Distúrbios da micção em crianças - SPRS

RESUMO Os distúrbios miccionais da infância podem acometer as crianças em todas as idades, embora fiquem mais evidentes após a retirada das fraldas, a...

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Artigo de Revisão

Distúrbios da micção em crianças Voiding disorders in children Claudemir Trapp1, Cristiane Paim Pires2, Jordana Antes Fernandes3

RESUMO Os distúrbios miccionais da infância podem acometer as crianças em todas as idades, embora fiquem mais evidentes após a retirada das fraldas, até a adolescência. Segundo a atual classificação da International Children’s Continence Society (ICCS), tais distúrbios podem envolver as diferentes fases da micção, causando prejuízo na fase de enchimento ou de esvaziamento da bexiga. Os pacientes ainda podem apresentar enurese noturna monossintomática, quando a perda de urina noturna não está associada a outros sintomas urinários diurnos. Embora os distúrbios da micção evoluam espontaneamente para a melhora em algumas situações, eles levarão muitos pacientes a quadros infeciosos repetidos, algumas vezes graves ou desconforto extremo como episódios de incontinência urinária, frequência urinária aumentada e urgência miccional. A avaliação inicial da criança com sintomas relacionados ao trato urinário inferior pode ser feita com a história médica e exame físico bem direcionados e um diário miccional de três a sete dias, o que permite ao pediatra suspeitar da presença de algum distúrbio miccional. Em muitas situações, exames complementares de imagem e urodinâmicos não invasivos deverão ser realizados. Os tratamentos disponíveis podem ser comportamentais ou medicamentosos, no entanto, os tratamentos de reeducação miccional com biofeedback e eletroestimulação para-sacral são recursos terapêuticos atualmente indispensáveis. Descritores: Enurese noturna, doenças urológicas, pediatria.

ABSTRACT Voiding disorders may affect children of all ages, but they become more evident once children stop wearing diapers up to adolescence. According to the current classification of the International Children’s Continence Society (ICCS), disorders may involve the different phases of voiding, impairing bladder filling or emptying. Patients may also present nocturnal enuresis as the only symptom, i.e., when the loss of urine at night is not associated with other diurnal urinary symptoms. Even though voiding disorders may improve spontaneously in some situations, many patients will experience repeated infections, sometimes severe or associated with extreme discomfort, e.g., episodes of urinary incontinence, urinary frequency, and urinary urgency. The initial evaluation of a child with lower urinary tract symptoms may include a thorough medical history and physical examination, and a voiding diary of three to seven days, which will allow the pediatrician to assess the presence of a voiding disorder. In many cases, complementary imaging and noninvasive urodynamic tests should be performed. The therapies available include behavioral and drug-based approaches, but voiding reeducation programs with biofeedback and parasacral electrical stimulation are currently indispensable resources. Keywords: Nocturnal enuresis, urologic diseases, pediatrics.

1. Urologista Pediátrico, Hospital da Criança Santo Antônio, Porto Alegre, RS, Brasil. 2. Urologista do setor de Urodinâmica do Complexo Hospitalar Santa Casa, Porto Alegre, RS, Brasil. 3. Fisioterapeuta especializada em Fisioterapia Urológica Infantil, Clínica de Urologia Infantil Urokids, Porto Alegre, RS, Brasil. Como citar este artigo: Trapp C, Pires CP, Fernandes JA. Distúrbios da micção em crianças. Bol Cient Pediatr. 2013;02(2):53-8. Artigo submetido em 15.06.13, aceito em 25.08.13.

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Os distúrbios miccionais não neurogênicos na infância têm uma prevalência estimada maior do que 15% nas crianças em torno de sete anos de idade1. Conforme a padronização da International Children's Continence Society (ICCS), aquelas crianças neurologicamente normais que apresentam distúrbio do trato urinário inferior são classificadas em dois grupos: as que possuem distúrbios na fase de enchimento vesical, chamada de bexiga hiperativa, e aquelas com distúrbios na fase de esvaziamento - disfunção miccional1,2. A enurese noturna, perda involuntária de urina durante o sono, é classificada pela ICCS como um a condição heterogênea com diferentes mecanismos fisiopatológicos. Pacientes com disfunções do trato urinário inferior (disfunção miccional ou bexiga hiperativa) poderão apresentar a enurese noturna como um sintoma do distúrbio miccional, e nestes casos, outras queixas estarão associadas3,4. No entanto, a enurese noturna poderá manifestar-se isoladamente, como uma entidade clínica única, sem outros sintomas paralelos, daí chamada enurese noturna monossintomática. A importância dessa distinção entre a enurese noturna monossintomática ou não monossintomática é essencial para uma correta abordagem terapêutica5,6. A apresentação clínica destes pacientes em um primeiro momento nem sempre permite ao pediatra ou ao urologista pediátrico definir exatamente qual o distúrbio miccional que está sendo o responsável pelos sintomas urinários. Além disso, não raramente, as crianças podem ter a associação destes distúrbios concomitantemente. De uma maneira didática abordaremos a seguir os distúrbios miccionais separadamente, suas apresentações clínicas, a maneira como devem ser investigados, e as alternativas terapêuticas.

Disfunção miccional A disfuncão miccional infantil ocorre por uma incoordenacão vésico-esfincteriana, promovendo alterações urodinâmicas importantes e comprometendo o esvaziamento da bexiga. A atividade aumentada da musculatura perineal e do esfíncter uretral externo durante o período de esvaziamento vesical, ao invés do total relaxamento, resulta em um menor fluxo de urina, pressões de micção elevadas e resíduo de urina importante3. Os pacientes podem apresentar frequência urinária baixa, urgência, urgi-incontinência, infecções de urina de repetição e alterações intestinais, como constipação e encoprese. Em casos extremos, estes pacientes podem evoluir, se não forem

adequadamente tratados, para uma falência detrussora e até para a insuficiência renal crônica2,4. A avaliação das crianças com suspeita de disfunção miccional deve ser feita com uma detalhada história médica e obstétrica, observando se há história pregressa de oligohidramnio, hidronefrose antenatal, anoxia perinatal. Detalhes sobre o período em que a criança fez a transição das fraldas para o controle esfincteriano são muito importantes. O diário miccional de três dias, trazendo informações sobre frequência de micção, volume máximo urinado, consumo de líquidos, perdas de urina diurna e noturna fazem parte da avaliacão. Para a avaliação da função do intestino grosso a escala de Bristol ou de Roma III tem se mostrado de grande utilidade4. No exame físico, especial atenção deve ser dada à região lombo-sacra, observando algum desalinhamento ósseo, alterações na pele da região ou alterações da musculatura glútea. A região perianal e perineal também deve ser cuidadosamente inspecionada e um breve exame neurológico testando reflexos superficiais pode ser feito4-6. Exames complementares Exame qualitativo de urina

Pode sugerir a presença de infecção ou outras alterações como glicosúria ou proteinúria que poderiam anunciar a presenca de diabete ou lesão renal3. Ultrassonografia

Deverá dar informações sobre o volume vesical pré e pós-miccional, espessura da parede vesical, existência de alterações pielo-ureterais e a presença de fezes impactadas na ampola retal. Resíduo miccional maior do que 10% da capacidade vesical esperada para a idade é considerado significativo7,8. A identificação de fezes na ampola retal, com a largura do reto maior do que 3 cm e ausência de desejo evacuatório no momento do exame é um importante sinal de constipação3. Urofluxometria

A medida do fluxo urinário em crianças que já adquiriram o controle esfincteriano é de extrema importância na disfunção miccional. Quando associada à eletromiografia de superfície faz o diagnóstico de obstrução funcional9. O fluxo urinário de uma criança normal tem o formato de um sino no gráfico gerado pelo estudo de fluxo de urina, independente do gênero ou idade. Crianças com uma obstrução dinâmica (disfunção miccional) terão uma in-

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terrupção abrupta do fluxo de urina antes de atingir o fluxo máximo, formando uma curva intermitente ou flutuante. Além desse fluxo característico, o tempo de fluxo será aumentado2. A realização concomitante da eletromiografia permitirá ao examinador detectar o aumento de atividade da musculatura perineal no momento da interrupção do fluxo urinário10. A urofluxometria com eletromiografia não é um exame invasivo, adequada para o uso pediátrico e essencial para a definição diagnóstica da disfunção miccional. Os estudos urodinâmicos completos nas crianças com disfunção do trato urinário inferior não neurogênicos são reservados àquelas crianças com falhas terapêuticas, ou quando o rastreamento feito pela fluxometria mostra fluxo permanentemente baixo, sugerindo obstrução anatômica ou hipocontratilidade vesical3. Tratamento

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anos aparelhos com softwares com animação, o que mostrou boa aceitação pelo público infantil, com bons resultados terapêuticos12. Bloqueadores alfa-adrenérgicos

Os receptores alfa adrenérgicos são encontrados no trato urinário inferior principalmente no colo vesical e uretra proximal. A ativação adrenérgica promove a contração muscular e aumento da resistência ao esvaziamento da bexiga. O bloqueio destes receptores provoca o relaxamento desta musculatura e facilita o esvaziamento vesical. A doxazosina, um bloqueador seletivo dos receptores alfa-1 tem sido empregado e bem tolerado em crianças. Embora existam relatos que entusiasmem o uso deste tipo de medicação na população pediátrica, não há ainda ensaios clínicos bem delineados mostrando resultados convincentes na populacão infantil14,15.

Tratamentos comportamentais

As orientações para mudanças de hábitos incluem uma conscientização da criança e da família para o problema. A ingesta adequada de líquidos, um agressivo tratamento da constipação, micções programadas pelo relógio e orientações na postura adotada à micção estão entre as mudanças comportamentais que devem ser adotadas. As crianças são estimuladas a usarem suportes para os pés no banheiro, que permitam a elas ficarem com apoio quando estão sentadas no vaso sanitário. Esta manobra auxilia a prensa abdominal permitindo um melhor esvaziamento vesical e colônico. Orientar a criança a urinar sem pressa, permitindo um tempo adequado para o esvaziamento da bexiga também é fundamental2,11. Biofeedback (Terapia de retreinamento do assoalho pélvico)

É uma forma de reeducação da musculatura perineal a partir das informações recebida por meio de eletromiografia de superfície. Com as informações da atividade muscular, o terapeuta orienta o paciente a realizar manobras de relaxamento perineal e observando a resposta instantânea. O treinamento permite às crianças, principalmente as maiores, uma conscientização da sua atividade muscular, do seu relaxamento, da força, do tempo de contração e da coordenação. Várias sessões são necessárias para um resultado sustentado12,13. A desvantagem do biofeedback é que o sucesso é dependente do nível de dedicação e envolvimento do paciente. E isto é algumas vezes difícil nas crianças. A indústria especializada produziu nos últimos

Toxina Botulínica A

O uso de toxina botulínica nos pacientes com diagnóstico de incoordenação vesico-esfincteriana foi utilizado em alguns centros como uma alternativa terapêutica quando os tratamentos medicamentosos ou de reabilitação muscular falharam16,17. A injeção endoscópica intra-esfincteriana de 50-100 UI apresentou efeitos transitórios, com melhora dos parâmetros clínicos e urodinâmicos.

Hiperatividade vesicaL A hiperatividade vesical ou detrussora apresenta-se clinicamente como urgência miccional, incontinência de urgência, aumento da frequência de micção, baixos volumes miccionais e, em alguns pacientes, enurese noturna. As manobras de contenção,como cruzar as pernas, com o objetivo de suprimir as contrações não inibidas detrussoras, são característicos da bexiga hiperativa. Existe íntima relação entre a constipação e hiperatividade vesical. Acredita-se que a massa fecal retal pode desencadear contrações vesicais, além de diminuir a capacidade funcional da bexiga18. O exame físico na criança com hiperatividade vesical é normal. O ultrassom geralmente não mostra resíduo vesical, mas em casos mais severos pode detectar dilatação ureteral pela presença de refluxo de urina ou até mesmo espessamento da parede vesical. O estudo urodinâmico completo em crianças com bexiga hiperativa é dispensável, sendo reservado para aquelas crianças que não respondem aos tratamentos iniciais19.

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Tratamento

Enurese noturna monossintomática

Anticolinérgicos

A abordagem terapêutica da enurese noturna não monossintomática será dirigida para a causa subjacente, hiperatividade vesical ou disfunção miccional. A terapia da enurese monossintomática, porém, merece considerações especiais. A enurese noturna monossintomática pode ser classificada quanto em primária e secundária. A enurese primária refere-se aquelas crianças, com mais de 5 anos de idade, que perdem urina no mínimo duas vezes por semana e jamais adquiriram o controle noturno. Na enurese secundária houve um período maior do que seis meses sem perdas e a partir de um momento, a criança ou o adolescente passa a não ter o controle noturno. A enurese noturna secundária muitas vezes tem causas psicológicas e uma avaliação especial deverá ser realizada. Os tratamentos utilizados na ENM variam desde medidas comportamentais, passando por medicamentos até o uso de alarmes para despertar as crianças25.

A oxibutinina é a droga de primeira escolha no tratamento da hiperatividade da bexiga18. Os efeitos colaterais desta medicação são muito frequentes e incluem principalmente boca seca e constipação, o que explica a baixa tolerabilidade e o abandono precoce do tratamento. Os poucos estudos randomizados envolvendo a oxibutinina mostraram eficácia na resolução dos sintomas vesicais20. Outros anticolinérgicos têm sido pesquisados na população infantil. A tolterodina mostrou-se eficaz e segura, apresentando menos efeitos adversos21,22. Em nosso meio, porém, não tem sido indicada, talvez pelo custo elevado desta medicação. Toxina Botulínica A

A toxina botulínica age bloqueando a liberação présináptica da acetilcolina na junção neuromuscular23. Esta ação eferente resulta em supressão da atividade contrátil do detrussor. A principal indicação do uso de toxina botulínica em bexiga hiperativa entre as crianças foi a resistência às terapias convencionais. O único estudo que aplicou toxina botulínica em crianças com bexiga hiperativa não neurogênica mostrou resultado de melhora total ou parcial acima de 70%. A dose recomendada neste estudo foi 100 UI23,24. Neuromodulação sacral

A estimulação elétrica transcutânea das raízes sacrais (S3) introduzida em 2001 tem um mecanismo não totalmente elucidado. Provavelmente a estimulação direta das fibras musculares, a ativação da inervação simpática e a inibição de nervos parassimpáticos que vão em direção à bexiga estão envolvidos na resposta obtida pela neuromodulação. Inicialmente idealizado para aqueles casos refratários ao uso de anticolinérgicos, a eletroestimulação sacral transcutânea tem níveis de evidência que permite indicá-la como primeira escolha aos pacientes com diagnóstico de bexiga hiperativa, com a vantagem sobre os anticolinérgicos de não apresentar efeitos adversos25. Manejo da constipação

O tratamento da constipação é comum às disfunções do trato urinário inferior, sendo imprescindível sua abordagem tanto naquelas crianças onde fazemos o diagnóstico de bexiga hiperativa, quanto naquelas com quadro de disfunção da micção. Não é objetivo desta revisão discutir o manejo terapêutico da constipação.

Terapia comportamental Procuram modificar comportamentos da criança. É a primeira linha de abordagem, e embora os resultados isolados não sejam satisfatórios, devem ser inicialmente tentados pelos poucos efeitos adversos e baixos custos. Diferentes técnicas podem ser empregadas: – reforço positivo: medidas de diminuição de líquidos à noite são associados a controles escritos (diário de noites secas) que procuram fazer um monitoramento das perdas, com premiação para as noites secas26. – controle de retenção: as crianças são orientadas, durante o dia, a adiar a micção com o objetivo de acomodar o detrussor, fazendo com que ele se habitue a volumes maiores. Esta medida poderia trazer benefícios durante a noite27.

DDAVP (Desmopressina) Este análogo sintético do hormônio antidiurético (ADH) deve ser utilizado nas crianças em que a avaliação sugeriu poliúria noturna. Os índices de sucesso com a desmopressina são em torno de 70%. A retirada do medicamento, entretanto, tem um índice elevado de recidiva da enurese28,33. O tempo de tratamento ainda não está definido. O DDAVP está disponível em comprimidos de 0,1 e 0,2 mg. A apresentação em spray nasal de 10 µg não é utilizada em crianças com enurese32.

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Alarme Dispositivo colocado junto à roupa da criança, que emite som, no momento da micção. O dispositivo tem a intenção de acordar a criança e provocar a inibição do reflexo do ato miccional, estimulando o paciente a ir ao banheiro. O alarme exige envolvimento da criança e da família, e o início da sua utilização requer paciência até todos estarem bem adaptados29. Os resultados com o uso de alarmes noturnos com resolução total da enurese chega a 75%. Uma vantagem do método é a sustentabilidade do resultado após sua retirada. Antidepressivos tricíclicos Representado principalmente pela imipramina, os antidepressivos são considerados segunda linha de tratamento. Devem ser empregados na enurese noturna monossintomática, quando não houve resposta a outras formas de terapia, em crianças maiores. Em torno de 50% dos pacientes melhoram com estes medicamentos, mas a retirada da droga é acompanhada de um alto índice de recidiva da enurese30,31.

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Correspondência: Claudemir Trapp E-mail: [email protected]