Ponciá Vicêncio , de Conceição Evaristo

narrativa da obra. Tal atitude poderia ser vista com parte da poética e temática do livro, pois a...

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Ponciá Vicêncio , de Conceição Evaristo Contexto: - Literatura Afro descendente - Romance Afro-brasileiro Numa linha que se inicia em 1859 com o romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis e passa por Cruz e Souza, Lima Barreto, Ruth Guimarães, Carolina Maria de Jesus desaguando em autores contemporâneos, tais como Oswaldo de Camargo, Geni Guimarães, Conceição Evaristo e tantos outros. Essa linha afro-descendente tem por tendência mesclar história não-oficial, memória individual e coletiva com invenção literária na busca de traçar o painel da memória coletiva de uma raça tão excluída desde a sociedade colonial até dias atuais. Há a necessidade de se estabelecer o contraponto entre vários autores, tais como, Aluísio Azevedo, Jorge Amado, José Lins do Rego, Josué Montello, que já manifestaram como assunto principal ou secundário a figura do negro, mas que não eram escritores afro-descendentes e, portanto, não portadores dessa memória coletiva, dessa herança identitária que, por exemplo, Conceição Evaristo possui. Características da obra: O romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, publicado em 2003, traz de maneira madura e competente toda essa linha traçada anteriormente sobre o romance afro-brasileiro de uma afro-descendente. Suas principais marcas podem ser assim sintetizadas: - Romance afro brasileiro - Romance de formação, de construção da identidade da protagonista e da identidade de um povo, de uma raça - Forte diálogo entre o presente e o passado que é fio condutor do romance criando a memória coletiva de um povo, de uma raça e o conhecimento da protagonista em relação aos seus. - Romance de fortes denúncias sociais e raciais, tais como: - Crueldade do cotidiano dos excluídos: pobreza, desamparo, injustiça - Condição pós-escravidão do negro - Coronelismo - Exploração na zona rural, regime de semi escravidão - Migração do campo para a cidade - Vida nas favelas - Violência doméstica e violência social - Analfabetismo e a importância da alfabetização - Mas talvez a maior das críticas seja em relação a uma situação inter-relacional, ou seja, todas as formas de opressão contra o negro (racismo) devem ser somadas pela condição de classe

(pobres, favelados, excluídos) em que essa raça aqui é retratada e, devem ainda, serem amplificadas pela questão do gênero, ou seja, a protagonista da obra é uma mulher. Daí se configura a situação de uma mulher negra e pobre e todas as formas de opressão que condicionam sua

vida. O romance Ponciá Vicêncio, a princípio, parece não oferecer uma divisão em capítulos e sim

uma divisão baseada em fragmentos. No entanto, podemos ousar dizer que o romance está organizado em 46 capítulos, geralmente curtos. Nenhum capítulo possui título ou numeração que os identifique. A marca da divisão de um capítulo ao outro é o início de cada um onde a letra inicial do capítulo é feita em negrito num tamanho bem maior do que as outras utilizadas na continuidade da narrativa da obra. Tal atitude poderia ser vista com parte da poética e temática do livro, pois a protagonista Ponciá Vicêncio conforme vai construindo sua identidade vai simultaneamente se despersonalizando e entendendo sua condição de excluída. Daí a não nomeação dos capítulos pode ser uma referência à condição dessa personagem e de sua raça diante da sociedade. Tomando essa postura da divisão dos capítulos como uma marca importante da construção narrativa podemos observar outro detalhe importante: os fatos narrados não seguem uma ordem cronológica e sim vêm intercalados criando uma trajetória interrompida e recuperada num forte e belo diálogo entre o presente e o passado da protagonista e de sua raça. Essa narrativa feita de idas e vindas forma um verdadeiro quebra-cabeça para o leitor. Nesse processo de constante recuperação temporal podemos identificar que um dos principais recursos da construção narrativa é o flashback. Uma outra marca importante da construção narrativa é linguagem concisa, quase seca, feita de frases curtas, de poucos adjetivos e de poucas conjunções aditivas com a repetição de certas frases. Dessa concisão e da densidade de sentidos que no contexto do romance essas frases assumem podemos entender o que se costuma dizer da linguagem de Ponciá Vicêncio, ou seja, seu brutalismo poético. Ainda mais quando essa densidade de sentido revela tanta denúncia social, moral, afetiva e racial em relação à precária condição que vive a protagonista e sua raça. A narrativa é feita em terceira pessoa, mas o narrador através do discurso indireto livre nos revela constantemente o ponto de vista da protagonista e dos demais personagens fugindo à mera condição de observador. E, assim, nos dando a imensa complexidade formadora da raça retratada. Sendo assim, os personagens do romance fogem aos esquemas binários de serem bons ou maus, ou

seja,

fogem

ao

antigo

maniqueísmo

romântico.

Resumo: A seguir utilizaremos, integralmente, uma parte do estudo realizado por Flávia Santos de Araújo num trabalho de mestrado intitulado: Uma escrita em dupla face: a mulher negra em Ponciá

Vicêncio de Conceição Evaristo. Tal trabalho se configura na melhor análise realizada sobre o romance em questão e apesar do trecho citado ser extenso, sua leitura se torna indispensável para quem quiser compreender de uma maneira muita ampla os pontos mais importantes de Ponciá Vicêncio. Vamos ao trecho: “Descendente de africanos escravizados, Ponciá vive, quando criança, junto com os pais e um irmão mais velho, na propriedade rural que sempre pertencera ao Coronel Vicêncio, cujo sobrenome não só indica quem é o dono das terras, mas também das pessoas que ali vivem. A terra, pertencente a uma geração de coronéis, foi “repartida”, no passado, entre os negros recém-libertos, sob a condição de que eles – os negros – continuassem ali, trabalhando para os brancos, agora sob um regime de escravidão reconfigurado, segundo o qual a “(...) cana, o café, toda a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida” (p.82). Dessa maneira, legitima-se não somente a prática da escravização pósabolição, como também a continuidade do ciclo de opressão e exploração dos negros e negras das futuras gerações. O pai de Ponciá conhece esta verdade ainda menino, quando, na função de pajem do “sinhô-moço”, filho do Coronel Vicêncio, é obrigado a submeter-se a extrema humilhação e perversidade: [O pai de Ponciá]” Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caía escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas. (...) Se eram livres, porque continuavam ali? Porque, então, tantos e tantas negras na senzala? Porque todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos?” (p.14) As perguntas que ecoavam dentro do pai de Ponciá desde a infância são lentamente silenciadas pela rotina do trabalho forçado e também porque, sobre qualquer outro aspecto, os mecanismos de opressão procuram desenvolver estratégias que garantam o controle e a dominação do opressor sobre o oprimido, usurpando deste último qualquer vestígio de dignidade. Isto pode ser percebido, por exemplo, no próprio nome daqueles que compõem a família de Ponciá: o avô paterno, chamado de Vô Vicêncio; a mãe, Maria Vicêncio; o irmão, Luandi José Vicêncio; e a própria Ponciá Vicêncio. A marca do sobrenome do Coronel nos nomes dos descendentes dos antigos escravos da fazenda substitui a antiga tatuagem feita a ferro nos seus corpos. O exercício da opressão apenas toma contornos diferentes, porém continua marcando suas vidas. Contudo, ao registrar e reconstruir as estratégias de sobrevivência e resistência construídas por aqueles que lutam para quebrar este ciclo, a narrativa confronta e desafia o discurso que cristaliza

na escravatura - e nos seus conseqüentes desdobramentos - toda a história dos afro-descendentes. Ponciá não reconhece seu próprio nome e, através de uma postura questionadora que se manifesta já na infância, a protagonista começa a traçar o caminho à procura de si mesma: Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Pandá, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. (p.16) O vazio de Ponciá, referido inúmeras vezes ao longo do texto, toma configurações diversas. O “sentir-se ninguém”, neste contexto, é o sentimento daquela que foi desprovida de uma história e de uma subjetivação próprias, como afirma Albert Memmi, ao discutir o processo de desumanização a que é submetido o colonizado (Cf. MEMMI, 1977: 80-81). Por outro lado, esta atitude de Ponciá revela seu desejo de romper com o sistema opressor que lhe imprime uma marca até mesmo no nome: ela deseja um nome que traduza quem ela é, pois pronunciar o que lhe foi dado “Era como se estivesse lançando sobre si uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo.” (p.27). Assim, a personagem questiona sua própria história, ao mesmo tempo em que segue com sua trajetória de (re)(des)construir sua própria identidade: O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria surgido Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um nome que não tinha dono. (p.27) Burlar a dinâmica do ciclo de violência e exclusão social no qual sua história foi inscrita torna-se o sonho da menina Ponciá. Nesta tentativa, procura superar o aprendizado do pai, que só sabia reconhecer as letras, mas não podia ler. A protagonista, então, ingressa em um curso de alfabetização, promovido por missionários em visita ao povoado onde mora, interrompido, porém, quando a menina já dominava a formação das sílabas. Mas a determinação de Ponciá faz com que a leitura torne-se um desejo realizado, através de um esforço autodidata e do apoio de sua mãe que, desde muito cedo, anuncia o destino da filha: “Era melhor deixar a menina aprender a ler. Quem sabe, a estrada da menina seria outra.” (p.25). A leitura é, para Ponciá, um símbolo de conquista da liberdade, uma chave com a qual ela poderia acessar outros mundos para além do seu povoado, um saber necessário para a realização de um outro sonho: o de ir para a cidade. A vontade de deixar o povoado rural é, para Ponciá Vicêncio, mais um indício de sua resistência. Ao perceber as amarras sociais que a prendem a uma vida marcada pela miséria, pelas condições desumanas de subsistência e pela exploração material e psicológica que acompanham todas as gerações das famílias negras da roça, a protagonista decide arriscar-se na construção de um modo diferente de vida - aquele que possivelmente traria dignidade para ela e para os seus. Movida,

então, por um rompante de coragem, a jovem Ponciá apressa-se em pegar o único trem que passaria naquele mês rumo à cidade, mal tendo a oportunidade de despedir-se de seus familiares: O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça. A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou três dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao menos chupar, para que eles durassem até ao final do trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino. (p. 35) Neste pequeno trecho, evidencia-se não apenas o desejo da protagonista de transformar sua realidade, mas também a ousadia de uma mulher negra que rompe com os parâmetros racistas e patriarcais embutidos naquela sociedade. Como mulher negra, Ponciá está presa a um conjunto de aspectos que promovem a perpetuação de um sistema que submete negros e negras a uma vida sem perspectiva, a uma escravidão camuflada. Ponciá recebeu educação na convivência com a mãe, e, assim, aprendeu com ela a desenvolver tarefas domésticas e a produção de peças de barro, cuja venda traria alguma contribuição para o sustento da família. Entretanto, não é a vida junto à família que a deixa “cansada de tudo” (p. 32), e sim “(...) a luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo dia” (p. 32), uma luta exaustiva que provocara a morte de seu pai e de tantos outros. Sua intolerância à vida naquele contexto revela-se ato de resistência aos mecanismos de opressão que se efetivam na exploração racial, de gênero e de classe. Desta maneira, Ponciá decide lutar contra esta configuração hegemônica e neste ato de decidir partir e na prontidão revolucionária de sua ação reside o caráter de subversão em relação a uma realidade pré-estabelecida. Isto é visível, por exemplo, em outro momento do romance, no qual Ponciá, através da voz da narradora, expressa sua incompreensão diante do temor que as pessoas do povoado cultivavam em relação à cidade: um lugar associado a “casos infelizes” e “histórias de fracasso” (p. 32 -33) dos que se haviam aventurado por aqueles caminhos. Ponciá, então, desfaz este discurso de carga negativa e acomodação, seguindo na contramão de uma história fixada na tradição e no imaginário de sua própria comunidade. Longe de apresentar uma solução fácil e denunciando os esquemas de opressão entranhados na sociedade, a narrativa mostra, pouco a pouco, que a cidade apenas materializa outro cenário para a encenação do mesmo ciclo de miséria com o qual Ponciá tentara romper. Chega à estação de trem na mais completa solidão e tenta encontrar refúgio em uma igreja, onde se espanta por ver tantos santos “limpos e penteados”, sendo que aparentemente esses “(...) deveriam ser mais poderosos do que os da capelinha do lugarejo onde ela havia nascido” (p. 34). A observação sobre os santos nos indica que Ponciá passa a perceber diferenças também entre as pessoas dali e aquelas que freqüentavam a capelinha do povoado: “Combinavam com os santos, limpas e com os

terços brilhantes nas mãos” (p.35). Entre o espanto e a admiração, o medo e a determinação, Ponciá tenta pedir ajuda, mas nem mesmo consegue falar e sua mudez encontra eco na indiferença daqueles que a vêem com a trouxa de roupa na mão. Dessa maneira, o romance estabelece um corte na trajetória da protagonista que saíra de casa em busca de um caminho mais feliz: sua primeira noite na cidade acaba no pátio externo à igreja junto a outros indigentes, talvez mais acostumados ao frio (insensibilidade e desproteção) da cidade; nos dias que seguem, Ponciá consegue um emprego de doméstica, encaixando-se, assim, ao padrão imposto para uma mulher negra e pobre no contexto urbano; mais adiante, vai morar em barraco de favela, comprado à custa de muito trabalho e economia forçada, levando consigo sempre o sentimento insistente da ausência. Este sentimento de apartação que acompanha a protagonista por toda a narrativa é ressaltado à medida que suas perdas emocionais e materiais aumentam, de modo que não se constitui em um distanciamento apenas geográfico, mas psíquico e identitário. Ao tentar cumprir a promessa que fizera ao deixar a roça, Ponciá faz sua primeira viagem de retorno ao povoado, à “terra dos negros” como a região é denominada ao longo do romance, para buscar a mãe e o irmão. Encontra, contudo, uma casa vazia, que, mais tarde soubera, havia sido deixada: primeiro pelo irmão, Luandi, e depois, pela própria mãe. O reencontro de Ponciá com sua antiga casa, o povoado e as pessoas com quem sempre convivera metaforiza o contato com sua própria história e com a história de seu povo, até aqui representada sempre em forma de lembrança. Segue-se daí uma detalhada descrição espacial que produz o efeito de resignificar as bases sob as quais a protagonista procura recompor sua identidade: os objetos da casa de pau-a-pique (as panelas antigas de barro, o fogão a lenha, as canecas de café, o velho baú de madeira) constituem, metonimicamente, os fragmentos identitários espalhados no espaço-tempo diaspórico. A descrição do povoado resulta, igualmente, na reativação da memória de uma condição que, apesar de antiga, continuava a mesma: Depois de andar algumas horas, Ponciá Vicêncio teve a impressão de que havia ali um pulso de ferro a segurar o tempo. Uma soberana mão que eternizava uma condição antiga. Várias vezes seus olhos bisaram a imagem de uma mãe negra rodeada de filhos. De velhas e de velhos sentados no tempo passado e presente de um sofrimento antigo. (p. 48) A relação de Ponciá com o passado – individual e coletivo – e os recursos simbólicos utilizados para representá-lo são um dos principais elementos para a construção identitária da personagem ao longo do romance. Desta maneira, a estrutura narrativa fundamenta-se em diversas digressões no tempo para contar e (re)montar a história de uma comunidade e do próprio enredo, alternando, nãolinearmente, passado e presente na trama textual, como que para compor um mosaico. Esta estratégia alinha-se com uma perspectiva da reconstrução da memória e da identidade culturais que não anula as marcas históricas do passado, mas, por outro lado, não fixa neste tempo anterior ou na tradição uma fonte supostamente pura, autêntica e consensual da identidade. Antes, a construção narrativa de Ponciá Vicêncio remete a uma poética do exílio que toma corpo nos espaços

fronteiriços, sejam eles geográficos ou psíquicos; nas palavras de Homi Bhabha, “(...) um lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente (...)” (BHABHA, 2005: 24, grifo do autor). Nessa direção, o sentimento de vazio, o “profundo apartar-se de si mesma” (p. 49), que acompanha a protagonista ao longo do texto está associado a esta tentativa de reencontro com o passado-presente da memória que compõe sua própria identidade em formação, em transe, em trânsito: Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si mesma, ficou atordoada. (...) Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao redor. Via a vida e os outros se fazendo, assistia aos movimentos alheios se dando, mas se perdia, não conseguia saber de si. No princípio quando o vazio ameaçava preencher sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência, na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia do seu próprio eu. (p. 44) Além disso, este mergulho no vazio, muitas vezes recheado pelas lembranças do passado, tem profunda relação com o desejo de compreender a própria trajetória marcada por sucessivas perdas: a morte repentina do pai; o afastamento e, mais tarde, o desaparecimento da mãe e do irmão; as sucessivas mortes dos sete filhos logo após o nascimento; e, a primeira de todas as perdas, certamente a mais marcante, a morte de seu avô. Mas este ato demonstra, ainda, que o processo de identificação é móvel, fluido, pois a personagem procura reelaborar este passado no seu tempo presente e refazer esse próprio presente. Assim, mergulhada em sua memória, Ponciá passa a desprezar tudo que lhe é corriqueiro como a rotina diária, o relacionamento embrutecido com o marido e as notícias de jornal que costumava ler e colecionar quando chegara à cidade (Cf. EVARISTO, 2003: 92 – 93). Seu interesse único passa ser o “recordar a vida”, para ela também “uma forma de viver” (p. 93). O mistério na trama do romance, mencionado repetidas vezes, especialmente nos momentos de ausência da protagonista, incide sobre a herança que Vô Vicêncio havia lhe deixado. É importante perceber que todo o enredo conduz Ponciá ao encontro desta herança, anunciada pelo seu próprio pai quando da morte do avô. À medida em que a narrativa avança, a tal herança ganha novos contornos. Primeiro, ela revela-se na semelhança física entre a menina e o avô, pois ela, logo que aprende a andar, imita o jeito de caminhar do velho que vivia escondendo atrás de seu corpo o braço mutilado: Surpresa maior não foi pelo fato de a menina ter andado tão repentinamente, mas pelo modo. Andava com um dos braços escondido às costas e tinha a mãozinha fechada como se fosse cotó. Fazia quase um ano que Vô Vicêncio tinha morrido. Todos deram de perguntar por que ela andava assim. Quando o avô morreu, a menina era tão pequena! Como agora imitava o avô? (...) Só o pai aceitava. Só ele não espantou ao ver o braço quase cotó da menina. Só ele tomou como

natural a parecença dela com o pai dele. (p. 13) Depois desta pista, outra é revelada quando a menina expressa seu talento no trabalho com o barro. Ao moldar a figura de um velho encurvado, com um braço cotó para trás, a mãe de Ponciá toma um susto ao ver a enorme semelhança entre o homem de barro e Vô Vicêncio. Por não entender o mistério que ligava a menina e o avô, Maria Vicêncio contém o espanto, embrulha o objeto em palha de bananeira – como sempre fazia antes de entregar os objetos de barro ao marido, que os venderia na “terra dos brancos” – e esconde-o dentro do baú. Não obstante, o pai de Ponciá examina o homem de barro e, ao constatar que se tratava mesmo de seu pai, entrega-o para a menina, através de um gesto ritualístico: Ponciá recebe o avôbarro como se fosse uma autoridade legitimamente constituída para proteger e preservar o tesouro cultural e identitário de sua própria essência: [O pai de Ponciá] Chamou a menina entregando-lhe o que era dela. Não fez nenhum gesto de aprovação ou reprovação. Aquilo era uma obra de Ponciá Vicêncio, para ela mesma. Nada que pudesse ser dado ou vendido. Voltou às costas à filha e, entre os dentes, resmungou para a mulher que não sabia por que ela se assustava tanto. (p. 19) A figura de Vô Vicêncio, personificada no homem-barro, conserva, de uma só vez, a força da ancestralidade e o poder criativo na busca identitária de Ponciá: “A neta, desde menina, era o gesto repetitivo do avô no tempo.” (p. 63). Aqui, o trabalho com o barro liga a protagonista com sua ancestralidade africana, uma vez que a fabricação de peças e utensílios de barro ou argila foi, como é público e notório, uma das atividades características das comunidades quilombolas espalhadas por todo o Brasil. Além disso, esta sempre foi uma atividade especialmente desenvolvida pelas mulheres negras nos quilombos, mantida através das gerações nas comunidades remanescentes. O barro – signo que remete à idéia de origem, de vínculo, de raiz - materializa a história afro-descendente na trajetória da protagonista, ao mesmo tempo em que a inscreve no processo criativo de sua construção identitária no presente. Portanto, moldar o barro constitui o ato simbólico de (re)criar os sentidos da vida e da própria subjetividade, além de enfatizar a fortaleza de espírito e de corpo das mulheres, personagens da narrativa, no ato criativo como uma fonte geradora de mudanças sociais. É, ainda, a arte de moldar o barro que dá especificidade a estas mulheres, funcionando por vezes como uma assinatura, e que acaba sendo o elemento de reunião dos membros da família, como acontece, por exemplo, na passagem em que o irmão de Ponciá se emociona ao reconhecer as peças de barro da mãe e da irmã numa exposição de objetos de arte na cidade: Luandi olhava os trabalhos da mãe e da irmã como se os visse pela primeira vez, embora se reconhecesse em cada um deles. Observava as minúcias de tudo. (...) Criações feitas, como se as duas quisessem miniaturar a vida, para que ela coubesse e eternizasse sobre o olhar de todos, em qualquer lugar. (p. 106 – 107) O enigma da herança de Vô Vicêncio deixada para sua neta é, ainda, reforçado, algumas vezes, nas falas da velha Nêngua Kainda, mais um ícone da presença ancestral do povo afro-descendente. Esta personagem é descrita como uma “mulher sempre velha, muito velha como o tempo” (p. 95),

cuja voz, quase inaudível, pronunciava palavras em uma “língua que só os mais velhos entendiam” (p. 96). Sua presença na Vila Vicêncio era sinônimo de respeito e autoridade; a ela todos pediam conselhos e benção antes de tomar decisões importantes, pois ela “tudo sabia, mesmo se não lhe dissessem nada” (p. 128). Possuidora de uma sabedoria ancestral, Nêngua Kainda profetiza o destino de Ponciá, quando esta retorna ao povoado pela primeira vez, depois de anos na cidade: “(...) para qualquer lugar que ela fosse, da herança deixada por Vô Vicêncio ela não fugiria. Mais cedo o mais tarde, o fato se daria, a lei se cumpriria” (p. 60). É também a velha a quem Luandi, irmão de Ponciá, procura quando faz seu primeiro retorno à vila, de onde também fugira tempos depois que Ponciá havia partido, na esperança de realizar seu sonho de tornar-se soldado – uma tentativa de aproximação com posições de comando na hierarquia do poder patriarcal. Nesta conversa com Luandi, a velha repete a profecia sobre Ponciá e questiona o rumo que o rapaz estava dando a própria vida, afirmando que seu sentimento aguerrido deveria se voltar para a luta em defesa dos seus iguais: sua missão era reencontrar a mãe e a irmã, contribuindo, assim, para reunir os fragmentos de sua própria história. Há, ainda, no final do romance, um trecho em que Nêngua Kainda representa a guia, o braço condutor do destino de Luandi ao encontro de sua mãe na cidade, quando ele, triste com a morte de Bilisa, a prostituta por quem se apaixonara, mergulhava em um sentimento profundo de desesperança e desilusão. Através de um sonho - prenúncio da chegada de Maria Vicêncio à delegacia -, Luandi vê-se cercado por todas as mulheres que marcaram a sua vida: Vó Vicência, a mãe, a prostituta Bilisa, a irmã, Ponciá e muitas outras mulheres do povoado onde vivera - todas orientadas pela velha Nêngua Kainda que, finalmente, entregava Maria Vicêncio para ele (p. 122). Nesta visão/sonho de Luandi, a narrativa retrata uma cena que dá relevância às figuras femininas dentro da cultura afro-descendente como seres portadores de sabedoria cujo papel é, neste contexto, preservar a memória cultural através das várias gerações situadas em contextos distintos. E é neste sentido que a personagem Nêngua Kainda ocupa uma posição de destaque, uma vez que sua autoridade é símbolo do conhecimento e da riqueza cultural de um povo. A explicação para o braço cotó de Vô Vicêncio, só mais tarde revelada a Ponciá, guarda uma história marcada pela tragédia. Como muitos negros e negras do povoado, Vô Vicêncio,sua mulher e seus filhos são mantidos nas terras do Coronel como mão de obra para a lida com o canavial, fortalecendo e enriquecendo o mesmo senhor que, um dia, vende três de seus quatro filhos, mesmo estando esses supostamente protegidos pela lei do ventre-livre. Em um surto de ira e revolta contra toda a opressão a que fora submetido ao longo de tantos anos, o avô de Ponciá mata a companheira com uma foice e, ainda em desespero, decepa a própria mão, na tentativa de suicídio, que só não se concretiza por causa da intervenção dos vizinhos. Todavia, a partir deste incidente, Vô Vicêncio torna-se um homem desvairado, repetindo sempre o mesmo gesto de chorar e rir

convulsivamente, gesto que, mais tarde, o leva a morte: certo dia, Vô Vicêncio tem uma crise tão intensa de choros e risos que, esgotado, falece. A amputação de Vô Vicêncio, no contexto da narrativa, tem um forte valor simbólico que remete não somente à história da família que protagoniza o romance, mas a história da diáspora africana, marcada por exclusões, ausências, separações sucessivas, loucura, atos brutais de violência, além de perdas e mutilações identitárias e culturais. Por isso é que entendemos a repetição da imagem do homem-barro e da herança de Vô Vicêncio ao longo do texto como estratégia-chave para acessar a trajetória de deslocamentos e convergências na construção identitária e na representação da mulher negra na figura de Ponciá Vicêncio. O homem-barro feito por Ponciá produz, ainda, o efeito de presentificar a memória cultural de uma comunidade cuja preservação teria sido entregue à protagonista, como havia anunciado seu pai e Nêngua Kainda. Assim, quando Ponciá retorna pela primeira vez à antiga vila e lá se defronta com a casa onde vivera a infância, o objeto que merece mais atenção da protagonista é a estatueta de barro de Vô Vicêncio, esquecida no fundo do baú. Como não tinha conseguido encontrar-se com a mãe e o irmão – ambos tinham também partido para a cidade -, Ponciá preocupa-se apenas em carregar consigo na viagem de volta, o homem-barro que só a ela era permitido tocar. O reencontro com aquele objeto causa em Ponciá uma estranha coceira nas mãos, onde também ficara impregnado um cheiro de barro: Correu lá no fundo da casa, no seu quarto de empregada, e tirou o homem-barro de dentro da trouxa. Cheirou o trabalho, era o mesmo odor da mão. Ah! Então, era isso! Era o Vô Vicêncio que tinha deixado aquele cheiro. (...) Ela beijo respeitosamente a estátua sentindo uma palpável saudade do barro. Ficou por uns instantes trabalhando uma massa imaginária nas mãos. Ouviu murmúrios, lamentos e risos... Era Vô Vicêncio. Apurou os ouvidos e respirou fundo. Não, ela não tinha perdido o contato com os mortos. E era sinal de que encontraria a mãe e o irmão vivos. (p. 74 – 75) Além da força simbólica do homem-barro, que provoca a incômoda e inquietante comichão nas mãos de Ponciá – metáfora de seu desejo de unir o passado ao presente-, percebe-se neste trecho um exemplo de como a narrativa utiliza estratégias para acessar o universo diegético através dos sentidos. Como bem coloca Maria José Somelarte Barbosa, no prefácio do romance, a poética de Conceição é visceral, tanto na prosa como na poesia, levando o(a) leitor(a) a traçar, junto com as personagens, as complexas viagens que fazem em busca de si mesmas e os profundos questionamentos sobre o mundo ao seu redor (Cf. BARBOSA apud EVARISTO, 2003: 8). Neste sentido, é importante ressaltar que a memória de Ponciá é ativada repetidamente pela lembrança do cheiro de café e do sabor das broas de milho; pela visão do arco-íris (a “colorida cobra do ar” que a menina temia por achar que, ao passar debaixo dele, viraria menino) e pelo olhar perdido no tempo; pela capacidade da personagem de “escutar os passos do passado”; e, por fim, pela modelagem do barro. Ao mesmo tempo em que estes elementos remontam o passado histórico-cultural de origem

africana, vivenciado mais substancialmente no povoado, onde parecia que “havia ali um pulso de ferro a segurar o tempo” (p. 48), a narrativa busca também penetrar nos sentidos que movem a cidade, onde Ponciá “gastava a vida em recordar a vida” (p. 93): a visão das luzes e dos santos na catedral e o cenário degradante do barraco empoeirado; o som das músicas cantadas na igreja e das badaladas do sino; o choro de fome ou frio de uma criança da periferia; o barulho dos ratos escondidos nos cantos do barraco e o do trem na estação; o olhar de Ponciá que atravessava a janela do barraco para se perder no tempo lá fora ou aquele que fitava o marido como se não o visse. O romance de Evaristo penetra, assim, pelas vísceras de um espaço-tempo que se conjuga em uma visão caleidoscópica de duas realidades cujo pano de fundo é compartilhado na tentativa de resignificar as mutilações e ausências históricas. As andanças de Ponciá Vicêncio – suas idas e vindas no tempo, seu retorno ao povoado na tentativa de rever a família – também são acompanhadas pelos movimentos errantes de sua mãe e de seu irmão. Luandi também vai para a cidade e retorna ao povoado, tempos depois, para buscar a mãe, mas, assim como Ponciá, encontra a casa vazia. Já Maria Vicêncio vai, aos poucos, afastandose do povoado, em sucessivas idas e vindas, até que decide ir de vez para a cidade buscar os filhos. Ambos mantêm-se conectados à Ponciá, não apenas através do laço familiar, mas através do exercício de manter ativa a memória e a certeza de que em Ponciá encontrariam a “herdeira de uma história tão sofrida” (p. 130). Mais uma vez, configura-se na narrativa uma mobilidade temporal e espacial que dá início a um esquema de construção identitária articulada nos interstícios da subjetivação. As imagens do trem, do rio, do barro e do arco-íris denotam que estes processos de construção e afirmação da identidade invadem espaços intervalares; projetam-se na fronteira que divide a revisão do passado e a (re)semantização do presente; concretizam-se no ato incessante e fluido do ir e vir, nas transformações dos signos identitários. Assim, entendemos que a metáfora da casa tantas vezes encontrada vazia/abandonada por várias das personagens também parece indicar que esse não era o lugar que, de fato, lhes pertencia. A respeito dessa nova configuração de espaço- tempo, recorremos, outra vez, às colocações de Bhabha: O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entrelugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passadopresente” tornase parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (BHABHA, 2005: 27) É exatamente na perspectiva de “passado-presente” de Bhabha que as últimas linhas do romance narram o reencontro de Ponciá com sua mãe e seu irmão, cujo cenário não poderia ser outro, se não o da estação de trem. É, ainda, na cena do reencontro que podemos decifrar o cumprimento da herança que Vô Vicêncio deixara para a neta: andando em círculos “(...) como se quisesse emendar um tempo ao outro” (p. 132), levando nas mãos o homem-barro, Ponciá remonta

sua história, “(...) decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara pra trás”; e percebendo, finalmente, que “A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser” (p. 131). Reconduzida ao rio pelas mãos dos familiares, a protagonista mergulha de vez no seu estado de ausência, regado pelos risos e prantos do avô para que, assim, habitando o espaço intermediário, seja reconduzida também a presença de si mesma. Na estrutura narrativa, o fim da história de Ponciá liga-se ao seu começo pela paisagem do rio sobre o qual se dilui vagarosamente o arco-íris, fechando, desta maneira, o ciclo da trajetória da personagem, como relatado nos dois últimos parágrafos: E do tempo lembrado e esquecido de Ponciá Vicêncio, uma imagem se presentificava pela força mesmo do peso de seu vestígio: Vô Vicêncio. Do peitoril da pequena janela, a estatueta do homem-barro enviesada olhava meio para fora, meio para dentro, também chorando, rindo e assistindo a tudo. Lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (p. 132) O romance de Conceição Evaristo estabelece, dessa forma, uma relação dialógica com uma história por vezes silenciada ou relegada à margem do reconhecimento crítico, sem, no entanto, fixar uma leitura pré-determinada dos sujeitos marcados pela afro-descendência. Seu texto recoloca, sobretudo, a figura da mulher como sujeito portador dessa história: Ponciá, como mulher negra, protagoniza e recolhe em si os conflitos, as ambivalências, os processos de exclusão e as marcas de opressão que permeiam uma trajetória individual e coletiva. Além disso, traz para o interior do discurso literário, um sujeito feminino negro representado a partir da contextualização de seu lugar de enunciação, produzindo um “eu” ou um “nós” em processo. Nesta perspectiva, a narrativa de Evaristo, ao mesmo tempo em que move a identificação “mulher” em direção a múltiplos locais de redefinição contextual, cria um espaço de resistência para a reelaboração das múltiplas subjetividades e das vozes de sujeitos femininos duplamente marginalizados e oprimidos pelos diversos mecanismos do poder patriarcal e racista embutidos na sociedade brasileira.” Como se pode observar a interpretação feita por Flávia Santos de Araújo é tão brilhante que se torna indispensável sua leitura para uma compreensão crítica do romance Ponciá Vicêncio e afirmamos ainda que a leitura integral de sua tese não só se configura nessa brilhante interpretação da obra como de toda uma história da literatura afro-descendente. Finalizando o trabalho descrevemos aqui uma pequena biografia sobre Conceição Evaristo extraída com cortes de um trabalho intitulado O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo de Eduardo de Assis Duarte. Esse é um outro trabalho de referência para a compreensão crítica da autora e que em muito também ajudará na compreensão da obra: “Conceição Evaristo nasceu em 1946, numa favela situada no alto da Avenida Afonso Pena, uma das áreas mais valorizadas da zona sul de Belo Horizonte. Com o tempo, barracos e moradores foram sendo removidos, a avenida ganhou um prolongamento, novos prédios se ergueram e os

becos e vielas da infância tiveram que se alojar na memória afetiva da futura escritora. Sua mãe, Dona Joana, depois de lavar e passar a roupa das freguesas, encontrava tempo para contar histórias aos pequenos e ainda lançar muitas delas em cadernos grafados a lápis. Zelosa, a filha guarda até hoje esses escritos e recorda a dura rotina de trabalho e estudo, exigência da mãe severa, preocupada com o futuro da prole de nove filhos. Apesar de tudo, assim se fez: a menina cumpriu sua formação básica em escolas públicas da capital mineira, mas só terminou o antigo Curso Normal aos 25 anos. Pertencente a uma estirpe de cozinheiras, arrumadeiras e lavadeiras que serviram a tradicionais famílias da cidade, encontrou dificuldades imensas quando se dispôs a estudar. Muitas dessas famílias, temendo perder alguém que continuaria o trabalho de suas antigas domésticas, desencorajavam seus planos. Em depoimento, afirma a escritora: Enquanto trabalhava como doméstica e após concluir o Curso Normal, eu sonhava em dar aula em Belo Horizonte. Mas aí entra uma questão seríssima. Em 1971, não havia concurso para o magistério e, para ser contratada como professora, era necessário apadrinhamento. E as famílias tradicionais para quem nós trabalhávamos não me indicariam e nunca indicaram; não imaginavam e não queriam para mim um outro lugar a não ser aquele que “naturalmente” haviam me reservado. Houve mesmo uma patroa de minha tia, numa casa em que eu ainda menina e já mocinha ia fazer limpeza, lavar fraldas de bebês, ajudar nas festas, entregar roupas limpas e buscar as sujas, que fez a seguinte observação: “Maria, não se porquê você esforça tanto para a Preta estudar!” Logo depois, a jovem se transfere para o Rio de Janeiro, vence concurso público para o magistério, e conquista uma vaga na Universidade Federal. A escolha do curso de Letras decorre da paixão que, desde cedo, dedica à literatura: na adolescência, Jorge Amado, José Lins, Carolina Maria de Jesus e tantos outros; mais tarde, Graciliano, Rosa, Drummond, Bandeira e, também, Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Adão Ventura. Nos anos 1980, a autora toma conhecimento das atividades do Grupo Quilombhoje e da publicação, em São Paulo, da 306 Estudos Feministas, Florianópolis, 14(1): 305-323, janeiro-abril/2006 série Cadernos Negros. Esse é um momento de efervescência dos movimentos pela igualdade racial, com mobilizações nas principais capitais brasileiras. É também tempo de descoberta da escrita literária como trabalho de processamento e depuração, com rascunhos e mais rascunhos recheando suas gavetas. Em 1990, o número 13 de Cadernos Negros traz impressos os primeiros poemas de Conceição Evaristo. A vontade de aprofundar conhecimentos e aprimorar seu ofício leva a autora à pósgraduação. Evaristo ingressa no mestrado em Letras da PUC do Rio de Janeiro, onde defende, em 1996, a dissertação Literatura Negra: uma poética da nossa afro-brasilidade.4 Mais tarde, é a vez do doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, cuja pesquisa de tese contempla a produção de autores africanos de língua portuguesa em confronto com a literatura afrobrasileira. Desde então, a série Cadernos Negros vem publicando seus escritos, que logo se

destacam pela forma poética com que representa a crueldade do cotidiano dos excluídos. A mescla de violência e sentimento, de realismo cru e ternura, revela o compromisso e a identificação da intelectual afrodescendente com os irmãos colocados à margem do desenvolvimento. Dessa postura surgem personagens como Di Lixão, menino de rua e filho de uma prostituta assassinada; Ana Davenga, favelada cujo aniversário é interrompido pelos tiros da polícia; Duzu-Querença, migrante desterrada e prostituída; ou ainda como a empregada Maria, linchada pelos “pacatos cidadãos” da metrópole globalizada após escapar de um assalto num ônibus, por ser ex-mulher de um dos bandidos. A linguagem desses contos, pautada por surpreendentes irrupções de violência, distinguese, todavia, dos procedimentos de um Rubem Fonseca, por exemplo, devido à adoção daquele ponto de vista interno que, mais tarde, Roberto Schwarz saudaria como o grande mérito de Cidade de Deus, de Paulo Lins”. Exercícios Questões sobre os livros da UEL Ponciá Vicêncio 01 – “Ele dizia que as mulheres pareciam estrelas. Eram bonitas, iluminavam a noite que existia no peito dos homens. Moravam em outras terras, tinham outros modos, outros sonhos. A lembrança das duas voltou viva e dolorida dentro dele. Olhou mais uma vez o quarto onde dormiam. Esperou por alguns instantes crendo ainda que elas sairiam lá de dentro. E como isso não aconteceu, encaminhou-se em direção à saída, puxou a porta e se foi.” I – No início do trecho o Ele refere-se ao pai de Ponciá. II – No segundo parágrafo do trecho o dele ainda continua sendo uma referência ao pai de Ponciá. III – A opinião sobre as mulheres que aparece neste trecho é expressa pelo pai de Ponciá ao seu filho Luandi e ela vai ter uma importância significativa para este quando se apaixonar por Bilisa. IV – A opinião sobre as mulheres que aparece neste trecho é expressa pelo pai de Ponciá ao marido desta para que ele compreenda sua esposa e aceita as diferenças dela diante das outras pessoas. V – O dele que aparece no segundo parágrafo do trecho é uma referência a Luandi e as duas que ele esperava que saíssem do quarto seriam sua mãe e Bilisa. Assinale a alternativa que contenha apenas afirmativas corretas: I, II e IV. I, II e V. II, III e V. II e IV. I e III. 02 – “Maria Vicêncio ouviu as palavras de Nêngua Kainda e concordou. Para que desafiar o tempo, aconselhava a Velha, com a sua voz sussurro, feita mais de silêncios falantes do que de sons. O

humano não tem força para abreviar nada e, quando insiste, colhe o fruto verde, antes de amadurar. Tudo tem o seu tempo certo. Não vê a semente? A gente semeia e é preciso esquecer a vida guardada debaixo da terra, até que um dia, no momento exato, independentemente do querer de quem espalhou a semente, ela arrebenta a terra desabrochando o viver. Nada melhor do que o fruto maduro,colhido e comido no tempo exato, certo.” I – O trecho refere-se à idéia de que Maria Vicêncio deveria esperar o momento certo para ir ao encontro de Luandi e Ponciá que se encontravam na cidade. II – A personagem Nêngua Kainda que aparece nesse trecho funciona no livro como uma metáfora da religiosidade afro-brasileira. III – O trecho refere-se à idéia de que Maria Vicêncio deveria esperar o momento certo de contar ao marido que Ponciá chorava no seu ventre antes de nascer. IV – O trecho apresenta uma das marcas mais significativas de sua construção narrativa que é o uso do discurso indireto livre onde a voz do(a) narrador(a) se confunde com a voz da personagem criando assim o ponto de vista da própria personagem sobre os fatos narrados. V - A figura de linguagem usada por Nêngua Kainda para definir a importância do tempo é a metáfora. Assinale a alternativa que contenha apenas afirmativas corretas: I, II, III e V. I, II, IV e V. Todas corretas. II, III, IV e V. I, III, IV e V. 03 - ” Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caía escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas. (...) Se eram livres, porque continuavam ali? Porque, então, tantos e tantas negras na senzala? Porque todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos?” I – O pajem do coronelzinho é Vô Vicêncio. II – O tratamento que o pajem recebe do coronelzinho corresponde à condição humilhante que os negros ainda viviam mesmo com o fim da abolição. III – O trecho apresenta o recurso do discurso indireto livre. IV – O pajem do coronelzinho é o pai de Ponciá.

V – A idéia de se arribar à procura de outros lugares e trabalhos como forma de fugir dessa condição de semi-escravidão que os negros da vila Vicêncio viviam vai ser realizada pelo pajem no decorrer da narrativa. Assinale a alternativa que contenha apenas afirmativas corretas: I, III e V. I, II, IV e V. II, III , IV e V. II, III e IV. I, II e III. 04 – “Por aqueles tempos, pelo interior andavam uns missionários. Um dia a notícia correu. Eles iriam demorar por ali e montariam uma escola. Quem quisesse aprender a ler, poderia ir. Ponciá Vicêncio obteve o consentimento da mãe. Quem sabe a menina um dia sairia da roça e iria para a cidade. Então, carecia de aprender a ler. Na roça, não! Outro saber se fazia necessário. O importante na roça era conhecer as fases da lua, o tempo do plantio e de colheita, o tempo das águas e das secas. (...) O saber que se precisa na roça difere em tudo do da cidade. Era melhor deixar a menina aprender a ler. Quem sabe, a estrada da menina seria outra. Ponciá Vicêncio vencia as dificuldades. Aprendeu o abecedário, conhecia as letras em qualquer lugar. Quando o pai chegava, ficavam juntos lendo as letras na cartilha. Enquanto o saber do pai, em matéria de leitura se estacionava no reconhecer as letras, o da menina ia além. (...) Quando os padres partiram, depois de terem cumpridos todos os seus ofícios, Ponciá logo percebeu que não podia ficar esperando por eles para aumentar o seu saber. Foi avançando sozinha e pertinaz pelas folhas da cartilha. E em poucos meses já sabia ler.” I – O saber da roça e o da cidade também aparecerá no romance Inocência e a aceitação que a mãe de Ponciá tem para com o aprendizado do ler pela filha será visto no romance referido por Pereira em relação à sua filha Inocência. II – O aprender a ler de Ponciá Vicêncio poder ser visto como uma metáfora de resistência e busca de liberdade contra a condição de “escravidão” que sua gente vivia na vila Vicêncio. III – Uma das características do estilo da construção narrativa que pode ser visto neste trecho é a linguagem concisa, enxuta. Fato que pode ser observado pela presença marcante de frases curtas nos parágrafos apresentados. IV – O aprender a ler para Ponciá vai representar também um elemento de dor, pois isso lhe dará uma consciência sobre seu próprio nome e essa consciência lhe dará a noção de ter um nome que lhe tira a identificação diante de si e do mundo.

V – Luandi também aprenderá a ler com os missionários e isso lhe facilitará alcançar o cargo de policial quando chegar à cidade. Assinale a alternativa que contenha apenas afirmativas corretas: I, II, III e IV. II, III e IV. II, III, IV e V. I, III, e V. II, IV e V. 05 – Assinale V para verdadeiro e F para falso sobre as afirmativas a seguir: ( ) O trecho: “Ela tinha por hábito também de não receber a paga em certas ocasiões. Se o homem que viesse procurá-la lhe desse algum prazer, fazendo com que ela esquecesse, por momentos, os limites de sua função, de apenas proporcionar o gozo ao outro, ou se ela simpatizasse com ele, se ela gostasse dele por algum motivo, .....não cobrava. Achava que sentimento não tinha preço.” é uma referência à personagem Bilisa. ( ) “...os mecanismos de opressão procuram desenvolver estratégias que garantam o controle e a dominação do opressor sobre o oprimido, usurpando deste último qualquer vestígio de dignidade. Isto pode ser percebido, por exemplo, no próprio nome daqueles que compõem a família de Ponciá: o avô paterno, chamado de Vô Vicêncio; a mãe, Maria Vicêncio; o irmão, Luandi José Vicêncio; e a própria Ponciá Vicêncio. A marca do sobrenome do Coronel nos nomes dos descendentes dos antigos escravos da fazenda substitui a antiga tatuagem feita a ferro nos seus corpos. O exercício da opressão apenas toma contornos diferentes, porém continua marcando suas vidas.” ( ) Não aceitar seu próprio nome, aprender a ler, ir para a cidade são símbolos de resistência para Ponciá Vicêncio “burlar a dinâmica do ciclo de violência e exclusão social no qual sua história foi inscrita.” ( ) Os objetos de barro feitos por Ponciá e sua mãe, as músicas cantadas por Luandi e pelo seu pai, as garrafadas de Nêngua Kainda são símbolos da herança identitária que se construirá ao longo do romance sobre a cultura afro-descendente no Brasil. ( ) Uma das marcas do livro é a recorrência a imagens ou situações que se repetem formando símbolos importantes na construção da narrativa, tais como: a estatueta de Vô Vicêncio, o retorno à casa sempre vazia, a presença da cobra ou sua casca, o arco-íris, o braço cotó de Vô Vicêncio... Assinale a alternativa que contenha apenas as afirmativas corretas: V,V,V,F,V. V,F,F,V,V. F,V,V,V,V. V,V,V,V,F.

V,V,V,V,V Gabarito 01 – E , 02 – B , 03 – D , 04 – B

, 05 – E

COMPLEMENTO Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo Exemplo de romance afro-brasileiro, falando da identidade negra, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, vai de encontro à tese segundo a qual a escrita dos descendentes de escravos estaria restrita ao conto e à poesia. Além de estabelecer um saudável contraponto com o abolicionismo branco do século XIX e com o negrismo modernista de um Jorge Amado, um José Lins do Rego ou Josué Montello, Ponciá Vicêncio remete ao Isaías Caminha, de Lima Barreto; em menor escala, ao Brás Cubas, de Machado de Assis; e, com certeza, ao memorialismo de Carolina Maria de Jesus e ao Ai de vós, de Francisca Souza da Silva, entre outros. Em todo o romance percebe-se a prosa recheada de linguagem poética. A obra nos narra pequenos acontecimentos do cotidiano, mas o seu olhar transcende o automatismo viciado com que se observam as coisas do dia-a-dia para olhar com essência a poesia da vida. O texto de Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção. A história de Ponciá Vicêncio, contada no romance, descreve os caminhos, as andanças, as marcas, os sonhos e os desencantos da protagonista. A autora traça a trajetória da personagem da infância à idade adulta, analisando seus afetos e desafetos e seu envolvimento com a família e os amigos. Discute a questão da identidade de Ponciá, centrada na herança identitária do avô e estabelece um diálogo entre o passado e o presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginado. Descendente de escravos africanos, Ponciá surge já de início despojada do nome de família, pois o "Vicêncio", que todos os seus usam como sobrenome, provém do antigo dono da terra e era como lâmina afiada a torturar-lhe o corpo. Essa marca de subalternidade, que denuncia a ausência entre os remanescentes de escravos dos mínimos requisitos de cidadania, estende-se pelo penoso circuito de vazios e derrotas, no qual tanto a menina quanto a mulher vão sendo alijadas dos entes queridos e de tudo o que possa significar enraizamento identitário. E depois de perder também os sete filhos que gerou, Ponciá cai na letargia que a faz perder-se de si mesma. Ponciá vai em busca de dias melhores na cidade, mas acaba desterritorializada numa favela, vegetando ao lado de um marido que não a compreende. Sua descendência escrava vai se confirmando na vida difícil que leva, nos sonhos apagados pela discriminação e pela marginalização que tanto ela, quanto os outros de sua família sofrem. Sua condição social e cultural continua, portanto, sendo regida pelo passado africano. Sua trajetória do espaço rural para o urbano representa sua condição diaspórica. A passagem em que a menina faz a viagem de trem para a cidade confirma isso: O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça. A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou três dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao menos chupar, para que eles durassem até ao final do trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino. Também o irmão de Ponciá, Luandi, vai para a cidade em busca de sonhos como achar a irmã que há muito havia partido e juntar dinheiro. Sua viagem também marca a diáspora daqueles que, desterritorializados, perpetuam as histórias do navio negreiro. Luandi chega à cidade sem eira nem beira. Tinha perdido pelo caminho o endereço da irmã. Chegou num dia de chuva e frio. Trazia muita fome também. Outra personagem que embarca no trem negreiro em busca dos filhos é a mãe de Ponciá e de Luandi: Maria Vicêncio. Em um dos capítulos do livro, o narrador nos diz que ela sabia que, por mais que relutasse, um dia a cidade também faria parte de sua travessia. Não sentia desejo algum pela aventura da viagem. Se a sua vida era a da terra, em que ela vivia, o que faria longe de lá? E a viagem de Maria Vicêncio ocorre semelhante a dos filhos: Quando o trem, depois de intermináveis dias e noites, parou na estação, Maria Vicêncio esticou as pernas com dificuldade. Ficara todo tempo da viagem encolhida com a trouxa no colo, rezando suas orações. Sentiu a bexiga pesada, estava com vontade de urinar, mas o medo não permitira que ela se levantasse e fosse ao banheirinho do trem ou mesmo dos lugarejos em que máquina parava. Em Ponciá Vicêncio, a autora retoma o procedimento que arriscaria chamar de brutalismo poético ao narrar, numa linguagem concisa e densa de sentido, a vida de uma mulher oriunda do mundo rural, desde a infância até a "maturidade" desterritorializada na favela em que vegeta junto ao companheiro. A narrativa configura-se como um Bildusgsroman feminino e negro ao dramatizar a busca quase intemporal da protagonista, a fim de recuperar e reconstituir família, memória, identidade. No entanto, o ímpeto antropofágico se faz presente na postura de rasurar o modelo europeu para conformá-lo às peculiaridades da matéria representada. Assim, a apropriação feita por Conceição Evaristo ganha contornos paródicos, pois em lugar da trajetória ascendente do personagem em formação, oriunda de Goethe e tantos mais, o que se tem é um percurso de perdas materiais,

familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triunfante do herói romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma tensa passado e presente, recordação e devaneio. O interesse da narrativa cresce justamente nos gestos de resistência a esse processo de espoliação. Nele, vão surgindo as histórias dolorosas como a do pai, que, quando criança e já no período posterior à Lei Áurea, tinha que ser o pajem do filho do patrão, o cavalo no qual este montava, e até aparar com a boca o mijo do sinhô-moço... A passagem retoma de forma ampliada e crua a cena do menino Brás Cubas, de Machado de Assis, reposicionando-a num nível inédito de violência. Já o avô, suicida frustrado, decepara parte do braço e matara a própria esposa depois de ver quatro de seus filhos serem vendidos em plena vigência da Lei do Ventre Livre... Essas histórias surgem desgarradas umas das outras, e vão sendo evocadas em meio aos hiatos de racionalidade da protagonista. Formam, todavia, uma rede discursiva pela qual se recupera a memória de uma dor que é física e moral, individual e coletiva. E o corpo feito de ausências de Ponciá se recupera na arte da cerâmica, reatando no barro moldado o fio da existência. A terra, antes paliativo para a fome da menina, passa a matéria-prima para a afirmação da mulher. Ao final, o desterro na cidade grande se ameniza no reencontro com a mãe e o irmão, que parece pôr fim à errância sofrida da personagem. Herdeira da memória familiar, Ponciá Vicêncio segue os passos de Conceição Evaristo, também esta herdeira de uma forte linhagem memorialística existente na literatura afro-brasileira. Como Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, Conceição traz a narrativa dos despojados da liberdade, mas não da consciência. E a repetição insistente dessa presença desvalida nos incomoda e nos diz de uma aurora ainda à espera do sol... A fala diaspórica desses condenados da terra se articula de forma sincrônica e a posteriori, desconhecendo a encarnação do espírito de nacionali-dade que marca boa parte da literatura canônica. A força e o poder das mulheres ficam também evidenciados no romance, mesmo quando há uma aparente fraqueza ou mesmo quando as mulheres sofrem até um visível domínio, como no caso de Biliza, nas mãos do cafetão. Só a eliminação física de Biliza acaba com os sonhos e a determinação da moça. O pai de Ponciá, mesmo resmungando, tinha suas ações orientadas pela mãe de Ponciá. Nêngua Kainda, uma velha mulher, era a consciência do grupo. O romance destaca as dores, as angústias, as violências que as mulheres sofrem, a solidão que elas enfrentam, mas ao mesmo tempo mostra essas mulheres em busca da vida, exibe o eterno ato de se reconstruir que elas executam no dia-a-dia. Fonte parcial: Prof. Eduardo de Assis Duarte, Universidade Federal de Minas Gerais Exemplo de romance afro-brasileiro, Ponciá Vicêncio polemiza com a tese segundo a qual a escrita dos descendentes de escravos estaria restrita ao conto e à poesia... Em que consistiria esse romance? Se entendido como texto de autoria afrodescendente, tratando de tema vinculado à presença desse segmento nas relações sociais vividas no país, a partir de uma perspectiva identificada politicamente com as demandas e com o universo cultural afro-brasileiro e destacando ainda o protagonismo negro nas ações, em especial aquelas em que se defronta com o poder e com seus donos, não há dúvida de que Ponciá Vicêncio não só preenche tais requisitos, como ocupa o lugar supostamente vazio do romance afro-brasileiro. No entanto, o texto de Conceição Evaristo não é exemplo único e tem, sim, seus precursores. Além de estabelecer um saudável contraponto com o abolicionismo branco do século XIX e com o negrismo modernista de um Jorge Amado, um José Lins do Rego ou Josué Montello, Ponciá Vicêncio remete ao Isaías Caminha, de Lima Barreto; em menor escala, ao Brás Cubas, de Machado de Assis; e, com certeza, ao memorialismo de Carolina Maria de Jesus e ao Ai de vós, de Francisca Souza da Silva, entre outros. A narrativa de Conceição Evaristo filia-se, portanto, a esse veio afrodescendente que mescla história não-oficial, memória individual e coletiva com invenção literária, iniciado com a publicação de Úrsula, em 1859.5 O texto de Maria Firmina dos Reis, a exemplo da poesia satírica de seu contemporâneo Luiz Gama, destoa cabalmente do projeto literário romântico, empenhado na missão conservadora de unir o país assolado pelas recentes revoltas separatistas, através do reforço literário das narrativas e conceitos de nação e de identidade nacional. O texto de Úrsula, ao contrário das ficções de fundação comuns em seu tempo, recusa-se a propagar a ideologia de uma identidade nacional una e coesa, que apaga as diferenças e naturaliza hierarquias. Em vez disso, enfatiza a diferença étnica transformada em desigualdade social e subalternizada pelo escravismo. Ao colocar o negro como referência axiológica de seu texto, verdadeiro exemplo para personagens e leitores brancos; e ao inscrever senhores e escravos como "filhos de Deus" e "irmãos" perante os desígnios divinos, a escritora maranhense apropria-se da moral hegemônica para desmascarar o rebaixamento dos afrodes-cendentes. A vertente inaugurada por Maria Firmina dos Reis, contemplando o resgate de uma memória coletiva apagada pelo discurso colonial, terá seqüência, em seus diversos matizes, na prosa afro-brasileira: passa por Cruz e Souza e por Lima Barreto; por Ruth Guimarães e por Carolina Maria de Jesus; e deságua em autores contem-porâneos, tais como Oswaldo de Camargo, Geni Guimarães, Conceição Evaristo e tantos outros. Em seu conto "Metamorfose", Geni Guimarães vale-se da própria história de vida para "ficcionalizar" a autoflagelação de uma menina, que busca clarear a pele esfolando-a com o pó de tijolo moído usado pela mãe para lavar as panelas tisnadas no fogão a lenha... Num depoimento recente, a autora surpreendeu o público ao exibir as cicatrizes deixadas pela atabalhoada tentativa da criança. Sintomaticamente, o conto termina num desabafo: "só ficaram as chagas da alma esperando".6 Irmanado a essa vertente afro, o texto de Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado, sim, pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção.