A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E O PENSAMENTO DE JOHN LOCKE
Jair Soares de Oliveira Segundo Orientador: Prof. Morton Luiz Faria de Medeiros Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO Trata do princípio da função social da propriedade na perspectiva do pensamento de John Locke, isto contextualizado no ordenamento jurídico brasileiro. Analisa se há conexões entre esse princípio constitucional e o conceito de propriedade que emana da obra de Locke. Reflete a questão da propriedade tanto em relação ao direito individual do proprietário, quanto ao direito da coletividade de exigir que a propriedade cumpra sua função social. Encontra em Locke indicação de que o surgimento da propriedade se dá no momento em o trabalho do homem é aplicado à natureza, legitimando sua posse, e, com base em reflexões acerca dessa constatação, propõe que a propriedade que deixa de observar sua função social perde a garantia assegurada a seu detentor fundamentada no que originou sua primeira aquisição no estado de natureza: legitimidade através do trabalho. O estudo utiliza-se do método teórico-descritivo de base documental. Palavras-chave: Direito propriedade. John Locke.
a
propriedade.
Função
social
da
1 INTRODUÇÃO Nos dias atuais, os estados nacionais apresentam nítidas características do que se conhece como estado democrático de direito, a idéia de propriedade há muito deixou de ser pensada unicamente na esfera do indivíduo, e sim firmou-se o entendimento de que deve a propriedade atender a uma função social que lhe é indissociável. Com base nesse contexto, e buscando traçar uma análise, mesmo superficial, relativa ao princípio da função social da propriedade, serão desenvolvidas algumas reflexões em torno de sua legitimação, que será repensada na perspectiva do pensamento de John Locke. Estudos desta natureza, onde se busca analisar temas atuais a partir de autores clássicos, são passíveis de conduzir o texto a leituras que destoam do pensamento original, apartando-se da doutrina clássica e levando à sua plena transmutação em algo sem respaldo algum, destituído de valor de conteúdo. A significação original passa a ser tolhida a adequar-se à nova proposta e, portanto, o estudo é prejudicado por falta de sustentação legítima. Desta maneira, nos apressaremos em dizer que o princípio da função social
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da propriedade é extemporâneo ao pensamento de Locke. A idéia de aplicar-se ao direito de propriedade uma função social só veio a surgir tempos depois, já após a Revolução Industrial, quando o Estado precisou intervir no domínio econômico de forma a salvaguardar o indivíduo da dominação econômica por outros indivíduos. Assim, nasce o princípio da função social da propriedade, e surge como resposta da esfera do direito a essas intensas mudanças sociais. Estabelecer uma ligação entre o tema da função social da propriedade e o pensamento de um autor clássico é uma tarefa de certa complexidade, uma vez que o próprio fato de buscar conexões em Locke acerca de um tema que não é tratado em sua obra pode ser entendido, no mínimo, como deturpação de sua teoria. Neste sentido, a prudência aconselha que no enfrentamento do tema a atitude seja muito mais de reflexão do que de prolação de uma verdadeira sentença. Essa relativa liberdade propiciada pelo direcionamento do estudo para o campo da filosofia o torna mais consistente, promove-lhe a garantia de que as críticas serão mais amenas quando incorrer em aparente impropriedade de idéias. Uma vez superados os esclarecimentos iniciais, devemos atentar para o fato de que John Locke tratou o tema da propriedade apenas e tão somente no plano do indivíduo, o que decorre de seu posicionamento liberal, e não como um instituto destinado a observar uma função social. Neste ponto, evidencia-se uma colisão entre o pensamento de Locke – a propriedade se realiza na esfera individual – e o próprio tema que é analisado – a propriedade deve atender uma função social. Longe de constituir-se barreira intransponível, este choque aparente é o ponto de partida para a reflexão sobre as conexões que se pretende estabelecer.
2 CONTEXTO HISTÓRICO O século XVII presenciou a consolidação dos direitos do povo e do parlamento inglês em relação ao poder absolutista que vinha dominando a Inglaterra. Essas conquistas se deram através da Revolução Inglesa (1688) que teve por objetivos “limitar o poder dos reis, estabelecer a regularidade dos serviços da assembléia no Parlamento, derrubar o autoritarismo e assegurar a liberdade religiosa.”1 Essa vitória do liberalismo político sobre o absolutismo encaminhou a aprovação do Bill of Rights (1689), documento que consolidou o poder do Parlamento frente a realeza inglesa através da limitação de poderes desta. A burguesia emergente então se afirmava no poder e as idéias liberais passavam a ser difundidas como nunca antes. 1
COLLINSON, 2004, p. 112.
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Após a Revolução Inglesa, tendo Guilherme de Orange saído-se vitorioso, o partido que lhe conduziu ao trono – os Whigs – logo começaram a ver em Locke um verdadeiro profeta daquela revolução, uma espécie de herói teórico do movimento, o que levou sua obra “Dois Tratados sobre o Governo” (1690) a ser amplamente aceita e difundida pelo partido.2 Tal fato levou a obra a ser considerada justificação póstuma à revolução, tese mais tarde desconstituída.3 Nesse contexto de intensas transformações sociais pelo qual passa a Inglaterra do séc. XVII, John Locke inicia o desenvolvimento de sua teoria política, a obra “Dois Tratados sobre o Governo,” onde, além de rechaçar a idéia de poder absolutista por meio da refutação do primeiro livro do Patriarca escrito por Filmer – primeiro tratado –, toma por base noções como a de estado de natureza e a de um contrato social com intrínseca tendência liberal e democrática – segundo tratado.4
3 CONCEITOS FUNDAMENTAIS 3.1 ESTADO DE NATUREZA VERSUS ESTADO CIVIL Segundo Del Vecchio (1960, p. 393), sociedade é “un complejo de relaciones por las cuales varios seres individuales viven y obran conjuntamente, formando una nueva y superior unidade.” Esse autor escreve que a necessidade de se relacionar pertence ao homem desde o momento de seu nascimento, o que se deve tanto mais aos seus instintos humanos que a uma mera obrigação. Assim como Hobbes,5 Locke consta inserido na escola do jusnaturalismo. O modelo jusnaturalista de ambos é bastante parecido: começam a partir do estado de natureza, passando por um pacto social, chegando num estado civil. A grande diferenciação entre ambos os filósofos é o modo como definem cada uma das três partes de seus modelos. Ao contrário de Hobbes, Locke defende que o estado de natureza é um estado de relativa tranqüilidade e paz, onde Hobbes define que seja um estado de insegurança e violência. Locke define o estado de natureza como um estado onde os indivíduos gozavam de liberdade e igualdade, sendo anterior à sociedade civil e ao Estado.6 O estado civil seria decorrente da vontade dos indivíduos de assegurar o respeito de todos a essa harmonia natural, uma vez presente a possibilidade de que esta viesse a ser quebrada. 2 3 4 5 6
MORRIS, 2002, p. 132. BOBBIO, 1997, p. 161 e ss. DEL VECCHIO, 1960, p. 66-67. WEFFORT, 2006, p. 84. WEFFORT, 2006, p. 84-85.
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Para Hobbes, no entanto, como o estado de natureza é um estado de guerra, o estado civil é a única alternativa de impor limites às vontades dos indivíduos de praticarem o mal mutuamente uns contra os outros. O estado de natureza em Locke, de acordo com Bobbio (1997, p. 179), pode ser assim resumido: “[...] o estado de natureza não é essencialmente mau, mas apresenta inconvenientes. Ao percebermos, em um certo ponto, que suas desvantagens superam as vantagens, torna-se necessário abandoná-lo.”
3.2 LEIS NATURAIS E LEIS CIVIS Leis naturais são um conjunto de normas alcançadas e propostas pela razão do indivíduo no sentido de orientar sua conduta objetivando uma convivência harmônica em sociedade, seja no estado de natureza, seja do estado civil.7 Sobre as leis naturais, Bobbio (1997, p. 148) nos esclarece: O que nos dizem os Tratados a respeito da lei natural é, antes de mais nada, que ela existe e ora é apresentada como “escrita no coração de todos os homens”, ora como não escrita, porém encontrável “nas mentes dos homens”. Em segundo lugar, sabemos que é cognoscível, como se lê, entre outras passagens, naquela que diz que ela “é evidente e inteligível por toda criatura racional”. Além disso, é obrigatória, como não poderia deixar de ser: “O estado da natureza é governado pela lei da natureza que obriga a todos.
Quanto às leis civis, estas têm força de aplicação através do poder do estado civil que regula a conduta dos indivíduos para que evitem transgredir as leis da natureza e possam conviver mutuamente e em harmonia em sociedade.
4 ESTADO DE NATUREZA E PROPRIEDADE No estado de natureza, o homem se encontrava em circunstâncias tais que não dispunha da estrutura do poder civil, sua única orientação de conduta eram as leis naturais. Sendo assim, percebe-se claramente que no estado de natureza há apenas o binômio estado de natureza/leis naturais, o que acaba se contrapondo ao binômio estado civil/leis civis.8 Em relação ao estado de natureza, Bobbio (1997, p. 170) salienta que duas concepções destacam-se antagônicas: são elas otimistas ou pessimistas. As primeiras 7 8
BOBBIO, 1997, p. 148. BOBBIO, 1997, p. 169.
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tratam da visão de estado de natureza como sendo um estado de paz, liberdade, igualdade. Já a concepção pessimista trata, por sua vez, de conceber o estado de natureza caracterizado como um estado de guerra, opressão, insegurança, sendo esta a adotada por Hobbes.9 O modelo de estado de natureza de Locke consegue integrar ambas as concepções – positiva e negativa – e este aspecto é fundamental para a correta compreensão de seu modelo jusnaturalista, principalmente no que se refere à passagem do estado de natureza para o estado civil, pois Locke concebe que, nesta passagem, o estado de natureza não é totalmente suprimido pelo estado civil, e sim ocorre uma ‘restauração’ do primeiro através do segundo.10 Dessa maneira, podemos perceber que o modelo teorizado por Locke funciona, em sua parte negativa, como uma justificação do estado civil ou, em outras palavras, uma vez que no estado de natureza seja instaurado o estado de guerra, faz-se necessário um poder externo para restaurar a harmonia sob pena de perdurar o estado de guerra.11 Vê-se que há uma nítida distinção entre estado de natureza e estado de guerra: um não se confunde com o outro.12 Ao tratar da propriedade, Locke (2001, p. 407) inicia preconizando que “A terra, e tudo quanto nela há, é dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência.” Com base nisto, ele esclarece como se deu o surgimento da propriedade: [...] embora as coisas da natureza sejam dadas em comum, o homem (sendo senhor de si mesmo e proprietário de sua própria pessoa e de suas ações ou de seu trabalho) tinha já em si mesmo o grande fundamento da propriedade [...]. O trabalho, portanto, no princípio, deu direito de propriedade sempre que qualquer um houve por bem empregá-lo no que era comum [...]13
Assim, abstrai-se que o trabalho é o meio pelo qual a propriedade é legitimada, é através dele é que o direito de propriedade se realiza. Neste sentido, afirma: “[...] o tratar e o cultivar a terra e o ter domínio sobre ela estão intimamente ligados. Uma coisa dá título à outra.”14 E mais, “É portanto o trabalho que confere a maior parte do valor à terra, sem o qual ela mal valeria alguma coisa.”15 Percebe-se, portanto, que o trabalho é o título de posse, é o que a legitima. 9 10 11
12
13 14 15
BOBBIO, 1997, p. 170. BOBBIO, 1997, p. 171. LOCKE, 2001, p. 399: “[...] por falta de leis positivas e de juízes como autoridade a quem apelar, uma vez deflagrado, o estado de guerra continua [...].” LOCKE, 2001, p. 397: “Eis aí a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, os quais, por mais que alguns homens os tenham confundido, tão distantes estão um do outro quanto um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação está de um estado de inimizade, malignidade, violência e destruição mútua.” LOCKE, 2001, p. 423-424. LOCKE, 2001, p. 415. LOCKE, 2001, p. 423.
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Mas a apropriação tem limites. Locke (2001, p. 412) afirma que “A mesma lei da natureza que por este meio nos concede a propriedade, também limita essa propriedade”, e que a posse deveria respeitar proporção moderada, fixada pela amplitude do trabalho e pela conveniência de vida.16 Neste sentido, todos poderiam delimitar para si parte do bem comum,17 sem consubstanciar prejuízo aos demais.18 No entanto, adverte o pensador, com a invenção do dinheiro tudo mudou, as terras sem proprietário começam a ficar escassas, as comunidades estabelecem os limites de seus territórios e começaram a regular, por meio de leis, a propriedade individual que se originou por meio do trabalho.19
5 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ATUAL O direito de propriedade, conforme vimos, teve origem no estado de natureza, segundo Locke. Agora, cumpre-nos estabelecer a época de início da relativização desse direito sob a perspectiva de atribuição de função social. Escreve Hanna (2006, p. 111-112): Foi a doutrina de Duguit, que deu início à corrente do pensamento jurídico para a elaboração de textos constitucionais que enfatizaram a função social da propriedade, como nas Constituições do México e de Weimer. Elas vieram a inspirar as Constituições da segunda metade do século XX que passaram a adotar a função social, admitindo o condicionamento de um direito subjetivo à funcionalização. É a função social a atribuição de um poder que se desdobra em um dever, pois não se limita à satisfação de interesses próprios e individuais, mas também à satisfação dos interesses alheios.”
A Constituição Federal Brasileira de 1988, na parte dos direitos e garantias fundamentais individuais (art. 5º), fez constar que “é garantido o direito de propriedade” (inc. XXII) e que “a propriedade atenderá sua função social” (inc. XXIII). Mais à frente, a Constituição listou a “propriedade privada” e a “função social da propriedade” dentre os princípios da ordem econômica (art. 170, II e III). Desta forma, resta bem claro que, apesar constar no art. 5º como direito individual fundamental, a propriedade já não pode ser entendida como puro direito individual, uma vez que se faz presente também como princípio da ordem econômica que tem por finalidade “assegurar a todos existência digna, conforme 16 17 18
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LOCKE, 2001, p. 415. LOCKE, 2001, p. 412-413 LOCKE, 2001, p. 413: “[...] aquele que deixa para outro tanto quanto este possa usar faz como se não houvesse tomado absolutamente nada” LOCKE, 2001, p. 424.
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os ditames da justiça social” (art. 170, caput).20 Assim, justamente pelo fato de estar submetida aos ditames da justiça social, a propriedade, para ser legítima, deve cumprir uma função que, por sua vez, deve estar orientada à justiça social.21 A partir daqui, se faz necessário um conceito do que vem a ser justiça social, bem como uma noção preliminar de função aplicada à propriedade. Relativo ao primeiro ponto – justiça social –, pode ser alcançada a extensão de seu conceito através da lição de Eros Roberto Grau (1990, p. 241, grifos nossos), que escreve: Justiça Social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, a nível pessoal, do produto econômico. Com o passar do tempo, contudo, passa a conotar
cuidados,
não
apenas
inspirados
em
razões
micro,
porém
macroeconômicas: as correções na injustiça da repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista.
Esse autor opera com a mesma precisão ao nos esclarecer a idéia de função, notadamente por distinguir as idéias de função individual da propriedade e função social da propriedade, indicando a primeira como necessária à compreensão da segunda.22 Sobre a função individual, esclarece Grau (1990, p. 249) que sua justificação reside “[...] na garantia, que se reclama, de que possa o indivíduo prover a sua subsistência e de sua família [...].” Neste sentido, e por restar caracterizado uma orientação do instituto voltada a garantir a própria dignidade da pessoa humana, o autor ressalta que, sob este aspecto, a propriedade manifesta-se como um direito individual e, portanto, cumpre indubitavelmente uma função individual.23 Sendo essa a razão de existência desse tipo de propriedade, não há falar que deva ela cumprir função social – e sim individual. Exemplo pode ser encontrado na Constituição, art. 5º, XXVI,
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onde fala que a pequena propriedade rural, desde que
trabalhada pela família, não poder ser objeto de penhora conexa com sua atividade produtiva; ou ainda o seu art. 185, II, que estabelece as pequenas e médias propriedades 20 21 22
23 24
SILVA, 2006, p. 270-271. SILVA, 2006, p. 811. GRAU, 1990, p. 251: “A distinção explicitada, entre propriedade dotada de função individual e propriedade dotada de função social, permite-nos operar uma primeira precisão, necessária à compreensão do sentido assumido pelo princípio da função social da propriedade, que como vimos, tem como pressuposto necessário à propriedade privada – dos bens de produção e de bens que excedam o quanto caracterizável como propriedade afetada por função individual. À propriedade dotada de função individual respeita o art. 5.º XXII do texto constitucional; de outra parte, a “propriedade que atenderá a sua função social”, a que faz alusão o inciso seguinte – XXIII – só pode ser aquela que exceda o padrão qualificador da propriedade como dotada de função individual. À propriedade função social, que diretamente importa à ordem econômica – propriedades dos bens de produção – respeita o princípio inscrito no art. 170, III.” GRAU, 1990, p. 247. Constituição Brasileira, art. 5º: “XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;”
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como insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, desde que seu proprietário não possua outra. 25 Sobre a função social da propriedade, primeiramente Grau (1990, p. 244) destaca que “[...] a idéia de função social como vínculo que atribui à propriedade conteúdo específico, de sorte a moldar-lhe um novo conceito, só tem sentido e razão de ser quando referida à propriedade privada.” Delimitada a função social como de aplicação à propriedade privada, o autor ressalta mais a frente o princípio da função social da propriedade expõe sua maior relevância ao concretizar-se em âmbito constitucional nas regras previstas nos art. 182, §2º (política urbana), e art. 184 (reforma agrária).26 Com efeito, o princípio da função social da propriedade permeia nossa Constituição e, devido isto, é que o direito a propriedade atualmente deixou de abrigar tão somente limitações referentes a prestações negativas (abstenção de fazer) para adquirir conotação de função com explícito caráter de prestações positivas (fazer). Aqui, mais uma vez, nos valemos dos ensinamentos de Eros Roberto Grau (1990, p. 250, grifos nossos), em excelente trecho que escreve: [...] o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-la em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função
social
da
propriedade
atua
como
fonte
da
imposição
de
comportamentos positivos – prestações de fazer, portanto, e não meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade. Vinculação inteiramente distinta, pois, daquela que lhe é imposta mercê de concreção do poder de polícia.
Como bem preleciona Pontes de Miranda (apud SILVA, 2006, p. 271), compete às leis “regular o exercício e definir o conteúdo e os limites do direito de propriedade.” Isto se dá, por assim dizer, em função de haver previsão constitucional de garantia ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF) sem que, no entanto, haja delimitação de conteúdo e limites. Para entender o porquê do direito de propriedade constituir-se, em âmbito constitucional, numa norma aberta, devemos ter em mente sua ampla abrangência, 25
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Constituição Brasileira: “Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;” GRAU, 1990, p. 252, grifos nossos: “Sua maior relevância se manifesta em sua concreção nas regras do §2º do art. 182 – política urbana – e do art. 184 – reforma agrária, esta, seguramente, tão indispensável à realização do fim da ordem econômica quanto à integração e modernização do capitalismo nacional.” Cf. Constituição Brasileira: “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. [...] § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” Cf. Constituição Brasileira, art. 184, caput: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”
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uma vez que há vários tipos de propriedade (públicas ou privadas; urbanas ou rurais; entre outros tantos tipos de classificação).27 É de se observar, neste ponto, que a função social da propriedade não deve ser confundida com as limitações ao direito de propriedade, uma vez que estas referem-se ao exercício do direito em si, enquanto que aquela é relativa à estrutura do próprio direito.28 Isto, sem falar que o instituto das limitações ao direito de propriedade é tão antigo quanto o direito em si, o que não ocorre em relação ao princípio da função social, o qual veio surgir como uma decorrência natural das últimas revoluções liberais – particularmente a Revolução Industrial – e, mais especificamente, a partir da doutrina de Leon Duguit (1912, p. 168-169 apud HANNA, 2006, p. 110-111). Em breves linhas, podemos afirmar que as limitações ao direito de propriedade o atingem em seus caracteres essenciais, quais sejam: absoluto, exclusivo e perpétuo. Dentre estes, vamos nos ater ao caráter perpétuo29 o qual sofre limitação através de desapropriação de propriedades – no nosso estudo trataremos da incidência em propriedades rurais, mas pode também ocorrer com propriedades urbanas – que se dá em virtude de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social (art. 5º, XXIV, da CF). Devemos, em princípio, chamar a atenção para o fato de que a limitação da propriedade pela desapropriação tem uma conotação forte de incidência da concreção do princípio da função social da propriedade. Na
Constituição,
art.
186,30
consta
os
requisitos
que
devem
ser
simultaneamente cumpridos, segundo critérios da legislação infra-constitucional, para caracterizar que a propriedade observa sua função social. No caso da grande propriedade rural improdutiva, por exemplo, esta é passiva de desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária (art. 184, CF). Resta claro que, apesar de tratar-se de limitação do direito de propriedade, a desapropriação exemplificada objetiva dar função social à propriedade improdutiva. 27
28
29
30
José Afonso da Silva (2006, p. 274) chama a atenção para a distinção entre esses vários tipos, vejamos: “Em verdade, uma coisa é a propriedade pública, outra a propriedade social e outra a privada; uma coisa é a propriedade agrícola, outra a industrial; uma, a propriedade rural, outra a urbana; uma, a de bens de consumo, outra, a de bens de produção; uma, a propriedade de uso pessoal, outra a propriedade/capital.” Cf. GRAU, 1990, p 248: “A propriedade, [...] no inciso XXII do artigo 5.º, e no art. 170, II, não constitui um instituto jurídico, porém um conjunto de institutos jurídicos relacionados a distintos tipos de bens.” SILVA, 2006, p. 281-282: “A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade”. Cf. Id., Ibid., p. 282: “Limitações, obrigações e ônus são externos ao direito de propriedade, vinculando simplesmente a atividade do proprietário, interferindo tão-só com o exercício do direito, e se explicam pela simples atuação do poder de polícia.” SILVA, 2006, p. 279: “[...] perpétuo, porque não desaparece com a vida do proprietário, porquanto passa a seus sucessores, significando que tem duração ilimitada (CC, art. 1.231), e não se perde pelo não uso simplesmente.” Constituição Brasileira, art. 186: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”
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Outro exemplo importante de desapropriação é a realizada para as terras onde são encontrados cultivos ilegais de plantas psicotrópicas em qualquer parte do território nacional. A Constituição determina que tais terras sejam imediatamente expropriadas sem qualquer indenização e, ainda, especifica sua destinação a realização de programas de assentamento.31 No entanto, há situações em que a análise do caso concreto leva os Tribunais a decidir pela não aplicação da norma de desapropriação uma vez que se faça presente justificação razoável, é o caso, por exemplo, de condições desfavoráveis de clima da região em antagonismo ao reconhecido esforço do proprietário em fazer a terra produzir.32
6 PROPRIEDADE E ESTADO CIVIL Inicialmente, nos cabe pontuar que essa análise da função social da propriedade no ordenamento jurídico pátrio nos propicia melhor embasamento para abstrair correlação entre direito de propriedade e estado civil. O estado civil – como acordo geral de vontades objetivando a garantia de interesses comuns – nasce precisamente a partir do momento em que, no estado de natureza, alguns indivíduos falham por desobedecer à lei natural e os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, são colocados em sério risco.33 O contrato social surge, assim, da necessidade de haver uma autoridade que garantisse aos indivíduos a proteção de tais direitos e, para isto, fez-se necessário que esses indivíduos cedessem parte de seus direitos no intuito de que a autoridade constituída assegurasse a garantia de direito a todos através da limitação do direito de alguns.34 Essa 31
32
33 34
Constituição Brasileira, art. 243, caput: “As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.” Cf. EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TERRAS UTILIZADAS PARA O CULTIVO DE PLANTAS PSICOTRÓPICAS. EXPROPRIAÇÃO. LEI 8.257/91, ART. 1º. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 243. EXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA. IDENTIFICAÇÃO DO REAL PROPRIETÁRIO DAS GLEBAS CONSTRINGIDAS. POSSIBILIDADE DE DILIGÊNCIAS. ATENDIMENTO À FUNÇÃO ATIVA DO JUIZ E À FINALIDALIDADE SOCIAL DA NORMA. 1. É objetiva a responsabilidade do proprietário de glebas usadas para o plantio de espécies psicotrópicas, sendo, em conseqüência, irrelevante a existência ou inexistência de culpa na utilização criminosa. 2. É de todo cabível e oportuna a realização de diligências que objetivem identificar o real proprietário de terras comprovadamente empregadas para o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas. 3. Na espécie, ante a caracterizada indeterminação do proprietário das glebas, cumpre-se anular o acórdão e a sentença com a intenção da conferir efetividade ao art. 243 da Constituição Federal, bem assim, atender à finalidade social inscrita na Lei 8.257/91. 4. Recurso especial conhecido e provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 498.742-PE. Relator: Ministro José Delgado. Primeira Turma. Julgado em 16.09.2003. DJ 24.11.2003, p. 222. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2007). Cf. BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Ação Cível nº 239.204/CE (2000.05.00.058412-7). Relator: Des. Fed. Margarida Cantarelli. Primeira Turma. Julgado em 31.05.2001. DJ 06.07.2001, p. 316. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2007. COLLINSON, 2004, p. 118. DEL VECCHIO, 1960, p. 67.
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autoridade, no entanto, deveria obrigar-se a respeitar o pacto e aos indivíduos caberia o direito de cobrar essa observância. Tal contrato é, antes de tudo, um ato de vontades que aconteceu naturalmente devido à necessidade de mútua convivência, e não um fato histórico ou acordo positivado. Essa autoridade é concretizada no Estado, o qual fora constituído para assegurar os direitos individuais e, portanto, deve abster-se de ferir arbitrariamente esses direitos do indivíduo.35 Comenta Bobbio (1997, p. 151) que a idéia central do modelo político jusnaturalista de Locke é a de que “[...] o bom governo é aquele que nasce com limites que não podem ser ultrapassados, limites impostos pelo fato de que as leis políticas vêm depois das leis naturais, estando, por assim dizer, a seu serviço.” Como fora demonstrado, a propriedade preexistia ao estado civil e neste – em sua razão de ser – consta previsão da salvaguarda e garantia preservação do direito de propriedade de todos os indivíduos.36 Locke (2001, p. 579-580) diz que sempre que os que produzem as leis civis “[...] tentarem violar ou destruir a propriedade do povo [...] colocar-se-ão em estado de guerra contra o povo [...]” desobrigando este da obediência às leis civis, havendo um retorno a um estado de natureza [muito mais próximo de um estado de guerra hobbesiano], visto que tal transgressão leva à perda do poder que lhe foi confiado pelo povo, e este poder retorna ao povo que poderá decidir o novo rumo a ser tomado. Afirma ainda que “O povo geralmente maltratado, e isso contrariamente ao direito, estará disposto, em qualquer ocasião, a livrar-se de uma carga que lhe pese em demasia” (LOCKE, 2001, p. 583). No entanto, mesmo “Grandes equívocos por parte dos governantes, muitas leis erradas e inconvenientes, e todos os desvios da fraqueza humana serão tolerados pelo povo sem motim ou murmúrios” (LOCKE, 2001, p. 583). Contudo, a elevada reiteração desses abusos conduz o povo perceber a que propósito está submetido, levando-o a insurgir-se no propósito de resgatar as garantias que lhe são devidas.37 De modo geral, podemos dizer que o povo que dá o poder tem o direito de reaver esse poder sempre que este se voltar contra o povo.
7 REFLEXÕES SOBRE O CENÁRIO ATUAL DA PROPRIEDADE À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS Na doutrina de Locke, resta muito claro que apenas o consentimento comum dos indivíduos – pacto social – é que legitima o Estado a intervir na propriedade, até por 35 36 37
DEL VECCHIO, 1960, p. 68-69. QUIRINO (org.); SADEK (org.), 2003, p. 197. Cf. LOCKE, 2001, p. 579. LOCKE, 2001, p. 583.
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motivo de que a passagem do estado de natureza para o estado civil se dá no intuito de assegurar a garantia do direito de propriedade individual, bem como direitos de liberdade e igualdade. Assim, é legítimo o direito de insurgir-se contra o Estado que venha a quebrar esse contrato social em prejuízo dos indivíduos que lhe concederam o poder. Interessante também notar que, para Locke, a propriedade surge no estado de natureza, sendo legitimada pelo trabalho do homem que mistura seu esforço à natureza através da aplicação de trabalho. Nessa linha de raciocínio, nos remetemos à sociedade atual para refletir sobre o direito de propriedade hoje. Um fato inteiramente novo a ser levado em consideração é a atribuição de função social ao direito subjetivo de propriedade. Tal função, certamente, serve de pressuposto de legitimação a movimentos sociais38 que, cada vez mais, reivindicam do Estado o acesso a um mínimo de propriedade (terra) que lhes garanta dignidade. Por outro lado, é do conhecimento geral que no Brasil há imensa extensão territorial abrangida por terras improdutivas que, em tese, poderiam se prestar a esse objetivo. Será então que esses movimentos sociais teriam legítimo direito a exigir do Estado prestação positiva no sentido de lhes assegurar o exercício da propriedade? E como isto se daria? Seria através da desapropriação de terras urbanas e rurais que deixassem de cumprir sua função social? Se analisarmos a origem do direito de propriedade que se deu no estado de natureza legitimado pelo trabalho, segundo Locke, e nos ativermos neste aspecto, então teremos por concreto que carece de legitimidade de direito a situação de deter enorme quantidade de terras nas quais não pode fazer produzir. Contudo, devemos ter em mente que Locke está imerso no contexto do Estado Liberal onde o caráter perpétuo da propriedade é de todo exaltado, e sua obra trata disto. Assim, por exemplo, uma proposta de legitimação da limitação do direito de propriedade sobre terras improdutivas não poderia se abstraída através de mera subsunção da teoria do eminente pensador.39 No entanto, podemos juntar essa idéia de legitimação – pelo trabalho – ao princípio da função social da propriedade de forma adequada a propiciar a todos os indivíduos o acesso a um mínimo de propriedade em detrimento da perda [limitação] do direito de propriedade por outros que a tem em excesso [visto serem improdutivas], resultando que essas terras devem ser desapropriadas. Isto sem falar que, por motivo de previsão constitucional, cabe ao Estado prover efetiva concretização ao princípio da função social da propriedade. Podemos inferir, por fim, que o direito de revolta tratado por Locke pode justificar, grosso modo, uma manifestação racional dos movimentos sociais que buscam o 38 39
São exemplos desses movimentos sociais os “Sem terra” e os “Sem teto.” Lembrar ressalva constante na parte inicial da introdução do presente trabalho sobre aplicação de teorias clássicas a temas hodiernos.
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acesso à propriedade, na medida em que estes buscam a efetivar direitos abrangidos pelo ordenamento jurídico vigente os quais são dever do Estado que está agindo de forma muito tímida em sua implementação.
REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Tradução Sérgio Bath. Locke e o Direito Natural. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. COLLINSON, Diané. Tradução Maurício Waldman e Bia Costa. 50 grandes filósofos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004. DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofia del Derecho. 7. ed. Barcelona: Bosch, 1960. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação crítica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1990. HANNA, Munira. As propriedades como forma concretizadora de um (re)pensar a propriedade. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Ciências Jurídicas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo. Disponível em: . Acesso em: 31 maio 2007. LOCKE, John. Tradução Julio Fischer. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MORRIS, Clarence (org.). Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. QUIRINO, Célia Galvão (org.); SADEK, Maria Tereza (org.). O pensamento político clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2006. WEFFORT, Francisco C. (org.). Os clássicos da política. 14. ed. São Paulo: Ática, 2006.
ABSTRACT It treats the principle of the social function of the property in the perspective of John Locke's thought, in the context of Brazilian juridical system. It analyzes if there are connections between that constitutional principle and the concept of property which emanates of Locke´s work. It also reflects the subject of the property as in relation to the proprietor's individual right, as for the colectivity´s right of demanding that the property accomplishes its social function. It finds in Locke the indication that the appearance of the property is given in the moment in which man's work is applied to the nature, legitimating
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his ownership. And with base in the reflections concerning that verification, it proposes that the property that stops observing its social function, loses the insured warranty to its owner based in what originated his first acquisition in the nature state: legitimacy through the work. The study uses the theoretical-descriptive method of documental base Keywords: Right of property. Social function of the property. John Locke.