e te sta o g o v e rn o d e sp ó tic o p o rq u e está em c o n flito ló g ico com a essê n c ia do h o m em - e m e sm o da so c ied ad e - da fo rm a co m o a c o n ceb e. E m c e rto s c a s o s , p o rtan to , a d ed u ç ão p rev a lec e so b re a o b se rv a ç ã o e a e x p e riê n c ia. F.m bora a in d u ção te n h a su rg id o p e la p rim eira vez na C iência S ocial c o m M o n tesq u ieu . a in d a nào e sta v a c la ra m e n te sep arad a do m é to d o o p o sto e era co n ta m in a d a p ela m istura. M esm o que M o n tes­ q u ieu ten h a a b erto um a n o v a trilha, ele pró p rio era in c ap az de a b a n ­ d o n ar os c am in h o s j á e x p lo ra d o s. E ssa a m b ig ü id a d e m e to d o ló g ic a é u m a co n se q ü ê n c ia da a m b ig ü id a d e d o u trin ai a q u e no s referim os. Se as fo rm as n o rm a is de s o c ie d a d e estão im p lícitas na n a tu reza d a so­ cied ad e. p o d e m ser d e d u z id a s a p a rtir de u m a d efin iç ão d a natureza da so cied ad e. A essa s n e c e ssid a d e s ló g icas M o n tesq u ieu dá o n om e

O :iiélodo de M ontesquieu

cle leis. E m v ista d essa a fin id ad e en tre fe n ô m e n o s e a razão h u m ana, a razão b a sta p ara a in terp retação d o s fen ô m en o s. Pode p a re ce r su r­ p ree n d e n te q ue essa n a tu re z a in tim a dos fe n ô m e n o s d ev a se r tão c la ­ ram ente a p aren te a p o n to d e p o d e r se r re c o n h ecid a e d e fin id a nos prim eiro s estág io s de um a ciên cia, p o is n o rm a lm e n te se e sp era ria essa p e rc e p ç ão a p en as em u m a ciên cia q u e tiv esse atin g id o a m a tu ri­ dade. M as essa co n c lu sã o é b a sta n te c o n siste n te co m os p rin c íp io s de M o n tesq u ieu . A ssim co m o a c o n e x ã o entre os fen ô m en o s so ciais e a essê n c ia da so cied ad e é ra c io n a l, assim tam b ém essa e ssên cia, q ue é a fonte de toda a .dedução, c tam b ém d c n a tu reza racio n al: ou seja, c o n siste de urna sim p le s n o ç ã o que a razão pode p e rc e b e r em um a o lh a d e la . M o n tesq u ieu não p e rc e b ia p len am en te até que ponto, com o d iz B aco n .* a su tileza d as c o isa s ex ced e a su tileza da m en te h um an a. Isso ex p lic a su a e n o rm e c o n fia n ç a na razão e na d ed ução. N ão e sta m o s d izen d o q ue os fe n ô m e n o s so ciais, c o m o tais, sà o iló ­ gicos. M as e m b o ra p o ssam te r u m a c e rta ló g ic a fundam ental, não é a lógica à qual se co n fo rm a n o sso racio cín io dedutivo. E la n à o tem a m esm a sim plicidade. Talvez o b serv e o u tras leis. Para a p ren d e r essa lógica, d ev em o s co n su ltar as p ró p rias coisas. A co n fu sã o de q u e falam o s te m a in d a o u tra cau sa. V im o s q u e as leis da so cied ad e p o d e m se r v io la d a s. P o r isso, não p odem se r e sta b ele c id as ap en as p o r m e io d a o b se rv a ç ã o ou m e sm o da co m p ara­ ção dc fenôm enos. A s realid ad es n ào sà o necessariam ente racionais, m as as leis sào racio n ais sob to d o s os aspectos. P or isso. m esm o se alg u m a co isa for p ro v ad a p ela H istó ria, não p o d e m o s te r certe za a b ­ so lu ta de que se ja v e rd a d e . T odas as so c ie d a d e s do m esm o tip o têm certos d e fe ito s; p o rtan to , é im possível d e sc re v e r a form a norm al des­ sas so c ie d a d e s b a sead o n a q u ilo q u e en co n tram o s nelas. S c nào p o ­ d em o s o b te r u m a v isão fiel d o s fe n ô m e n o s atrav és da ex p e riê n c ia , a ex p eriê n c ia a p en as nào p o d erá n o s e n sin a r o q u e resulta da n atu reza

*N .E .: S u g e rim o s n leitura cle FrancLs Bacon Da Proficiência e o Avanço dos Conhecimentos Divino e Humano, d e F ia n c is B acon. M adias Hditora.

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M o n te s q u ie u e K ousseau

d o s fen ô m en o s. Só re sia u m a saíd a: d e v e m o s xeniar atin g ir a p rópria e ssê n c ia , d cfin i-la c. a p a r tir d a d e fin iç ã o , d ed u zir o qu e ela im plica. D isso não d e v e m o s c o n c lu ir que a o b se rv aç ão é inútil, m as a n tes que ela p recisa ser m an tid a so b su sp eita a té se r co n firm a d a pela razão e. se p o r a c a so nào p u d e r s e r c o n firm ad a, d ev e se r rejeitad a. V em os o q u an to é in d isp en sáv el, n a C iê n c ia S o cial, d e sc o b rir n o s p ró p rio s d ad o s alg u m a in d ic a ç ã o d e fin id a q ue n o s cap a cite a d istin g u ir entre d o e n ç a e saú d e. Se n ào h o u v e r esse sin al, so m o s lev ad o s a nos re fu ­ g iar na d e d u ç ã o e a nos a fa s ta r dos fa to s co n creto s.

m _______________________________________________________ Q u e r p ro ced a p o r d e d u ç ã o ou p o r ind u ção , M o n tesq u ieu o b ser­ va u m a reg ra m eto d o ló g ica que a ciência m od em a nào deve ignorar. O s fe n ô m e n o s s o c ia is são n o rm a lm e n te c la ssific a d o s d e a c o r ­ do com c o n sid e ra ç õ e s q u e . à p rim eira v ista, p o d e m p a re c e r to tal­ m ente nào relacio n ad as. R elig ião , d ire ito , m o ralidade, co m ércio e a d m in istra ç ã o p are c e m , d e fato. te r d ife re n te s n a tu re zas. Isso e x p li­ ca por q ue ca d a c la sse d e fen ô m en o s foi poi m u ito te m p o tratad a s e p a ra d a m e n te

e a in d a é

c o m o se p u d e sse s e r e x a m in a d a e

e x p lic a d a p o r si m e sm a , sem re fe rê n cia às o u tras, assim c o m o os físico s não lev am a co r err. c o n sid e ra ç ão ao tra ta r do peso. N ão se n eg a q ue u m a c la sse de fe n ô m e n o s se rela cio n e às o utras, m as as re la ç õ e s sào c o n s id e ra d a s sim p le sm e n te ac id en tais, de form a que. co m o a n atu reza in tim a d o s fe n ô m e n o s n ã o p o d e se r d eterm in ad a, p arece seguro ig n o ra r as re la ç õ e s en tre eles. Por ex e m p lo , ?. m aior ia dos m o ra lista s trata da m o ra lid a d e e de reg ras d e c o n d u ta com o se e la s e x istisse m p o r si m e sm a s c nào se p re o c u p a m em c o n sid e rar o c a rá te r ec o n ô m ic o d as so c ie d a d e s em q u estão . O s q u e tratam do a s­ su m o da riq u eza a firm a m , de m an eira se m elh a n te, q u e sua ciência, ou seja, a e co n o m ia p o lític a , é a b so lu ta m en te a u tô n o m a e pode p ro s­ se g u ir sem a m e n o r a te n ç ã o ao siste m a de reg ras a que ch am am o s érica. S eria possív el c ita r m u ito s o u tro s ex em plos.

O m é to d o d e M o n te sq uieu

M o n te sq u ie u . porém , v ia m u ito cla ra m e n te qu e iodos esses e le ­ m entos fo rm am um to d o e q u e, se to m a d o s se p a ra d am en te, sem re ­ ferência ao s o u tro s, n ào p o d em se r co m p re e n d id o s. Ele n ã o se p a ra o direito da m o ralid ad e, do co m ércio , da relig ião , etc. e. acim a d e tudo, não c o n s id e ra q u e eie se ja d is tin to da fo rm a d e s o c ie d a d e , q u e a fe ­ ta to d o s o s o u tro s fe n ô m e n o s so c ia is. P o r m a is q u e se ja m d ife re n ­ tes, to d o s esse s fen ô m en o s ex p re ssa m a vid a de um a dad a so cied ad e. São os e le m e n to s ou ó rg ã o s do o rg a n ism o social. A m e n o s q u e te n te ­ m os c o m p re e n d e r co m o se h a rm o n iz a m e in terag em , é im possível co n h ecer su a s fu n çõ es. P o d e m o s ate m e sm o não d istin g u ir su as na­ turezas. p o is c ie s p a re c e rã o re a lid a d e s d istin tas, cada um co m sua existência indep en d en te, em b o ra sejam na verd ad e partes dc um todo. E ssa atitu d e é re sp o n sá v e l p o r c e rto s e rro s q ue a in d a sào c o m u n s entre cie n tista s so ciais, isso e x p lic a p o r q u e m u ito s e co n o m ista s p o ­ líticos c o n sid eraram o in te re sse p esso al c o m o o ú n ic o p rin c íp io da so c ied ad e e p o r que n eg aram o d ireito do leg islad o r dc in terferir em ativ id ad es re la c io n a d a s ao c o m é rc io e à indústria. In v ersa m en te, em bora p e la m esm a ra z ã o , os m o ralistas em g e ra l c o n sid e rav am os direito s de p ro p rie d a d e fixos e im u tá v e is, em b o ra, na v e rd a d e , d e ­ pendam de fato res e c o n ô m ic o s ex tre m a m e n te v a riad o s e in stáv eis. E sse e rro tinha d e se r d issip a d o an tes que a C iência Social p u ­ desse se d e sen v o lv er e m esm o p a ssa r a existir. A s d iv ersas disciplinas que tratav am sep arad am en te de diferen tes categ o rias de fenôm enos so ciais de fato p re p a ra ram o cam in h o p a ra a C iência S ocial: foi a p a rtir d eias q ue ela p ô d e se d esen v o lv er. M as a C iên cia Social, no sentido estrito , p asso u a e x istir a p e n a s q u a n d o sc p erceb eu cla ra ­ m ente q ue os ram o s antes m e n c io n a d o s cslavarn lig ad o s p ela estrita n ecessid ad e e eram p a rte s de um to d o . M as essa co n cepção nào p o ­ d eria su rg ir até q ue se p e rc e b e sse q u e to d o s o s a c o n te cim en to s na so cied ad e estào re la c io n a d o s. A o a p o n ta r a im errelaçào dos fen ô m e ­ nos sociais. M o n tesq u ieu p re sse n tiu ;í u n id ad e de n o ssa ciên cia em b o ra su a v isào do a ssu n to ain d a fo sse vag a. E m n enhum p o n to ele diz q u e o s p ro b le m a s de q u e trata p o d eriam se r o assu n to dc um a

M onte$C|u icu c R ou.^c.m

c iê n c ia d e fin id a q u e in c lu ísse to d o s os fe n ô m en o s so c ia is e tivesse um m é to d o e um n o m e p ró p rio s. M e sm o assim , se in su sp e ita r dessa im p licação para seu s e s fo rç o s, ele deu ã p o ste rid a d e urna p rim eira a m o stra d essa ciê n c ia . E m b o ra n ào ten h a d e lib e rad am en te tira d o as c o n c lu sõ e s im plícitas, e m seu s p rin c íp io s, p re p a ro u o cam in h o para seu s su c e sso re s, q u e, ao in stitu ir a Sociologia, p o u c o m ais fizeram q u e d a r um n o m e ao c a m p o dc e stu d o q u e ele inaugurara.

[ m i _________________________________ r.x isic, to d av ia, u m a n o ç à o d a qual M o n tesq u ie u parccc nào tei se d ado co n ta c que, em n o ssa é p o c a , tran sfo rm o u o m é to d o da C iên ­ cia S o c ia l, q u e é a n o çào d e progresso. V ejam os o que isso significa. Q u an d o co m p a ra m o s d iferen tes povos, ó com o se certas form as ou p ro p rie d a d e s m a n ife sta m e n te in eren tes à n atureza da socied ad e fo ssem sim p le sm e n te e sb o ç a d a s en tre c e rto s p o v o s e se m ostrassem m ais c la ra m e n te em o u tro s. A lg u m a s so c ie d a d e s são p e q u e n a s e e s­ p a lh a d a s p o r g ra n d e s á re a s ; o u tra s sào g ra n d e s e den sas. A lgum as n ã o tê m u m a au to rid ad e firm em en te e stab e le cid a; ou tras têm u m a a d m in istra ç ã o dc lista d o siste m a tic a m e n te org an izad a, que faz sen tir su a in flu ê n c ia p o r todo o o rg a n ism o so cial. F m rc e sse s d o is tip o s há incontáveis variações interm ediárias. N ó q u e toca à organização, essas so c ie d a d e s não estào no m e sm o n ív e l, p o r assim dizer. A lg u m as p o ­ dem ser c o n sid e ra d a s s u p e rio re s às o utras. M as já se o b serv o u que as so c ie d a d e s su p e rio re s sa e m d as in ferio res. O b v ia m e n te , n ão q u e ­ ro d izer q ue as so cied ad es form am urna sim ples série linear que vem do s p o v o s an tig o s na ex trem id ad e inferior até as nações m o dernas no cum e. S eria m ais co m o u m a árvore cujos g alh o s se estendessem em diferen tes direções. M as isso p o u co tem a v e r com nosso assunto. M esm o assim , é verdade q u e as so ciedades nascem de ou tras so cied a­ d es e q ue as m ais recen tes sào sup erio res às m e n o s recentes. É a isso que se ch am a p ro g resso d a hum anidade. A s m esm as o b servações po­ dem ser feitas se c o n sid erarm o s um único povo em si m esm o. A p a rtir do m o m en to em q u e passa a existir, ele se desen v o lv e pouco a pouco

O m é to d o He M o n te sq u ie u

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cm um tipo su p e rio r àq u ele cio qual veio. 0 progresso da natureza hum ana co n siste n esses p eq u en o s desen v o lv im en to s cum ulativos. T o d av ia. M o n tesq u ieu n à o c o n se g u iu p e rc e b e r isso. Ê v erd ad e que nào p u n h a to d as as so cied ad es n o m e sm o n ív el. P re fe ria a re p ú ­ blica e a m o n a rq u ia a o d e sp o tism o , a m o n a rq u ia à rep ú b lica e a re ­ p ú b lica à d e m o c ra c ia d o s p o v o s b á rb a ro s. M as n ào su sp e itav a que esses d ife re n te s tip o s de so c ie d a d e c re sc ia m su c e ssiv a m e n te a p artir da m esm a raiz. P e n sa v a q u e cad a um a su rg ia in d ep e n d e n tem en te das o u tras, ex ceto a m o n a rq u ia q u e. a seu ver. se d e se n v o lv e a p a rtir da d em o cracia in fe rio r.1* M as e ssa ú n ica exceçào m o stra o quão a fa s­ tado ele e stav a da idéia do p ro g re sso , já q u e a d e m o c ra c ia p rim itiv a, que ele co n sid e ra su p e rio r a q u a lq u e r o u tra fo rm a de so c ie d a d e ,14 é para cie o tipo o rig in al e x a ta m e n te p o r se r in fe rio r a todas as o utras. Pela m esm a razào . e m b o ra ele n ã o n e g u e q u e o p rin cip io social de povos p articu lares p o d e ser d esen v o lv id o ou corrom pido, acredita, m esm o assim , q ue esse p rin c íp io c determ in ad o q u ando um povo pas­ sa a existir e deve p erm an ecer intacto p o r toda sua história. N ã o co n se­ gue perceb er que toda so cied ad e contem em si fatores conflitantes, sim plesm ente porq u e grad u alm en te em erg iu de u m a form a passada c tende para u m a futura. N ào reco n h ece o p ro cesso em que u m a so cie­ dade, sem pre p erm an ecen d o fiel ã sua natureza, está co n stantem ente se tom an d o alg o dc n o v o , dai a singularidade de seu m étodo. A ex istê n c ia social é d e te rm in a d a p o r d o is tipos dc co n d içõ es. U m a co n siste nas c irc u n stâ n c ia s p resen tes, co m o a to p o g rafia ou o tam an h o da p o p u la ç à o . A o u tra p c rtc n c c ao p a ssa d o h istó rico . A ssim corno um a criança seria d iferen te se tiv esse outros pais. assim tam bém a n atu reza dc um a so c ie d a d e d e p e n d e da fo rm a d as so c ie d a d e s que a

13. Hle d iz que a m o n arq u ia d o s p o v o s g e rm â n ic o s foi re su lta d o tia c o rru p ç ã o de seu g o v e rn o (L iv ro X I. cap. 8) c q u e o s ale m ãe s v iv eram a vida d e pov o s bárbaros (L ivfo VTIL c:ips. 20 = 30; d '. L iv ro XV1IL c ap . 14). 14. n , o b v iam e n te , a dêmacratie inférieure q u e c questionada. [N ota do trad u to r p a ra o inglês]

M o n le s q u ic u c R o u sseau

p re c e d e ra m . Se e la fo r a c o n tin u a ç ã o cle so c ie d a d e s in ferio res, nào pode se r igual a urna q u e su rg isse dc n a ç õ e s a ltam e n te civilizadas. S em c o n se g u ir p e rc e b e r as re la ç õ e s dc su c e ssã o c p aren tesco en tre as so c ie d a d e s, M o n te sq u ie u o m ite c o m p leta m en te as cau sas d esse tipo. N ào lev a em c o n ta esse vis a tergo q u e im p u isio n a as so c ie d a d e s, m as c o n s id e ra a p e n a s o s fato res a m b ie n ta is.15 Q uando tenta in te rp re ta r a h is tó ria de um a so cied ad e , nào a situ a em urna série dc socied ad es, m as cu id a apenas d a natyreza dc sua topografia, do núm ero de cidadàos, etc. Isso é total m ente contrário ao m étodo adotado m ais tard e p o r C o m tc ao tratar do m esm o problem a. Com le afirm a q u e a n atu reza d a s so cied ad es d ep en d e inteiram ente do m o­ m ento em q ue cias su rg iram e q ue a C iência Social co n siste quase in teiram en te em e sta b e le c er a série d as sociedades. N em é preciso d i­ zer q ue nenhum a d essas d outrinas expressa m ais q u e um a parte da verdade.

15. Ver, so b re io d o s e sses tó p ic o s, o ensaio neste livro x o artig o d c M . D avv na Jlevue de Mèttíphysique cr de M onile (ju lh o -u u tn b ro d e 19*19): “A e x p licação so ­ ciológico e o recu rso ã h istó ria seg u n d o C o m te. Nr.ll e D u rk h c ith ” . e spccialm entc as pp. 346-53. C itam o s aqui o tre c h o que conclui esse artigo: "A e x p lic aç ão histó rica da gênese, com suas fa ses e iaram en te sep a ra d a s. iíe l'áto c o m p le ta a explica çào :necnnistica com todas as .-^uas im plicações. [E m Regras do método sociológi­ co] a cau salid ad e d a s condiçò-es do a m b ie n te social, sobre a cau salid ad e do am ­ biente. nào nos c o m p e le de fo rm a alg u m a a ig n o rar aq u elas do estad o a n terior no estad o atua). H á u m a in te rd ep e n d ê n cia d e in flu en cia d o s d ifere n te s fatores d o p re ­ sente dos fatores do p assad o n o p re sen te ". [N o ta dc> tra d u to r para •;> inglês]

Conclusão Em su a h istó ria d a filo so fia p o lític a . Paul Jan ct, dep o is d e ap re ­ se n ta r a te o ria de M o n tesq u ieu , q u e ix a -se . com razão, de q u e a m aior p a rte dos c o m e n ta rista s se in teresso u a p e n a s p o r e x p o r se u s erros. A cresc e n ta q ue teria sid o p re fe rív e l, c m u ito m ais ju s to , “ te r dado um a id éia d eta lh a d a d a v a stid ã o e o b sc u rid a d e do te m a q u e ele esco ­ lh eu e d a to rç a in telectu al com a q u al ele o trato u ” ." ’ Foi isso que te n ta m o s fa z e r no a tu a l tra b a lh o . N ào d is c u tim o s a o p in iã o dc M o n te sq u ie u cm q u e stõ e s d e d e ta lh e s, m as tra ta m o s a p e n a s do que co n sid e ra m o s su a p rin cip al realização . E m b o ra sem pre seja um erro re tra ç a r o n a sc im e n to d e u m a ciên cia a u m p e n sa d o r em p a rtic u la rjá q u e toda ciên cia é o p ro d u to d e u m a ca d e ia in in terru p ta dc c o n tri­ b u içõ es c c d ifícil d iz e r q u an d o ex a ta m e n te ela p a sso u a e x istir m esm o assim , foi M o n tesq u ieu q u e m p rim e iro e sta b e le c e u o s p rin ­ cíp io s fu n d am en tais da C iên cia S ocial. TN à o q ue o s te n h a afirm ad o em term o s ex p lícito s. E le esp e c u lo u m u ito p o u c o sobre as co n d iç õ es da ciên cia q u e in au g u ro u . M as e sse s p rin c íp io s e c o n d içõ es sào in e ­ rentes a su a s idéias e nào é d ifícil re c o n h c c c -lo s e fo rm ulá-los.

56. ffisroire de la srfmcQ palhique. (3"1 ec.. II. 3 1 7 -1 9 c 4* cd.. pp. 197-9S). 17. Km seu Cnurs de pluloxophie posilive (cd. Schlcichcr. IV. 178-95), C o m íe reco n h e ce a g ran d e div id a da C iên cia Social a M o n tesq u ieu . T odavia, a av aliaç ão que faz da c o n trib u içã o dc M o n te sq u ieu é m u ito b reve e. c o m o m o stram o s, um tanto incorreta. Ela não p a re c e m o stra r u m a a te n çã o c u id ad o sa à te o ria dc seu p redcccssor.

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M o n tcscu ieu c Roti^seau

V im o s q u a is suo. N à o ap en as M o n tesq u ieu c o m p re en d e u que o s fen ô m en o s so c ia is são assu n to p a ra um e stu d o cien tific o , com o tam b ém aju d o u a d a r fo rm a às d u as id éias fu n d am en tais n e cessárias ao e sta b e le c im en to d a C iê n c ia S ocial: as idéias de lipo e de lei. F.m rc ía ç à o ao tipo, M o n te sq u ie u m o stra que a n atu rez a do p o ­ d e r so b eran o e d a e x istê n c ia so cial em g eral difere de um a so cied ad e p ara o u tra, m as q u e as d ife re n te s fo rm as p odem m esm o assim ser c o m p arad as. H ssa é u m a co n d ição in d isp e n sáv e l p a ra a classificaç à o ; nào b a sta q u e as so c ie d a d e s m a n ife ste m se m e lh a n ç a s de um tip o ou o u tro ; d e v e se r p o ssív e l c o m p a rá-lo s em to d a sua estru tu ra e e x istê n c ia . M o n te sq u ie u n à o a p e n a s fo rm u lo u p rin c íp io s , com o lam bém o s u so u co m g ra n d e h ab ilid ade. A cla ssifica ção q u e e sb o ­ ço u c o n lé m um c o n sid e rá v e l ele m e n to d c v erdade. M as se enganou em d o is pontos. P rim eiro , erroneam ente su p õ e que as fo rm as sociais são d eterm in ad as p elas fo rm as d e soberania e p odem se r definidas de acordo. Segundo, afirm a q u e h á algo in trinsecam enle anorm al a res­ p eito de u m do s tipos que d istin g u e: o E stado despótico. F.sse p o n to de vista é incom patível co m a n a tu re z a d e um tipo, pois cad a tip o tem sua própria form a p erfeita q u e - d ep en d en do das condições de época e local

tem o m esm o nível d a form a p erfeita d o s outros tipos. Q u an to ;> n o ç à o de lei. foi m ais d ifícil tra n sfe ri-la das ou tras

c iên cias em q ue jà e sla v a esta b e le c id a para a nossa. E m to d as as ciên cias, a n o çào de tip o a p a re c e an tes d a d e lei. pois a m en te h u m a­ na p ode co n ceb ê-la m a is rap id am en te. B asta o lh ar em volta para per­ ce b e r certas sem elh an ças e d iferen ças entre as coisas. M as as relações d e te rm in a d a s a q u e c h a m a m o s leis estào m ais p ró x im a s da n atureza d a s c o isa s c c o n se q ü e n te m e n te o c u lta s d en tro dela. Estilo cobertas p o r u m véu que d e v e m o s re m o v e r se q u iserm o s c h e g a r a elas e trazêlas à luz. F.m re la ç à o à C iê n c ia S o cial, h o u v e c e rta s d ificu ld a d es esp eciais que resu ltaram d a p ró p ria n atu re za da e x istê n c ia so cial, q u e c tào m ó v e l, d iv e rsific a d a e rica e m form as q ue. p a ra m im . nào p o d e se r red u z id a a leis fix as e im u táv eis. A lém d isso , os ho m en s nào g o sta m de p e n s a r q u e e stã o u n id o s pela m e sm a n ec essid ad e que ou tro s fen ô m en o s n atu rais.

C o n c lu são

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M esm o a ssim , a p e s a r d a s a p a rê n c ias, M o n tesq u ieu -afirma que os fen ô m e n o s so c ia is tèm u m a o rd em fixa e n ecessária. N e g a q u e as so cied ad es estejam o rg a n iz a d a s a e sm o e q ue su a histó ria d ep en d a de acid en tes. F.stá c o n v e n c id o d c q ue essa e sfe ra do u n iv erso é g o ­ v ern ad a p o r leis. m a s a c o n c e p ç ã o q u e faz d elas c c o n fu sa . D e aco r­ do co m ele. e la s não n o s c o n ta m c o m o a n atu reza dc u m a so cied ad e dá orig em às in stitu içõ es so ciais, m a s a m e s ind ica as in stitu içõ es que a n a tu re z a de u m a so c ie d a d e e x ig e , c o m o se sua ca u sa eficien te ti­ v esse de s e r b u scad a a p e n a s na v o n ta d e d o legislador. T am bém a p li­ ca a p a la v ra leis às re la ç õ e s e n tre id éias, e nào en tre as c o is a s .? Na v erd ad e, essas idéias são as q u e um a so c ie d a d e d ev e m a n te r se for fiel à sua n atu reza, m a s p o d e se se p a ra r delas. M esm o assim , sua C iên cia S o cial não d e g e n e ra em o u tra d ia lé tic a p o rq u e ele percebe que aq u ilo que é racio n al c p re c isa m e n te o q ue ex isle co m m a io r freq ü ên cia na realid ad e. D e sse m odo. su a lógica ideal situ a -se , em certo p o n to , n o m u n d o e m p íric o . M a s h á ex c e ç õ es q u e intro d u zem um e le m e n to de am b ig ü id a d e em seu c o n c e ito de lei. D esd e M o n tesq u ieu . toda a C iê n c ia Social c o n seg u iu d issip a r essa a m b ig ü id a d e . N ã o era p o ssív el p ro g re d ir m a is até q u e se esta ­ b elecesse q ue as leis d a s so c ie d a d e s não são d ife ren te s das q u e g o ­ v ernam o resto d a n a tu reza c q ue o m éto d o pelo q u al sào d e sco b e rtas é id ên tico ao d a s o u tra s ciê n c ia s. E ssa foi a c o n trib u iç ã o dc A u gusto C o m te. E le e lim in o u d a n o ç ã o dc lei to d o s os elem en to s estran h o s q ue ate en tão a h av iam fa lsific a d o e in sistiu com razão na p rim az ia d o m éto d o in d u tiv o . A p e n a s en tã o n o ssa c iê n c ia p ôde te r p le n a co n s­ ciên cia dc seu o b je tiv o e m éto d o e to d o s o s seu s fu n d a m e n to s indis­ p en sáv eis estariam c o m p le to s. C) p re se n te e stu d o a ju d a rá o le ito r a ju lg a r a c o n trib u iç ã o dc M o n te sq u ie u a essa p rep aração .

IS. D urkhcim reex a m in a essa id éia em Ri-gtes- dc Ia m èihodcsocwhgiautt cap. I. p. 25 (cd. 1947, p. 19), a o a p lic á-la a o p ró p rio C om tc.

O Contrato Social de Rousseau 1 9 O principal objetivo do Contrato Social, ap resen tad o no L ivro i. C ap. I. pode ser re su m id o assim : en c o n tra r u m a fo rm a de asso ciação ou, co m o R o u sseau ta m b é m a c h am a, de estado civil, c u ja s le is p o s­ sam ser so b re p o sta s à s leis fu n d am en tais in eren tes ao estado de na­ tureza sem v io le n tá -la s. P ara c o m p re e n d e r a d o u trin a de R ousseau. d ev em o s: ! ) d e te rm in a r o q u e se ria o “ estado de n a tu re za ” , q u e é c o m o um p a d rã o para m e n su ra r o grau dc p e rfe iç ão atingido pelo “estado civil9’: 2) d eterm in ar com o o s ho m en s co n seg u iram afastar-se dessa co n d ição ao fu n d a r a s so c ie d a d e s, p o is se a form a p erfeita de so cied ad e ain d a p re c isa se r desc o b e rta , d e v e m o s c o n c lu ir qu e a rea­ lidade nàò oferece um m o d elo . A p en as en tã o p o d e rem o s ex am inar as ra z o e s de R ousseau p a ra a c re d ita r que esse a fa sta m e n to n ào era inevitáve! e su as o b s e rv a ç õ e s a resp eito de com o os dois estados, c o n tra d itó rio s em d iv e rso s asp ecto s, p o d e m ser re c o n c ilia d o s. 19. O p re sen te estudo. que D u rk h eim e sb o ço u após um c u rso q u e aca b av a
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O estado de natureza O estado de natureza n ão é. co m o j á se d isse, o esta d o em q ue o h o m em v iv ia a m e s da in stitu iç ã o d as so cied ad es. () term o p o d e . de fato , s u g e rir um p e rio d o h istó ric o no inicio do d e sen v o lv i­ m en to h u m an o . N ão foi a in tcn çâò de R o u ssèau. T rata-se, seg u n d o ele. de um estad o "q u e n ão m ais existe, q u e talv e z nu n c a tenha e x is­ tid o , que p ro v av elm en te n u n ca e x is tirá '' (P refác io ao Discurso so­

bre a origem da desigualdade). O h o m em natural c sim p le sm e n te o h o m em sem aq u ilo q ue ele d ev e à so c ie d a d e, re d u z id o ao que seria se sem p re tiv esse v iv id o em iso lam en to . A ssim , o p ro b lem a é m ais p sic o ló g ic o que h istó ric o , o u seja. d istin g u e en tre os e lem en to s so ­ ciais da n a tu re z a h u m a n a e os in eren tes à c o n stitu içã o p sico ló g ica do indiv íd u o . N o estad o de n atu reza, o h o m em c o n siste ap en as destes últim os. P ara d e te rm in a r o que ele era “q u a n d o surgiu d a s m ão s da n a tu re z a ", d e v e m o s d e sp i-lo “ de to d o s os do n s so b re n a tu ra is que possa te r rec e b id o e de to d a s as fa cu ld ad es a rtificiais que só pode ter ad q u irid o p o r m e io de u m lon g o p ro g re sso " {ibid.. e P a rte 1). Se. co m o su p u se ra m R o u ssèau . M o n te sq u ie u e q u ase io d o s o s p e n sa d o ­ res até C o m te (e m e sm o S p e n c e r recai n essa trad ic io n al c o n tu sã o ) a n atu reza term in a n o in d iv íd u o , tu d o o q u e está além deste fatal­ m en te será a rtificial. R o u ssèau n à o p e rg u n ta se o hom em p erm a n e ­ ceu n o estad o de n a tu re z a p o r a lg u m te m p o co n sid eráv el ou se co ­ m eçou a afastar-se d e le a p artir d o m o m e n to em que su rg iu , pois a q u estão é irrelev an te p ara seu p ro p ó sito .

M o n tc s q u ic u c R o u ssèa u

C o n se q ü e n te m e n te . a h istó ria te m p o u ca u tilid a d e p a ra ele. q ue le g itim a m e n te a d e s c o n s id e ra . "V am os c o m e ç a r p o r ig n o rar to d o s os fa to s, p o is n ã o s e re la c io n a m i\ q u e stã o . T odas as in v e sti­ g a ç õ e s d o a s su n to n à o d e v e m se r c o n s id e ra d a s v e rd a d e s h istó ric as, m as e s p e c u la ç õ e s h ip o té tic a s c c o n d ic io n a is, que mais provavel­

mente esclarecerão a natureza das coisas do que revelarão sua real origem" (ibid.. in ic io , in fine). M e sm o o s s e lv a g e n s d ão unia id éia b e m p o u c o e x a ta d o e sta d o de n a tu re z a . “ M u ito s p e n sa d o re s se e n g a n a ra m a re sp e ito d a s te n d ê n c ia s p rim itiv a s do h o m em e lhe a trib u íra m , p o r e x e m p lo , u m a c ru e ld a d e n a tiv a , p o r n ào p e rc e b e ­ rem su fic ie n te m e n te c o m o e sse s p o v o s [os se lv a g e n s] já estav a m a fa s ta d o s d o p rim e iro e s ta d o d e "n a tu re z a 1. C) se lv a g e m está c e rta ­ m e n te m a is p ró x im o à n a tu re z a . Em seu e sta d o m e n ta l, sem d ú v id a é m a is fá c il, so b m u ito s a s p e c to s , d is tin g u ir o fu n d o o rig in a l, pois está m e n o s o c u lto p e la s a q u is iç õ e s d a c iv iliz a ç ã o . M as essa é um a im a g e m a lte ra d a q u e d e v e s e r e x a m in a d a co m g ra n d e c a u te la ." C o m o p ro c e d e r e n tã o ? R o u s s è a u n à o tem ilu sõ e s a re sp e ito das d ific u ld a d e s de su a e m p re ita d a . “ U m a so lu ç ã o sa tisfa tó ria p a ra o se g u in te p ro b lem a n à o m e p areceria in d ig n a do s A ristó teles e Plínios dc n o sso sé c u lo . Q u e e x p e riê n c ia d e v e ría m o s e x ig ir para c o n h e c e r o h o m e m n a tu ra l e p o r q u e m e io s p o d e ría m o s re a liz a r essas e x p e ­ riê n c ia s p ara o b e n e fíc io d a so c ie d a d e (ibid, P re fá c io )? " E ssas e x ­ p e riê n c ia s sào im p o ssív e is. Q u e té c n ic a s p o d e ria m su b stitu í-la s? R o u ssè a u n ào as e x p lic ita , m as o s p rin c ip a is m é to d o s p a re c e m ser: I ) o b s e rv a ç ã o de a n im a is , q ue fo rn e c e m e x e m p lo s de v id a m en tal n à o -in flu e n c ia d a p e la so c ie d a d e ; 2} o b se rv a ç ã o d o s se lv a g e n s, com a re se rv a a c im a m e n c io n a d a : 3) um tip o d e d ia lé tic a c o m o o b je ti­ v o de d e d u z ir to d o s os fa to re s m e n ta is q u e p a re c e m e sta r lo g ic a ­ m e n te im p lic a d o s p e lo s d e s e n v o lv im e n to s so c ia is su b se q ü e n te s (c o m o a lin g u a g e m ). P o r q u e R o u ssè a u a g iu dessa form a? P o r que a te o ria d o estad o de n atu re z a , assim d e fin id a , é a b ase de seu sistem a? P o rq u e, re sp o n ­ de ele, essa c o n d iç ã o p rim itiv a é ';a ra iz " do estad o civil. i;Se me

O e sta d o d c n a tu re z a

estendi ta n to na su p o siç ã o d essa c o n d iç ã o p rim itiv a, foi p o rq u e, ten ­ do de d e stru ir an tig o s e rro s e p re c o n c e ito s in v eterad o s, acred itei .ser necessário c a v a r a té a ra iz ” (ibid.. P a rte í). P a re c ia-lh e ó b v io que a Sociedade só p o d e ria se r u m a c o n c re tiz aç ã o d as p ro p rie d a d e s c a ra c ­ terísticas d a n atu reza d o in d iv íd u o . P o rta n to , é da n atu rez a in d iv i­ dual que d e v e m o s c o m e ç a r e a eia d e v e m o s retornar. P ara ju lg a r as fo rm as h istó ric a s de asso ciação , d e v e m o s e x a m in á -la s em relação con. a n a tu re z a h u m ana, ten ta n d o d e fin ir se elas a d v im log icam en te dela ou se a d efo rm am . E q u a n d o b u sc a m o s d e te rm in a r que fo rm a dev eria su b stitu i-la s. um a a n á lise d o h o m em n atu ral d ev e fo rn ecer as p re m issa s de nosso ra c io c ín io . M as p a ra c h e g a r a esse h o m em natural, d e v e m o s d e ix a r de lado tu d o o que. em nós, é pro d u to da ex istên c ia social. De outro m o d o , e n tra ría m o s cm um circu lo vicio so , pois estaríam os ju stific a n d o a so c ie d a d e com b ase na so cied ad e, ou seja, nas idéias e se n tim e n to s q ue a so c ie d a d e im p lan to u em nós. E stariam o s d em o n stra n d o um p reco n ceito com o u tro . Se d e se jam o s p ro c e d e r de form a critica e efetiva, é preciso escap ar à ação da sociedade e dom inála; é p reciso c o m e ç a r d a o rig em e re v e r a se q ü ê n c ia lógica d a s c o i­ sas. Esse é o o b je tiv o d a o p eração q ue a cab am o s d c d escrever. A p reo c u p a ç ão co n stan te d e R o u sse a u era e v ita r “ o erro d a q u e ­ les q ue. a o ra c io c in a r so b re o esta d o de n atu reza, u sam idéias re tira ­ das da so c ie d a d e ” (ibid.. P a n e I). P ara esse fim . d ev e m o s no s liv rar de to d a s as p ré-co riccp çõ es de o rig em so cial, se ja m v e rd a d e iras ou falsas, ou. co m o ele d iz . “ lim p ar o p ó c a areia q u e ro d eia m o ed ifí­ c io ” e "d e sc o b rir o fu n d am en to sólid o no qual ele se a p ó ia ” {ibid. P re fác io , in fine). E sse fu n d am en to só lid o é o estado de natu reza. N ão se p ode d e ix a r de n o ta r a sem elh an ça en tre esse m é to d o e o de D e scartes. A m b o s os p e n sa d o re s afirm am q u e a p rim e ira o p e ra ­ ção da C iên cia d e v e se r u m a esp é c ie d c p u rg a ç ã o in telectu al que lim p e a m en te de to d o s os ju lg a m e n to s m e d ia to s q u e n ão tenham sido dem on strad o s cientificam en te para d esp o jar os ax io m as d o s quais to d as as o u tra s p ro p o siç õ e s d ev em d criv ar-sc.

M o n tc s q u ic u c R o u ssca u

A m b o s su g e re m re m o v e r o c a sc a lh o c d e sc o b rir a ro ch a sólicta so b re a qual ioda a e stru tu ra do co n h ecim en to dev e repousar; em um dos caso s o co n h ecim en to teórico, no outro o co n h ecim en to prático. A c o n cep ção de R o u ssèau d e um estado de natureza nào é. com o já p en so u , u m a ticçào de d e v a n e io sen tim ental, um a restauração filosó­ fica da antiga crença na idade do ouro. É um dispositivo m etodológico.2 em bora, a o ap lic a r esse m éto d o . R o u ssèau p o ssa te r distorcido os fa­ tos p ara d eix á-lo s m ais de acordo co m se u s sen tim entos pessoais. De qu alq u er m odo, ele não v em d e um a visão*exageradám ente otim ista do h o m em prim itiv o , m as de um d esejo de e stab e lec er o s co m p o n en ­ tes b ásico s d e nossa c o n stitu ição psicológica. U m a v ez ex p o sto o p ro b le m a n esses term o s, com o R o u ssèau o re so lv e u ? E m q u e c o n siste , p ara eie, o estado de natu reza? ü que c a ra c teriz a o h o m e m nesse esta d o - não im p o ria se c real o u ideal

é um p e rfe ito e q u ilíb rio en tre su as n ec essid ad e s e os re­

cu rso s à su a d isp o siç ã o . P o r q u ê? P o rq u e o h o m em natural c re d u z i­ do e x c lu siv a m e n te a se n sa ç ó c s. "Q u a n to m ais p e n sa m o s n essa q u es­ tão, m a io r p a re c e a d istâ n c ia e n tre as se n sa ç õ e s p u ra s e m esm o o

2(1. i: in te ressa n te co m p a rar a interpretação c c D u rk h c im co m o que li. D erathc d i / cm Jean-Jacqnes Roussèau cs ia scieàcepoliiique d esn n lemps (p. 377): “ Sca c o n ce p çã o (d c R o u sscau ) c freq ü e n tem e n te m al c o m p re en d id a p o rq u e ê co n sid e­ rada a p e n a s um a a p o lo g ia ao “se lv a g e m " , um a g lo rific aç ão da ' ‘inocência d e out r o n r ou da "v id a feliz da id ad e do ouro". N a verdade, d ; / D erath é. essa hipótese tem "u m sig n ific a d o b astan te d ife re n te ", c ele se re fe re ã se g u in te d e cla ra ç ã o cm Dèiermmaiion ditfait moral d e D urkhem i (em Rulieti» cie ia Sociéréfra n ça ised i Philosophie. abril d e 1906, p. 132. ou 5 odofogieetPhilosphie , p. 179): "R o u sscau d em o n stro u hâ m u ito tem po q u e se o h o m em fo r d e sp id o d e tu d o o que tira da so cied ad e, nada re sta se n ã o um sc r red u zid o ã sensação c p o u c o diferente de um a n im at” . A fic ç ã o d o estad o d e natureza tem a intenção d c e sta b e le c e r ju stam e n te essa p ro p o siç ão . D er.uhé c o n tin u a (p. 379): "E le (R o u ss c a u ) m o stra que o d e s e n ­ v olvim ento intelectual e m oral do h om em é um a c o n se q ü ên c ia d a cx istcn cia so c i­ al. A esse resp eito , ele d e v e se r co n sid era d o o p io n e iro da so c io lo g ia c o n te m p o râ ­ nea. Foi com b ase em sua a n á lise de R oussèau q u e D u rk h c im escreveu (Divisior, ihi iravad so d a lx 5* ed . P aris. ]9 2 6 . p. 33S): "A g ran d e d ifere n ça entre o hom em e o an im al, ou seja, <>d e se n v o lv im e n to su p erio r da v id a p síq u ic a do h o m em , po d e ser re su m id a á m aior so c ia b ilid a d e d o hom em . D u rk h c im estav a p len a m en te consc ie n ie de ter sic o in flu e n cia d o p o r R oussèau. cue era um de seus a u to res fav o ri­ tos". (A .C .)

O e sta d o d e n a tu re z a

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m ais sim p les c o n h e c im e n to ; é im p o ssív el c o n c e b e r co m o um h o ­ m em p o d e ria ter p re e n c h id o sem elh an te b rech a p o r seu s pró p rio s m eio s” (ibid.. P a rte T). R o u sseau foi lev ad o a essa p ro p o siçã o p o r duas c o n sid eraçõ es: 1) o ex em p lo d o s an im ais, que têm a p e n a s sen ­ saçõ es m as p en sam m esm o assim : ‘‘T odo an im al tem id éias, já que tem se n tid o s” ; 2) A te o ria de C o n d illa c - q u e ele a c e i t a v a - a resp ei­ to da o rig em d o c o n h e c im e n to g eral, ab strato : ele é im p o ssív e l sem linguagem ; m as a lin g u ag em é m ;i p ro d u to da v id a social. P o r isso p o d em o s re je ita r co m se g u ra n ç a to d as as id éias a re sp eito d o estad o de n atu reza q ue p re ssu p o n h a m um siste m a de sin ais in a itic u lad o s. N o sso h o m e m n a tu ra l p o d e d e se ja r ap en as as c o isas q u e se e n ­ co n tram cm seu a m b ie n te físico im ed iato , p o is nào p o d e im ag in ar q u a lq u e r ou tra. Por isso seu s d e se jo s serào p u ra m en te físic o s e ex ­ trem a m e n te sim p les. “ S eus d esejo s não vão alem de su a s n e c e ssid a ­ des tísic a s: em to d o o u n iv e rso as ú n ic a s coisas d e se já v e is q u e eie co n h e c e são a lim en to , um a fêm ea e re p o u so ’" (ibid.). Ele se q u e r se p reo c u p a em a sse g u ra r a sa tisfa ç ã o de seu s ap etites fu tu ro s. S eu co ­ nh ecim en to p u ra m e n te sen so rial n à o o cap a c ita a a n te c ip a r o futuro: nad a p e n sa além do p resen te. "S e u s p la n o s m al se esten d em até o fim do d ia .” D ai sua n o tó ria im p rev id ên cia. M as e ssas n e ce ssid ad es sào fac ilm e n te satisfeitas. A n a tu reza as aten d eu . E m u ito ra ro qu e as c o isas de q ue p recisa faltem . A h arm o n ia é co n seg u id a e sp o n ta n e a ­ m ente. O h o m em tem tudo o q u e d eseja p o rq u e d eseja ap en as o que tem . “ C o m o ele d e se ja ap e n a s o q u e c o n h e c e e c o n h e c e a p e n a s o que está em seu p o d e r p o s s u ir su a alm a está p e rfe ita m en te tranqüila e sua m en te é e x tre m a m e n te lim ita d a ” . M esm o se o s p ro d u to s da civ iliz aç ã o estiv e sse m d isp o n ív e is p a ra ele, o d eix a riam in d iferen te, pois não têm v a lo r fora da c iv iliz a ç ã o q ue os cria. V am os su p o r qu e de a lg u m m o d o m ira c u lo so um d eu s o fe re c eu ao h o m em p rim itiv o a arte da ag ricu ltu ra e im p le m e n to s p a ra c u ltiv a r a terra. O que teria ele feito co m a q u ilo ? Q u al seria a im p o rtâ n c ia de c u ltiv a r o solo se a p ro p ried ad e n ào fosse garan tid a, se os fru to s de seu tra b alh o nào fossem p ro te g id o s? M a s a v erd ad eira instituição de um d ire ito c o n ­

9fí

M ontesquieu e R o u ^ ca u

firm ad o de p ro p rie d a d e p re ssu p õ e a so cied ad e. S o b essas circu n s­ tân cias, em su m a . o h o m em e stá cm h arm o n ia c o m seu am biente p o rq u e é u m se r p u ra m e n te físico, d ep en d en te de seu am b ie n te físico e nada m ais. A n a tu re z a d en tro d ele n e c e ssa ria m en te c o rresp o n d e á n a tu re z a fora. U m a é o re fle x o da ou tra. A s co n d iç õ e s que poderiam c a u sa r u m ã d isc ó rd ia n ã o ex istem . S ob e ssa s c irc u n stâ n c ia s , q u al seria a relação en tre os seres h u m a n o s? N ão h a v e ria um estad o de gu erra. R o u sse a u rejeita a teo ­ ria d e H o b b e s, q u e re p ro v a d u ra m e n te , em b o ra louve seu gênio. A h ip ó te se do esta d o de g u e rra e ra in aceitável a R o u sseau p o r duas razõ es: 1) O in cen tiv o ã g u e rra , o u seja. n e ce ssid a d es insatisfeitas, n ào ex iste. C o m o o h o m e m tem o q u e p re cisa , p o r que ataca ria os o u tro s? H o b b es c h e g o u a seu siste m a ap enas p o r te r a trib u id o ao h o m em n atu ral a c o m p le x a se n sib ilid a d e do hom em civilizado. 2) H obbes erro n eam en te neg o u ao h o m em prim itivo q u alq u er sen tim e n ­ to de p ied ad e. C o m o e s s a v irtu d e p re ce d e toda reflex ão , não há ra ­ zão para n e g a r su a e x is tê n c ia rio e sta d o de n atu reza . A lém disso, há s in a is d e la em an im ais. A p ied ad e im p lica sim p lesm en te em um a id e n tific a ç ão l'd o an im a l e sp e c ta d o r com o an im al que so fre ". .Vias é e v id en te q ue essa id e n tific a ç ão dev eria se r in fin itam e n te m ais p ró x i­ m a no estad o de n a tu re z a q u e no estad o de razão . A lg u n s c o m e n ta rista s v iram u m a c o n tra d iç ã o entre esse trecho e o se g u in te , d o Ensaio sobre a origem das [ínguas (eap. 9): “C o m o so m o s m o v id o s ã p ie d a d e ? A o sair de nó s m esm os, ao no s id en tificar co m o sofredor. P e n se n o c o n h e c im e n to ad q u irid o im plicado nesse tra n sp o rte i C o m o eu im a g in a ria so frim e n to s d o s q u ais não tenho id éia? C o m o p o d e ria s o fre r v en d o um ou tro so fre r se n à o sei o que ele e eu te m o s em c o m u m ? Um h o m e m q u e n u n c a refletiu n ão pode ser nem g en til nem com passivo*'. “ É p o r isso ", d iz eíe no m esm o e n sa io , “ q u e os h o m e n s n à o sab iam ser irm ã o s e se acred ita v am ini­ m igos sem nada saber, tudo tem iam : atacavam em auto d efesa1'. C om o esse en sa io foi e sc rito d e p o is d o Discurso sobre a origem da desi­

gualdade, os c rític o s se p e rg u n ta ra m se o p e n sa m e n to d e R ousseau

O e s ta d o d e n a tu re z a

SI

nào havia m u d a d o , a p ro x im a n d o -se dc H o b b e s c su a teo ria sobre o estado de guerra. M a s essa in te rp re ta çã o é in v alid ad a p e la seg u in te d e clara çã o qu e a p arece no m e sm o ca p ílu lo : “ A q u eles tem p o s b á rb a ­ ro s fo ram a idade do o u ro ... a T erra in te ira e stav a em p az ". () que R o u sse a u q u e r d iz e r n esse tre c h o c o n tro v e rso é q ue para um hom em p o d er v e r um a c riatu ra sem elh an te cm to d o se r hu m an o , é prcc iso ter pod eres de ab stração e reflex ão in ex isten tes nos prim itiv o s. Para eles. a h u m an id a d e lim ita-se a o seu a m b ie n te im ed iato , o p e q u e n o circulo de in d iv íd u o s co m o s q u a is têm re la ç õ e s. “ T in h am a id éia de pai. filho c irm ão, m as n ão de h o m e m . Sua c a b a n a c o n tin h a to d as as cria tu ra s q ue lhes era m sem e lh a n te s, e x c e tu a n d o -se e sta s e sua fa m í­ lia. o U n iv erso nào lhes d iz ia n a d a .” (ibid.). A v e rd a d e ira p iedade, p o rtan to , só era p o ssív e l n esse p e q u e n o circu lo . ‘'D aí as ap aren tes c o n trad iç õ e s q u e o b se rv a m o s en tre os irm ã o s d as n aç õ es, tào fero ­ zes cm se u s co stu m e s c de c o ra ç ã o tão tern o : ta n to a m o r p e la fam ília e ta n ta a v ersão aos se m e lh a n te s." A ssim , ele n ào re p u d io u a n o çã o d e q u e a p ie d a d e é um se n tim e n to natural ao h o m em e p re c e d e a reflexão. S im p lesm en te n o ta que essa reflex ão é n e c e ssá ria antes que a co m p a ix ã o p o ssa e ste n d e r-se a toda a h u m an id ad e. O Ensaio pode ser v isto , no m áx im o , c o m o um e sc la re cim e n to e u m a co rre ç ão p ar­ cial d a idéia d e se n v o lv id a n o se g u n d o Discurso. D e q u a lq u e r m odo, ele d e fin itiv a m e n te co n tin u o u a re je ita r o p e ssim ism o de H o bbes a respeito do h o m em p ré -so c ia l. P o r m a is lim ita d a q u e po ssa ic r sido a p ied ad e d o h o m em , nào h av ia g u e rra , p o is os h o m e n s não tinham co n tato: "T alv ez os h o m e n s atacassem u n s ao s o u tro s q u an d o se e n ­ c o n trav am . m a s rara m e n te se en co n trav am . O esta d o de g u erra re i­ n av a em to d a p a n e e a T erra e sta v a em p a z ” (ibid). M a s m esm o q u e o h o m em não seja o lobo de se u sem elh an te, isso n ào q u e r n e c e ssa ria m en te d iz e r que está in clin ad o a se u n ir co m ele pe rm a n e n te m en te e fo rm a r so cied ad es no se n tid o estrito da p a la ­ vra. E le n ào tem n em os m e io s n em a n ec e ssid a d e d e fazê-lo. C arece d o s m eio s p o rq u e su a in telig ên cia, lim itad a a se n sa çõ es do m o m e n ­ to, sem ter c o n c e p ç ão d o futuro, não p ode nem m esm o im ag in a r o

S2

M o n tc s q u ie u e Kous.scau

q u e essa a sso c ia ç ã o - da q u a l não te m ex e m p lo visível - poderia ser. A a u sê n c ia de lin g u ag em b a s ta em si m e sm a para to rn a r im p o ssív eis relaçõ es so ciais. A lém d isso , p o r qu e ele asp iraria a tal existên cia? S eus d e se jo s estão sa tisfe ito s. E le n à o p o d e c o b iça r o q u e nào tem . "F. im p o ssív el im a g in a r p o r q u e, n e sse estad o p rim itiv o , um hom em p re c isa ria de o u tro h o m em m a is d o q ue um m acaco ou um lobo p re­ cisariam de um se m e lh a n te ” (s e g u n d o Discurso, p a rte I). D iz-se que o h o m e m d ev e ter sid o p ro fu n d a m e n te m iserável n esse e sta d o . M as q u e im porta, se fora c o n stitu íd o de tal fo rm a p ela n a tu rez a que nào tinha d e se io de m u d ar? A lé m d isso , a p a la v ra “ m iseráv e l” n a d a quer dizer, a m e n o s q u e im p liq u e em p riv a ç ã o d o lo ro sa . M as dc que um h o m e m p o d e se r p riv ad o se n a d a lhe falta, se “ seu c o ra ç ã o está em p az e eie é sau d á v e l de c o rp o "? Será q u e o selv ag e m se q u eix a de su a ex istê n c ia e b u sc a m u d á-la? E le só p o d e ria so fre r p o r isso se tivesse a id éia de um o u tro esta d o e se , alem d isso , o o u tro esta d o lhe a p a re ­ cesse so b u m a luz a lta m e n te a traen te. M a s “ g ra ça s a u m a sáb ia p ro ­ vidência, suas facu ld ad es po ten ciais se d esenvolveram ap en as quando houve ocasião para exercê-las” . Ele tin h a apenas instinto e o instinto lhe bastava, m as não o levava à existência social. Para viver em sociedade, ele precisava da razão, que é o instrum ento de adaptação ao am biente social, assim com o o instinto c o instrum ento de adaptação ao am biente físico. Ela acabou vindo, m as no início cra apenas virtual.:l D ev em o s, p o rtan to , p e n s a r no h o m em natu ral “v a g an d o pela flo resta, sem o c u p a ç ã o , se m p a la v ra , sem d o m ic ilio , se m g u e rra e sem laço s, sem p re c is a r de se u se m e lh a n te e sem q u a lq u e r d esejo de fazer-lhes m al, talv ez seq u er reco n h ecen d o -os individualm ente''. N es­ s e estág io d e d e se n v o lv im e n to , ele não era in so ciáv el, m as asso ciai. ‘‘E le nào é h o stil à so c ie d a d e , m as n à o tem in clin ação p a ra ela. Tem d e n tro de si as se m e n te s q u e , se c u ltiv a d a s, se d esen v o lv erão em 21. i.e ia o trcc h o inteiro. M u ito im p o rta n te , p o is m o stra que a ex istência social n ã o é um a m aq u in a çã o d iab ó lica , m as foi p ro v id en c ia lm c n te d esejad a c que. em ­ b o ra a n atu re za p rim itiv a não te n h a n e cessariam en te levado a cia. m esm o assim c o m in h a p o ten c iaim e n tc o que te ria p o ssib ilita d o a ex istên cia social q u a n d o isso se to m o u n ccessàrio (nota d c D urlcheim ).

O e sta d o d e n a tu re z a

v irtu d es so ciais, in clin açõ es so c ia is, m as são a p e n a s p o te n c ia lid a ­ des. A perfectibilidade , as v irtu d e s so c ia is e ou tras facu ld ad es que eram p o te n c ia is n o h o m e m n atu ral n u n c a p o d eriam te r se d e se n v o l­ vido p o r si m esm as'* (se g u n d o Discurso, fim da P arte 1). D a m esm a m a n e ira , o h o m e m nessa c o n d iç à o n ão é nem m oral nem im o ra l: c a m o ra l. “C o m o os h o m e n s n e s s e esta d o nào tin h a m q u a lq u e r tip o de laço m oral en tre e le s c n e n h u m d e v e r c o n h ec id o , não p o d iam se r b o n s n e m m au s e n ã o tin h a m v ic io s n e m v irtu d e s" (ibid). A m o ra li­ d ad e só p o d eria p a ssa r a e x istir c o m a so c ie d ad e . R o u sseau freq ü en ­ te m e n te se refere a esse esta d o c o m o esta d o da inocência. S eria esse esta d o o m a is p e rfe ito ideal q u e os h o m e n s podem alm ejar? Km rela ç ã o às co n d iç õ e s d e te rm in a d as às q u ais ele c o rre s­ p o n d e , ó perfeito em seu g ê n e ro . D esd e q u e essas co n d iç õ e s não m udem

su p o n d o -se q ue se m p re sejam o b tid a s p len a m e n te d e m a ­

n e ira geral e d u ráv el - n ad a p o d e ria ser m elhor, j á q u e a h a rm o n ia en tre o s e r h u m an o e a q u ilo a q ue c h a m a ría m o s a tu alm e n te seu a m ­ b ie n te nào d eix a n ad a a desejar. F.m o u tras p alav ras, e n q u a n to o h o ­ m em tem re la ç õ e s a p e n a s c o m o a m b ie n te físico , o in stin to e a s e n s a ç ã o b a sta m p a ra to d a s a s su as n e c e ssid a d e s. E le n a d a m ais p o d e d e se ja r, e há n a d a p a ra d e s p e rta r as d iv e rsa s a p tid õ e s qu e d o r­ m em d e n tro dele. C o n se q ü e n te m e n te , ele está feliz. M as se as co isas m u d a m , as co n d iç õ e s de su a fe lic id a d e n ão p odem p e rm a n e c e r as m esm as. Sào essa s m u d a n ç a s q u e ríào o rig em à p reo cu p ação . A lgo d ev e ter in co m o d ad o o e q u ilíb rio ex isten te ou. se ele n u n c a foi real­ m en te estáv el, certo s fa to re s d ev em tê-lo fru strad o d esd e o inicio. Q u e fato res sã o e sses?

Origem das sociedades C h eg a u m p o n to , d iz R o u sse a u no Contrato Social, “ em que os o b stá c u lo s no c a m in h o d e su a c o n se rv a ç ão [d o s ho m en s! no esta ­ d o dc n atu reza m o stram m ais resistência que os recursos à disposição de ca d a in d iv íd u o p a ra su a m a n u te n ç ã o n a q u ele estad o . E n tã o , essa co n d ição p rim itiv a n ão p o d e m a is su b sistir; e a raça h u m an a p e rec e­ ria a m en o s que m ud asse su a m aneira dc ser" (1. 6, início). E x p licar a g ê n e se d a s so c ie d a d e s é en c o n tra r essas forças co n flita n te s co m o esta d o de n atu reza. R o u sscau re c o n h e c e q u e esse p ro b lem a só pode sc r tratad o p o r c o n je c tu ra , pois. d iz ele, “'o s ev en to s q u e d e screv e rei p o d eriam ter o co rrid o de m u ito s m o d o s ’’ (se g u n d o Discurso, fim da P a rle I). M as em b o ra e ssa s c o n je c tu ra s sejam b astan te p lau sív eis, j á q u e a d v ê m lo g ic a m e n te da d e fin iç ã o d o estado de natu reza, um c o n h e c im e n to d etalh ad o d o q ue ac o n te c eu tem p o u c a im p o rtân cia p a ra as c o n se q ü ê n c ia s q ue p o d e m sc r tirad as do sistem a. A so c ie d a d e só p o d e p a ssa r a ex istir se o h o m e m for im pedido d e p e rm a n e c e r no esta d o d escrito an terio rm en te. Vias isso exige um a c a u sa e x te rn a . C o m o o ú n ic o am b ie n te q ue o afeta é seu am b ie n te físico , é ali q ue a cau sa d ev e ser p ro cu rad a. Se a terra sem p re satisfez às suas n e c e ssid a d e s, é d ifícil p e rc e b e r c o m o o estado de n atureza p ô d e um d ia c h eg ar ao fim . “ Im a g in e um a p rim a v e ra p e rp é tu a na T erra. Im ag in e o s seres h u m an o s su rg in d o das m ãos da n atu reza e d isp e rsa d o s n esse am b ien te. N à o vejo c o m o eles p o d eriam ie r re­ n u n c ia d o à sua lib e rd a d e p rim itiv a e a b a n d o n a d o a v id a isolada, tão a p ro p ria d a à su a in d o lê n c ia n a tu ra l” (Origem das línguas. IX ). - 85 -

M o r.tcsg n ie i; e R o u ssèau

R o u ssèau ap ó ia essa cren ça o b se rv a n d o q u e “o s c lim a s su av es e as te rra s férteis fo ram os p rim e iro s a ser h a b ita d o s e o s últim os em que se fo rm aram n a ç õ e s” (ibid.). M as a re sistê n c ia que o s h o m e n s cn c o n tra ra m na n a tu re z a e stim u la ra m io d a s a s su a s facu ld a d es. “A n o s esté re is, in v e rn o s lo n g o s c se v e ro s, v e rõ e s tó rrid o s q u e tu d o c o n su ­ m iam . q u e e x ig ia m n o v o s e sfo rç o s .’’ O frio lhes deu a idéia dc v estir a p ele d o s a n im a is q u e m a ta v a m ; o s raios e vu lcõ es, ju n to com a n e c e ss id a d e d e p ro te ç ã o c o n tra as te m p e ra tu ra s in v e rn a is, ib es deu a idéia de c o n se rv a r o fog o : e assim p o r d iante. D esse m odo. a inte­ lig ên cia co m eço u a d e se n v o lv e r-se alem da se n saç ào . N o v as n ec es­ sid ad es su rg iram . O e q u ilíb rio c o m e ç a v a a se perlurbar. L ogo fico u ev id en te q u e a aju d a do s o u tro s era útil para sa tisfa ­ z e r e ssa s n o v a s e m a is c o m p le x a s n e c e ssid a d es. “ T endo ap ren d id o p e la e x p e riê n c ia q u e o a m o r p e lo b e m -e sta r era o ú n ic o m o tiv o da aç ã o h u m an a, ele foi cap az d e d istin g u ir as ra ra s o ca siõ e s em que o in teresse co m u m o o brigava a c o n tar com a aju d a de seus com panhei­ r o s ' (seg u n do Discurso, P a rte II). A ssim se form aram o s prim eiros reb an h o s in constantes de se re s h um anos. Sua reunião era facilitada po r urna se rie d e c irc u n stâ n c ia s m e n c io n ad a s cm d eta lh e no Ensaio

sobre a origem das línguas; “ In u n d a ç õ e s, ressacas, e ru p çõ es v u lcân icas, terrem o to s, incên­ dios c a u sa d o s p o r raio s q u e d estru íam flo restas, tudo o que pudesse a ssu sta r e d isp e rsa r os h a b ita n te s selv ag en s d e um a reg iào o s reunia em se g u id a p ara rep arar ju n to s os d a n o s so frid o s em c o m u m ".

“ As

n a sc e n te s e rio s. d e sig u a lm e n te d istrib u íd o s, eram o u tro p o n to dc en co n tro p a rtic u la rm en te n e c e ssá rio , já q u e o s h o m en s p o d em m e­ no s a b rir m ão da á g u a q u e d o tb g o 'T(Ensaio, IX ). “ D e sse p rim eiro c o n ta to , n a sc e u um p rin c íp io d e lin g u ag em . Im ag in am o s q u e entre h o m e n s assim a p ro x im a d o s e fo rçad o s a v iv e r lad o a lado d ev e ter se fo rm ad o um id io m a co m u m , m a is do q u e en tre a q u ele s que erravam liv rem en te p e la s flo re sta s” (se g u n d o Discurso, Paire II). A ssim , u m a p rim eira e x te n sã o de n e c essid ad e s físicas cria um a ligeira te n d ê n c ia a fo rm a r g ru p o s. U m a vez o rg an iza d o s esses g ru ­ p o s. e les. p o r su a v ez, d e sp e rta m in clin açõ es sociais. F. um a vez que

O rig e m d a s socied ad es

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o s h o m e n s se aco stu m e m a e s ta r ju n to s , ach am d ifícil v iv e r so z i­ nhos. “ E les se a c o stu m a ra m a re u n ir-se . De ta n to se v erem , não p o d iam m ais fic a r sem se ver.” Isso d e u o rig em a n o v as idéias a resp eito das relaçõ es h u m a n a s, a n ec e ssid a d e da civ ilid a d e, o d e v e r de re s p e ita r o b rig a ç õ e s c o n tra tu a is . Foi a p ro x im a d a m e n te nesse m o m en to q u e o s se lv a g e n s d e ix a ra m de se r selv ag en s. M as a h u m a n id a d e foi m a is lo n g e. C o n fo rm e os h o m e n s em erg ia n : de sua in d o lê n c ia o rig in a l, c o n fo rm e su a s fa c u ld ad e s e ra m ag u ç ad a s p o r relaçõ es m ais ativas, su a m ente se ab ria a novas idéias. A lg u n s d esco b rira m o p rin c íp io da a g ric u ltu ra , da qual as o u tra s ar­ tes se d eriv aram . A idéia de u sar o fo g o nas ativ id a d e s ag ríco las o c o r­ reu natu ralm en te. A ssim n asceu a p rim e ira d iv isã o de trab a lh o ; por u m lad o a m etalu rg ia, p e lo o u tro a lav o u ra e o c u ltiv o do solo. A a g ric u ltu ra ex ig ia a re p a rtiç ão d a terra. A p artir d a re co g n içà o da p ro p rie d a d e n a sc e ra m as p rim e ira s re g ra s da ju stiç a . O cam in h o e s­ ta v a a b erto a to d o s os tip o s de d e sig u a ld a d e s. X o esta d o de natureza, os h o m e n s era m m u ito p o u c o d ife re n te s e n tre si e n a d a h a v ia q u e o s fiz esse ac en tu a r e d e se n v o lv e r su a s diferen ças. M as a g o ra hav ia um a reco m p en sa àq u ele q u e p u d e sse p ro d u z ir m a is e m elh o r. D esejos rec é m -d esc o b erto s levaram à co m p etição . “ A ssim , d e m ão s d ad as com o p ro g re sso , a d e sig u a ld a d e natural e a de c o m b in a ç ã o esp alh o u -se im p crccp liv elm en te; as d ife re n ç as en tre os hom ens, d e sen v o lv id a s p elas diferen ças das circu n stân cias, to rn aram -se m ais ap aren tes e pe r­ m a n e n te s em seu s e fe ito s c co m e ç a ram a e x e rc e r um a in flu ên cia p a ­ ralela no d e stin o dos in d iv íd u o s” (ibid). M as logo q ue c o m e ç a ram a ex istir ricos e p o b res, p o d e ro so s e fraco s, “ a so cied ad e n a sc en te d e u iu g ar ao m ais terrív el estad o de guerra. A viltad o e d eso la d o , in cap az de v o lta r atrás ou d e re n u n c ia r a su a s in fo rtu n ad as a q u isiç õ e s, a ra ç a h u m a n a atin g ira a beira d e sua ru ín a " (ibid. ). A ssim , o estad o de gu erra não e, co m o p en sav a H obbes, a o rig em , m as an tes, um e fe ito d o eálad o social. A n tes q u e o s h o ­ m en s pu d essem c o n c e b e r a idéia de b uscar, às cu stas u n s d o s o u tro s, um a felicid ad e além d aq u ilo que j á p o ssu íam , u m a p rim eira a sso c ia ­ ção d e v e te r d e se n c a d e ad o su as p a ix õ e s, a m p lia d o su a in telig ên cia

M o n tc s q u ie u g R o u sscau

e. em su m a, p e rtu rb a d o o equi líb rio orig in al. U m a v ez qu e essa c a la ­ m id ad e a tin g iu a h u m a n id a d e , o h o m em rico . que era o m a is afetado p o rq u e lin h a m ais a perder, c o n c e b e u “ o m a is a stu to p ro jeto que já o c o rreu à m e n te h u m an a: e m p re g a r em seu fa v o r as p ró p ria s forças d aq u eles q u e o ata c a v am , tra n sfo rm a n d o seu s o p o n en te s em seus d e fe n so re s". C o m e ssa in te n ç ã o , p ro p ô s a seu s co m p a n h e iro s que in stitu íssem regras dc p az e ju s tiç a à s q u ais to d o s teriam de se con­ form ar, q u e tod as as forças in d iv id u a is se unissem em u m único poder su p re m o q ue p ro te g e ria c d e fe n d e ria to d o s o s m em b ro s da a sso cia­ çã o . A ssim se e sta b e le c era m a s leis e o g o v e rn o . E ssas sào as o rig e n s do estad o c iv il. S e c o n sid e ra rm o s os te r­ m os em q u e R o u ssèau im a g in a v a o p ro b le m a, não p o d em o s d eix ar de a d m ira r a e n g e n h o sid a d e d ia lé tic a co m a qual trato u dele. Ele c o m eça co m o in d iv íd u o e. s e m atrib u ir-lh e se q u er a m ais ligeira in clin ação so c ia l ou te n d ê n c ia s c o n flita n te s que p u d essem to m a r a so c ie d a d e n e c e ssá ria p e lo s c o n flito s e m ales que elas en g en d rariam , ele se e n c a rreg a de e x p lic a r c o m o um s e r tão fu n d am en ta lm en te in­ d iferen te a q u a lq u e r fo rm a de v id a em co m u m veio a fo rm ar so cie ­ dades. i£ c o m o se . cm M e ta físic a , d ep o is dc s u p o r que o su jeito é a u to -su fic ie n te , te n tássem o s d e d u z ir o o b jeto a p a rtir dele. O p ro b le ­ m a é o b v ia m e n te in so lú v el c p o d e m o s sa b e r co m a n tec ed ên c ia que a so iu çào de R o u sscau e stá re p le ta de co n tra d içõ e s. M as está lo n g e de se r ilusória. P ara c o m p re e n d e r o q u e se seg u e, d e v em o s ter em m en ­ te a in sta b ilid a d e do e q u ilíb rio original. N ào d e v em o s no s esq u ecer q u e. em b o ra a v id a social não ex istisse no co m eço , ^eus g e n n e s es­ tão p resen tes. E les sào e m b rio n á rio s, m as se as c irc u n stâ n c ias favo­ ráv eis su rg ire m , n ão d eix a rã o de se d esen volver. O hom em ainda não sente a n ec e ssid a d e de s c a p e rfe iço a r, m a s j á é perfcctív el. É sua p e rfe c tib ilid a d e, diz R o u ssè a u , q u e o d istin g u e do anim al (segundo

Discurso. P a n e 1). E le não é c o m o o an im a l, q u e é incapaz d e m udar. S u a in te lig ê n c ia e se n sib ilid a d e nào estào circu n scritas p o r m o ld es fixos, l l á n e le um e le m e n to de in sta b ilid a d e laten te q u e p o d e ser tra z id o à to n a p o r um nad a. P a ra que ele não varie, o a m b ie n te deve

O rig e m d a s so cied ad es

p e rm a n e c er estacio n ário e in v ariáv el, o u antes, tudo no am b ie n te d e v e c o rre sp o n d e r á o rg a n iz a ç ã o d a n a tu re za e n ad a d ev e a c o n te ­ c er p a ra p ertu rb á-lo . U m a vez q u e o eq u ilíb rio é p e rtu rb a d o , não p o d e sc r re sta u ra d o . U m a d e so rd e m n asce de o u tra. L o g o q u e o lim ite n atu ral é a tra v e ssa d o , nào h á m a is volta. A s p a ix õ e s geram p aix õ es e e stim u lam a in te lig ê n c ia , q u e lhes oferece n o vos objetiv o s que o s ex asp eram . A té as sa tisfaçõ es q u e o b têm os to m a m ais ex i­ g e n te s. “ A su p e rílu id a d e d e sp e rta a co b iça. Q uanto m ais se tem . m ais se q u e r" (fra g m e n to in titu la d o Distinção fundamental . dos m a n u sc rito s de N eu fch âtel. ed. D re y fu s-B risac h . p. 3 1 2 ). O s h o ­ m en s p a ssa m a n e c e ssita r cad a v ez m a is u n s dos o u tro s c to rn ar-se c a d a v e z m ais in te rd e p e n d e n tes. A ssim , saem naturalmente d o es­

tado de natureza. E m b o ra a fó rm u la p areça au to c o n tra d itó ria, ex p rim e o p e n ­ sa m e n to de R o u sseau . V am os te n ta r e n te n d e r isso. Sào c a u sa s n atu rais q u e lev am o h o m em a g ra d u a lm e n te for­ m a r so c ie d a d e s. M a s isso nào to rn a a so c ie d ad e um fe n ô m en o n a tu ­ ral, pois ela não e stá lo g icam en te im p líc ita na n atureza do h o m em . N ã o foi a co n stitu ição o rig in a l rio h o m e m q u e o ob rig o u a e n tra r em u m a v id a social, cu jas c a u sa s sào e x te rio re s ã natureza h u m an a, adv en tícias. R o u sseau ch e g a m esm o a d iz e r que elas são fo rtu itas, que p o d eriam m u ito bem nào te r o co rrid o . “ D epois de m o strar que as v irtu d e s so ciais n u n c a p o d e ria m ter se d e se n v o lv id o p o r si m esm as, q ue p ara isso n e cessitav am do a u x ilio fo rtu ito dc d iv e rsa s cau sas e stra n g e ira s qu e p o d e ria m n u n c a ter su rg id o e sem as q u a is o hom em teria p e rm a n e c id o e te rn a m e n te em seu estad o p rim itiv o , d e v o ag o ra c o n sid e ra r c co m p a ra r os d ife re n te s a c a so s q u e tro u x e ram o h o m em e o m u n d o a seu esta d o a tu a l" (se g u n d o Discurso. P arte I. ir, fine). A so cied ad e su rg iu p o rq u e os h o m e n s p re c isa m uns dos o u tro s. Essa assistên cia m útua não é naturalmente necessária. C ada indivíduo pode se r au to -su ficien te. A ssim , p a ra q u e a so c ie d a d e po ssa surgir, as cir­ c u n stâ n c ia s ex tern as d e v e m a u m e n ta r a s n ece ssid a d es do hom em e. co n se q ü e n te m e n te, m o d ific a r sua n atu reza.

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M o n te s q u ie u e R o u ssèau

M a s ain d a há um a o u tra razão p ara d ize r que a so c ie d ad e não é n atu ral. E la é artificial em um g rau ain d a m a is alto. \ ã o apenas essa in te rd e p e n d ê n cia . q ue é a p rim e ira c au sa m o to ra da evo lu ção social, nào se fu n d a na n a tu re z a h u m an a, corno até m esm o quando ex iste n ã o é su ficien te em si m esm a p a ra fa z e r so c ied a d es. A essa b ase o rig in a l, que j á e um p ro d u to da arte h u m an a, d e v e-se ac res­ c e n ta r algo m ais. q ue te n h a a m esm a o rig em . A té que e sse co m érc io seja re g u la d o c o rg a n iz a d o d e m a n e ira d e fin itiv a, ele n à o constitui um a so c ie d a d e . C arece da “ lig a ç ã o en tre as partes, que constitui o to d o '’ (Manuscrito dc Genebm, ed. D rcvfus. cap. II. p. 248). U m a sociedade c um a "entidade m o ral com qualidades específicas distintas d a q u e la s d o s se re s in d iv id u a is q ue a co m p õ e m , assim com o os co m ­ p o n e n te s q u ím ic o s têm p ro p rie d a d e s que n ão devem a q u a isq u e r de seu s e le m e n to s. Se a a g re g a ç ã o re su lta n te d essas v a g a s rela çõ e s de fato fo rm a sse um co rp o so c ia l, h a v e ria u m a so rte de se n só rio co ­ m um q u e so b re v iv e ria à c o rre sp o n d ê n c ia de todas as p a rtes. O bem e o m al p ú b lic o s n à o seriam a p e n a s a so m a do bem e do mal individu­ a is, c o m o em um a sim p les a g re g a ç ão , m a s re sid iriam n a relaçào que o s une. S eria m a io r q u e a s o m a . e o b e m -e sta r p ú b lico não seria o resu ltad o da felicid ad e d o s in d iv íd u o s, m as an te s sua fo n te" (ibid. p. 2 49). M as o sim p les fato de q u e os h o m e n s p e rc e b a m que podem a ju d a r-se e n tre si. de q ue ad q u irira m o h áb ito de fazê-lo , m esm o q u an d o so m ad o ao se n tim e n to de q u e io d o s têm algo em com um , de q ue to d o s p erten cem â ra ç a h u m a n a , n ào faz com que se ag ru p em em u m a in d iv id u a lid a d e m o ra l, de u m g ê n e ro n o v o , co m c a rá te r e C om posição esp ecífico s, o u seja. um a so cied ad e. A ssim , “ é certo q u e a raça h u m an a su g ere u m a idéia p u ra m en te c o letiv a que nào p re ssu p õ e q u a lq u e r u n iã o real dos in d iv íd u os que a c o m p õ e m ". E sse n o tá v e l tre c h o p ro v a q u e R o u ssè a u e s ta v a v iv am en te co n sc ie n te da e sp ecificid ad e d a o rdem so cial. E le a co n ceb ia c la ra ­ m en te c o m o u m a o rd em d e fatos d ife re n tes cm g ê n ero do s fatos p u ram en te individuais. É um n o v o m u ndo sobreposlo ao m undo pu ra­ m ente p sicológico. U m a c o n cep ção desse tip o é m uito su p erio r até

O rig e m d a s so cied ad es

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m esm o à dos teóricos recen tes com o Spencer, que acreditam ter p ro v a­ do q ue a so cied ad e se b a se ia na n a tu re z a ao o b se rv a r q u e o hom em tem u m a vaga sim p atia p o r seu se m e lh a n te e que é de seu interesse tro c a r se rv iç o s com eles. S e n tim e n to s d esse tipo p o d e m resp o n d er p o r c o n ta to s m o m e n tâ n e o s e n tre in d iv íd u o s, m as essas re la ç õ e s intc m iitc n te s e su p e rfic ia is q u e, co m o d isse R o u sseau, c a re c e m da “ lig ação en tre as p a rte s, q u e co n stitu i o to d o ” , não sào sociedades. R o u sse a u p erceb eu isso . E m sua v isã o , a so cied a d e não é n ad a se nào fo r um co rp o u n o e d efin id o , d istin to de su as partes. Ele afirm a em outro p onto que o "c o rp o po lilico . visto in d ividualm ente, p o d e ser co n sid erad o um co rp o v iv o e o rg a n iz a d o , sem elh an te ao do hom em . O p o d e r so b eran o re p re se n ta a cab eça, o s cid ad ã o s são o co rp o e os m e m b ro s que fazem a m á q u in a se m o v e r e trab alh ar, e um ferim ento in flig id o a q u a lq u e r p a rte lev a u m a se n sa ç ã o d o lo ro sa ao céreb ro se o an im al tiv e r b o a s a ú d e " {Economia política). T odavia, c o m o a p e ­ nas o in d iv íd u o é real e n a tu ra l, o todo só p ode ser um p ro d u to d a razào.

co rp o p o litic o é a p e n a s u m p ro d u to d a ra z ã o ” (frag m en to

de Distinção fundamental, p. 308). O s in d iv íduos o c riam e. com o co n tin u am a ser o m aterial e a su b stân cia da co n strução, ele nunca p o d e a tin g ir o m e sm o grau de u n id ad e e realidade de um a obra da natu reza: “ A d iferen ça en tre a arte h u m a n a e o trab a lh o da n atu rez a p o d e s e r p erceb id a em seu s efeitos. O s c id a d ão s p o d e m m uito bem d iz e r q u e sào os m e m b ro s do E stado, m as não p odem u n ir-se co m o os v erd ad eiro s m em b ro s se u n em com o co rpo. Ê im p o ssív el ev itar que cada um tenha um a existência individual e distinta e busque atender ás su as p ró p ria s n e c e ssid a d e s” (ibid.. p. 310). R o u sseau ignorava q u e h o u v esse o rg a n ism o s n atu rais c u ja s p a rtes têm essa m esm a in ­ dividualidade. N ão apenas o co rp o p o litic o . m as tam b ém a fam ília, é um pro­ duto d a razào. É de fato um g ru p o n a tu ra l no sentido de q u e os filhos estào lig ad o s a seus p a is p e la n ec e ssid a d e de auto p reserv açào . M as essa n ecessid ad e d ura a p en as um ce rto tem p o . U m a v ez que o filho é c a p a z de c u id a r de si m e sm o , fica c o m seu s pais ap e n as se desejar.

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M o n tc g q u ic u c R o u sscau

N a d a h á n a n a tu re z a d a s c o is a s q ue o o b rig u e a m a n te r su as a sso ­ ciaçõ es c o m eles. “ Se eles p e rm a n e c e m u n id o s, n à o será m ais n a tu ­ ralm en te. m as v o lu n ta ria m e n te 1' [Contraio Social i. 2). M a s c o n ­ c lu i-se de m u ito s trech o s q u e essa a sso c ia ç ã o p o r aco rd o m útuo foi a p rim eira a se form ar. D e fa to , R o u ssèau p a re c e às v ez es co n sid e­ rá-la c o n te m p o râ n e a ao e s ta d o m ais p rim itiv o . E m su m a , io d a s o c ie d a d e é u m a en tid a d e artificial porque o ho m em nào tem n e c e s s id a d e natural deia, p o is é e sse n c ialm en te um co rp o o rg a n iz a d o e p o rq u e nào há c o rp o s so ciais en tre os co rp o s n atu rais. E ssas d u as idéias, que n o rm a lm e n te co n sid e ra m o s co n fli­ tan tes - a c o n c e p ç ão de so c ie d a d e c o m o um produto d a razão e a co n c e p ç ão d a so c ie d a d e c o m o um o rg a n ism o - po d e m s e r en co n tra­ das em R o u sscau . F. e le n ão p a s s a de u m a p a ra o u tra por co n se q ü ê n ­ cia d e u m a e v o lu ç ã o c o n s c ie n te ou in co n scien te que ten tasse e sco n ­ d er d c seu s leito res e ta iv e z até de si m e sm o . N à o . a s d u a s idéias estã o e stre ita m e n te re la c io n a d a s em seu pen sam en to . U m a parece im p lic a r na ou tra. É p o rq u e a s o c ie d a d e é um o rg an ism o q u e é um a obra de arte, p o is. se g u n d o e s s e p o n to d e v ista, é su p e rio r aos in d iv í­ du o s, ao p a sso q u e na n a tu re z a nada há a le m do in d ivíduo. F o rm u la­ da n esses term o s, a teoria p o d e m u ito b em pa re cer contraditória. Pode p a re c e r m ais ló g ico d iz e r q u e se há alg o acim a do s in d iv íd u o s, há alg o e x te rio r a cies. T oda te n ta tiv a de a m p liar o círcu lo d o s fen ô m e­ nos n a tu ra is ex ig e um g ra n d e esfo rço , e a m en te reco rre a todos os tip o s de su b terfú g io s e ev a sõ e s antes de se c o n fo rm a r a urna m u d an ­ ça tão g ran d e em seu siste m a de idéias. S eria a co n tra d iç ã o m e n o r no s e scrito s de S pen cer, q u e p o r um lado co n sid era a so c ied a d e um p ro d u to na n a tu re z a , u m se r v iv o c o m o os o u tro s, c p o r o u tro lado a d esp e dc seu c a rá te r esp e c ific o , re d u z in d o -a a u m a ju sta p o siç ã o m e­ cân ic a de in d iv íd u o s? R o u ssè a u ten ta ao m e n o s re so lv e r o p ro b le m a sem a b a n d o n a r q u a lq u e r dos d o is p rin c íp io s em questão: o principio individualista (q u e está na b a se de su a teo ria do estado de natureza, assim c o m o na da te o ria d o d ire ito n atu ral de S p en c er); e o principio contrário (que p o d e ria m u ito b e m se r ch am ad o d e p rin c íp io so c ialis­ ta. se essa p a la v ra não tiv e sse um a c o n o ta ç ã o d iferen te na língua-

O r ig e m d a s stx :ic d a d c $

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g em d o s partid o s p o liiic o s). q ue e s tá na b ase dc sua c o n ce p ção o rg â ­ nica da so cied ad e. C o m o v e re m o s, a co e x istê n cia d esses d o is p rin c í­ p io s e x p lic a o a sp e c to d u p lo n ào a p e n a s da filo s o fia so c ia l de R o u sse a u , q u e p o d e ría m o s c h a m a r de su a S o c io lo g ia, m as tam b ém de su as d o u trin as p o líticas. M as será que precisam os ir além ? D ado que a sociedade nào está na natureza, deveríam os, p o r isso. conclu ir que é contrária ã natureza, que é e só pode ser um a corrupção da natureza hum ana, a conseqüência de algum tipo de queda e degeneraçào: em sum a. que a sociedade com o tal é um m al que pode ser reduzido, m as nào elim inado? Ê p re c iso distin g u ir. A so c ie d a d e , da form a co m o é h o je, é cer­ ta m e n te urna m o n stru o sid a d e q ue n asceu c co n tin u a a ex istir g raças ap e n a s a u m co n cu rso d e c irc u n stâ n c ia s acid entais e d e p lo ráv e is. O d e se n v o lv im e n to so cial levou a d e sig u a ld a d es a rtificiais to talm en te c o n trá ria s às in eren tes ao esta d o de n atu re z a . A d e sig u a ld ad e natural ou tísic a é aq u ela q u e “ vem de u m a d ife re n ç a de id ad e , saú d e, fo rç a fisica e q u alid ad es m e n ta is e e sp iritu a is. A o u tra d esig u ald a d e, que pode se r ch am ad a m o ra l o u p o liiica. d e p e n d e de um tipo de c o n v e n ­ ção e re s u lta d o s d iv e rso s p riv ilé g io s de que gozam alg u n s cm d e tri­ m ento de o u tro s, co m o o p riv ilég io de ser m ais rico . m ais resp eitad o , m ais p o d e ro so " (seg u n d o Discurso, in icio). E ssas c o n v en ç õ es in­ vestem in d iv íd u o s o u g ru p o s de in d iv íd u o s que, no esta d o de n atu re ­ za. não se ria m su p e rio re s e p o d e ria m até se r inferio res ao s o u tro s, dc p o d e re s e x c e p c io n ais que lhes c o n ferem um a su p erio rid a d e c o n trá ­ ria à n atu reza. “É m a n ife sta m e n te co n trá rio ã lei d a n atu reza , com o q u er q u e a d efin am o s, q ue u m a c ria n ç a com ande u m v elh o , q u e um to lo g u ie um sáb io e q u e u m p u n h a d o de p essoas se sa tu rem de su ­ p érflu o s enquanto a m u ltid ão fam in ta carece do m ais básico n ecessá­ rio " (segundo Discurso, ú ltim as lin h as). E ssas desigualdades resultam p rin c ip a lm e n te da c o n v e n ç ã o so cial co n h ecid a c o m o h eran ça. N o esta d o d e n atu reza, a d e sig u a ld a d e q u ase n ào existe. S eu d e se n v o l­ v im e n to é estim u la d o p ela ev o lu ção so cial, e lise to rn a estáv el e legi­ tim o p o r m eio do e sta b e le c im en to d a p ro p ried ad e e das leis".

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M o n tesq u ieu c Rousscau

A prim eira violação da lei da natureza levou a um a segunda. Q uando os hom ens se tornaram desiguais, ficaram dependentes uns ilos ouiros. C onseqüentem ente, a sociedade é com posta de mesires e escravos. Os próprios m estres, em certo sentido, são escravos daqueles que dom inam . “Um hom em crê que é m estre dos outros, em bora na verdade seja m ais escravo que eles" (Contrato Social I. 1). “A própria dom inação é servil quando se baseia na opinião públi­ ca (Emite. II), pois ela depende dos preconceitos daqueles a quem governa com preconceitos. E ssa interdependência dos seres hum a­ nos é contrária à natureza. O s hom ens sào naturalm ente indepen­ dentes uns dos outros. Esse é o significado da fam osa declaração: “O hom em nasceu livre e em toda parte está acorrentado". No esta­ do natural, ele depende apenas da natureza, do am biente físico, ou seja. de forças im pessoais e invariáveis que não são controladas por qualquer indivíduo, m as que dom inam a todos da m esm a m aneira. A im pcrsonalidade das forças físicas c a regularidade de sua açâo certam ente são. na opinião de R oussèau, sinais p elo s quais se pode d istin g u ir o que ê norm al e fundam entado daquilo que é anor­ m al e acidental. Para ele. o q u e é bom deve ter um certo grau de necessidade. Por isso, urna d a s razoes pelas quais ele considera m órbido o atual estado social é sua extrem a instabilidade. Logo que os hom ens com eçam a sc relacionar, “nascem m ultidões de relações vagas e inform es que os hom ens alteram e m udam co n ti­ nuam ente; para cada indivíduo que tenta estabilizá-las. há cem que se esforçam para destruí-las” (Manuscrito de Genebra, ed. Dreyfus. cap. II. p. 247). A crescentarem os o seguinte trecho de Emile: “To­ das as coisas estào m isturadas nesta vida. N ào perm anecem os no m esm o estado por dois m om entos consecutivos. A s afeições da alm a e as m odificações do corpo estào em um fluxo perpetuo" (11). Pois as vontades dos indivíduos se m ovem em diferentes direções e con­ seqüentem ente entram em conflito. Ora um a prevalece, ora outra. Elas se com binam , um a sc rende à outra, m as sem pre de m aneiras

O rig e m da:> so cied a d es

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diferentes, e o equilíbrio está sem pre perturbado. “H á dois tipos dc dependência. a das coisas, que c utti fenôm eno da natureza, e a dos hom ens, que é um fenôm eno social. A prim eira nào é um obstáculo à liberdade e nào gera vicios; m as com o a segunda nào tem ordem ou estabilidade, ela engendra todo vício; e é por m eio dessa dependên­ cia que o m estre e o escravo se pervertem m utuam ente” (Emite. II). Q uando o hom em depende apenas de coisas, ou seja, da natureza, ele necessariam ente \ív e em um estado dc equilíbrio estável, já que suas necessidades estào em harm onia com seus meios. A ordem é conseguida autom aticam ente. O hom em , entào. está verdadeiramente livre, pois faz tudo o que deseja porque deseja apenas o que é possível. “O hom em realm ente livre deseja apenas o que é possível e faz o que lhe agrada” (ibid.). A liberdade, da form a com o concebe R ousseau, resulta dc um tipo de necessidade. O hom em é livre apenas quando um a força su­ perior se im põe a ele, desde que. todavia, ele aceite essa superiorida­ de e que sua subm issão nào seja obtida por m entiras e artificio. Ele é livre se for contido. Porém , a energia que o segura deve ser real e não um a mera fícçào com o a desenvolvida pela civilização. A penas nes­ sa condição ele pode desejar ser dom inado. E R ousseau acrescenta: “Se as leis das sociedades, com o as da natureza, se tom assem tão inflexíveis que nenhum a força hum ana pudesse dobrá-las. a depen­ dência dos hom ens se tom aria a dependência das coisas" (ibid.). M as sc o estado civil tal com o ê agora viola a lei da natureza, seria o m esm o em todo estado civil? O mal atual estaria necessaria­ m ente im plícito em toda organização social ou ó, antes, um erro que pode ser corrigido? Seriam o estado de natureza e a vida em socieda­ de um a antitese irredutível ou haveria algum m odo de reconciliálos? M uitas vezes, em prestou-se a R ousseau a opinião de que a per­ feição era possível para os seres hum anos apenas em um estado de isolam ento, que eles estavam condenados à corrupção e ã degenera-

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M oiltesq u ieu c Rousscai:

çâo logo que com eçaram a viver juntos, que a idade do ouro era coisa do passado, que desaparecera para sem pre quando renuncia­ mos à santa sim plicidade dos tem pos prim itivos e da qual nos afasta­ m os cada vez m ais conform e nos envolvem os na rede dc laços sociais. Segundo esse ponto de vista, o Contrato Social tom a-se ininteligí­ vel, pois se ?. sociedade com o tal é um mal, nossa única preocupação com ela seria um esforço para reduzir seu desenvolvim ento a um mínimo c nào podem os m ais com preender todo o esforço de Rousseau para dar a ela uma organização positiva. Particularm ente, a im por­ tância que ele dá ã discip lin a coletiva e a subordinação em que posiciona, sob certos aspectos, o indivíduo, tom am -se totalmente inex­ plicáveis. Rousseau certamente prefere o estado de natureza ao estado civil que vê a seu redor, pois à sua m aneira é um estado de perfeição. Talve/ ele se expresse violentamente às vezes, e podemos ficar tentados a nos perguntar se suas diatribes sào dirigidas às sociedades m odernas apenas, ou à sociedade em geral. F.m vista das dificuldades envolvidas na aven­ tura social, podemos entender como ele deve ler deplorado as circuns­ tâncias que trouxeram o fim do isolamento do homem primitivo. Mas nào há porque supor que ele considerava esse estado de perfeição o único possível e que acreditava ser impossível definir e estabelecer um outro, de um tipo diferente m as de valor igual. Uma razào para nào em prestara Rousseau o pessimismo radical que lhe foi atribuído é que o germe da existência social é inerente ao estado de natureza. O equilíbrio original poderia ter sido m antido indefinidamente apenas se o homem não quisesse aceitar qualquer mudança, se ele nào fosse perfectível. Mas o que mais o distingue do anim al c a "capacidade de se aperfeiçoar. Essa habilidade que, com o auxílio das circunstâncias, sucessivamente de­ senvolve todas as outras faculdades, é caracteristica da espécie assim com o do indivíduo” (segundo Discurso, parte I). E verdade que a perfectibílidade perm anece dorm ente no ho­ mem natural até ser despertada pelas circunstâncias. M esm o assim, é latente desde o início, c a série de eventos que resultam dela nào

O rig e m d as sociedades

pode ser considerada necessariam ente contrária à natureza, já que existe na natureza. Esses eventos podem assum ir um curso anorm al, m as esse curso nào é predeterm inado por suas causas. Da m esm a m aneira, a razão, que c para o am biente sociaí aquilo que o instinto é para o am biente físico, foi despertada no hom em pela Providência (segundo Discurso). P or isso, a existência social não é contrária ã ordem providencial. E m bora o atual estado civil seja im perfeito, elo tem qualidades que não sào encontradas no estado de natureza. E m bora o hom em natural nào seja m au. ele não é bom ; a m oralidade nào existe para ele. Se ele é feliz, não está consciente de sè-lo. “As estúpidas criaturas dos tem pos prim itivos sào insensíveis” à sua felicidade (ed. D reyfus, p. 248). Em bora R ousscau (no segundo Discurso) enfatize os sofri­ m entos causados pela civilização em sua forma atual, ele não fecha os olhos à sua grandeza; parece apenas duvidar se essa é um a com ­ pensação suficiente. “ Parece aconselhável suspender o julgam ento que sc poderia fazer sobre tal situação até que. depois de pesar bem as coisas, tenham os determ inado se o progresso de seu conhecim en­ to é um a com pensação suficiente para o mal que eles fazem uns aos outros à m edida que se instruem m ais e m ais” (Parte I). M as se h o u ­ ver um m odo de corrigir essas im perfeições ou tom á-las im possí­ veis, apenas a grandeza restará e talvez essa nova perfeição seja su­ perior ã do estado original. Perm anece, é claro, o fato de que essa perfeição terá sido adquirida ao custo de um grande sofrim ento, m as R oussèau nào parece ter perguntado se o preço seria dem asiado caro. Na verdade, a questão não vem ao caso, pois as circunstâncias que tom am a sociedade necessária são dadas e a perfeição hipotética do estado de natureza é. conseqüentem ente, im possível. R ousscau declarou, já no segundo Discurso, que os atuais de­ feitos do estado civil nào sào necessários. Com o. então, a sociedade pode ser organizada de m odo a nos tornar m elhores e m ais felizes? A proposta do Contraio Social é responder a essa questão.

O Contrato Social e o estabelecimento do corpo

A ntes de qualquer coisa, vejam os como, à luz do que foi dito, R ousseau apresenta o problem a. Quando a$ circunstâncias que im pedem o hom em de perm ane­ cer no estado de natureza se desenvolvem além de um ccrto ponto, elas devem , para que o hom em sobreviva, ser neutralizadas por cir­ cunstâncias contrárias. Um sistem a de contraforças deve ser estabele­ cido. Como essas forças nào sào dadas no estado de natureza, devem ser trazidas pelo hom em . “M as com o os hom ens nào podem gerar novas formas, m as apenas unir e dirigir as já existentes, nào têm outro m eio de se preservar além da form ação, por agregação, de uma som a de forças grande o bastante para superar a resistência. F.las têm de ser postas em jogo por um único móvel e obrigadas a agir em conjunto. Essa som a de forças só pode nascer da uniào de m uitas pessoas” {Contrato Social, I, 6). Disso advém que, um a vez que o estado da natureza se tom e im possível, uma sociedade constituída é o único am biente em que o hom em pode viver. M as se. no processo de form ação, a sociedade violar a natureza do hom em , o mal que foi evitado será substituído por um outro, que nào será menor. O hom em viverá, m as será infeliz porque seu modo

ICO

M o n te sq n ic ii c R o u ssea u

de existência estará cm consUmte conflito com suas tendências bási­ cas. Essa nova vida deve portanto ser organizada sem violar a lei da natureza. Com o isso c possível? Estaria R ousseau tentando, de um m odo vagam ente eclético, sobrepor à condição prim itiva uma nova condição» que se som a à prim eira sem m odificá-la? E staria sim plesm ente justapondo o ho­ mem social a um hom em natural que perm anece intacto? Isso lhe pareceria inconsistente. “Q uem quer que tcnle preservar os senti­ m entos naturais na ordem social não sabe o que quer. Sem pre em contradição consigo m esm o, ele nunca será um hom em , nem um ci­ dadão” ( Emile, I). "B oas instituições sociais sào as m ais capazes de alterar a natureza do hom em , de subtrair-lhe sua existência absolu­ ta... e de transportar o eu para a com unidade." A ssim , a natureza e a sociedade não podem ser reconciliadas por um a justaposição exterior. A natureza deve ser rem odulada. O ho­ mem deve m udar com pletam ente se quiser sobreviver ao ambiente que ele próprio criou. Isso significa que os atributos característicos do estado de natureza devem ser transform ados e, ao m esm o tempo, m an­ tidos. Daí a única soluçào c encontrar um m eio de adaptá-los às novas condições de existência sem deform á-las em nenhum aspecto essen­ cial. Elas devem assum ir u m a nova form a sem deixar de ser. Podem fazê-lo apenas se o hom em social, em bora profundam ente diferente do homem natural, m antiver a m esma relação com a sociedade que o homem natural com a natureza tísica. Com o isso é possível? Se nas sociedades atuais as relações fundam entais do estado de natureza foram perturbadas, é porque a igualdade prim itiva foi subs­ tituída p or desigualdades artificiais e, com o resultado, os hom ens se tom aram dependentes uns dos outros. Se em vez de ser apropriada por indivíduos e personalizada a nova força nascida da com binação de indivíduos em sociedades fosse im pessoal e se, conseqüentem en­ te. transcendesse todos os indivíduos, os hom ens seriam todos iguais em relaçào a ela, já que nenlium deles poderia dispor dela a titulo privado. Assim , eles dependeriam não uns dos outros, m as de uma

O C o n tr a to Social e o e sta b e le c im e n to d o co rp o político

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força que, por sua im pessoalidade, seria idêntica, mutatis mutandis, às forças da natureza. O am biente social afetaria o hom em social do m esm o m odo com o o am biente natural afeta o hom em natural. “Se as leis das nações, com o as da natureza, pudessem ser tào inflexíveis que nenhum a força hum ana pudesse dobrá-las, a dependência dos hom ens se tom aria novam ente a dependência das coisas. Todas as vantagens do estado natural e do estado civil esíariam unidas na re­ pública. A m oralidade que ergue o hom em ao plano
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M o n tc s q u ic u c R u u sseau

in tro d u ção ). Pode p a re c e r su rp re en d en te , à p rim eira vista, ver R ousseau, para quem a sociedade nào pertence ao dom ínio da natu­ reza. dizendo que a força na qual a sociedade se baseia deve ser natural, ou seja. baseada na natureza. M as natural é aqui sinônimo de racional. M esm o a confusão ê explicável. Em bora a sociedade seja obra do hom em , ele a m olda com a ajuda dc forças naturais. Ela será natural, em um sentido, se ele usar essas forças de acordo com a natureza delas, sem violentá-las, se a açào do hom em consistir em com binar e desenvolver constantem ente propriedades que. sem sua intervenção, teriam perm anecido latentes, m as que estão sem pre pre­ sentes nas coisas. É isso q u e possibilita a R ousseau conceber, dc m aneira geral, que apesar da diferença entre eles, o am biente social c apenas uma nova form a do am biente prim itivo. A ssim os hom ens poderão sair do estado de natureza sem vio­ lar a lei da natureza, com a condição de que se unam em sociedades dependentes de uma força ou sistem a de forças baseado na razão e que dom ine todos os individuos. Será que esse resultado pode ser atingido, e com o? Será sufi­ ciente que os m ais fortes subjuguem o restante da sociedade? M as sua autoridade será durável apenas se reconhecida com o um direito. O poder físico não pode dar origem a um direito nem a um a obriga­ ção. Além disso, se o direito segue a força, ele m uda com esta e cessa quando ela desaparece. C om o a força varia de inúm eras m aneiras, o direito varia tam bém . M as um direito tào variável n ào c um direito. Assim , para que a força faça o direito, eia prccisa scr justificada, o que nào ocorre apenas por sua existência (Contrato Social , 1, 3). G rócio tentara dar ao direito do mais forte um fundam ento ló­ gico. Partindo do principio de que um indivíduo pode alienar sua liberdade, conclui que um povo pode fazer o m esm o, R ousseau re­ jeita sua teoria por diversas razoes: 1) Essa alienação só é racional certas vantagens forem oferecidas em troca. D iz-se que o déspota assegura a tranqüilidade a seus súditos. M as essa tranqüilidade está longe de ser com pleta; c perturbada pelas guerras que nascem do

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despotism o. Além disso, a tranqüilidade por si m esm a não é um bem: ela pode ser encontrada em calabouços. 2) A liberdade das gerações futuras não pode ser alienada. 3) R enunciar à liberdade é renunciar à qualidade de hom em e não há com pensação possível para tal renún­ cia. 4) Um contrato que estipule que um a das partes contratantes terá autoridade absoluta significa nada. pois nada pode estipular para a parte que não tem direitos. G rócio alega que o direiiO de guerra im plica no direito de es­ cravidão. Com o o vencedor tem o direito de m atar o vencido, este pode com prar sua vida cm troca de sua liberdade. Todavia: 1) O suposto direito de m atar o vencido ainda nào foi provado. M as entre indivíduos nào existe um estado crônico e organizado de guerra, nem na vida civil, na qual rudo é governado por leis. nem no estado de natureza, em que os hom ens nào são naturalm ente inimigos, já que suas relações nào são constantes o bastante para ser de guerra ou dc paz. Um Estado que nunca existiu não pode ser invocado com o o fundam ento de um direito. A guerra nào é um a relação entre hom em e hom em , mas entre Estado e Estado. Estaria Grócio falando da guerra entre nações e do direito de conquista? M as a guerra nào dá ao ven­ cedor o direito de m assacrar o povo vencido. Portanto, ela nào pode ju stificar o direito de escravizá-lo. Urna vez que os defensores do Estado inim igo baixam as arm as, o vencedor nào tem direitos sobre sua vida. Só se tem o direito de m atar o inim igo quando se é incapaz de subjugá-lo. Assim , o direito de subjugar não se baseia no direito de m atar. 2) A aceitação da escravidão não acaba com o estado de guerra. Ao tirar do vencido o equivalente à vida, o vencedor nào lhe concede um a graça. F.le com ete um ato de força, nào de autoridade legitim a (Contrato Social. 1 ,4). M esm o se o direito do m ais forte pudesse ser justificado racio­ nalm ente. ele nào serviria de base a um a sociedade. U m a sociedade é um corpo organizado no qual cada parle depende do todo e viceversa. Não há essa interdependência no caso de uma m ultidão lidera­ da p o r um com andante. F.ssa m ultidão é “um a agregação, m as nào

M o n te s q u ie u e R o u sseau

um a associação" {Contrato social. I. 5). Os interesses do com an­ dante são diferentes dos da m assa. P. por isso que a m ultidão, que estava unida apenas por depender dele. se dispersa quando ele m or­ re. Para que haja um povo. o s indivíduos que o com põem devem sentir-se unidos de m odo a fo rm ar um lodo, cuja unidade não depen­ da dc causa exiem a. Essa unidade não pode ser conseguida pela vontade do governante; deve se r interna. A form a de governo é se­ cundária. O povo deve existir antes dc poder determ inar com o será governado. “A ntes de exam inar o ato pelo qual um povo se entrega a urn rei", seria m elhor "exam inar o ato pelo qual um povo é um povo”. Esse ato é "o verdadeiro fundam ento da sociedade” {ibid.). Esse ato pode. obviam ente, consistir apenas dc uma associa­ ção. Assim, o problem a pode se r enunciado do seguinte m odo: "E n­ contrar um a forma dc associação que defenda c proteja com toda a força com um a pessoa e os bens de cada associado, e na qual cada um. unido a todos, obedeça ainda a $i m esm o c continue livre com o antes”. Essa associação só pode resultar de um contrato pelo qual cada m em bro se aliena, com todos os seus direitos, à com unidade. Por esse contrato, cada indivíduo se dissipará em um a vontade com um e geral, que é a base da sociedade, A força assim estabeleci­ da c infinitam ente superior ã som a das forças de todos os indivíduos. Tem uma unidade interior, pois ao entrar em associação, as partes com ­ ponentes perderam parle de sua individualidade e liberdade de m ovi­ mento. Com o a alienação foi feita sem reservas, nenhum m em bro tern o direito de reclamar. Assim, a tendência anti-social inerente a cada indivíduo sim plesm ente porque ele tem um a vontade individual é abolida. "Em vez da personalidade individual de cada contratante, esse ato de associação cria um corpo moral e coletivo com posto de tantos m em bros quantos votantes houver na assem bléia e que recebe desse ato sua unidade, sua identidade com um , sua vida e sua vontade” {Con­ trato Social í, 6). Pouco im porta se esse contrato é de fato escrito e se tem a devida forma. Talvez a s cláusulas nunca tenham sido enun­ ciadas. M as na m edida em que a sociedade é norm alm ente constitu­ ída. elas são reconhecidas tacitam ente em toda parte {ibid).

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C om o conseqüência desse contrato, cada vontade pessoal é absorvida pela vontade coletiva, pois cada hom em , “ao se entregar a todos, se entrega a ninguém ”. Essa vontade geral nào é um a vontade individual que subjuga todas as outras e as reduz a um estado de dependência imoral. Ela tem o caráter im pessoal das forças naturais. Um hom em não c m enos livre por se subm eter a ela. N ão apenas nào nos escravizam os ao obedecer a essa vontade, com o som ente ela pode nos proteger contra a servidão, pois se. para que ela seja possível, devem os renunciar a subjugar os outros, os outros devem fazer a m esm a concessão, lal é a natureza da equivalência e com pensação que restabelecem o equilíbrio das coisas. Se há um a com pensação para a alienação de m inha pessoa, não é. com o disse Paul Janct. por­ que recebo em troca a personalidade de outros. Essa troca pareceria bem incom preensível, h até m esm o contrária à cláusula básica do contrato social, de acordo com a qual é o corpo político, enquanto ser m oral sui generis. e nào os indivíduos, que recebe as pessoas de seus m em bros (“em nossa capacidade com binada, recebem os cada m em bro com o parte indivisível do todo" - ibid.). O que recebem os é a segurança de que serem os protegidos por toda a força do organis­ m o social contra as invasões individuais de outros. M esm o a conces­ são que fazem os nào é uma m inoraçào de nossa liberdade, pois não é possível escravizar os outros sem escravizar a nós m esm os. “A liber­ dade consiste menos em fazer sua vontade do que cm não estar sujeito à dos outros. Ela tam bém consiste em não sujeitar a vontade dos outros à nossa. Um senhor nào pode ser livre" (8a Cana da Montanha). O mesmo vale para a desigualdade. F.la perm anece tão com pleta quanto no estado de natureza, em bora tenha assum ido um a nova form a. Ori­ ginalm ente, ela vinha do fato de que cada indivíduo form ava uma “unidade absoluta” ; seu atual fundam ento é que “com o cada um se entrega igualm ente. ;is condições são as m esm as para todos” (I, 6). D essa igualdade resulta tam bém um estado de paz de um novo tipo. C om o a condição de todos os hom ens é a m esm a, “ ninguém tem interesse de tom á-la onerosa aos outros" {ibid.).

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Nào apenas a liberdade e a igualdade foram preservadas; de certo modo, elas estão ainda m ais perfeitas que no estado de nature­ za. Hm prim eiro lugar, elas estào m ais seguras porque sào garantidas nào peio poder do indivíduo, m as pelas forças da coletividade que “sào incom paravelm ente m aiores que as de um indivíduo ” (1.9). Em segundo lugar, elas lêm um c a ráter m oral. N o estado natural, a li­ berdade de cada p essoa “é lim itad a apenas pela força do indiví­ d uo" (I. 8). ou seja, apenas p elo am biente m aterial. A ssim , é um falo físico e n ào um direito. N o estado civil, ela é lim itada e regida pela vontade geral e tran sfo rm ad a de acordo. Em vez de ser vista exclu siv am en te com o um a vantagem individual, ela se relaciona a interesses que transcendem o indivíduo. O ser coletivo - superior a todos os seres individuais - não apenas d eterm ina a liberdade indi­ vidual com o tam bém a consagra e assim lhe com unica um a nova natureza. A liberdade de um indivíduo se baseia agora, não na quan­ tidade de energia disponível a ele. m as cm sua obrigação, vinda do contraio fundam ental de re sp e ita r a vontade gerai. É isso que torna a liberdade individual um direito. O m esm o vale para a igualdade. No estado de natureza, cada hom em possui o que pode. M as essa posse “c sim plesm ente o efeito da força" (ibid.). Embora o privilegio do prim eiro ocupante tenha uma base m oral m ais firme que o privilégio do mais fone, ele também se tom a “um direito real apenas quando o direito de propriedade iá foi estabelecido", ou seja, apòs o estabelecim ento do estado civil. C ada m em bro da com unidade se entrega a ela com ioda a proprieda­ de que possui de falo. Toda essa propriedade ju n ta torna-se o territó­ rio público. A sociedade restilui ou ao m enos pode restituir - aos cidadàos o que recebeu dessa form a. M as as circunstâncias dessa nova posse sào bem diferentes. Os cidadàos passam a possuir sua propriedade nào m ais a titulo privado, m as com o "depositários do bem público". A usurpação, assim , é transform ada “em um verdadei­ ro direito e o usufruto, em propriedade" (1.9), pois eles sào baseados na obrigação de cada indivíduo de se contentar com o que lhe é

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concedido. 'T e n d o recebido seu quinhão, ele deve se lim itar a ele” para estar de acordo com a vontade geral (ibid.). “E por isso que o direito do prim eiro ocupante, que no estado de natureza é tão fraco, recebe o respeito de todos os hom ens da sociedade civil. N esse di­ reito não respeitam os tanto aquilo que pertence ao outro quanto aquilo que não pertence a nós m esm os." Tsso. na verdade, nào pode bastar para instituir qualquer tipo de igualdade. Se a sociedade consagrasse o direito do prim eiro ocupante sem subordiná-lo a qualquer regra, na m aioria dos casos ela estaria sim plesm ente consagrando a desigual­ dade. O exercício desse direito deve. portanto, ser sujeito a ceitas condições: I) o territó rio deve estar livre no m om ento da o cu p a­ ção; 2) um indivíduo só deve ocupar a terra dc que precisa para so b rev iver; 3) ele deve sc apossar deia não com um a cerim ônia vazia, m as com trabalho. Essas três condições, particularm ente a segunda, protegem a igualdade. Se. porém , a igualdade se torna um direito, não será p o r virtude desses três princípios, m as essencial­ m ente porque a com unidade lhe im prim e esse caráter. N ào é p o r­ que essas très regras são o que sào, m as porque refletem a vontade g eral, que a distribuição igual de bens que advém delas é justa e o sistem a assim estabelecido deve ser respeitado. D esse modo. “o pac­ to fundam ental substitui por uma igualdade m oral e legitim a a desi­ gualdade física que a natureza poderia ter posto entre os hom ens" (Livro 1. últim as linhas). A passagem do estado de natureza para o estado civil produz “uma m udança m uito notável** no hom em . Ela resulta em uma trans­ form ação da ordem de fato para um a ordem de direito e no nasci­ m ento da m oralidade (I. $). As palavras “d e v e r’ e “direito” nào têm sentido antes de a sociedade se constituir, porque até entào o hom em “considerava apenas a si m esm o”, ao passo que agora ''ele sc vc obrigado a agir segundo outros principios". A cim a dele há algo que ele é obrigado a levar cm conta {o dever) e que seus sem elhantes tam bém sào obrigados a levar em conta (o direito). “ A virtude não é m ais que a conform idade da vontade particular à geral" {Economia

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M o ntesqu .ieu e R o u sse au

política).11 M as seria um erro sério interpretar essa teoria com o se ela im plicasse que a moral se baseia na m aior força m aterial resul­ tante da com binação das forças individuais. Esse poder coercivo, sem dúvida, é im portante; ele garante os direitos que passam a exis­ tir com o estado civil, m as nào os cria. A vontade geral deve ser respeitada, não porque c m ais fo rte m as porque é geral. Para que haja ju stiça entre os indivíduos, d ev e haver algo exterior a eles, um ser

suigeneris, que age com o árbitro e determ ina o direito. Esse algo é o ser social, que nào deve sua suprem acia m oral ã sua suprem acia físi­ ca. m as à sua natureza, que é superior à dos indivíduos. Ele tem a autoridade necessária para regular os interesses privados porque está acim a deles, p or nào adotar partido na causa. Assim , a ordem moral transcende o indivíduo; ela nào existe na natureza m aterial ou im aterial. m as deve scr introduzida. Porém , ela exige uma base em um ser e. com o nào há um ser na natureza que satisfaça as condições neces­ sárias. esse ser deve ser criado. Trata-se do corpo social. Em outras palavras, a m oral nào deriva analiticam ente dos fatos. Para que as relações de fato se tom em m orais, eias devem ser consagradas por uma autoridade que não pertença aos falos. A ordem moral deve ser som ada a eles sintelieam ente. Para efetuar essa conexão sintética é necessária um a nova força: a vontade geral. Portanto, é bem injusto q u e certos críticos tenham acusado Rousseau de contradizer a si m esm o ao condenar, por um lado, a alienação da liberdade individual em beneficio de um déspota e, por outro, ao fazer dessa abdicação a base de seu sistem a, quando feita em favor da com unidade. Se é im oral em um caso, dizem eles, por

22. A o co m p a rar o estad o c iv ji. a ssim c o n ce b id o , ao estado d e n atu reza. R o u sseau c x a h a as v a n ta g en s lio prim eiro , " q u e tran sfo rm o u um anim al g ro sseiro c e stúpido cm um h om em e um ser inteligente” (ibid.). No m esm o trecho, n a v erdade, ele destaca a lam entável ra cilid ad e com q u e e sse estad o e c o rro m p id o e o hom em a tirad o a um a situ aç ão in ferio r à sua situ a ç ã o o rig in a l. M esm o assim ele afirm a çuc a hum anidade, n« sentido estrito da palavra, é co n tem porânea à sociedade e que o estad o so cial é o m ais p e rfe ito , e m b o ra in felizm en te a :a ç a h u m an a se ja d e m a ­ siado pro p en sa a usá-lo ma', (n o ta d e D u rk h c im ).

ü C o n tra to Social c o e sta b e le c im e n to d o c o rp o político

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que não no outro? A razão c que as condições m orais sob as quais eia ocorre não são sem pre as m esm as. X o prim eiro caso. c injusto porque põe o hom em sob a dependência de um único indivíduo, o que é a própria fonte de toda im oralidade. No segundo, cia o coloca sob a autoridade dc uma força gera! e im pessoal que o governa e. sem reduzir sua liberdade, o transform a cm um ser moral. A natureza dos lim iles aos quais ele é sujeito apenas passou de física a m oral. A objeção surge apenas porque os críticos de Rousseau não consegui­ ram perceber a vasta diferença, do ponto de vista m oral, entre a von­ tade geral e a individual.

Da soberania em geral O corpo político instituído pelo Contrato Social, enquanto for­ ça de todos os direitos, deveres e poderes, é chamado soberano. Quais os atributos da soberania e com o cia se afirm a? A soberania c “o exercício da vontade geral” . É o poder coleti­ vo dirigido pela vontade coletiva. M as cm que consiste exatam ente a vontade coletiva? A vontade geral é com posta de todas as vontades individuais. “ Ela deve partir de todos” (II, 4). M as essa prim eira condiçào nào basta. A vontade de todos nào é, ou ao m enos nào necessariam ente, a vontade geral. A prim eira “nào é m ais que um a som a de vontades particulares” (11, 3). O objeto ao qual se aplicam todas as vontades individuais tam bém deve scr geral. “ A vontade geral, para realm ente sê-lo, deve ser geral cm seu objeto assim com o em sua essência... deve vir de todos para se aplicar a todos” (TI. 4). Em outras palavras, ela é o produto da deliberação das vontades individuais sobre uma questão que interessa ao corpo da naçào, sobre um assunto de inte­ resse com um . M as a palavra "interesse” tam bém deve ser propria­ m ente com preendida. C oncebem os, às vezes, o interesse coletivo com o o interesse próprio ao corpo social, que é visto então com o um novo tipo de personalidade com necessidades especiais diferentes das sentidas pelos indivíduos. M esm o nesse sentido, na verdade, tudo o que é útil ou necessário à sociedade interessa aos indivíduos porque eles sen­ tem os efeitos das condições sociais. Mas esse interesse é apenas -

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indireto. A utilidade coletiva tem um certo caráter próprio. Nào é definida em função do indivíduo visto sob um ou outro aspecto, mas em função do ser social considerado em sua unidade orgânica. Essa não é a concepção dc R ousseau. Segundo seu ponto de vista, tudo o que é útil a todos é útil a cada um . O interesse com um c o interesse do indivíduo m édio. O interesse geral é o de todos os indivíduos que desejam o que é m ais apropriado, nào a esta ou aquela pessoa em particular, m as. dados o estado civil e as condições determ inadas da sociedade, a cada cidadão. Ele p assa a existir quando “ todos querem a felicidade de cada um deles'* {ibid.). E o indivíduo é de tal forma seu objeto que existe um certo egoísm o, pois “nào há um a pessoa que nào se aproprie da expressão “cada um " pensando em si m esm o ao votar por todos. O que prova que a igualdade de direitos e a idéia de justiça que essa igualdade produz se origina na preferência que cada um dá a si mesmo e, conseqüentemente, na natureza do hom em " (ibid.). Assim , para que a vontade geral se m anifeste, não é necessário, ou m esm o desejável, que todas as vontades individuais se unam em uma deliberação efetiva, com o seria indispensável se a vontade ge­ ral fosse algo diferente dos elem entos de que resulta, pois entào es­ ses elem entos teriam de ser postos em contato entre si e com binados antes que seu resultante pudesse em ergir. Pelo contrário, o ideal se ­ ria que cada indivíduo ex ercesse seu quinhào de soberania separa­ dam ente dos outros. “Se, quando o povo inform ado delibera, os cidadãos nào tivessem qualquer com unicação entre si... a decisão continuaria a ser boa” (II, 3). Q ualquer agrupam ento interm ediário cnlrc os cidadãos e o Estado não poderia deixar de ser danoso sob esse aspecto. “ E portanto essencial, para que a vontade geral seja capaz de expressar-se, que nào haja sociedade parcial no Estado c que cada cidadào tivesse apenas seus próprios pensam entos" (ibid.). Assim , se cada indivíduo votar independentem ente de seu vizinho, haverá tantos votos quanto indivíduos e. conseqüentem ente, um n ú ­ m ero m aior de pequenas diferenças, que por sua fraqueza desapare­ cerão em m eio ao todo. A penas aquilo que nào pertence a um a dis­

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posição individual sobreviverá. Dai a vontade coletiva tenderá natu­ ralm ente ao objeto que lhe é próprio. M as se se form ar em grupos individuais, cada um terá sua vontade coletiva, geral cm relação a seu s m em bros, m as individual, em relação ao F.stado. e dessas von­ tades coletivas surgirá o soberano. M as precisam ente por serem e s­ sas vontades elem entares em pequeno núm ero é m ais difícil que seus caracteres diferenciais se fundam . Q uanto m enos elem entos form a­ rem um tipo. m enos geral será esse tipo. A vontade pública correrá m ais risco de desviar-se para fins particulares. Se um desses grupos chegar a se tornar predom inante, restará apenas uma única diferença “ c a o p in iã o q u e p re v a le c e n à o p a s s a r á de u m a o p in iã o p a rtic u la r” (rô/V/.). N essa teo ria, reco n h ecem o s o h o rro r a todo partieularism o. a concepção unitária da sociedade, que foi um a das características da R evolução Francesa. E m sum a, a vontade gerai é a m édia aritm ética de iodas as von­ tades individuais na m edida em que seu objetivo político é urn tipo de egoísm o abstrato. Seria difícil a Rousseau transcender esse ideal, pois se a sociedade é fundada por indivíduos, se eles a considerarem apenas um instrum ento com o qual podem se proteger sob circuns­ tâncias particulares, cia só pode ter um objetivo individual. M as, por outro lado. com o a sociedade nào é natural ao indivíduo, concebido com o em inentem ente dotado dc um a tendência centrífuga, o objeti­ vo social deve ser despido de todo caráter individual. Ele só pode ser. então, algo m uito abstrato e im pessoal. M esm o assim , para atin ­ gi-lo. só se pode voltar-se ao indivíduo. Ele é o único órgào da socie­ dade. já que é seu único criador. Todavia, é necessário subm ergi-lo na m assa para m odificar sua natureza tanto quanto possível e evitar que aja com o indivíduo. Tudo o que tenha um a natureza capaz de facilitar a ação individual deve ser considerado perigoso. Assim , encontram os em toda parte as duas tendências antitéticas da doutrina de R ousseau. Por um lado, a sociedade com o um m ero instrum ento para uso do indivíduo: por outro, o indivíduo dependente da socie­ dade. que transcende em m uito a m ultidão de indivíduos.

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U m a últim a observação advém do que se disse. Com o a vonta­ de geral é definida principalm ente p o r seu objeto, ela nào reside ape­ nas ou m esm o essencialm ente no ato especifico do querer coletivo. Hia nào é ela m esm a sim plesm ente porque todos participam dela. Os cidadãos reunidos podem chegar a uma decisào que não expresse a vontade geral. “ Tsso pressupõe", diz R ousseau, lique todas as carac­ terísticas da vontade geral ainda residem na pluralidade; quando dei­ xarem de assim ser. nào im porta o lado que se tom e. a liberdade nào será m ais possível" (ÍV. 2). P or isso a pluralidade não c condição suficiente. O s indivíduos que colaboram na form ação da vontade geral devem se esforçar pelo fim sem o qual ela nào existe, ou seja, o interesse geral. O princípio de Rousseau difere daquele que às vezes é invocado para ju stific ar o despotism o das m aiorias. Se a com uni­ dade deve ser obedecida, nào é porque ela com anda, m as porque com anda o bem com um . O interesse com um nào é decretado: ele nào existe por lei; ele c ex terio r à lei e ela só será o que deve ser se expressar o interesse com um . Por isso, o núm ero de votos é coisa secundária. “O que tom a a vontade geral é m enos o núm ero de vo­ tantes que o interesse comum que os une” (II. 4). Longos debates e deliberações inflam adas, longe de serem o m eio natural cm que a vontade geral é elaborada, “proclam am a ascendência dos interesses individuais e o declínio do E stado” (IV, 2). Q uando a sociedade está em perfeita saúde, toda essa com plicada m aquinaria c desnecessária para a confecção das leis. “O prim eiro a propô-las apenas diz o que todos já sentiram ” (IV. I). Em outras palavras, a vontade geral não é form ada pelo estado da m ente coletiva no m om ento em que a resolu­ ção é tom ada; esse é apenas o aspecto m ais superficial do fenômeno. Para com preendê-lo corretam ente, devem os olhar m ais em baixo, nas esferas m enos conscientes, e exam inar os hábitos, tendências e cos­ tum es das pessoas. Os costum es sào “a verdadeira constituição do Estado" (11, 2). A vontade geral, assim , é um a orientação de m entes fixas c constantes e atividades em um a direção determ inada, a do interesse geral. É uma disposição persistente nos indivíduos. E com o

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a própria direção depende de condições objetivas (a saber, o interes­ se gera!), disso advém que há algo objetivo a respeito do interesse geral cm si. t p or isso que R ousseau freqüentem ente fala dele com o um a fo iça que age com a m esm a inevitabilidade que a força física. Chega m esm o a dizer que é 'in d e stru tív e l'' (IV. 1). A soberania e sim plesm ente a força coletiva - tal com o estabe­ lecida pelo pacto fundam ental - a serviço da vontade geral (11, 4, início). A gora que conhecem os os dois elem entos cios quais ela re­ sulta. nào terem os dificuldade em determ inar sua natureza: 1. A soberania é inalienável, isso significa que não pode nem m esm o ser exercida por representação. “ Sem pre que se trata de um verdadeiro ato de soberania, o povo nào pode ter representantes" {Obras inéditas, ed. D reyfus, Streckeisen-M oultou, p. 47, n. 2). A soberania poderia ser alienada apenas se a vontade geral pudesse ser exercida p or interm édio de um a ou m ais vontades individuais. M as isso nào é possível, já que esses dois tipos de vontade têm naturezas dem asiado diferentes e se m ovem em sentidos divergentes. U m a se m ove em direçào ao geral, portanto à igualdade; a outra ao particu­ lar, e portanto às preferências. As duas podem estar acidentalm ente em ham onia p or um curto tempo, m as com o essa harm onia nào re­ sulta de sua natureza ela nào é garantia de perm anência. O soberano, por acaso, pode querer o que um determ inado indivíduo q u er hoje. m as que garantia pode haver de que essa harm onia ainda existirá am anha? Em sum a, com o o ser coletivo é sui generis . por ser o único de sua espécie, não pode ser representado por outro ser além de si m es­ m o sem deixar de ser ele próprio (II. 4). 2. A soberania é indivisível. Ela só pode ser dividida se um a p aite da sociedade decidir pelo restante. M as a vontade desse grupo privilegiado nào é geral; conseqüentem ente, o poder de que ela pen­ sa dispor nào é soberania. O soberano é com posto de partes, mas o p oder soberano resultante dessa com posição é um só. Em cada uma de suas m anifestações, ele nào pode deixar de ser inteiro, pois existe apenas se todas as vontades individuais entrarem nele como elem entos.

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M o n te s q cneit e R o usso.m

M as em bora seja indivisível em principio, cia nào poderia ser dividida em seu objetivo? Na b ase dessa idéia, já se disse algum as vezes que o p oder legislativo é um a parle da soberania e o executivo é outra, e que esses dois poderes parciais estào no m esm o nível. Mas isso é com o dizer que um hom em é feito de vários hom ens, um dos quais tem olhos m as não tem br aços, o outro tem braços m as nào tem olhos e assim p o r diante. Se cada um desses poderes é soberano, am bos têm iodos os atributos da soberania. São m anifestações dife­ rentes de soberania; não podem ser partes diferentes dela. Esse argum ento prova que a unidade atribuída por Rousseau ao poder soberano nào é orgânica. Esse poder não c constituído por um sistem a de forças diversas e interdependentes, mas por uma força hom ogênea, e sua unidade resulta de sua hom ogeneidade. Ela vem do fato de que todos os cidadãos devem contribuir para a form ação da vontade geral e devem se u n ir para que todos os caracteres dife­ renciais sejam elim inados. N ão há ato soberano que não venha do povo inteiro, pois. de outra form a, ele seria o ato de urna associação particular. A ssim podem os entender m elhor o que R ousseau quis di­ zer eom sua freqüente com paração da sociedade com um corpo vivo. Ele nào a concebia com o um todo formado por paites distintas, que funcionam ju n tas exatam ente p o r serem diferentes. M ais que isso. sua visão é de que ela c ou d ev e ser anim ada por uma alm a única e indivisível que move todas as partes na m esm a direção, privando-as, na m esm a medida, de todo m ovim ento independente. Essa com para­ ção baseia-se em um a concepção vitalista e substanciaüsta da vida e da sociedade. O corpo anim al e o corpo social são m ovidos cada um por um a força vital, cuja ação si nérgica produz a cooperação entre as partes. Rousseau certam ente conhecia a im portância da divisão de funções: e, m esm o a esse respeito, sua analogia se sustenta. Todavia, essa divisão de trabalhos é para ele um fenôm eno secundário e der; vativo que nào cria a unidade d o indivíduo ou o organism o coletivo, m as antes o pressupõe. Assim , um a vez que a autoridade soberana tenha sido constituída cm sua unidade indivisível, ela pode gerar

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diversos órgãos (corpos executivos) que encarrega, sob seu contro­ le, da tarefa de im plem entá-la. As partes que assim passam a existir nào sào partes, m as em anações cio poder soberano, ao qual perm a­ necem sem pre subordinadas, encontrando nele e por ele sua unida­ de. A solidariedade social, em sum a, resulta das leis que ligam os indivíduos ao grupo e nào uns aos outros. Eles sào ligados uns aos outros apenas porque estào ligados ã com unidade, ou seja, alienados dentro dela. O individualism o igualitário de Rousseau nào lhe perm i­ tia adotar um oulro pom o de vista. 3. N ão há controle da soberania. Ü soberano nào tem de res­ ponder a seus súditos (1. 7). Isso é evidente em si m esm o, já que nào há força superior à força coletiva que constitui o poder soberano. Além disso, qualquer controle seria inútil, pois '‘a vontade geral está sem pre certa e tende à utilidade pública" (II. 3). De fato. a condição necessária e suficiente da vontade geral é que cada indivíduo deseje o que pareça scr útil a iodos em geral. Ela cam inha para seu fim, ou seja. “para a preservaçào e o bem -estar do todo" {Economia política) com tanta segurança quanto a vontade pessoal do hom em natural cam inha para sua felicidade e preservação pessoal. Ela pode, ê claro, enganar-se às vezes. O que ihe parece mais útil a todos pode nào se­ lo dc fato. N esse caso, a culpa não é da vontade, m as do julgam ento. “N ossa vontade é sem pre para nosso bem . m as nem sem pre vem os qual é; o povo nunca c corrom pido, mas m uitas vezes e enganado" (II, 3). “A vontade geral está sem pre certa, m as o julgam ento que a guia nem sem pre é esclarecido” (II. 6). Os erros ocorrem particular­ m ente quando grupos especiais se form am dentro do Estado. Se eles obtêm o controle, seus m em bros buscam o que c vantajoso para um determ inado partido, associação ou indivíduo, e nào o que é vantajo­ so para todos. Os interesses particulares tornam -se dom inantes. To­ davia. a vontade geral não é por isso destruída ou corrom pida: cia é sim plesm ente “vinculada'’, ou seja, subordinada a vontades indivi­ duais. Ela perm anece inalterável e continua a cam inhar para seu fim natural, m as è im pedida de agir por forças contrárias (IV. 1).

Da lei em geral Os capítulos I a 6 do Livro II tratam do poder soberano em repouso: os capítulos 6 a 12 o consideram em m ovim ento. R ousseau passa do estático ao dinâm ico. O corpo político foi form ado; agora ele o descreverá em ação. O ato pelo qual a vontade soberana se m anifesta é a lei. Ela tem com o objeto fixar os direitos dc cada indivíduo de m odo a assegurar um equilíbrio entre as p an es que com põem a sociedade. Assim , elas são o verdadeiro objeto e a razão dc ser da organização social. Por isso, R ousseau nào hesita em cham á-las “a fonte do ju sto e do injus­ to em relaçào aos m em bros do Estado" {Economia polírica). Nào que a justiça possa ser criada arbitrariam ente, por um ato de vontade, com o H obbcs, por exem plo, pensava. “O que é bom e conform e ã ordem o é pela natureza das coisas e independentem ente das conven­ ções hum anas. Toda ju stiça vem dc D eus" (II. 6). M as essa justiça, que c im anente nas coisas, é apenas virtual; é preciso traduzi-la em ato. A lei divina c inoperante enquanto não se tom a um a lei hum ana. Essa é a função da lei. que se confunde com a do soberano; é o suprem o árbitro dos interesses individuais. M as o que exatam ente é a lei? Ela se define naturalm ente em term os da vontade geral, pois resulta da aplicação de todas as vontades ao corpo da naçào com o um todo. “Q uando todo o povo decide por lodo o povo. form a-se, entào. uma relaçào do objeto inteiro sob um ponto de vista com o objeto inteiro sob outro ponto de vista. A esse ato cham o um a lei'' {ibid.). Essa é uma nova prova de que. fundam entalm ente, apesar - 12!

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dos esforços dc R ousseau para sobrepor um ao outro, há apenas urna diferença de ponto de vista entre o árbitro e as partes, entre o corpo da sociedade c a m assa dc indivíduos. Disso resultam diversas co n se q ü ên cias:!) a lei. com o a vontade geral que expressa, não pode ter objeto individual. Ela pode criar privilégios, m as nào conferi-los a alguém em particular. Isso é o con­ trário do que sustentava H obhes: “ As leis sào feitas para Tiro e Caio, e nào para o corpo do Estado" (De Cive. XII). A razão dessa diferen­ ça é que I lobbes adm itia uma clara linha de dem arcação entre a auto­ ridade soberana e a m ultidão dos súditos. Os prim eiros, afirmava, eram externos aos últim os e im punham sua vontade a cada indivíduo. A atividade do soberano, assim , dirigia-se necessariam ente a um a pes­ soa ou pessoas situadas fora dessa atividade. Para R ousseau, em bora em um sentido a autoridade soberana transcenda infinitam ente todos os indivíduos, nào é m ais que um aspecto deles. Q uando ela legisla sobre eles. está legislando para si m esm a e o poder legislativo que exerce “ reside” neles. 2) Pela m esm a razào. a lei deve em anar de todos. Ela reúne “a universalidade da vontade com a universalidade do objeto” . O que é ordenado p o r um homem não é um a lei, mas um decreto, um ato executivo e não um ato dc soberania. 3) Com o é o corpo da naçào que legisla por si m esm o, a lei nào pode ser injusta, pois “ ninguém c injusto consigo m esm o" (11. 6). O geral é o critério do justo. Por sua natureza, o geral vai ao encontro do geral. Sào os m agistrados que pervertem a lei porque sào seus interm ediários indi­ viduais (ver a 9 a Carta da Montanha). Mas o povo sozinho nào c com petente para fazer a lei. Em bora ele sem pre deseje o bem , nem sem pre sabe o que eie é. Precisa de alguém para esclarecê-lo. Essa é a função do legislador. Ê surpreendente v er que R ousseau dá tanta im portância ao le­ gislador, que é necessariam ente um indivíduo. Parece haver uma contradição entre fazer de um indivíduo a fonte da lei quando o indi­ víduo foi apresentado com o a fonte da im oralidade. R ousseau ter: consciência disso. R econhece que a natureza hum ana em si não é

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adequada a essa função, que exige um hom em com um a com preen­ são profunda do coração hum ano e que. ao m esm o tem po, seja sufi­ cientem ente im pessoal para elevar-se acim a das paixòes hum anas e interesses individuais. Uma pessoa desse tipo só pode ser um ;‘ser extraordinário” , um a espécie de deus. que R ousseau postula, por as­ sim dizer, com o a condição necessária para a boa legislação, em bora não esteja seguro dc que essa condição sem pre esteja presente. “ Se­ ria preciso deuses para dar leis aos l.o m e n s/’ A dificuldade se deve não apenas ao fato de que essa m issão exige um gênio extraordinário, m as tam bém ã antinom ia cm que im plica. Pois para fazer leis c preciso desnaturar a natureza hum ana, transform ar o todo em parle, o indivíduo em cidadào (II, 7). Que poderes tem o legislador para realizar um a tarefa tão laboriosa? Ne­ nhum. Ele nào pode ter um a força efetiva para realizar suas idéias, pois, se tivesse, ficaria no lugar da autoridade soberana. Os homens seriam governados por um indivíduo. Por m ais sábia que um a vontade individual possa ser. ela nào pode substituir a vontade geral. “Aquele que com anda as leis não deve com andar os hom ens." Eie só pode pro­ por. Apenas o povo decide. "A ssim , na obra da legislação, encontra­ m os duas coisas que parecem incompatíveis: uma em preitada acim a da força hum ana e. para executá-la, urna autoridade que nào é autori­ dade’' (ibid). Nesse caso. como ele pode se fazer obedecer? É preciso lem brar que quando ele em preende a tarefa ainda nào há costum es sociais estabelecidos para facilitá-la. M uito provavelm ente ele nào será com preendido. 'T a ra que um povo jovem possa provar os sadios prin­ cípios da política, o efeito teria de se tom ar a causa e os hom ens teriam de ser am es da lei o que devem tom ar-se graças a ela” (ibid.). H istoricam ente, os legisladores só ultrapassaram essas dificul­ dades ao revestir um caráter religioso. A os olhos da naçào, as leis do E stado adquiriam assim a m esm a autoridade das leis da natureza, já que am bas tinham a m esm a origem . Os hom ens se inclinavam a elas, “reconhecendo o m esm o poder na form ação do hom em e na da cida­ de1' (II. 7). Assim , quando as nações se form am , a religião deve ser­ vir com o “ instrum ento” da política (ibid.. últim as linhas). Todavia,

M o n tc sq tiie u

c. R ousse.nt

R ousseau nào quer dizer com isso que, para fundar uma sociedade, basta que se façam os oráculos falarem a coisa certa. Um respeito religioso deve ser im posto, am es dc tudo. pela própria pessoa do legislador, pelo gênio pessoal que nele fala. "A grande alm a do le­ gislador é o único m ilagre que pode provar sua m issão." Talvez isso nos ajude a entender por que R ousseau não considera essas apoteo­ ses totalm ente im possíveis, m esm o no futuro. M as há outros pré-requisitos para a boa legislação. Nào basta que um legislador guie a atividade coletiva aplicada ao corpo da na­ ção. D eterm inadas condições tam bém devem existir no povo: . U m a vez que a natureza hum ana se fixa. ela nào pode m ais scr m odificada. A transform ação profunda que o legislador deve ope­ rar pressupõe que o hom em ainda esteja m aleável. Portanto, só é possível no caso de povos ainda jovens e livres de preeonceilos. M as tam bém seria um erro tentar essa transform ação prem aturam ente. Um povo dem asiado jo v em nào está pronto para a disciplina e ape­ nas um a ordem externa poderia ser im posta a cie. A ssim , há um mo­ m ento crítico que deve ser aproveitado antes que passe. Na verdade, as revoluções podem , às vezes, devolver a plasticidade à substância social ao d estruir com pletam ente os antigos m oldes. M as essas cri­ ses salutares sào raras e. além disso, para serem efetivas não podem ocorrer dem asiado tarde na história da nação, pois um a vez que as forças sociais tenham perdido sua tensão, uma vez que “a m ola civil esteja gasta”, as revoltas podem destruir o que existia sem substituí-lo. 2. A nação deve ter um tam anho norm al. Nào pode ser dem a­ siado grande, pois careceria d a hom ogeneidade sem a qual nào pode haver vontade geral. Tam bém não deve ser tào pequena a ponto dc nào poder se manter. M as o tam anho excessivo é o perigo m aior, pois antes de ludo o m ais im portante é uma boa estrutura interna, que nào pode existir se o E stado for excessivam ente extenso. N ada há de surpreendente nessa observação. Todo o Contraio Social favo­ rece o estabelecim ento de um a pequena sociedade segundo o m ode­ lo da antiga ciaade-estado da R epública de Genebra.

O.t :ci c m gcr.il

3. A nação deve "gozar de paz c abundância'' no momento em que é instituída. pois esse é um momento de crise em que o corpo político "c m enos capaz de oferecer resistência e mais fácil de destruir" (II. 10). A ssim , segundo R ousseau. a instituição da legislação c uma obra delicada, com plicada, árdua e de sucesso incerto. H preciso que, p o r um acidente feliz e im previsível, surja um legislador para guiar o povo. Com o vim os, esses indivíduos são poucos e esparsos; apare­ cem quase que por m ilagre. A nação deve ter atingido o grau ex<:to d e m aturidade e nào deve ser m uito grande: em outras palavras, p re­ cisa ter chegado ã condição interna conveniente. Se alguns desses requisitos nào for cum prido, o resultado é o fracasso. F.ssa concep­ ção c um a conseqüência lógica das prem issas de R ousseau e ao m es­ m o tem p o ex p lica seu p essim ism o h istó rico . F.mbora nào seja necessariam ente contrária à natureza, a sociedade nào surge dela naturalm ente. O desenvolvim ento de sem entes que. em bora presen­ tes. são infinitam ente afastadas do ato e a descoberta de um a forma de desenvolvim ento apropriada a elas. m as que nào entr e em conflito com as tendências m ais básicas do hom em natural, nào pode deixai- de ser um a operação muito difícil. Estabelecer um equilíbrio estável en­ tre forças que nào foram constituídas naturalm ente de modo a form ar um todo sistem ático, fazê-lo sem violência, m udar o hom em e ao m esm o tem po respeitar sua natureza, e. de fato. uma tarefa que pode exceder em m uito as forças hum anas. R ousseau nào tem por que se surpreender com o pequeno núm ero de casos em que (a seu ver) a hum anidade se aproxim ou desse ideal.

Das leis políticas em particular O objeto das leis pode ser expressar a relaçào entre o iodo c o todo, ou seja. entre o conjunto de cidadãos considerados soberanos c o conjunto de cidadàos considerados súditos. Estam os falando das leis políticas, que indicam o m odo com o a sociedade c constituída. As leis civis sào as que determ inam as relações entre o soberano e os súditos ou os súditos entre si. As leis penais são as que decretam sanções para violações às outras leis (de form a que a sancào civil se torna sançào penal). A esses ires lipos de lei Rousseau acrescenta um quarto, os costum es, m odos e acim a de tudo a opiniào pública, que para ele é a pedra fundam ental do sistem a social (II. 12. infine). Ele se refere aos m odos coletivos de pensar e agir que. sem assum ir uma forma explícita c estabelecida, determ inam a m entalidade e com ­ portam ento dos seres hum anos exatam ente com o fariam as leis for­ m ais. F. bastante interessante que cie aproxim e de tal forma o costu­ me difuso e a lei escrita. R ousseau se ocupa apenas das leis relevantes ao estabeleci­ m ento da ordem social, ou seja. as leis políticas. A ssim corno a vontade individual só pode ser m anifestada com a ajuda de um a energia física, a vontade geral tam bém só pode ser im plem entada por interm édio de um a força coletiva. Essa força c o - 227 -

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poder executivo ou verno. A ssim , o governo é um m ediador flexível entre a vontade soberana e a m assa de súditos ao qual ele deve ser aplicado, um interm ediário entre o corpo politico com o soberano e o corpo politico com o Estado. S ua função nào é fazer leis. m as zelar por sua execução. O príncipe é o conjunto de indivíduos encarrega­ dos dessas funções. A força governam ental pode. portanto, se r considerada um a m édia proporcional entre o soberano e o Estado. Em outras palavras, o soberano está para o governo assim com o o governo está para a naçào. 0 prim eiro dá ordens ao segundo, que as transm ite ao tercei­ ro. A conexão entre esses três term os é tão estreita que um im plica nos outros e nào pode variar sem provocar urna variação nos outros. Se, por exem plo, a população d e um a nação for d e / vezes m aior que a de outra, o quinhào de cada cidadão na autoridade soberana será dez vezes m enor na prim eira naçào do que na segunda. Quanto m aior essa distância entre a vontade individual e a vontade geral, de m ais força o governo precisará para conter as divergências individuais. M as quanto m ais força o governo tiver, m ais o soberano deve ter. Assim, dada a série S (soberano). G (governo) e P (povo), se P - 1 e se observarm os que S (razão duplicada) se tom ou m ais forte, pode­ mos ter certeza de que o m esm o vale para Ci. De onde se segue que a constituição do governo é relativa ao tam anho do P.stado e que não há forma única e absoluta de organização de governo (III. 1). A questão essencial sugerida pelas fés políticas reduz-se à se­ guinte: quais são as diversas form as dc governo e a quais diferentes condições elas correspondem ? Os governos sem pre foram classificados dc acordo com o nú­ m ero de pessoas que participam deles; eis corno se distingue a dem o­ cracia. a aristocracia e a m onarquia. Rousseau não se contenta em repetir essa classificação tradicional. Ele tenta basear sua classifica­ ção na natureza das sociedades e m ostrar que essas diferenças nào

D a^ leis p o lítica s cm p a rtic u la r

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são superficiais, m as enraizadas no que h á de m ais essencial na ordem social. Em prim eiro lugar, o núm ero de governantes é im portante por­ que a intensidade da força governam ental depende diretam ente dele. por duas razões: 1) O únieo poder que o governo tem é o que vem do soberano. C onseqüentem ente, seu poder não aum enta se a socieda­ de perm anecer no m esm o nível. M as quanto m ais m em bros o gover­ no tiver e quanto m ais for obrigado a usar seu poder sobre seus próprios m em bros, m enos poder lhe restará para agir sobre o povo. Assim , quanto m ais m agistrados houver, m ais fraco será o governo. 2) De acordo com a ordem natural, as vontades individuais são as m ais ativas; a vontade geral tem sem pre algo de m ais frouxo e inde­ ciso. justam ente p o r scr artificial. As outras vontades coletivas po­ dem ser classificadas entre esses dois extrem os conform e seu grau de generalidade. Por outro lado. a ordem social pressupõe um a in­ versão dessa relação, na qual a vontade geral tem prioridade sobre as outras. Assim , se o governo estiver nas m àos de um único indiví­ duo. a vontade geral do corpo governam ental, que se funde à vonta­ de individual de uma pessoa, participa da intensidade desta e atinge uni nível m áxim o de energia. E com o do grau dc vontade depende não a m agnitude, m as o uso do poder, a atividade do governo estará em seu máxim o. O oposto é verdadeiro se houver tantos governan­ tes quantos súditos, ou seja. se o poder executivo estiver unido com o poder legislativo (dem ocracia), pois só restará, então, a vontade g e ­ ral com sua fraqueza natural (III. 2). Vimos tam bém que a força do governo deve aum entar com o tam anho do Estado. Disso advem que o núm ero dc governantes de­ pende do tam anho da sociedade e por isso, de form a m ais gerai, que o núm ero de m agistrados “ deve ser em razão inversa ao dos cida­ dãos” (111,3). Assim , a força do governo, determ inada pelo tam anho do órgào governam ental, depende do tam anho do Estado.

M o n te s q u ie u c R o u sseau

Definidos esses princípios, parcce haver nada m ais a deduzir deles, exceto que l'o governo dem ocrático convém aos pequenos Estados, o governo aristocrático aos de tam anho m édio e a m onar­ quia aos grandes”. É o que diz R ousseau (ibid.), m as ele nào se limita a essas conclusões. Em vez d isso, propõe-se a com parar os diversos governos para determ inar qual o melhor. Aliás, nào há contradição no problem a que apresenta. C ada tipo de governo pode ser o m elhor para um m odo dc existência em particular. R ousseau está longe de adm itir que uma única form a pode ser apropriada a todos os países. N o Livro IÍI. cap. 8, ele prova expressam ente o contrário (que nem toda form a de governo é apropriada para todos os países). M as por oulro lado, esses diferentes tipos de governo nào satisfazem igual­ m ente as condições ideais da ordem social. Q uanto m ais perfeita­ m ente o reino coletivo reflete (em bora em form a totalm ente nova) as características essenciais do reino natural, m ais perfeita será a ordem social. Os diversos tipos d c governo atendem a esse requisito básico dc diferentes m aneiras. D adas as leis que relacionam a natu­ reza de um governo à natureza da sociedade, podem os colocar a questão da seguinte m aneira: Q uais sào os lim ites norm ais da socie­ dade para que ela seja a im agem m ais fiel possível - em bora trans­ form ada - do estado de natureza? Os princípios de Rousseau parecem perm itir apenas um a res­ posta: é na dem ocracia que a vontade gerai dom ina as vontades indi­ viduais do modo m ais satisfatório. A dem ocracia, portanto, é a forma ideal de governo. Hssc tam bém c o ponto de vista de R ousseau, em bora o ideal lhe pareça hum anam ente inatingível. “ Se houvesse um povo dc deuses, seu governo seria dem ocrático. Um governo tào perfeito nào convém aos hom ens” (III. 4). I) N ào é aconselhável que a vontade geral seja aplicada regularm ente a casos individuais: essa prática poderia levar a confusões anorm ais e perigosas. 2) O exercicio do p o der executivo é contínuo e nào é possível reunir

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co ntinuam ente o povo para tratar de negócios públicos. 3) A lém disso, a dem ocracia pressupõe condiçòcs quase im possíveis, um E stado pequeno cm que todos se conhecem , cm que haja igualdade quase absoluta c cm que a m oralidade seja elevada, porque a baixa atividade da vontade geral facilita o aparecim ento de distúrbios. R ousseau diz, com o M ontesquieu, que seu princípio é a virtude, m as em sua opinião isso é justam ente o que a tom a im praticável (ibid.). P or razões opostas, a m onarquia lhe parece o pior regim e, já que em nenhum outro o indivíduo tem m ais poder. () governo m onárquico é to n e porque tem as m enores dim ensões possíveis. Pode facilm ente frustrar a vontade geral. Entre esses extrem os está a aristocracia, que tende ao ideal dem ocrático, m as é m ais fácil de realizar. Por aristocracia ele se refere a uma sociedade em que o governo é for­ m ado por um a m inoria escolhida nela idade e pela experiência, ou p or eleição. Ele ainda distingue, é verdade, um terceiro tipo de aristo­ cracia, em que as funções de governo sào hereditárias, m as a consi­ dera um a form a anormal e ainda inferior à m onarquia. Em bora a com paração de Rousseau não deixe de se inspirar em M ontesquieu, suas conclusões sào bem diferentes das tiradas p o r seu predecessor, que preferia aquiío a que cham ava m onarquia. A razão para essa diferença reside em um a concepção diversa de sociedade. M ontesquieu concebia a sociedade cuja unidade não ape­ nas nào excluía o particularism o dos interesses individuais, com o j á o supunha e resultava dele. Para ele, a harm onia social resultava da divisão de funções e do serviço m útuo. Havia elos diretos entre os indivíduos e a coesão do todo era apenas uma resultante de todas as afinidades individuais. M ontesquieu achava que essa com unidade cra bem representada pela sociedade m edieval francesa, com plem enta­ da pelas instituições inglesas. R ousseau. por outro lado, acreditava que a vontade individual é hostil à vontade com um . “Em uni perfeito ato de legislação, a vontade individual ou particular deve ser nula” (111.

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M o n te s q u ie u c R o u ssea u

2). 0 $ cios entre indivíduos devem ser reduzidos a um m ínim o. "A relaçào social (de que traiam as leis) c a dos m em bros entre si ou com o corpo inteiro; e essa relaçào deve ser, no prim eiro caso. tào pequena, e no segundo tào grande quanto possível. Cada cidadão seria então perfeitam ente independente de todos os outros e ao m es­ mo tem po m uito dependente da cidade" (II, 12). Pois é dessa m anei­ ra que a sociedade im itará m elhor o estado dc natureza em que o indivíduo nào tem laços com outros e depende apenas dc um a força geral, a natureza. Essa cocsào é possível apenas em um a nação que se estenda p o r um a área nào m uito grande, em que a sociedade esteja presente por toda parte e em que as condições de existência sejam m uito sem elhantes para todos. Em uma grande nação, por outro lado, a diversidade dc grupos m ultiplica as tendências individu­ alistas. Cada pessoa tende a p erseg u ir seus interesses particulares c. conseqüentem ente, a unidade política só pode ser mantida com um go­ verno tào fone que substitua a vontade geral e degenere em um despo­ tismo (II. 9). 0 m esm o vale para a exclusão de grupos secundários. Toda essa teoria dc g overno se baseia em um a contradição. Dado seu princípio fundam ental. R ousseau pode aceitar apenas um a sociedade em que a vontade geral seja a senhora absoluta. T oda­ via. em bora a vontade governam ental seja individual, ela representa um papel essencial no Estado. N a verdade, "o governo (existe) ape­ nas p o r m eio do soberano" (111, 10): “sua força é apenas a força pública concentrada em suas m ãos" {ibid.). Em principio, ele deve apenas obedecer. Nào obstante, uma vez estabelecido, é capaz de uma ação própria. Precisa de “um eu particular, um a sensibilidade co ­ mum a seus m em bros, um a força, uma vontade própria que lenda à conservação” {ibid.). £ um a am eaça constante, m as é indispensável. Assim , há um a tendência a reduzi-lo ao m ínim o e ao m esm o tempo o sentim ento de sua necessidade. Isso explica a solução m édia adotada

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por Rousseau ao pôr a aristocracia acim a de todos os outros tipos de governo. O governo c um elem ento tào adventício na ordem social que as sociedades só m orrem por serem governadas. O governo é seu elem ento corruptível e corruptor. Em virtude dc sua natureza, ele “ faz um esforço continuo contra a soberania" (III. 10). Corno nào hà outra vontade individual forte o bastante para contrabalançar a do príncipe e com o a vontade geral sofre de um a fraqueza constitucio­ nal. o poder governam ental, cedo ou tarde, ficará por cim a. Essa é a ruína do estado social. “ Eis a falha inerente e inevitável que. desde o nascim ento do corpo politico. tende incessantem ente a destruí-lo" (III, 10), a causa única da deterioração gradual que necessariam ente eausa sua m orte. Esse estado m órbido pode se realizar de duas m a­ neiras. Ou. sem qualquer m udança nas condições gerais do Estado, o governo fica m ais concentrado e adquire assim um a força que nào tem relaçào com as dim ensões da sociedade, ou entào o governo, com o um corpo, usurpa o poder soberano, ou os m agistrados, com o indivíduos, usurpam o poder que deveriam exercer apenas com o cor­ po. No prim eiro caso. o vínculo orgânico entre o governo e o povo é rom pido: a associação se desintegra e nada resta além de um núcleo com posto dos m em bros do governo. Eles constituem , entào. por si m esm os, um tipo de Estado, m as um Estado cuja única relaçào com a m assa dc indivíduos é a de m estre e escravo. Pois uma vez que o acordo c quebrado, a obediência dos súditos só pode ser m antida pela força. No segundo caso, o Estado se desintegra porque tem m uitos líderes com o governantes e porque a divisão do governo ne­ cessariam ente se com unica ao Estado. Esse segundo tipo de desin­ tegração nasce da substituição da vontade geral do corpo executivo pela vontade pessoal de cada m agistrado, assim com o o prim eiro tipo resulta da substituição da vontade geral do corpo político pela vonta­ de geral do corpo governam ental (ibid.).

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M o n ie s q u ic u e R ousseau

A existência dc um govem o está cm contradição tão aguda com os princípios gerais de filosofia social dc R ousseau que m esm o sua gênese é difícil de explicar. A vontade geral, que c a fonte de toda autoridade, pode tratar apenas dc assuntos gerais; scnào. deixa de ser cia m esm a. Ela pode decidir então a form a geral de governo. M as quem deve designar os líderes? Essa operação é um ato parti­ cular e, portanto, da alçada do govem o, o qual, justam ente, deve ser constituído. R ousseau reconhece esse problem a; kiA dificuldade é entender com o é possível haver um aro de govem o antes que o go­ verno exista” (111, 17). Ele não o resolve, m as o contorna. O corpo poiítico, diz. é transform ado “p o r um a conversão súbita”, de sobera­ no que era em govem o. C onseqüentem ente, realiza atos particulares em vez de atos gerais. Esse aspecto duplo do corpo de cidadãos, que ora é poder legislativo, ora p o d er executivo, é característico da de­ m ocracia. Em outras palavras, a dem ocracia, logicam ente falando, foi um fator necessário na gênese de todos os governos. A pesar dc alguns exem plos tirados da história do parlam ento inglês, nos quais Rousseau pensa encontrar transm utações desse tipo. é difícil não considerar seu procedim ento artificial. E essa objeção pode ser gene­ ralizada. Dissem os que todos os governos, tendo caráter individual, sào contraditórios à ordem social, e que. conseqüentem ente, a única forma política livre de contradição c a dem ocracia, já que a vontade governam ental em uma dem ocracia é reduzida a nada e a vontade geral ê onipotente. M as. por outro lado, tam bém se pode d izer que. no sistem a de R ousseau. a dem ocracia tam bém c autocontraditória, pois a vontade geral pode se m anifestar apenas ao aplicar-sc a casos particulares. Pressupõe-se. assim , que ela nào é o governo. N ào fica claro por que a incom petência em todas as questões particulares, atribuídas a ela por princípio, desaparece apenas porque o corpo po­ lítico passa a ser cham ado de “govem o” e nào m ais de "so b cran o '\ Essa antinom ia vem da concepção geral de soberano com o outro

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aspecto do povo. Fica claro que nào h á lugar para um interm ediário entre dois aspectos da m esm a realidade. Por outro lado, porém , a vontade geral, por falta de um interm ediário, perm anece confinada cm si m esm a, ou seja. pode m over-se apenas em um a esfera de universais sem se expressar concretam enle. Essa m esm a concepção c conseqüência do fato de que R ousseau vê apenas dois pólos da realidade hum ana: o indivíduo abstrato e geral, que c o agente e o objetivo da vida social, e o indivíduo concreto e em pírico, que é o antagonista de toda existência coletiva. F.le nào percebe que. em bo­ ra em um sentido os dois pólos sejam irreconciliáveis, o prim eiro, sem o segundo, nào passa de uma entidade lógica. Seja com o for. um a vez que o único perigo vital para a socieda­ de reside nas possíveis usurpaçoes por parte do govem o. o principal objeto da legislação deve scr evitá-las. A ssem bléias do povo devem , portanto, ser reunidas com a m aio r freqüência possível e com regu­ laridade. sem que o governo precise convocá-las (caps. 12- i 5 e i 8). Essas assem bléias devem ser com postas pelo próprio povo e não por representantes. A autoridade legislativa nào pode ser delegada, as­ sim com o nào pode ser alienada. Leis são leis apenas se forem ex­ pressam ente desejadas pela sociedade reunida (TTI. 15). M as essas m edidas nào sào as únicas que R ousseau ju lg a necessárias. Ele indi­ ca outras a respeito das m aneiras de inferir a vontade geral a partir do sufrágio (IV, 3) e a contagem de votos nas assem bléias do povo (IV. 4). Ele tam bém defende certas instituições, com o o tribunal, cuja funçào é proteger a soberania contra o abuso da autoridade gover­ nam ental (IV, 5), a censura, cujo dever é defender as m orais e os costum es essenciais à estabilidade social (IV, 7) e a ditadura, que é invocada nas situações im previstas (IV, 6). Nào é preciso entrar nes­ ses deialr.es de organização, em prestados na m aior parte de Roma, um a circunstância que prova novam ente que o regim e da eidadeestado é de fato aqueie ao qual Rousseau se propõe a construir uma base teórica.

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M o n te sq u i v u c R o u ç s e a u

M as um hábil m ecanismo constitucional nào basta para assegu­ rar a coesão social. Com o esta resulta principal mente de um acordo espontâneo de vontades, ela nào e possível sem uma certa com unhão intelectual. No passado, essa com unhão resultava naturalmente do fato de que cada sociedade tinha sua religião, que era a base da ordem social. As idéias c os sentim entos necessários ao funcionam ento da sociedade eram postos sob a proteção dos deuses. O sistem a politico tam bém era teológico. F. p o r isso que cada Estado linha sua religião c nào era possível ser m em bro d c um Estado sem praticar sua reli­ gião. O C ristianism o introduziu um a dualidade em que só havia e só deveria haver unidade. Ele separou o tem poral e o espiritual, o teoló­ gico e o politico. O resultado foi um desm em bram ento da autoridade soberana. Entre os dois poderes opostos, assim estabelecidos, surgi­ ram conflitos perpétuos que im possibilitavam um a boa adm inistração do Estado. R ousseau rejeitava a doutrina dc Bayle, segundo a qual a religião c inútil ao Estado (Pensamentos diversos escritos a um

doutor da Sorbonne, escritos p o r ocasião do aparecim ento de um com eta cm dezem bro de 1680). “A força" que ;ias leis têm em si m esm as" nào lhe parece suficiente (IV, 8). “ Cada cidadào deve ter uma religião que o faça am ar seu s deveres" (ibid.). M as ele tam ­ bém nào adm ite a teoria proposta por W arburton cm A Aliança en­

tra Igreja e Estado (Londres. 1742), de acordo com a qual o C ristia­ nismo é o m ais forte apoio do corpo politico. A religião crisià, “ longe de iigar o coração dos cidadãos ao Estado, separa-o dele assim com o de todas as coisas da Terra" (Pensamentos diversos). É, portanto, necessário estabelecer um sistem a de crenças coletivas sob a d ire ­ ção do Estado, e apenas dele. Esse sistem a nào deve tentar reprodu­ zir o que havia na base das antigas cidades-estado, pois nào se trata de voltar àquele ponto, uma vez que ele era falso. Um retom o ao passado nào apenas é im possível com o desnecessário. N ecessário é

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que o cidadão tenha um a razào religiosa para cum prir o seu dever. C onseqüentem ente, os únicos dogm as que devem scr im postos em nom e do Estado sào os que se relacionam à ética. Tirando isso. todos devem ser livres para professar as opiniões que desejarem . O corpo político nào precisa se preocupar com essas opiniões porque nào é afetado por elas. As próprias razões pelas quais ele deve intervir na esfera espiritual m arcam os lim ites dessa intervenção. Em outras palavras, em bora um a religião civil seja necessária para afirm ar inte­ resses civis, sua autoridade nào deve se estender senão na m edida exigida por esses interesses. R ousseau conclui que a separação ilógica e anti-social entre poder espiritual e tem poral deve ser elim inada, e que a religião do Estado deve ser reduzida aos poucos princípios necessários para re­ forçar a autoridade da m oral. Esses princípios sào os seguintes: a existência de Deus, a vida futura, a santidade do contrato social e das leis. a absoluta proibição de qualquer intolerância cm assuntos nào incluídos no credo social. O Estado nào deve tolerar qualquer religião que não tolere outras religiões. Apenas o Estado pode excluir de seu corpo m em bros que julga indignos. N enhum a religião deve dizer que não há salvação fora dela.

Conclusão Estam os agora em posição de ju lg a r da perfeita continuidade do pensam ento de R ousseau desde o Segundo Disc u n o ate o Con­ traio Social. O estado de natureza. tal com o c descrito no prim ei­ ro. é um tipo de anarquia pacífica cm que os indivíduos, independen­ tes uns dos outros c sem vínculos que os unam . dependem apenas da força abstrata da natureza. N o estado civil, com o visto por R ousseau. a situação é a m esm a, em bora sob um a form a diferente. Os indiví­ duos não estão conectados uns aos outros; há um m ínim o de relação pessoal entre eles. m as dependem de um a nova forca, que e sobre­ posta às forças naturais m as tem a m esm a generalidade e necessi­ dade; a vontade geral. N o estado de natureza, o hom em se subm ete voluntariam ente ãs forças naturais e espontaneam ente tom a a dire­ ção que elas im põem porque sente instintivam ente que não há nada m elhor a fazer e que aquilo é de seu interesse. Sua ação coincide com sua vontade. N o estado civil, ele se subm ete à vontade geral não m enos livrem ente porque essa vontade geral é sua obra c porque ao obedecê-la ele obedece a si m esm o. Aqui podem os ver as sem elhanças e diferenças entre Rousseau e seus dois predecessores, H obbes e M ontesquieu. Para os três pen­ sadores. a sociedade c algo acrescentado à natureza. Na opinião de M ontesquieu. as leis do estado de natureza sào distintas das do esta­ do social, que são sobrepostas àquelas por um ato deliberado do le­ gislador. .Vias em bora haja acordo sobre esse ponto fundam ental, há

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M o n te s q u ic u e R o u sso au

profundas diferenças no modo com o os três filósofos concebcm o reino que o hom em acrescenta ao restante do U niverso. Segundo o ponto de vista de Ilobbes, a ordem social é gerada por um aro de vontade e sustentada por um ato de vontade que deve ser constantem ente renovado. A s sociedades se form am porque os hom ens se subm etem voluntariam ente a um soberano absoluto para evitar os horrores do estado de guerra e sào m antidas porque o sobe­ rano evita que se dissolvam . F. e le quem faz 2 lei. e a subm issão dos hom ens à vontade de seu soberano é 0 que constitui 0 vínculo social. F.le deve ser obedecido porque com anda. Se aceitam sua dependên­ cia. sem dúvida, é porque ju lg am proveitoso fazê-lo, m as isso nào explica todos os detalhes da organização social. U m a vez que o Esta­ do tenha sido estabelecido, é 0 chefe de Estado quem faz a lei, sem aceitar controle sobre seu poder. A visão de M ònlesquicu era bem diferente. E m bora apenas um legislador possa estabelecer a lei. ele não pode prom ulgar qualquer lei que lhe agrade. U m a lei apropriada deve estar de acordo com a natureza das coisas. Tanto quanto possí­ vel. a boa lei nào resulta de ação arbitrária, m as é determ inada pelas condições dom inantes na sociedade. Esse pode nào ser 0 caso. m as então a lei será anorm al. R ousseau talvez seja ainda m ais categórico sobre esse ponto. O sistem a social baseia-se em um a harm onia obje­ tiva rie interesses, no estado da opinião pública, nos m odos e nos costum es. As leis necessariam ente expressam esse estado de coisas. A vontade geral não pode ser representada por um indivíduo, pois ela transcende a vontade individual. As duas sào incom patíveis e um a nào pode substituir a outra. O substrato natural da opinião pú­ blica está no todo e nào em um a parte. A intenção de R ousseau nào é tanto arm ar o soberano de um p o d er coercivo suficiente para superar a resistência, quanto m oldar o espirito dos hom ens de tal m odo que a resistência não ocorra. E m bora o s três pensadores concordem que 0 social e 0 indivi­ dual sào heterogêneos, observam os um esforço crescente para enrai­ zar o ser social na natureza. M as é aí que reside o ponto fraco do

C o n c lu são

siste m a . A o p asso que. com o m o stram o s, a v id a so cial para R ousseau não é contrária à ordem natural, ela tem ião pouco em com um com a natureza que podem os nos perguntar com o ela c possível. R ousseau diz. cm algum lugar, que o respeito pela autori­ dade do legislador pressupõe um certo espirito social. M as sua obser­ vação sc aplica ainda m ais ao estabelecim ento de um a sociedade. Se. todavia, um a sociedade for form ada por indivíduos isolados, no eslado aíôm icc. nào se percebe de onde ela pode vir. Talvez, se Rousseau adm itisse um estado de guerra com o o de U obbes. pu­ déssem os entender por que. com o fito de acabar com ele. os ho­ m ens se organizaram em um corpo e chegaram m esm o ao ponto de rem odelar sua natureza original. M as ele nào pode levar adiante essa explicação porque, a seu ver, o estado de guerra c um resulta­ do da vida em com um . E assim com o ele nào consegue explicar por que a vida social, m esm o em suas form as históricas im perfeitas, pôde surgir, tem grande dificuldade para m ostrar com o ela poderia livrar-se de suas im perfeições e se estabelecer sobre um a base lógica. Seus alicerces na natureza das coisas sào tào instáveis que ela aparece com o uma estrutura cam baleante, cujo delicado equilí­ brio pode ser estabelecido e m antido apenas por um a conjunção quase m iraculosa de circunstâncias.

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Oavid Émilc D u r k h e i m

nasceu na França em 1858. K considerado o principal fundador da Sociologia mod Em sua adolescência, Durkheim pôde testemunhar inúmeros acontecimentos marcantes na História, além de conviver com intelectuais brilhantes. Filho de rabino-çhefe, preparou-sc para o bacharelado no Lycée Louis-le-Grand, o que lhe permitiu entrar para a Ecole Normale Supérieure, em 1879. Em 1872, tornou-se professor adjunto de Filosofia, ministrando essa disciplina em vários liceus da província, quando se interessou pela Sociologia. Foi para a Alemanha a fim de aperfeiçoar seus estudos, onde se deparou com o trabalho de sociólogos como Max Weber.

division d u t r a v a i l social1' p u b lic a d a cm 1893,

alcançou g ra n d e _________ z , , repercussão, chegando a ser . . . reeditada. Em Paris, foi nomeado a assistente na cadeira de Ciências da Educação da Sorbonne, em 1902, e, em 1906, com a morte do titular, assumiu como catedrático. Em 1910, conseguiu transformá-la em cátedra dc Sociologia, consolidando o status acadêmico dessa nova disciplina na maior instituição universitária francesa. Suas aulas eram acompanhadas por muitos ouvintes, tornando-se um evento de grande importância. No fim dc 1916, muito doente, não teve condiçdcs de prosseguir em suas pesquisas, vindo a falecer em 15 de novembro de 1917, na cidade de Paris.

F ilo so fia

Assim que nascemos. somos inseridos em uma sociedade com regras preestabelccidas, em que a conduta e. muitas vezes, as idéias e os pensamentos são preconcebidos na mentalidade coletiva. A maneira pela qual estamos habituados a agir foi esboçada por Montesquieu. Segundo ele, faz-se necessária uma organização; as sociedades não estão organizadas a esmo, e essa esfera do universo é governada por leis. No entanto, essa mesma sociedade, que determina a posição do indivíduo como cidadão no seu meio social, pode, na visão de Kousseau, alterá-lo, pois “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe*. Poderíamos dizer, baseando-se no legado de ambos, que ao mesmo tempo que essas normas facilitam a convivência entre os indivíduos, fere-os em sua liberdade individual c em sua pureza inata. A fim de estreitar essa dicotomia, Durkhcim discorre sobre o pensamento de Montesquieu e Rousseau, abordando os assuntos concernentes à Ciência Social, tais como moralidade, religião, vida econômica, família, etc., que são inerentes a essa sociedade e que fazem parte, ainda que não Jàm xhaiuos, de nossa relação com o mundo. FIE - fl} 3C0IC2CÍÇJ 00

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