UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO

“A MORTE DO VAQUEIRO” Belo Horizonte 2015 . ... morte e calor. O agreste do Araripe chora a perda de um filho e, canta, sempre que pode, em tom de can...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO

PEDRO HENRIQUE MORAES FERREIRA

“A MORTE DO VAQUEIRO”

Belo Horizonte 2015

PEDRO HENRIQUE MORAES FERREIRA

“A MORTE DO VAQUEIRO”

Monografia apresentada pelo alunoPedro Henrique Moraes Ferreira à disciplina de Trabalho de Curso II do Programa de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, como um dos requisitos para a obtenção do Grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Daniela de Freitas Marques.

Belo Horizonte 2015

“Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar. Viver é muito perigoso.” (João Guimarães Rosa). "O saber a gente aprende com os livros e os mestres. A sabedoria, se aprende com a vida e com os humildes.” (Cora Coralina).

AGRADECIMENTOS

Ao Sertão, tão presente em minha vida, fonte de inspirações eternas. À Literatura, acalanto do meu imaginário. À Fazenda São José, recanto-encantado onde vivi e imaginei fantásticas experiências e momentos. Ao meu velho cavalo Alazão, amigo confidente, companheiro de viagens e aventuras. À Doutora Daniela de Freitas Marques, por ter me incentivado a ir além da dogmática jurídica e me permitido realizar tão grande desejo: trabalhar, ao mesmo tempo, com o Direito e a Literatura, trazendo um pouco do Meu Universo jurídico.

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RESUMO

O presente trabalho busca trazer para o cenário do Direito um enredo belo e instigador ocorrido no Sertão de Pernambuco, especificamente na cidade de Serrita. Ali morreu o famigerado vaqueiro Raimundo Jacó, conhecido pela maestria e excelência na lida com o gado. Encontrado morto, o vaqueiro que virou tema de belíssima canção criada por Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho deixou família, história e um cachorro campeiro, que, diz o povo, morreu de sede e fome deitado sobre o túmulo de seu mestre e amigo. Uns dizem que ocorreu um crime. Assassinato por inveja. Suposto autor: outro vaqueiro que trabalhava na lida com Jacó. Já a Justiça respondeu diante do caso pela impossibilidade da condenação. Argumento: ausência de provas. Diante do que ocorrera, a sociedade local parece ter dado seu veredicto, lamentando a morte de seu melhor Vaqueiro e condenando o possível malfeitor com o desprezo de um povo.Nesse trabalho, parte do Sertão será convidado ao Universo do Direito. A literatura trará o caso. A sociedade, um possível julgamento. E os leitores, a abstração para realizarem belíssima viagem pela caatinga afora. Uma história de morte, de apego à natureza, de amores, de inveja. Um enredo que comoveu os sertanejos locais e que, hoje, virou tema de grande celebração em ritmo de festa e louvor: A missa do Vaqueiro.

Palavras-chave: Direito. Vaqueiro. Raimundo Jacó. Literatura. Enredo.Morte. Sociedade. Missa do Vaqueiro. Sertão de Pernambuco.

ABSTRACT

The purpose of this study is to bring the Law of the scenario a beautiful and instigator plot line occurred in the Sertão de Pernambuco, specifically in the city of Serrita. In that place died the infamous cowboy Raimundo Jacó, known for mastery and excellence in dealing with cattle. Found dead, the cowboy turned gorgeous theme song created by Luiz Gonzaga and Nelson Barbalho, left family, history and dog, that, saying the people, died of thirst and hunger lying on the grave of his master and friend.Some say it was a crime. Murdered by envy. Alleged perpetrator: another cowboy who worked with Jacob. Justice already answered on the case by the impossibility of condemnation. Argument: absence of evidence. Given what happened, the local society seems to have given their verdict, lamenting the death of its best Cowboy and condemning the possible wrongdoer with the contempt of the people. In this work, part of the Sertão will be invited to the Universe of Law. Literature will bring the case. The society, a possible judgment. And readers, abstraction to perform a beautiful journey around the caatinga. A story of death, love of nature, lovers, envy. A plot that moved the local country people and that today turned big celebration theme in rhythm of party and praise: The “missa do vaqueiro”.

Keywords: Law. Cowboy. Raimundo Jacó. Literature. Plot. Death. Society. Missa do vaqueiro. Interior of Pernambuco.

Sumário 1

INÍCIO

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RAIMUNDO JACÓ: UM POUCO DE SEU SERTÃO

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UMA FLOR EM MEIO À CAATINGA

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A BUSCA PELA RÊS DE ARRIBADA

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A MORTE DE RAIMUNDO JACÓ

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6 CRIME OU MORTE ACIDENTAL? RESPOSTA PARA O DIREITO E INQUIETUDE PARA UM POVO 16 7

MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS EM FORMAS DE CANÇÃO

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A MISSA EM NOME DO VAQUEIRO

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A IMPORTÂNCIA DO CASO PARA O DIREITO- CORRELAÇÃO COM A HISTÓRIA

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FIM

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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INÍCIO Sertão. A morte. A solidão. A seca. A lida com o gado. Diante de algumas

adversidades, todavia, próximo de muitas belezas e bela cultura, nasceu o mito Raimundo Jacó. Valente vaqueiro, corajoso e mestre no ofício da lida. Famigerado pela forma como tratava e conhecia os animais com os quais lidava. Seu gibão, sua forma de desempenhar a empreitada diária do trabalho, e suas memórias e estórias abalaram o Sertão pernambucano quando de sua morte. Esse trágico, entretanto, maravilhoso e rico enredo, ainda está presente na cultura do Nordeste, contagiando novos vaqueiros e indivíduos que querem viver a História do nosso Sertão. O caso envolve paixão, traição, morte e calor. O agreste do Araripe chora a perda de um filho e, canta, sempre que pode, em tom de cantiga, verso e poesia a estória daquele sertanejo que se foi. Sertão, às vezes, traz medo. Tempos de tocaias e homens valentes. Esse é o meio onde viveu Raimundo Jacó. Guimarães Rosa, nesse sentido afirma:

Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal.” (ROSA, 2006, p.19)

Um enredo sertanejo, portanto, com todos seus fundos e sem fins, não pode trazer uma introdução definida e simples. Representa a plenitude na esfera literária e histórica. O todo constante que caminha e transversa: seria mesmo a travessia, a que Guimarães Rosa tanto se refere em suas obras (Grande Sertão: Veredas). O interesse introdutório do referido trabalho, logo, é o de trazer para o universo belo do Direito um caso que a literatura regionalista não esqueceu. Uma tela que, inicialmente, poderia, para o ordenamento jurídico representar um caso a ser discutido na esfera criminal, mas que, com o presente estudo, busca ir além e não se reter nessa linha. A história de uma morte ou um crime pode ser representada, por exemplo, por um tipo penal. Aqui, objetiva-se trazer a esfera social do fato.O abalo que o crime gerou socialmente e como interferiu na cultura daquela sociedade local e sertaneja. Deseja-se contar a estória e, mais do que isso, revivê-la.

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RAIMUNDO JACÓ: UM POUCO DE SEU SERTÃO

Era o aboio mais sentido do Sertão do Araripe. Cidade de SerritaPernambuco. Voz entoada com a força de um peito sertanejo. Cantiga trazedora de saudade a quem a ouvia de longe. Era ritmo impostado, demonstrando que ali vinha um vaqueiro cantador. Um homem que fazia da coragem a profissão. E a canção ritmada que, aos ouvidos de um desatento, parecia simples berros com o gado, vinha de longe e ia para o distante, compondo a paisagem alaranjada e recheada de mandacarus e chique chiques, desenhando, na mente de quem a ouvia, cores de vida e traços de esperança. O cavaleiro vinha pelas estradas.Povo sabia: havia de ser Raimundo Jacó. Os vaqueiros aposentados corriam a mão em seus gibões empoeirados e relembravam estórias de valentia. As damas, ainda solteiras, aos gritos chamavam as irmãs para verem quem lá vinha, com força e tangendo o gado. Da janela admiravam. E o Sertão se fazia um pouco mais alegre naqueles momentos. Fazia-se mais encantado. Ele saudava a todos, feliz e sertanejo. Na cabeça, o chapéu de couro redondo, enfeitado e firme. No peito, o gibão. Nas pernas, as perneiras encouradas. As mãos recebiam as luvas de couros. E os pés, velhas botas de lida. Terno do Sertão. Cavalo, homem, cachorro. Na frente, vinha o gadinho, berrando. Era um cenário. Quadro desenhado na retina de quem viu ou quem imagina a cena. Cada bicho, com sua estória. O homem, bicho mor, misturava-se aos outros. A racionalidade dividia as espécies. Ser humano comandante. Mas no fim, depois dos meios, a cena era em conjunto. E o carinho de cada animal para com cada outro irmão era bonito de se ver. Raimundo amava seu cachorro, seu cavalo e seu gado de lida. Eles adoravam a Raimundo Jacó. Talvez seja mesmo a arte do amor que fez desse vaqueiro o mais afamado da região. Não havia boi que Raimundo não encontrasse perdido na catinga. Não havia novilha que conseguisse esconder a cria de seu vaqueiro mestre. Olhos de águia, que via pelos arranha-gatos dos cariris? Ou sensibilidade de se imaginar o translado

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do gado naquele momento de campear ? Parece mesmo coisas de conversas entre eles: homem e bicho. Mas prosa de coração, de sensibilidade e carinho. Guimarães Rosa, mais uma vez abrilhantando nossas ideias, parece ter traduzido o que por ora se tentou explicitar:

Ou o mais longe: vaqueiros do Brejo-Verde e do Córrego do Quebra Quináus: cavalo deles conversa cochicho-que se diz- para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem mais ninguém por perto, capaz de escutar. Creio e não creio. (ROSA, 2006, p.31).

Pois se parte do Sertão é solidão, outra parte é amor. Apego à Terra, aos pássaros, às crias novas que berram no curral pela manhã, clamando pelo leite gordo do peito das curraleiras, suas mães. E o desapego a determinados elementos traz uma vida verdadeira, onde não há tempo para maquiagens. Cenário de Raimundo Jacó. Realidade crua e, muitas vezes, seca. Secas. A fama que Raimundo passava a possuir pelo seu trabalho e o conhecimento que tinha de cada animal com o qual lidava corroboraram para o estudioso sobre o tema Rostand Medeiros afirmar que:

Conhecido pela sua dedicação ao trabalho era muito estimado pela população local. Ficou afamado pela coragem ao capturar, ou ‘pegar’, o boi no meio dos matos. Ele também era conhecido por saber no meio da caatinga fechada, onde descansava e bebia cada um dos animais que ele tomava conta” (MEDEIROS, 2012)

Do cachorro que acompanhava Raimundo Jacó não se encontra relato de nome ou alcunha que possuía. Deveria ser, é claro, um nome sertanejo, digno de nota e que daria aqui outro enredo belo. Sabe-se, apenas, por enquanto, que formavam dupla e eram amigos. Mais adiante trataremos mais especificamente de episódio belo e trágico, num tempo só, que parece ter ocorrido com o cão campeiro que acompanhava Jacó em suas empreitadas caatinga adentro. A importância do cachorro campeiro ao sertanejo é imensurável. Companhia em horas desertas. Amigo em tempos de aflição. Pois, no Sertão, há horas que não se vê morador, nem transeunte pelos trechos e estradas. Mas o vaqueiro não anda

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só pelos trilhos secos, seu cachorro o acompanha. Com ele, tece conversas. O cão, conhecedor das dores de seu dono. Sensibilidades. No interessante romance “Vidas Secas”, bem escrito por Graciliano Ramos, um personagem da história tem força de gente. É a cadela de nome baleia, que acompanha a dificuldade da “vida seca” no agreste Sertão e que divide pesadelos com seus donos. Em trecho do livro, comparando a cachorra com um membro do clã familiar, o narrador afirma:

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras. (RAMOS,1986, p.85 -86).

Imagem 1 - Estátua erguida em homenagem a Raimundo Jacó.

Fonte:http://gonzagaodobrasil.blogspot.com.br/2014/03/historia-da-missa-do-vaqueirode.html

A imagem acima traz uma estátua erguida em Serrita- Pernambuco em homenagem à Raimundo Jacó. Ela representa não só o Vaqueiro, mas toda uma legião deles, trabalhadores valentes que enfrentam as adversidades e os espinhos das caatingas. É motivo de orgulho e honra para os profissionais da lida com o gado.

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UMA FLOR EM MEIO À CAATINGA

No meio agreste e rústico, onde o Sertão presenteava seus membros com sua beleza e seus mistérios, é que vivia Odília de Jesus. Filha de dona Rosa e de Seu João, a moça crescia vendo pela janela de sua casa a lida diária dos vaqueiros que passavam pelas estradas tangendo o gado e gritando seus aboios sentidos e ritmados. Deve ter sido num dia de sol. Como é quase sempre na Caatinga alaranjada e seca. Aspereza de calor. Raimundo, vez ou outra passara perto da Casa de Seu João. Era escutar o aboio próprio e sentido entoado por este vaqueiro que Odília vinha na janela admirar de longe. E dos olhares da dama, que eram convidados pelos ritmos que Raimundo tirava do peito e da alma, parece ter surgido um querer bem entre ambos. A moça, bonita, amorosa e sertaneja, encantara-se com Raimundo. Sua fama de bondoso e dedicado ao labor, seu jeito de aboiar e sua força de homem e de bruto devem ter feito a alma feminina se inquietar. Para o pai da menina Odília, seu João, Raimundo não parecia o melhor partido para a filha. O moço era tido por ele como “farrista e namorador” (conforme fala entre os personagens que representavam Dona Rosa e Seu João no documentário “A Morte do vaqueiro Raimundo Jacó”, de direção e roteiro de Sônia Ferreira). Pois o tempo, com suas adversidades e acertos, incumbiu-se de definir o enredo do casal. Raimundo encorajado por sua valentia pediu mesmo a mão da moça em namoro e, logo, em casamento. Véu e grinalda no Sertão. Dia de cantoria e felicidades. Corações apaixonados. Casaram-se Odília de Jesus e Raimundo. A lida diária continuava. A labuta nas quebradas do agreste não cessava nem dava longas tréguas. Só mesmo o tempo do descanso mínimo, para se criar fôlego e coragem para enfrentar o sol e a empreitada do próximo amanhecer. Pois, para os recém casados, o cansaço não esmorecia o amor. Era festa de paixão. Do matrimônio, além do “entregar-se” afetivo e encantado, surgiram os herdeiros. Vieram, com o decorrer dos anos, dois filhos frutos da união entre o Famigerado Vaqueiro e sua dama, flor bela, nascida e criada nos campos catingueiros. Os nomes dos meninos: Vicente e Francisca.

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A BUSCA PELA RÊS DE ARRIBADA

Era dia de reza e festa na casa dos patrões de Raimundo Jacó. Dona Tereza Teles, a dona “Tetê”, e o fazendeiro José de Sá Barreto, chamado pelos mais próximos de Seu “São”, convidaram os vaqueiros da fazenda para a festividade. Após os louvores e os entretenimentos, Seu São, reunido com o também vaqueiro da fazenda José Miguel Lopes, chamou Raimundo para uma conversa. Explicara o patrão que uma das reses de Dona “Tetê” estaria fugida pelos campos da caatinga e que seria necessária uma empreitada no sentido de capturá-la. Pelo que narra a história, José Miguel era o responsável pelo plantel da patroa, enquanto Jacó cuidava do gado do patrão. Todavia, pela interpretação que se pode elaborar a partir narração que se tem, parece que Miguel teria tido percalços para encontrar sozinho o animal. Raimundo não interpôs dificuldades e logo no outro dia cedo saía pela caatinga, na companhia do outro amigo vaqueiro, na busca de “pegar” a rês fugitiva. Assim afirma o historiador Rostand Medeiros:

Raimundo Jacó trabalhava como vaqueiro para o fazendeiro José de Sá Barreto, conhecido como Seu ‘São’ e Dona Tereza Teles, a Dona ‘Tetê’. Consta que ele cuidava do gado do patrão e seu colega de profissão, José Miguel Lopes era o responsável pelo plantel da patroa. No dia 8 de julho de 1954, ano seco, os dois vaqueiros saíram pelo sertão em busca de uma rês arisca, já famosa pelas astúcias animais e que havia fugido. (MEDEIROS, 2012).

Essa seria a derradeira “pega de boi” do Vaqueiro Raimundo Jacó. A última vez que o Sertão ouviria seu maravilhoso e ritmado cantar com os bichos. Seu aboio ecoou desta feita deixando saudade para os últimos ouvintes. Seu cachorro campeiro não o viria mais, a não ser pela retina da memória. Os pássaros sertanejos não mais assistiriam ao espetáculo do bravio galope daquele cavaleiro pelas campinas afora atrás de boi bruto. Vicente e Francisca perderiam o saudoso e querido pai. Odília, agora mãe, perderia seu amor em forma de homem, os braços fortes e rijos do vaqueiro que tanto amava. Suas noites no agreste não teriam mais o abraço que a acalentava seu peito e seus sentidos. Pois naquele dia Raimundo partira caatinga adentro. Não ia só, como já dito.

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Saíra de casa na companhia do vaqueiro, seu companheiro de lida, José Miguel. Jacó, confiando na amizade deste, parecia tocar sem medo, na solidão dos dois, pelas Veredas onde a rês poderia estar escondida. Sobre a confiança disse “RiobaldoTatarana”, personagem criado pelo sabido Mestre Guimarães Rosa:

Confiança- o senhor sabe- não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de virtude. Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. (ROSA, 2006, p.56).

Pois, entranhados naquelas curvas de mato, teriam mesmo era que confiar um no outro. Entre vaqueiros ou cavaleiros companheiros, que tocam juntos pelas bandas do sem-fim, onde o Sertão é grande e gente quase não se vê, é a mão do amigo que pode ser a salvação em situação de dificuldades. Raimundo contava com Miguel. Onde a natureza é mais bruta, não devia a amizade ser mais amiga e mansa? Dependência de ajuda para enfrentamento do perigo. Uma onça, uma queda dentro de funda grota. Ou um boi agressivo.

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A MORTE DE RAIMUNDO JACÓ

Depois de um dia inteiro se ter passado, o tal tempo de busca pela rês fugida, apenas o vaqueiro José Miguel Lopes voltara à sede da fazenda. Quando questionado pelo destino do companheiro Raimundo Jacó ou pela rês objeto da busca, a resposta caminhou no sentido de que a criação não fora até então encontrada e que o vaqueiro Raimundo se perdera pelas quebradas do Sertão. Rebuliço na fazenda. O patrão ordenou aos empregados que fizessem investidas pelos campos da caatinga até encontrarem o querido e famigerado Raimundo. Uma inquietude tomou conta dos corações daqueles que esperavam notícias do, até então, desaparecido. Foram dois dias de empenho da vaqueirama. Uma correria pelos trechos mais próximos da caatinga para encontrar o sumido vaqueiro. No coração de sua esposa e de seus próximos, desespero angustiante. Aquele pedaço de Sertão parecia mais mudo com o desaparecimento daquele aboiador. Iniciada as buscas, passaram-se dois dias e veio a triste notícia. Encontrado perto de uma imbaúba (tipo de árvore comum naquela região de Pernambuco), o corpo de Raimundo Jacó estava jogado no chão, morto e com marcas de sangue pela cabeça. O cavalo, diz a história local, estava amarrado perto do corpo. Presa ao laço e também amarrada em toco de pau estaria a rês buscada. O cachorro campeiro, amigo-irmão do vaqueiro, estava protegendo o corpo de seu mestre, para que os urubus não lhe chegassem perto. O cenário estava desenhado na cabeça dos que acompanharam o desfecho daquele enredo. No local onde a morte se deu, ali mesmo fora sepultado o corpo de Raimundo Jacó. O cão, que sempre lhe acompanhava e que, antes de encontrarem o corpo de seu amo, protegia-o dos bicos dos urubus, segundo narra a história, ali permaneceu junto o corpo. E naquela beira de mata do sítio Lages, o cachorro de Campo que acompanhava Jacó morreu seco, de fome e sede, sem, contudo, abandonar a carne que ainda restou de seu guia morto enterrada em solo caatingueiro. O historiador, que se ateve ao caso de Raimundo Jacó, Rostand Medeiros, conta, em texto de estudo sobre o caso, que na cabeça do vaqueiro havia duas

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marcas de ferimento. Perto do corpo, estaria ainda uma pedra suja de sangue que, provavelmente, teria sido o objeto que gerou as lesões. Ele assim narrou:

Dois dias após seu desaparecimento, o cadáver de Jacó foi encontrado junto a um pé de Imbaúba, em um lugar conhecido como sítio Lages. A pouca distância do corpo estava amarrado o garrote fugitivo, o seu cavalo e, guardando dos urubus, estava o fiel cachorro. No crânio do vaqueiro havia duas marcas de ferimentos e não muito distante do seu corpo, uma pedra com sangue. Todo o cenário apontava para um possível assassinato. (MEDEIROS, 2012).

Para os que presenciaram, a cena trazia amargura, desespero e um desejo de justiça. O querido vaqueiro não poderia ter morrido em vão. Tamanha perda precisaria de uma resposta "justa" aos olhos do povo.

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CRIME OU MORTE ACIDENTAL? RESPOSTA PARA O DIREITO E INQUIETUDE PARA UM POVO

Pernambuco perdera seu grande vaqueiro Raimundo Jacó. Da valentia, era desempenhado seu ofício. Do ritmo de seus aboios, gritados com o dedo no ouvido do cantador, que devia ser para facilitar no controle da afinação, era conquistado aquele seu povo, que o louvaria depois de sua morte, com saudades de tempos longínquos e da alegria que Jacó trazia para aquele pedaço de chão agreste e seco. Como tudo naquele cenário de morte indicava, aos olhos da maioria que presenciou o local, que ali havia ocorrido um crime, a cobrança social para uma punição justa e estatal existiu e teve força. O principal suspeito não seria outro que não o companheiro de profissão de Raimundo e que o acompanhara naquela empreitada de “pega” de gado: José Miguel Lopes. Surgia a idéia de que, pelo fato de Raimundo ser à época conhecido como o melhor vaqueiro da região, Miguel carregaria por ela certa parcela de inveja e despeito. Nesse sentido, o “assassinato” teria acontecido quando Miguel, chegando às margens do açude do sitio Lages, deparou-se com Raimundo, já com a rês amarrada e aguardando tranquilamente a chegada do companheiro. A partir de então, tomado por sentimento de ódio e ira, Lopes teria atingido a cabeça do vaqueiro com a pedra, o que o levaria à morte. O caso gerou a abertura de um processo criminal contra Miguel Lopes. Durante depoimentos, o réu alegava inocência. Testemunhas também foram ouvidas (pelo que consta da história). Todavia ninguém estava no local da morte quando ela se deu, o que fez com que declarações testemunhais, no numero de cinco, não fossem tão levadas em consideração. Por fim, e para a Justiça, o caso não foi solucionado no sentido de condenação ou de apuração de fatos. Foram encontrados trechos da sentença que se refere aos autos que tinha como vítima Raimundo Jacó e como Réu Miguel Lopes. O Juiz entendeu pela ausência de elementos que permitissem imputar ao acusado a responsabilidade sobre o fato. Juridicamente, portanto, até os dias atuais a morte de Raimundo Jacó não fora esclarecida. Em um texto do defensor público Esmeraldo Cruz Sampaio, que, inclusive, traz imagens da referida sentença absolvitória, o jurista afirma que:

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segundo Processo Penal que tramitou na Justiça de Serrita, em sua sentença sobre o caso o Juiz da época da Comarca, JOSÉ ALVES VIEIRA MACIEL, NÃO CONDENOU MIGUEL PELA MORTE DO FAMOSO RAIMUNDO JACÓ.. vejamos parte da transcrição da Sentença: ‘OS PRESENTES AUTOS NÃO FORNECEM ELEMENTOS QUE PERMITAM IMPUTAR AO ACUSADO A RESPONSABILIDADE QUE LHE FOI ATRIBUIDA, NA DENUNCIA.’ ‘NÃO BOSQUEJA A MAIS LIGEIRA PROVA DO CRIME, QUANTO MAIS A SUA AUTORIA’ ‘OS DEPOIMENTOS INFORMAM QUE, NÃO SÓ O ACUSADO É PESSOA DE CONDUTA EXEMPLAR, COMO QUE NÃO HAVIA MOTIVOS QUE O INDUZISSE A ELIMINAR O SEU COMPANHEIRO DE TRABALHO’. ‘IMPRONUNCIO O RÉU MIGUEL LOPES FILHO DA ACUSAÇÃO QUE LHE É INTENTADA.’ SERRITA, 8 DE MARÇO DE 1956 JOSÉ ALVES VIEIRA MACIEL JUIZ DE DIREITO Diante dos registros, e com o final do processo, fica a duvida? Como morreu o famoso Raimundo Jacó, Vaqueiro e figura mítica de Serrita?.(SAMPAIO, 2011)

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Imagem 2 - Imagens da sentença, parte I.

Fonte: http://www.alvinhopatriota.com.br/a-morte-e-saga-de-um-vaqueiro-uma-outra-versao/

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Imagem 3 - Imagens da sentença, parte II.

Fonte: http://www.alvinhopatriota.com.br/a-morte-e-saga-de-um-vaqueiro-uma-outraversao/

A sentença, cuja imagem aparece acima, absolvia Miguel Lopes. A justiça dava sua resposta, que, em verdade, não satisfazia os anseios populares daqueles que viveram a história de Raimundo Jacó. Um sentimento de impunidade tomou conta da Região onde a morte ocorrera.

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MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS EM FORMAS DE CANÇÃO

Apesar da imensa sanção social, que havia, indubitavelmente, condenado Miguel Lopes pela morte do vaqueiro Raimundo Jacó, a Justiça formal não dera resposta para o caso. O enredo ganhara fama, entretanto, pelos rincões do Sertão pernambucano. Onde o vaqueiro morreu, mesmo lugar em que foi enterrado, uma cruz se fez presente e, diante de seu carisma e sua trágica morte, indivíduos que ali passavam costumavam fazer preces e pedir pela alma de Jacó. A região aonde ele vivia ainda amava e louvava o famigerado vaqueiro. Todavia foi com uma canção entoada na voz de seu primo Luiz Gonzaga que sua estória se fez ainda mais presente pelo Brasil e sua memória consagrada na cultura de um Nordeste encantado. A canção é de autoria do Rei do Baião, em conjunto com Nelson Barbalho. O autor queria homenagear o primo e fazer com que sua estória não se perdesse pelos trilhos do esquecimento. A música fora lançada no LP “Pisa no Pilão- Festa do Milho” em 1963, nove anos após a morte de Raimundo. Cantada quase que em ritmo de um aboio sentido, a letra explicita o sentimento doloroso que veio como conseqüência da morte triste de Raimundo Jacó. Ela representa a dor de toda uma região, trazendo consigo um lamento exuberante e um cenário mágico, agreste, bonito e triste num tempo só.

A Morte do Vaqueiro Numa tarde bem tristonha Gado muge sem parar Lamentando seu vaqueiro Que não vem mais aboiar Não vem mais aboiar Tão dolente a cantar Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, lengo, tengo Ei, gado, oi Bom vaqueiro nordestino Morre sem deixar tostão O seu nome é esquecido Nas quebradas do sertão Nunca mais ouvirão Seu cantar, meu irmão Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, lengo, tengo Ei, gado, oi

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Sacudido numa cova Desprezado do Senhor Só lembrado do cachorro Que inda chora Sua dor É demais tanta dor A chorar com amor Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, lengo, tengo Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, lengo, tengo Ei, gado, oi E... Ei...” (GONZAGA; BARBALHO, 1963)

O sentido da canção e o ritmo que lhe é inerente encantaram o povo Nordestino. Raimundo Jacó não seria esquecido. O enredo de um vaqueiro, que fazia poesia real em sua vida, virou poema e criou fama. “Nas quebradasdo Sertão” seu nome não deixará de ser ouvido no que depender da cultura e da voz que seu enredo ganhou.

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A MISSA EM NOME DO VAQUEIRO

Pelo Sertão afora, o que muito se encontra em forma de festa é reza e louvor à Santo. As pessoas entoam orações e cantam seus pedidos e agradecimentos. Depois de rezado o terço, muitas vezes, tem-se um forró e a comida está liberada aos convidados. E as rezas se fazem nas casas dos sertanejos. Vão se revezando. Algumas criam famas e se repetem na mesma data por anos e anos sem cessar. Outras se dão apenas uma vez, pois representando, por exemplo, pagamento a uma promessa que seu idealizador fizera com o fim de alcançar alguma graça. Pois naquele pedaço de Agreste, cidade de Serrita- Pernambuco, em 1965, um padre recém formado assumiu a Paróquia: Padre João Câncio dos Santos. O Pároco, nascido na bela e poética cidade de Petrolina em 1936, era um grande incentivador da cultura de sua região. Não preocupado apenas com os discursos que aprendera no seminário, João Câncio queria era se aproximar de seus fiéis, compreender-lhes os costumes e crenças, e estar próximo de suas manifestações culturais. A alcunha não lhe viera sem motivo. Padre João era conhecido por muitos como o Padre Vaqueiro, afinal ele participava sempre que podia de “pegas de boi” pelos meandros da caatinga e não deixava de vestir seu gibão de couro quando tinha oportunidade. Em certa data, realizara-se em Exu, cidade de Luiz Gonzaga, que se encontrava a aproximadamente setenta quilômetros de Serrita, uma festa de vaquejada. Foi nesse contexto que Padre João Câncio conheceu o Rei do Baião e, a partir daí, criaram sentimento de amizade. A música de Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho, “A Morte do Vaqueiro” fazia fama e caminhava, emocionando os ouvidos, por grande parte do Brasil. Ela é considerada um dos pilares e motores que vieram a incentivar a criação da famosa Missa do Vaqueiro, sobre a qual se discorrerá a seguir. Padre João se encantava com a referida canção. A história não sabe precisar como se começou a pensar na elaboração de uma missa. Parece que surgiram reclamações com o Padre João Câncio acerca de não se existirem rezas na região que louvassem uma das figuras mais

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importantesda caatinga: o vaqueiro. Pois, amparado por um grupo de amigos, dentre eles poetas, vaqueiros e familiares de Raimundo Jacó, surgia a Primeira Missalouvor à alma deste Vaqueiro que havia morrido de forma tão trágica e triste, deixando saudade e dor naquele pedaço de chão nordestino. A celebração ocorreria aonde Raimundo faleceu e foi enterrado. A amizade com Luiz Gonzaga fazia o evento se engrandecer. Entusiasmado também com o tema, o Rei do Baião logo se predispôs a ajudar o Padre João Câncio. Parece, inclusive, que Gonzava auxiliara, nos primeiros anos, no financiamentoda Festa. Ele próprio cantou ao lado do Padre a Primeira Missa do Vaqueiro, celebração simples em termos de infraestrutura, mas extremamente emocionante para os que a presenciaram. O evento começou em 1971 e até hoje rebrilha a cada ano, trazendo saudades e alegrias para a população de Serrita e dos arredores, movendo vaqueiros de todo o Estado de Pernambuco. O estudioso sobre o tema Rostand Medeiros afirma que:

Segundo o padre João Câncio, a primeira missa contou com o apoio decisivo de Luiz Gonzaga, que patrocinou grande parte do evento. Vários vaqueiros (o número não é especificado) e cerca de “50 outras pessoas” atenderam ao chamamento do padre e do cantador e se fizeram presentes no sítio Lages. Os cavaleiros vieram montados em seus alazões, trajados à caráter e assistiram a missa montados. A comunhão foi celebrada não com hóstias tradicionais, mas com queijo de coalho e rapadura. A missa foi celebrada sobre um tablado de madeira e junto ao padre estavam os familiares de Raimundo Jacó. Os poucos relatos que me forneceram sobre este primeiro evento mostram uma foto com o consagrado Luiz Gonzaga, de sanfona em punho, cantando o sermão da missa. (MEDEIROS, 2012)

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Imagem 4 - Missa do vaqueiro Serrita Rostand.

Fonte:http://tokdehistoria.com.br/2012/09/09/missa-do-vaqueiro-de-serritapernambuco-os-primeiros-anos/ A imagem acima, apesar de ja desgastada pelo tempo, mostra Luiz Gonzaga, junto do Padre João Cancio, cantando o louvor da Missa do vaqueiro. O Rei do Baião impunha sua sanfona e encantava os presentes com a canção "A morte do vaqueiro".

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A IMPORTÂNCIA DO CASO PARA O DIREITO- CORRELAÇÃO COM A HISTÓRIA O livro “Grande Sertão: Veredas”, escrito pelo renomado mineiro de

Cordisburgo João Guimarães Rosa, traz, em parte de suas descrições e análises, um caso de um julgamento pelos jagunços sertanejos. Quem daria a sentença final seria o chefe dos chefes, o grande líder deles, Joca Ramiro. O “réu” seria o combativo e nobre homem Zé Bebelo. Após a absolvição do acusado, “Riobaldo”, relembrando o caso depois de anos do ocorrido, conta:

O julgamento? Digo: aquilo que para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de palavras. –‘O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão...”- o senhor dirá. Pois: por isso mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo. (ROSA, 2006, p.285)

Os fatos ocorrem, naturalmente ou não. Muitos geram conseqüências imensuráveis para determinadas sociedades. O Direito, muitas das vezes, não consegue trazer respostas “reais” para tais acontecimentos e, nem se as trouxesse, talvez, não traria satisfação às reais angústias geradas por tais fatos. Ele, o “jus” formal, possui carga grande de objetividade, entretanto, a vida caminha além do objetivo e vai para mais da razão pura e seca. Os meandros das emoções e ausência de respostas pela via do lógico possuem parcela de força considerável nas relações sociais. No caso exposto pelo escritor João Rosa, houve um julgamento de um homem. Sua vida nas mãos de jagunços. Eles cobraram e se entenderam. Zé Bebelo fora absolvido da pena de morte, mas mandado embora para Goiás, deixando de aparecer em Minas e na Bahia por grande lapso de tempo. Os jagunços executaram essa sentença. Bebelo, com seu bando, também tirara vidas. O Direito nem ciência tomara do caso. É mesmo por isso que a história e a literatura compõem de forma tão rica a análise sobre o Direito. Elas trazem os fatos e as conseqüências humanas,

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sentimentais, reais que eles (fatos) geraram. O Código Penal traz uma conduta tipificada, todavia não carrega em si, nem explica, o que essa conduta pode gerar de sofrimento a um indivíduo ou a uma sociedade. No caso de Raimundo Jacó, no sentido por ora trabalhado, não foi diferente. O vaqueiro, cantador do aboio mais bonito e sentido do nosso Sertão Pernambucano, faleceu, deixando saudade e emoção. Se o ocorrido se deu por um assassinato praticado pelo seu colega de profissão, Miguel Lopes, isso o Direito não conseguiu responder. Não houve punição formal pelo Estado. A sanção social é que se deu forte. Para o povo daquele pedaço de Agreste do Araripe, Miguel era covarde, invejoso e cruel. Matara o querido Raimundo de forma triste e lastimável, tirando do Sertão o seu filho vaqueiro e cantador. A dor que a esposa de Jacó sentira, seus filhos e seus amigos, tampouco o Direito conseguiu consolar. A sociedade de Serrita se sentira desamparada pela Justiça formal dos homens. O caso foi tão importante e a dor que ele trouxe a uma sociedade tão imensa que o enredo virou história, canção, poema, missa e festa. O caso de Raimundo Jacó entrou para a cultura não só nordestina, mas brasileira. Serve de inspiração para vaqueiros e sertanejos do nosso Agreste muitas vezes esquecido. O objetivo do presente trabalho, portanto, era o de trazer esse caso para o Direito. Não para discutir se o possível autor fora mesmo Miguel, se é que existiu algum autor. Não para trazer os elementos da culpabilidade. Não para discutir a cena da morte segundo os conhecimentos periciais que hoje se tem. O enredo foi trazido com o objetivo de se trazer vida para o direito. O calor das relações humanas em detrimento da frieza do ordenamento jurídico. Objetiva-se trazer um pouco de emoção para um positivismo, às vezes, muito dogmático e encerrado na objetividade. Trazendo a idéia da necessidade desse retrato e recorte da vida, seja por meio da história, seja por meio da literatura, ou de ambas ao mesmo tempo, o autor Sergio Habib fez uma análise das obras de Jorge Amado buscando nelas elementos ou enredos que ao Direito fossem caros. O livro ganhou o título de “Ideias Penais na Obra de Jorge Amado”. Explicando a função desse autor para o Direito, Habib traz

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argumentos que são extremamente úteis para o momento desse trabalho:

Muitos estarão se perguntando- como certamente gostariam de me perguntar- qual a ligação, ou por outra, qual a relação de Jorge Amado com o Direito Penal? Jorge Amado era, além de notável romancista, também um penalista? Posso afirmar que sim e que não. Sim, porque ele é um escritor universal e como tal criou personagens com cariz penal. Não, porque ele não se fechou nos limites da dogmática pura, elaborando conceitos e estabelecendo princípios compatíveis com a ciência penal. Sim, porque, enquanto romancista, penetrou na alma humana prescrutando-lhe os anseios mais profundos, os desejos os mais secretos, os sonhos os mais inimagináveis,e, assim, desvendou mistérios e dissipou dúvidas. Não, porque não aplicou sanção, não condenou ninguém, não se limitou a impor a lei, nem a fazer da culpabilidade o motivo da salvação ou da danação do homem. Por tudo isso, Jorge Amado não foi um penalista na essência da palavra, mas foi sem dúvida um grande penalista na licença da palavra! Em seus trinta e sete romances encontramos bem mais direito penal do que nas infindáveis obras jurídicas que se escreveram sobre a ciência penal. Os seus personagens são, por assim dizer, a dramatização do Código Penal e de resto toda a legislação extravagante. (HABIB, 2012. p.11)

É nesse sentido também que a história de Raimundo Jacó engrandece o Direito. O conto de sua vida transmite a ideia de uma "dramatização" de uma morte, gerada ou não por um crime de homicídio, e a compreensão de suas facetas e consequências sociais. Se o que ocorreu foi de fato um assassinato, o enredo traz ainda possíveis reflexões acerca da motivação para o crime e suas circunstâncias.

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10 FIM Nesse trabalho, buscou-se, como evidenciado, trazer para o Direito pedaço e sentido real do Sertão do Brasil. Não se conseguiu, nem, em bem verdade, se quis, desvendar se houve crime ou não na morte do Vaqueiro Raimundo Jacó. O trabalho fez foi Raimundo renascer para o Direito e para uma análise e percepção social do que houve após seu falecimento. O aboio mais sentido do Sertão se foi em parte. Todavia sua outra banda continua a ser cantado pelas bocas, muitas vezes sem dentes e risonhas, de outros milhares de vaqueiros esquecidos por esse País afora. Desses, muitas vezes, o Direito e a Justiça formal não toma nota. Desses, só mesmo a cultura e as artes para não os olvidar por completo. O mito Raimundo Jacó trazido para os bancos da Academia. O Direito e parte do Sertão, cantante e aboiador, lado a lado. Travessia pela cultura do Nordeste, passando pelo seu gado, suas imbaúbas, seus Santos e suas festas. Humanização do direito. Calor humano diante das friezas das doutrinas e das Leis. Encerra-se o trabalho com uma espécie de louvor ao profissional mais afamado da caatinga. O texto é parte da fala de Pedro Bandeira, poeta e repentista do Nordeste, quando questionado sobre a figura do vaqueiro. Ele assim explica:

O vaqueiro é o pastor do gado. É a figura maior da fazenda. É o pai, padrinho, irmão, amigo, humano e divino da fazenda. Canta, chora, geme e grita quando uma rês adoece. Zela da fazenda mais do que o dono do gado. Conhece as vacas por nome. Todas as vacas, todos os bezerros, todas as reses conhecem ele pela pisada, pelo chão, pelo tato. Pelo cheiro, o cheiro do vaqueiro [...]. O cavalo conhece o vaqueiro, o dono dele, pelo cheiro. O boi conhece o vaqueiro, que é acostumado a lidar com ele, pelo cheiro. Se for outra pessoa, ele refuga. Mas se for o vaqueiro ele sente o cheiro do vaqueiro e diz: ‘Esse é o meu amigo, é quem cuida de mim, é quem me dá ração, é quem abre a porteira para eu ir beber água, é quem me leva pro curral, é quem cura a bicheira no meu casco ou no meu pé [...] quando eu adoeço’.” (Filme : Missa do vaqueiro- agroquima).

A conclusão, portanto, como foi dito também para a Introdução, não é facilmente delineada para esse tema. O que o trabalho traz é gota em comparação

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com um Oceano de reflexões possíveis diante da nossa Caatinga e do nosso Agreste. Encantos de ocasião trazidos para o mundo jurídico. Viva Raimundo Jacó! Viva o Direito! Viva o Sertão! Viva a literatura!

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11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A morte do vaqueiro Raimundo Jacó. Roteiro Sônia Ferreira. Publicado em Youtube, 2013. 26 min. Son, color. GONZAGA, Luiz; BARBALHO, Nelson. A Morte do Vaqueiro. In: LP Pisa no PilãoFesta do Milho, 1963. HABIB, Sérgio. Ideias Penais na Obra de Jorge Amado. 1ª edição. Ed.Consulex. Brasília-DF- 2012. Pág.11. Nota introdutória). MEDEIROS, Rostand. Missa do Vaqueiro de Serrita, Pernambuco- Os primeiros anos.2012. Disponível em: http://tokdehistoria.com.br. Acesso em: 24 nov.2015. MISSA do Vaqueiro, Savanna Filmes. Publicado em Youtube, 2014. 31 min. Son, color. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 58ª ed. Ed. Record. São Paulo. 1986. Págs. 85 e 86) ROSA, Jõao Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 1ª edição. Ed.Nova Fronteira. Rio de Janeiro. Pag.19) SAMPAIO, Esmeraldo Cruz. A morte e saga de um vaqueiro- uma outra versão. 2011. Disponível em: http://serritape.blogspot.com.br/2011/07/raimundo-jaco.html. Acesso em: 21 nov. 2015.