A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO: SOCIEDADE , DIREITO E GARANTIAS FUNDAMENTAIS Leonardo Fernandes dos Santos Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Maringá/PR (UEM)
Não há, numa Constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular a seus órgãos. ( Rui Barbosa)
RESUMO: Um dos mais avanços na Ciência Constitucional certamente é atribuição, principalmente pós 1945, de força normativa ao texto constitucional. As Constituições deixam de ser caracterizadas como meras cartas políticas e passam a ser o centro radicular de todo o Direito moderno e pós-moderno. Fundamental para a compreensão de tal fenômeno é indubitavelmente Konrad Hesse e seu clássico “A Força Normativa da Constituição”, obra na qual é brilhantemente trabalhado a importância que desta aquisição normativa, bem como é feito uma análise crítica interessantíssima sobre Lassale e suas considerações a respeito do real poder da Constituição. Como se notará é abandonada a idéia de Constituição predominante como um jogo político, como tratado Lassale, e lhe é afirmado seu caráter normativo, bem como será analisado o mecanismo através do qual a Constituição mantém o seu império normativo mesmo diante das adversidades fáticas que impedem sua plena concreção. Tema hodierno e de vital importância também à força normativa da Constituição é a questão do abuso de emendas constitucionais e o quão prejudicial tal abuso pode ser na normatividade da Carta Magna. O tema se liga necessariamente às garantias fundamentais, uma vez que, enfraquecendo-se a Constituição, enfraquece-se toda uma série de direitos que advém de lutas quotidianas e passadas e que foram positivadas pelo texto constitucional. Finalmente, são feitas algumas pequenas considerações a respeito do método da constituição aberta de Peter Häberle e sua influência na manutenção da supremacia normatividade constitucional, uma vez que, através deste, o rol de intérpretes da Constituição é amplamente alargado e “popularizado”. PALAVRAS-CHAVE: Constituição. Força Normativa. Direitos Fundamentais. Hesse. Lassale. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Tese Da Normatividade; 3 Força Normativa e Interpretação Constitucional 4 A Crise Hodierna Do Constitucionalismo; 5 Considerações Finais; 6 Bibliografia
1 INTRODUÇÃO Um dos maiores avanços em toda a Ciência do Direito é indubitavelmente a aquisição de normatividade por parte das normas e princípios consagrados no texto constitucional. A primazia da Constituição como ordenamento jurídico supremo, principalmente no pós 2ª Guerra Mundial, trouxe uma série de mudanças
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significativas no modo de encarar o Direito, bem como modificou de maneira substancial os postulados até então tidos como basilares do ordenamento jurídico. Não há como olvidar-se também das modificações substanciais do processo hermenêutico constitucional. O trauma causado pelas Grandes Guerras, bem como o avanço de regimes totalitários, faz com que se repense o Direito Constitucional. Melhor dizendo, este é quase que recriado. O processo de normatização da Constituição, como se verá ao longo do texto, passa por mudanças profundas, percebe-se seu caráter multifacetário, passa-se analisar a Constituição sobre uma ótica normativa, mas não uma normatividade cega, e sim produto de interações entre poder/sociedade (ser) e Direito/força normativa (dever ser). Vale frisar, todavia, que esse processo não é linear nem uniforme na experiência constitucional de cada nação, aliás esta é a uma premissa importante ao analisar-se o Direito Constitucional, sua evolução e aprimoramento ocorre de maneira multiforme e arriscado é generalizar excessivamente os fenômenos constitucionais. Segundo Canotilho: A complexa articulação da «textura aberta» da constituição com a positividade constitucional sugere, desde logo, que a garantia da força normativa da constituição não é tarefa fácil, mas se o direito constitucional é direito positivo, se a constituição vale como lei, então as regras e princípios constitucionais devem obter normatividade, regulando jurídica e efectivamente as relações da vida (P. HECK) dirigindo as condutas e dando segurança a 1 expectativas de comportamentos (LUHMANN).
Konrad Hesse foi um dos teóricos de grande importância para o fenômeno normativo da Constituição. “A Força Normativa da Constituição”, obra na qual este expõe e argumenta os fatores que geram a normatividade das Constituições, bem como analisa a relação da Carta Magna com as condicionalidades históricas, sociais e políticas é marcada por riquíssimas considerações a respeito da normatividade da Constituição. Do outro lado, Ferdinand Lassalle aborda a questão de um ângulo diferente, dando ênfase maior ao jogo político do que a Constituição jurídica em si.2 Ambos os autores serão de vital importância ao artigo, visto que a problemática trabalhada por estes demonstra de certo modo a visão do locus normativo da Constituição em períodos diferentes. No Brasil, certamente a supremacia constitucional foi um pouco mais tardia, até porque esse papel primordial do texto constitucional começa, de fato (em questões de história do constitucionalismo), no pós Segunda Guerra e considerando que os anos de 1964 a 1988, no Brasil, foram marcados por um verdadeiro engessamento da ordem constitucional, quiçá a sua inexistência sob o prisma normativo, difícil, então, afirmar uma normatividade cogente dessas Constituições outorgadas, aliás, característica própria dos períodos de exceção. Não é de admirar-se que somente com a promulgação de nossa última Constituição é que pudemos assistir ao processo de seu sobreposição aos demais atos normativos infraconstitucionais. Barroso corrobora tais fatos históricos ao afirmar: A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2a. Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
2 O termo constituição jurídica será melhor explorado nos capítulos seguintes.
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das idéias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático. Seria mau investimento de 3 tempo e energia especular sobre sutilezas semânticas na matéria.
Vale ressaltar, entretanto, que como a maioria das mudanças, esta ainda se opera no país; a substituição de uma exegese cega por análises interpretativas com foco na Constituição Federal e seus ditames, inclusive ditames “programáticos”, ocorre paulatinamente e a luta pela concreção da Constituição como diploma supremo na defesa dos direitos fundamentais é gradual e quotidiana. O processo através do qual as Constituições passaram a ser o centro normativo e irradiador de todo a potência normativa foi de extrema importância para toda a ciência jurídica, principalmente o Direito Constitucional. A partir de então, passa a ocorrer o fenômeno nominado por Barroso como filtragem constitucional, ou seja, as Constituições passam a agir como verdadeiros filtros através do qual as leis e demais atos normativos devem passar (ou repassar) para que sejam válidos, sob pena de declaração de inconstitucionalidade ou até mesmo de incompatibilidade. Ocorre, então, uma verticalização hierárquica e as Constituições passam a ocupar o topo dessa pirâmide hierárquico-normativa. Esse processo de supremacia constitucional, que segundo vários teóricos teve início com o clássico julgado Marbury vs. Madison4 da Suprema Corte Americana, foi essencial a todo o desenvolvimento das modernas teorias de controle de constitucionalidade. A própria supremacia constitucional é imanente aos sistemas democráticos que utilizam a Constituição rígida como centro irradiador do Direito. Barroso assim dispõe: A supremacia da Constituição e a missão atribuída ao Judiciário na sua defesa têm um papel de destaque no sistema geral de freios e contra-pesos [...]. É que, através, da conjugação desses dois mecanismos, retira-se do jogo político do dia-a-dia e, pois, das eventuais maiorias eleitorais, valores e direitos que ficam protegidos pela rigidez constitucional e pelas limitações materiais ao poder de 5 reforma da Constituição.
No Brasil, é a partir da Constituição de 1988 que se evidencia de maneira mais manifesta o processo de afirmação da Constituição como diploma jurídico supremo. Os anos seguidos de ditadura militar e a edição de Cartas Constitucionais eivadas de uma incontestável ilegitimidade talvez possam ser apontados como motivos para este retardo. Como conseqüência, temos ainda um processo de constitucionalização do Direito infraconstitucional, bem como das decisões do Poder Judiciário, até então impregnadas de um excessivo apego aos ditames da lei, olvidando-se de princípios básicos norteadores da moderna hermenêutica constitucional e do próprio Direito em si. O próprio Supremo Tribunal Federal começa a rever seus entendimentos até então majoritários e tem feito uma análise mais humanística-integradora da Carta Magna, eis que princípios como a presunção de inocência, “novas” modalidades conjugais, como a união homoafetiva, e a
3 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5.. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.01. 4 Em 1803, no julgamento do caso supra, o Presidente da Suprema Corte Americana, John Marshall, defendeu a hipótese da supremacia constitucional e de que as normas que com ela contrastassem eram nulas. “ Assim, a particular fraseologia da Constituição dos Estados Unidos confirma e fortalece o princípio, que se supõe essencial a todas as Constituições escritas, de que toda lei que contraste com a Constituição é nula”. 5 BARROSO, op.cit., p.167.
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entrada dos tratados internacionais sobre direitos humanos com força de emenda constitucional (e a constitucionalidade, então, da prisão civil do depositário infiel face ao Pacto de San José, por exemplo), tornaram-se mais presentes nas preocupações jurídico-institucionais desta Corte. Segundo Hesse, a visão predominante antes de 1945 era de uma Constituição tão somente como fatores reais de poder. A lógica da nãonormatividade, nas palavras de Hesse , seria: Se as normas constitucionais nada mais expressam que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e 6 comentar os fatos criados pela Realpolitik.
Lassale7, de certo modo, corroborava a tese da ausência normativa do texto constitucional, eis que dava predominância ao jogo político. Todos os países possuem ou possuíram sempre, e em todos os momentos de sua história, uma Constituição real e verdadeira. A diferença, nos tempos modernos – e isto não deve ficar esquecido, pois tem muitíssima importância –, não são as constituições reais e 8 efetivas, mas sim as constituições escritas nas folhas de papel.
Como se infere da tese da não-normatividade, as Constituições eram vistas como meras Cartas Políticas, como um jogo de relações de poder, na qual o poder da força sempre seria superior, a normatividade cederia sempre aos fatos, operando, ainda nas palavras de Hesse, a transformação da ciência jurídica constitucional em uma ciência do mundo do ser e não do dever ser. Assim, a Realpolitik, adotando uma visão estrita do que seria a Realpolitik, determinaria todas as relações político-jurídicas, não havendo, nesse modelo de pensamento, espaço para o Direito, enquanto força cogente da norma constitucional, eis que este, como se sabe, opera no plano do dever ser. Certamente, não há como negar a presença do caráter político de uma Constituição, aliás, é processo político que a origina, bem como modela seus aspectos mais relevantes, positivando, assim, uma série de lutas na busca e afirmação de direitos e, às vezes, infelizmente, de privilégios. Portanto, é certa a presença de um germe político nessa reprodução da normatividade e isso está bem longe de afastar a normatividade de uma Constituição, ao contrário, assegura-a, na medida em que conseguir reproduzir anseios fundamentais de uma sociedade, não ânseios momentâneos, mas sim aqueles que foram/são objetos de luta e reconhecimento na concreção e reconhecimento de direitos dentro de um dado momento histórico.
2 A TESE DA NORMATIVIDADE
6 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p.11. 7 As posições divergentes de Lassale e Hesse, como se perceberá adiante, também tem uma origem histórica, que, de certo modo, explica a visão de ambos. Lassale estava sob os moldes de uma visão de Estado típica do século XIX, ao contrário de Hesse que estava sobre a égide do século XX, o que implica e justifica essas visões. 8
As citações de Lassale não referenciadas expressamente são parte do texto “ A Essência da Constituição”.
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A questão envolvendo a normatividade do texto constitucional não esvazia a importância que tem a realidade. Aliás, essa é parte integrante inclusive da normatividade, uma vez que é essencial para a própria existência e vigência de uma Constituição. Como bem dispõe Bachof, a permanência de uma Constituição depende primordialmente da sua adequação diante da “missão integradora que lhe cabe face à comunidade que ela mesma constitui.”(BACHOF,1994: I 1) A vigência da norma constitucional vive conjuntamente com os fatores históricos, sociais, econômicos e políticos que a integram, ocorre uma relação de autonomia interdependente entre ambas. Segundo Hesse, ainda deve ser levado em conta o substrato espiritual presente no respectivo povo, ou seja, uma série de fatores subjetivos: “[...] as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas”. ( HESSE, trad.1991 : 15) Há, portanto, uma integração coordenada entre realidade e Constituição, entre ser e dever ser. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas[...]. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas[...]. A “Constituição real” e a “Constituição Jurídica” se condicionam mutuamente, mas 9 não dependem, pura e simplesmente, uma da outra.
Como se nota, para o autor supra, não há como abandonar o fator realidade do âmbito da Constituição, entretanto o caráter da realidade não pode ser usado como argumento, como faz Lassale, para tornar a Constituição uma mera folha de papel. Lassale, então, vê a questão da normatividade do texto constitucional muito mais na chave do poder do que na do Direito, enquanto Hesse mescla ambos os institutos, estabelecendo que a aquisição da força normativa caminha justamente na medida em que a pretensão de eficácia que a Constituição adquire no mundo da realidade se realiza. Segundo Iacyr de Aguilar Vieira, analisando a obra de Lassale: As constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os valores que imperam na realidade social. Uma constituição escrita pode ser boa e duradoura quando corresponder à Constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país. Caso contrário, irrompe inevitavelmente um conflito impossível de ser evitado e no qual a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá, necessariamente, perante a 10 Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do País.
De modo contrário, como já foi dito, Hesse consegue mesclar o fator “ser” e o fator “dever ser” no âmbito da normatividade. Assim: Toda Constituição, ainda que considerada como simples construção teórica, deve encontrar um germe material de sua força vital no 9 10
HESSE, op. cit., p. 15. VIEIRA, Iacyr de Aguilar. A Essencia da constituição no pensamento de Lassalle e de Konrad Hesse. Revista de Informação Legislativa, v.35, nº 139, p. 71-81, jul./set. de 1998. Disponível em:
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tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional, necessitando apenas 11 de desenvolvimento. (HUMBOLDT apud HESSE)
Verifica-se, assim, a importância desse “germe material”, uma vez que é este que garantirá a existência e eficácia da normatividade do próprio texto constitucional. Logo, não há como uma Constituição ignorar a cultura, os princípios políticos e sócioeconômicos que regem a sociedade na qual esta imperará. Isto não quer dizer que a Constituição não possa fazer esforços no sentido de iniciar um processo que levará a modificação de culturas dominantes. Exemplificando: nada impede que a Constituição indiana pregue a igualdade de pessoas e, conseqüentemente, o fim das castas, e se estas continuam faticamente existindo, isto não se configura um sinal de que a Carta Magna seja letra morta, mas sim de que já existe um reconhecimento no plano do dever ser dessa igualdade e tal reconhecimento é um grande impulso na busca de que tal igualdade se materialize, o reconhecimento de direitos é uma injeção de ânimo gigantesca pela luta no âmbito fático-social. Aliás, é essencial para a força normativa da Constituição que ela incorpore, de maneira meticulosamente ponderada, a estrutura contrária, eis que esta possui sim poder de modificação da realidade, principalmente através da imposição de tarefas e através das próprias normas programáticas, que hodiernamente são vistas como “enunciados” dotados de normatividade. Como já foi dito, Hesse defende que a Constituição abarque não somente os enunciados sócio-políticos e econômicos dominantes, mas também o estado espiritual do momento histórico em que esta é elaborada, só assim garantirá “o apoio e a defesa da consciência geral”. Outro importante fator citado por Hesse é o fato de que a incorporação no texto constitucional de interesses particulares e momentâneos é atividade danosa à normatividade deste, uma vez que isto leva a necessidade de constante revisão constitucional e tais mudanças interferem no grau de eficácia do texto constitucional: “A freqüência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantalidade, debilitando sua força normativa. A estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição”. (HESSE,trad. 1991: 22). Trataremos mais pormenorizado da questão das emendas constitucionais em trechos seguintes. Em suma, vê-se que de modo mais meticuloso do que Lassale, Hesse faz uma coordenação entre o fator social, o ser, e o fator jurídico, dever ser. Logo, a Constituição jurídica não é mera folha de papel, como dispunha Lassale, mas sim uma interação coordenada entre a Constituição social e Constituição jurídica, que se encontram justamente na correlação acima dita.
3 FORÇA NORMATIVA E INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Ao tratarmos da força normativa da Constituição se faz necessário tratar também da problemática que envolve a interpretação da Constituição, eis que é essencial à preservação da referida normatividade o processo de controle de constitucionalidade das inovações que se dão à ordem jurídica tanto infra como constitucional. As Constituições pós 1945 exercem papel fundamental na defesa dos direitos fundamentais. Aliás, este é um dos elementos mais ricos na defesa da força 11
HESSE, op. cit., p. 17.
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normativa da Constituição, o caráter de proteção que estas oferecem na concreção e defesa daqueles direitos de que dada sociedade, dentro de suas condicionalidades históricas, sociais, políticas e econômicas definiu como fundamentais. Assim, mais importante neste momento do que o debate sobre a existência ou não de direitos naturais e, conseqüentemente, fundamentais, é ter a noção de quais direitos uma certa sociedade eregiu como fundamentais dentro de seu momento histórico, afinal, são estes que ganharão a proteção das respectivas Cartas Magnas, bem como do direito supralegal (não limitando tal conceito necessariamente ao conceito de direito natural). Não se pretende aqui discorrer à respeito dos métodos hermenêuticos utilizados na interpretação da Constituição, mas sim de situar a importância que estes ganham no processo consolidatório da normatividade constitucional. A idéia da interação entre sociedade e Direito, entre Realpolitik e força normativa ganha aqui também proporções importantes. Como se sabe, no processo hermenêutico constitucional, os métodos clássicos de Savigny recebem novas faces, mas não são completamente ignorados. Apesar da existência de métodos propriamente constitucionais, esses métodos clássicos ainda se revelam de grande importância para o processo interpretativo da Constituição. Aliás, no que se refere à hermenêutica vale a lição de Carlos Maximiliano12, na qual este bem preceitua que se deve evitar os extremos, ou seja, “o excessivo apreço ou o completo repúdio”. Como já foi dito, o advento das Constituições normativas, ou como alguns chamam de Constituições com força normativa autônoma, trouxe mudanças importantes no modo de como se “executa” a força normativa da Constituição perante os demais diplomas legais de caráter infraconstitucional. Desenvolveu-se uma série de princípios que a partir de então tem orientado a criação jurisprudencial do processo interpretativo constitucional, entre os quais citamos os da supremacia constitucional, da proporcionalidade, da interpretação conforme a Constituição, da unidade, razoabilidade, efetividade, entre outros. No Brasil, conforme acima exposto, o processo de interpretação constitucional, tomando como base a força normativa da Constituição, ainda é recente, afinal, desde 1988 para cá, pouco tempo, usando proporções históricas, passou-se. A mudança de mentalidade hermenêutica do Supremo Tribunal Federal também aos poucos foi adaptando-se ao ápice da Constituição na pirâmide da estrutura normativa, não que tal não se desse, mas a grande ampliação dos direitos fundamentais fez com que se repensasse o “interpretar da Constituição”. Ainda hoje vão se configurando paulatinamente novas visões jurisprudenciais que têm levado a mudanças importantes na defesa da normatividade da Constituição, bem como na concreção dos direitos e garantias fundamentais. Exemplo se faz à questão relativa ao mandado de injunção, que vem ganhando a feição concretista que se esperava de tal instituto. Alguns métodos ainda merecem atenção especial. Adentrando em uma questão de cunho cultural, Peter Häberle ganha destaque na seara de interpretação constitucional ao dispor sobre o método de interpretação aberta. Há, assim, para Häberle, a existência de um certo arquétipo que condiciona a teoria da Constituição por parte do Ocidente e é composto por uma série de fatores que criariam um standard daquilo que a sociedade ocidental toma como mínimo para a Constituição, como por exemplo o princípio da soberania popular. A Constituição é vista sob um prisma cultural, no qual a ela sedimentaria uma série de proposições que ao longo da experiência cultural (e se fez necessário atentar que esse “cultural” não limita a Constituição somente à experiências políticas, no sentido estrito dessa palavra) do
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MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
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Ocidente foram desenvolvidas. A respeito do método da Constituição Aberta dispõe Bonavides: Um dos métodos de interpretação das Constituições que a tópica mais de perto influenciou nos dias atuais foi o método concretista da ‘Constituição Aberta’, teorizado por Peter Häberle [...]. De certo modo, Häberle levou a tópica às últimas conseqüências, mediante uma série de ‘fundamentações’ e ‘legitimações’ [...]. Todas resultantes da democratização do processo interpretativo, que já não se cinge ao corpo clássico de intérpretes do quadro da 13 hermenêutica tradicional mas se estende a todos os cidadãos.
Na visão da Constituição Aberta, é que a partir do momento que esta passa a ser vista sob um prisma de predominância cultural, o papel do intérprete é o que sofre a mais importante modificação, pois além da adequação do preceito constitucional à realidade cultural e, por conseguinte, às condicionalidades históricas, econômicas e sócio-políticas, a pessoa do intérprete se amplia e toma feições plurais, ou seja, a sociedade passa a ser vista como intérprete de grande influência. As forças plurais de determinada sociedade passam a compor o processo hermenêutico, entrando na própria Constituição, tendo em vista a feição culturalista de Constituição defendida pelo autor. Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo, diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o 14 monopólio da interpretação da Constituição.
O método de Häberle insere, então, a sociedade como participante não só indireta, mas também direta na hermenêutica da Constituição, uma vez que todo a carga cultural desta é essencial no próprio entendimento da Carta Magna, bem como nas diretrizes que os hábitos culturais vão influenciando o enxergar da Constituição pela sociedade e seu reflexo direto nos Tribunais. Parece difícil de negar que realmente a carga cultural de determinada sociedade não venha, de fato, a influenciar no interpretar da Constituição. O mais interessante é que a força normativa desta não se perde, uma vez que Häberle vê o elemento normativo como ente autônomo, mas que faz parte da realidade, assim sendo, o elemento normativo ao mesmo tempo em que é autônomo é constitutivo dessa realidade social. Vale citar, no entanto, que esse pensamento recebe alguns “poréns” de doutrinadores justamente na questão que se refere à força normativa . Segundo Bonavides: O bom êxito da moderna metodologia ficará porém a depender de um não- afrouxamento pelos órgãos constitucionais judificantes na medida em que estes fizerem uso dos novos instrumentos hermenêuticos, nascidos da maior necessidade de adequação da Constituição com a realidade, bem como do dinamismo normativo
13 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 509. 14 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. p.15. Porto Alegre, Sérgio Fabris, Editor, 1997.
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do Estado social, 15 democrática.
o
que
constrói
o
futuro
da
sociedade
Como se nota, havendo a manutenção do poder normativo que a Constituição adquiriu, o método de Häberle se mostra um tanto quanto interessante e até mesmo inovador neste sentido, pois mais do que Lassalle- que previu a questão da influência política nas relações da Constituição com a normatividade, mas enfraquecendo esta última- Häberle amplia para o critério cultural, sem necessariamente tolher a característica normativa. A sociedade democrática realmente cria novas necessidades e dessas novas necessidades não escapa o Direito e suas peculiaridades hermenêuticas. Assim, equilibrar sociedade e Direito, dentro de um processo hermenêutico da Constituição, talvez seja um dos desafios da ciência jurídica do século XXI. 4 A CRISE HODIERNA DO CONSTITUCIONALISMO
O período por qual passa o constitucionalismo hodierno é, sem dúvidas, de grandes questionamentos. O crescimento das ondas de violências, bem como o acontecimento de Guerras na busca da “democratização do mundo” têm levado vários governos a atitudes de enfraquecimento das Constituições em nome de uma pseudo-segurança. O discurso falacioso que as garantias e direitos fundamentais estariam funcionando como um empecilho ao combate dos males do século XXI tem, incrivelmente, garantido o sucesso a uma série de ameaças ao Estado Democrático de Direito e à estabilidade normativa das Constituições. Esquecem-se que é intrínseco ao ao Estado Republicano Democrático de Direito que o respeito aos direitos fundamentais esteja acima de qualquer idéia de “segurança coletiva”. Não há estado emergencial que justifique qualquer medida que desrespeite os direitos humanos, por exemplo. O afrouxamento destas garantias, por menor que seja, é cancerígeno à democracia. Aceitar que se ocorra uma situação de embora vigência dessas garantias constitucionais, sua não-concreção em nome de diversos fatores que justificariam tal medida, como a segurança e o combate à criminalidade, é aceitar um Estado de exceção contínua. O avanço de correntes, como o Direito Penal do Inimigo- que pregam rigorismo da lei e limitação/eliminação de preceitos básicos da ordem jurídica colaboram mais ainda para este período obscuro do Direito. Como não citar o exemplo da proposta já discutida e de constitucionalidade bem duvidosa que pretendia vedar o uso de habeas corpus para determinados crimes, enfraquecendo um dos remédios jurídicos mais importantes de todo o constitucionalismo moderno e de origem Não cabe ao Direito regredir ao período do pânico, os direitos fundamentais devem ser observados e concretizados em nome da própria existência da ordem jurídica, visto que toda ela se abala e deterioriza com a existência de “produtos” jurídicos encomendados, muitas vezes, pela mídia (e outros interessados nessa deturpação), e vendidos a uma sociedade assustada. A força normativa da Constituição embute a idéia de uma Constituição que consiga concretizar os meios mínimos de defesa das garantias fundamentais, uma vez que estes são essenciais ao germe material que inicia toda a fermentação normativa do texto constitucional.
15 BONAVIDES, op. cit., p. 517.
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Afinal, a defesa das garantias fundamentais e a da Constituição se amoldam no mesmo campo de batalha, atuam, assim, coordenadamente. O Direito e as Constituição não podem se render ao medo, a ordem jurídica estável e a garantia dos direitos fundamentais são até hoje a melhor forma de combate a qualquer dos males sociais. No mais, o uso excessivo do Poder “Constituinte” Reformador deve ser evitado. A Constituição não deve ser emendada pelas meras passagens de humores que tomam conta da mídia de tempos em tempos. O processo de reforma constitucional deve envolver um processo sério e maduro cujas reformas se façam imperiosas a boa marcha do Direito, bem como as novas necessidades que, de fato, tornem-se úteis à sociedade. A força normativa da Constituição se abala com essas reformas excessivas e desnecessárias, uma vez que a Constituição perde unidade, bem como a confiabilidade de só ser emendada em casos realmente necessários e aqui, mais do nunca, dever-se-á optar pelo bom senso e pela proporcionalidade a fim de evitar, por um lado, o engessamento da ordem jurídica e, do outro, seu afrouxamento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A aquisição de normatividade pelas Constituições no pós Segunda Guerra é fato de importância ímpar em toda a história do Direito e da própria política enquanto ciência. Procurou-se ao longo deste texto tratar das visões mais consideráveis em relação à temática Constituição e sua força normativa, passando pelo clássico “ A Força Normativa da Constituição” de Konrad Hesse, bem como “ A Essência da Constituição” de Lassale. As obras supracitadas, bem como as demais levadas em consideração neste artigo, abordam de maneira bem rica a problemática envolvendo a normatividade constitucional. De qualquer modo, nota-se que Constituição sem normatividade não é Constituição, não passa de mera carta política, cujo cumprimento não passaria de mero ato discricionário daqueles que periodicamente viessem a ocupar o poder. A existência de uma Constituição enquanto diploma jurídico supremo de determinada nação-Estado é vinculado diretamente à necessidade de que esta possua o poder normativo que vincule toda a ordem jurídica estatal, assegurandose uma série de direitos e, mais importante do que isso, assegurando-se o direito a ter direitos e direito de lutar por estes. Todavia, não há como negar a importância daquilo que Lassale se referia de Constituição política, é inegável a co-existência de ordens de poder não somente ideais (dever ser), porém tais ordens constitucionais (Constituição jurídica e Constituição de poder) existem não de maneira paralelas, mas de maneira coordenada, ocorrendo, assim, uma coordenação indissociável entre o dever ser, Constituição jurídica, e o ser, Constituição “real”, apesar da imprecisão do termo real, eis que a Constituição real é nada mais nada menos do que justamente essa interação coordenada que já nos referimos. É justamente aqui que se faz essencial repetirmos o pensamento de Humboldt ao citar com extrema perícia o germe material necessário a toda Constituição jurídica, pois a reprodução deste germe é que dará o substrato material à Carta Magna, bem como o óleo que fará com que a engrenagem desse sistema coordenado garanta a força normativa constitucional. Reportamo-nos novamente a Hesse para melhor frisar o pensamento acima:
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A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realiade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) [...] Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada necessariamente a parte mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição. Somente quando esses pressupostos não puderem ser satisfeitos, dar-se-á a conversão dos problemas constitucionais, enquanto questões jurídicas, em questões de poder. Essa constatação não justifique que se negue o significado da Constituição jurídica: O Direito Constitucional não se encontra em contradição com a natureza da Constituição.[...] A íntima conexão, na Constituição, entre normatividade e a vinculação do direito com a realidade obriga que, se não quiser faltar com seu objeto, o Direito Constitucional desse condicionamento da normatividade. [...] A concretização plena da força normativa constitui meta a ser almejada pelo Direito Constitucional. Ela cumpre seu mister de forma adequada não quando procura demonstrar que as questões constitucionais são questões de poder, mas quando envida esforços para evitar que 16 elas se convertam em questões de poder.(grifo nosso)
Logo, deve o Direito Constitucional buscar a preservação e ampliação daquilo que se poderia denominar “vontade da Constituição”, pois se trata de procedimento sine qua non à manutenção da normatividade constitucional, imperioso se faz ressaltar, no entanto, que tal vontade inclui obviamente o germe material que guia toda a produção e hermenêutica constitucional no intuito de concretizar a Constituição. Outrossim, não deve, sob pena de o Estado Democrático de Direito ceder ao Estado de Exceção, a Constituição aceitar qualquer forma que implique no enfraquecimento dos direitos e garantias fundamentais, são justamente estes os maiores garantidores da normatividade suprema do texto constitucional e responsáveis pela mitose deste poder normativo. 6 BIBLIOGRAFIA HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. ______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: Acesso em: 20 set. 2007. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Livraria Almedina, 1994. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
16 HESSE, op. cit., p. 26-27.
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SILVA JÚNIOR, Antônio Soares. A hermenêutica constitucional de Peter Häberle. A mudança do paradigma jurídico de participação popular no fenômeno de criação/interpretação normativa segundo a teoria concretista. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1208, 22 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 24 out. 2007. VIEIRA, Iacyr de Aguilar. A Essencia da constituição no pensamento de Lassalle e de Konrad Hesse. Revista de Informação Legislativa, v.35, nº 139, p. 71-81, jul./set. de 1998. Disponível em:http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/388. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
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