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HART: O CONCEITO DE DIREITO

Prof. Pablo Antonio Lago

Apesar de pouco estudado no Brasil, Herbert Hart é um dos juristas mais influentes no campo da filosofia e teoria do Direito. Sua obra mais conhecia é O Conceito de Direito, que será objeto do presente texto. Dentre suas grandes inovações, podemos citar a inclusão de temas da filosofia da linguagem no âmbito jurídico e o aprimoramento do positivismo jurídico. Hart, como inúmeros outros juristas, inicia sua obra com a célebre questão “o que é Direito?”. Entretanto, percebe a impossibilidade de se alcançar uma definição de Direito da mesma forma com que podemos definir termos como “elefante” e “triângulo”. O conceito de Direito admite inúmeras concepções, o que implica na existência de controvérsias sobre seu sentido. Assim, o empreendimento hartiano pode ser visto como uma concepção do conceito de Direito, sem cair no equívoco de definições fechadas e universais. Mas o que deve ser analisado dentro de uma concepção de Direito? Segundo Hart, percebemos algumas questões primordiais que gravitam ao torno da nossa questão principal, sobre o que é o Direito. Estas questões, em síntese, versam sobre a obrigatoriedade do Direito, sobre as distinções e relações entre o Direito e outros sistemas normativos e, por fim, sobre a natureza das normas e regras em geral. Quanto à obrigatoriedade, ter uma noção clara do que ela significa é fundamental para a compreensão do fenômeno jurídico, já que o Direito é um fenômeno normativo. Normas e regras estabelecem obrigações, mas estas obrigações possuem características específicas – elas não se confundem, como veremos adiante, com uma possível “obrigação” de entregar dinheiro a um assaltante. Mas as obrigações são uma característica de normas e regras em geral. O que diferenciaria as regras jurídicas das regras morais ou éticas? A segunda questão que Hart busca responder diz respeito, portanto, às distinções do Direito e suas relações com outros sistemas normativos, como a Moral e a Ética. Por fim, o que são normas? Qual a sua natureza e suas características básicas? Como devemos analisá-las? Esta terceira questão também será objeto de análise de Hart, principalmente quando constatamos que regras podem ir além da mera estipulação de obrigações e nem sempre são apoiadas em sanções. De qualquer modo, quando nos 1

ocupamos com estas três questões, alcançamos uma compreensão mais aprofundada do Direito como um todo. Segundo Hart, muitas teorias jurídicas buscaram responder estas questões. Uma delas é a proposta por um filósofo do século XIX, John Austin, que é objeto de crítica por parte de Hart nos primeiros capítulos de O Conceito de Direito. Austin teria uma teoria jurídica excessivamente simples, que deixa de responder de modo satisfatório algumas complexidades que observamos na prática jurídica. Em síntese, para Austin, o Direito corresponderia a um conjunto de regras sustentadas por sanções e criadas por um soberano (seja um indivíduo ou um grupo de indivíduos), que é habitualmente obedecido pela coletividade, mas que não deve obediência a mais ninguém. Quais são os problemas apresentados por esta teoria? Hart nos lembra que a linguagem utilizada pelas regras e normas em geral é imperativa. Regras e normas não são, portanto, meras afirmações ou pedidos – elas se aproximam da ideia de uma ordem. Assim, por exemplo, se digo para algum aluno “saia da sala!”, minhas palavras serão interpretadas não como um pedido, muito menos como uma pergunta; a depender da entonação e das circunstâncias, elas corresponderão a um imperativo. Entretanto, elas não são meras ordens como, por exemplo, o “passa a carteira!” emitido por um assaltante. Elas pressupõem algo além, que corresponde à ideia de autoridade. Assim, quando emitidos por uma autoridade (que é estabelecida em razão de alguma norma, e reconhecida como tal), os imperativos são chamados de comandos. A teoria de Austin, a princípio, não é capaz de estabelecer esta primeira diferença, o que faz com que sua teoria não seja capaz de responder às diferenças entre as ordens de um gângster e os comandos de uma autoridade, reconhecida como tal. Outras diferenças entre a ordem do assaltante e os imperativos jurídicos (normas e regras) se fazem presentes. A primeira delas diz respeito à generalidade das regras jurídicas: elas têm como destinatária uma coletividade (e.g. a regra que proíbe o homicídio), enquanto as ordens de um assaltante são pessoais. Em segundo lugar, as regras jurídicas possuem um caráter de permanência no tempo: um homicídio praticado não implica no “fim” da regra que proíbe o homicídio; a ordem do assaltante, por sua vez, não é dotada de permanência – uma vez entregue o dinheiro e abandonado pelo assaltante, não me encontro mais sobre o seu poder; sua ordem é, portanto, localizada no tempo e no espaço. Mas a distinção mais importante é a que diz respeito, justamente, ao caráter obrigatório das regras jurídicas. Hart sugere uma distinção entre ser obrigado e ter uma 2

obrigação. No caso do assaltante, “sou obrigado” em razão de uma ameaça. O que me motiva a cumprir sua ordem não é a ordem em si, mas sim o medo das consequências no caso de descumprimento – prova disso é que, muito provavelmente, ignoraríamos a ordem se ela fosse emitida por uma criança com uma arma de brinquedo. Mas, quando estamos diante de uma regra jurídica, reconhecemos que ela estabelece uma obrigação – a razão principal para cumprirmos ou não uma regra diz respeito ao fato de que ela corresponde a uma razão para a nossa ação: em geral, respeitamos regras jurídicas porque elas são regras, e não porque tememos eventuais sanções. Assim, por exemplo, ainda que tememos receber uma multa, o normal é pararmos no sinal vermelho porque ele representa uma regra – devemos parar nosso carro quando vemos o sinal vermelho. Regras criam obrigações, deveres, o que não se confunde com as ordens de um assaltante. Retomaremos esta diferença mais adiante, quando tratarmos do caráter interno das normas. Austin, entretanto, não estabelece claramente esta distinção entre “ser obrigado” e “ter uma obrigação”. A eventual diferença residiria no fato de que as ordens do soberano, ao contrário das emitidas pelo assaltante, são habitualmente obedecidas. Um dos conceitos-chave na teoria austiniana do Direito, portanto, reside na ideia de hábito de obediência. Mas será possível explicar satisfatoriamente a obrigatoriedade de regras a partir da ideia de hábito? De acordo com Hart, a explicação austiniana é insatisfatória porque a noção de habitualidade nada diz sobre a obrigatoriedade das normas. Podemos imaginar um exemplo: paulistanos tem o hábito de comer pizza nas noites de sábado. Isso significa que há uma regra entre eles de que “paulistanos devem comer pizza nas noites de sábado”? Sabemos que não. A mera constatação de habitualidades, de comportamentos convergentes, não é o bastante para explicar a natureza das normas e regras em geral. Da mesma forma, a mera constatação de que indivíduos seguem as ordens de um soberano nada diz sobre o caráter obrigatório destas ordens. A partir daí, Hart formula outras críticas à noção de soberania sugerida por Austin. Se o soberano é “habitualmente obedecido”, e daí decorreria a obrigatoriedade das regras que estipula, como podemos dizer que as ordens de seu futuro sucessor são obrigatórias se, acerca delas, ainda não se estabeleceu um hábito de obediência? Em síntese, como explicar de modo satisfatório a sucessão de soberanos, se a noção austiniana pressupõe a pessoalidade daquele que detém o poder? Ademais, o que faz

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com que suas regras sejam persistentes, ou seja, continuam sendo obrigatórias mesmo após sua morte? A ausência de respostas satisfatórias para tais questões já seria o bastante para abandonarmos a teoria de John Austin. Outra crítica levantada por Hart, entretanto, diz respeito ao fato de que nem toda regra ou norma jurídica é dotada de sanção. Hart menciona a existência, em sistemas jurídicos complexos como o nosso, de regras que estabelecem competências ou procedimentos, cuja natureza é bem distinta das regras que estabelecem obrigações de modo direto e que se sustentam em sanções – assim, por exemplo, uma regra que estabelece a exigência de três testemunhas para que um testamento seja válido é muito distinta da regra penal que proíbe homicídios e estabelece uma sanção na hipótese de descumprimento. Poder-se-ia argumentar, entretanto (e seguindo uma resposta atribuída à Kelsen), que a nulidade ou invalidade prevista no caso de não se seguir um procedimento ou desrespeitar uma competência corresponderia a uma sanção. O problema, segundo Hart, é que nós corremos o risco de alargar excessivamente o conceito de sanção para abarcar hipóteses que, tipicamente, não se enquadram neste conceito e não se alinham às nossas práticas linguísticas. Ainda que uma lei elaborada pelo Congresso seja considerada inválida, por desrespeitar preceitos formais ou materiais da Constituição, ninguém consideraria que esta invalidade corresponde a uma “sanção” atribuída aos legisladores. Da mesma forma, ninguém diria que o testador sofreu uma “penalidade” por ter elaborado um testamento inválido – ele apenas não obterá os resultados que pretendia. Tem-se, portanto, que uma explicação satisfatória do Direito deve abranger tipos normativos que vão além das meras regras baseadas em sanções e penalidades. Feitas estas críticas, Hart sugere “um novo começo” para descrevermos o Direito, e é a partir daí que entramos na parte substancial de sua concepção sobre o fenômeno jurídico. O primeiro passo é verificar a maneira através da qual devemos analisar as normas e regras em geral e explicar sua obrigatoriedade. Para Hart, podemos assumir dois pontos de vista com relação às normas: um ponto de vista externo e outro interno. O ponto de vista externo é aquele que, em certa medida, limita-se à observação de regularidades e possibilita uma análise preditiva das condutas. Em síntese, o ponto de vista externo é aquele típico do sociólogo, capaz de explicar os “hábitos” constantes na teoria austiniana. Assim, por exemplo, posso observar que os indivíduos param seus carros diante do sinal vermelho, e após algum

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tempo de observação, sou capaz de dizer com certo grau de certeza que, quando o sinal ficar verde, eles seguirão adiante. O ponto de vista externo, entretanto, não é capaz de explicar a obrigatoriedade do Direito. Como já mencionado, a mera observação de comportamentos convergentes não constitui uma regra (lembrem-se do hábito paulistano de comer pizza aos sábados). O que precisamos, segundo Hart, é compreender a ação dos indivíduos que se sujeitam às regras e normas – devemos nos colocar em seu lugar, o que significa assumir um ponto de vista interno. Quanto nos colocamos no lugar dos indivíduos que seguem regras, observamos que os indivíduos tomam estas regras como uma razão para agir – as pessoas param no sinal ou tiram seus chapéus quando entram em uma igreja porque há uma regra que determina uma ação; em outras palavras, as regras estipulam uma ação, um “dever-ser”, e é neste sentido que elas constituem uma razão para agirmos de acordo com seus preceitos, ainda que possamos agir de modo distinto1. Mas regras não constituem apenas razões para nossa ação; elas também fundamentam a crítica ou censura ao comportamento desviante – são, assim, razões para censurar aqueles que não se comportam como determina a regra. Se desrespeito a regra moral ou religiosa que proíbe a entrada e permanência com chapéus em uma igreja, muito provavelmente serei censurado pelos demais, que invocarão a norma como justificativa para a crítica ao meu comportamento. O mesmo não ocorre quando deixo de seguir um mero hábito (logo, não serei censurado quando deixo de comer pizzas ao sábado à noite). De qualquer modo, só notamos que regras constituem razões para agir e razões para a censura quando assumimos este ponto de vista interno, a partir do qual somos capazes de nos colocarmos no lugar daqueles que efetivamente tomam as regras como guias para seus comportamentos individuais e coletivos, assumindo uma atitude crítica – somente assim somos capazes de explicar o fenômeno da obrigatoriedade. Esta explicação contempla regras morais, éticas e jurídicas. O que diferenciaria as regras jurídicas das demais regras? Para Hart, o Direito é composto por regras de diferentes tipos, indo além das regras que versam diretamente sobre obrigações ou que se sustentam em sanções. Se observarmos nossa prática jurídica, constatamos uma diversidade de leis que vai além 1

Autores como Joseph Raz acrescentam que as regras jurídicas constituem não apenas razões para nossa ação, mas devem ser vistas como razões exclusionárias – normas e regras são criadas de modo a prevalecer sobre qualquer outra vontade ou razão diferente. Assim, por exemplo, devo seguir a norma do “pare no sinal vermelho” ainda que eu tenha outras razões para não parar (e.g., o fato de estar com pressa para chegar a algum lugar).

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do que propuseram autores anteriores, como Austin. Deste modo, o Direito é concebido como um conjunto de normas primarias e secundárias. Para tratar desta distinção, Hart pede que imaginemos uma sociedade primitiva, composta apenas por regras que estipulam obrigações e sanções, que são as regras primárias. Esta sociedade padeceria de alguns problemas: em primeiro lugar, não há como dizer quais são as regras efetivamente jurídicas que compõe esta coletividade (há um problema de incerteza com relação ao Direito). Em segundo lugar, não há como alterar ou modificar este conjunto de regras, o que implica no seu caráter estático. Por fim, estas regras não definem quem deverá aplicá-las, e como fazê-lo – o que implica na ineficiência deste sistema primitivo. Na medida em que esta sociedade primitiva avança e se torna mais complexa, estes problemas vão se tornando mais aparentes. Solucioná-los se transforma em uma necessidade. Deste modo, são criadas as regras secundárias como forma de responder à incerteza, estaticidade e ineficiência do sistema constituído apenas por regras primárias. Elas são de três tipos: reconhecimento, modificação e julgamento. A regra de reconhecimento é a que permite identificar o que é ou não é Direito em uma dada coletividade. As regras de modificação são as que permitem, como o próprio nome sugere, alterar ou modificar as regras jurídicas já existentes – elas superam a estaticidade do sistema primitivo ao estabelecer as formas com que se criam novas regras jurídicas ou relações jurídicas particulares, como as regras que estabelecem determinados procedimentos ou que versam sobre a elaboração de contratos ou testamentos. Por fim, as regras de julgamento são aquelas que estabelecem competências para julgar casos concretos ou aplicar o Direito e as decisões judiciais – são elas que garantem a eficiência do sistema, na medida em que definem e delimitam diferentes funções entre os funcionários públicos. Das regras secundárias, a mais importante é a de reconhecimento. É ela que, como mencionado, nos permite identificar o Direito. Isso significa que é a partir dela que conseguimos delimitar as regras jurídicas de uma dada comunidade, distinguindoas das regras dos demais sistemas normativos, como a Moral, a Religião ou a Ética. Ela corresponde a um conjunto de critérios socialmente compartilhados – as pessoas de uma dada comunidade convencionam o que é ou não é Direito. Assim como a norma hipotética fundamental de Kelsen, ela é uma regra última e suprema, construindo uma estrutura “piramidal” semelhante à do modelo kelseniano. Mas, ao contrário da norma hipotética fundamental, a regra de reconhecimento não é uma mera “hipótese” e sim um 6

fato do mundo – o fato de que as pessoas aceitam e compartilham alguns critérios que nos permitem identificar o que é juridicamente obrigatório. Diferentes sociedades possuem diferentes regras de reconhecimento, portanto: uma sociedade mais simples pode convencionar que aquilo que um soberano ou um corpo legislativo decidem é “Direito” e juridicamente obrigatório (as regras que criam são regras jurídicas); sociedades mais complexas, como a nossa, podem associar estes critérios de identificação do Direito com uma Constituição e todos os seus pormenores2. De qualquer modo, o importante é perceber que a regra de reconhecimento não apenas identifica o Direito de uma coletividade, mas também atribui validade às demais regras do sistema. Tem-se, assim, que a obrigatoriedade da regra de reconhecimento decorre da sua aceitação enquanto um conjunto de critérios convencionalmente compartilhados; as demais regras do sistema são juridicamente obrigatórias apenas e na medida em que são válidas nos termos da regra de reconhecimento3. Aqui nós temos a estrutura geral do pensamento hartiano: o Direito corresponde a um conjunto de regras primárias e secundárias de uma dada coletividade, regras estas que são identificadas a partir da regra secundária de reconhecimento. Esta regra de reconhecimento é obrigatória na medida em que é aceita pelos indivíduos – o que se constata não apenas através de um ponto de vista externo, mas sim a partir do ponto de vista interno. As demais regras do sistema jurídico são obrigatórias na medida em que são válidas – que se encontram de acordo com critérios previstos na regra de reconhecimento. Uma explicação completa do fenômeno jurídico, entretanto, deve levar em consideração outros aspectos relevantes. Um deles diz respeito à interpretação do Direito. Hart afirma que uma das características da nossa linguagem, e que consequentemente repercute no âmbito jurídico, diz respeito à sua textura aberta: dentre as palavras e expressões que utilizamos, somos capazes de identificar casos centrais ou paradigmáticos e casos periféricos ou fronteiriços. Assim, por exemplo, com relação à expressão “careca”, somos capazes de identificar alguns casos paradigmáticos de 2

Assim, no caso brasileiro, é possível afirmar que nossa Constituição corresponde à nossa regra de reconhecimento. Não seria possível afirmar o mesmo no caso kelseniano: a norma hipotética fundamental é uma abstração que tem como função “fechar” o sistema. Ela estaria acima, portanto, de quaisquer outras regras jurídicas positivas, não sendo correto confundi-la com a Constituição. 3 É por tal razão que não faz sentido dizer que a regra de reconhecimento é uma regra “válida”. Afinal, ela é o próprio padrão “validador” – é um nonsense dizer que a regra que estipula a validade das demais é válida ou não. Seria a mesma coisa que se questionar se a barra de ferro constante no Museu de Pesos e Medidas de Paris, que corresponde ao padrão que define “um metro”, tem ou não tem um metro. Se esta barra é o padrão que define o que tem um metro, não faz sentido perguntar se tem ou não tem um metro.

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alguém que efetivamente seja careca (i.e., que não tenha um fio de cabelo na cabeça, como é o caso do Foucault), e casos paradigmáticos de alguém que não é careca (e.g., um vocalista do Sepultura ou alguém que tenha muito cabelo). Mas além destes casos paradigmáticos que se enquadram ou não no conceito em questão, somos capazes de encontrar alguns diversos casos capazes de suscitar dúvidas (e.g., alguém que tenha uma certa quantidade de cabelo aqui e acolá, que para alguns pode ser visto como “careca” mas para outros não). Esta textura aberta se aplica às normas e regras jurídicas, e o exemplo mencionado por Hart diz respeito a uma norma que eventualmente proíba veículos em um parque, estipulando uma multa. Se eu parar um fusquinha no parque, certamente estarei infringindo a norma, pois um carro é um caso paradigmático daquilo que denominamos “veículo”. Outras coisas, como uma bola de futebol, certamente não constituem “veículos” e, portanto, não infringem a norma em questão. Isso significa que o responsável por aplicar a norma pode acertar ou errar quando se deparar com estes casos paradigmáticos – eles constituem verdadeiros critérios de objetividade que inexistiam, por exemplo, na análise kelseniana de interpretação. Logo, de acordo com Hart, o aplicador da norma erra se deixa de me multar quando estaciono um fusquinha no parque, da mesma forma com que erra se considerar uma bola de futebol como um veículo e aplicar a multa. Já Kelsen, ao contrário, não é capaz de admitir a existência de posições “certas” ou “erradas” na aplicação das normas, pois trabalha apenas e tão somente com a ideia de indeterminação das palavras e expressões que utilizamos no Direito. Na posição hartiana, a indeterminação só existe quando estamos diante dos casos periféricos ou fronteiriços. Trata-se daqueles casos em que pode haver controvérsia quando ao fato de se encaixarem ou não no conceito em questão. No exemplo sugerido por Hart, podemos imaginar se um patinete infringe ou não a norma que proíbe veículos no parque: afinal, um patinete seria ou não seria um veículo? Nestes casos, há quem diga que um patinete é um veículo, pois ajuda na locomoção e tem rodas; mas há também aqueles que discordam e afirmam que, para ser um veículo, o objeto em questão precisa ter um motor. Em casos como este é possível falar em indeterminação, de modo que não há uma posição “certa” ou “errada” a ser tomada a priori. Nestas circunstâncias, o aplicador do Direito é livre para decidir – ele possui poder discricionário, e ainda que possamos criticar sua decisão, não podemos afirmar que ele foi “desobediente” com relação a uma norma ou que cometeu um “erro 8

jurídico”. Assim, por exemplo, ele pode considerar que um patinete é um veículo e aplicar a multa, ainda que muitos entendam que um patinete não seja veículo e que, neste sentido, possam “criticar” a sua decisão; mas como este é um caso de indeterminação, inexiste uma resposta certa e prévia, do ponto de vista jurídico, que solucione o caso. É somente a partir da sua decisão que um patinete, para fins jurídicos, passa a ser um veículo – o Direito não exige, a priori, uma ou outra decisão, ao contrário do que acontece no caso do fusquinha ou da bola de futebol. Após tratar da interpretação, Hart retoma as distinções entre Direito e Moral. Como visto, o Direito de uma comunidade é conhecido a partir da sua regra de reconhecimento – é a partir dela que somos capazes de dizer se uma norma é ou não jurídica, em razão de sua validade. Entretanto, há algumas distinções substantivas, e não apenas formais, entre as obrigações jurídicas e as obrigações morais. A primeira delas diz respeito à importância que envolve as obrigações morais: elas dizem respeito a um valor, e se este valor deixar de ser reconhecido como importante pela coletividade, a norma moral que o sustenta deixa de ser aceita e aplicada. Assim, por exemplo, só defendemos a regra moral que proíbe mentiras em razão do valor que atribuímos à verdade – se imaginarmos uma sociedade onde a verdade não é um valor, dificilmente existiria uma regra que proibisse a mentira. Regras jurídicas, por sua vez, são obrigatórias em razão da sua validade: ainda que ninguém reconheça ou lhes atribua um valor moral, elas continuam sendo válidas e obrigatórias. Mais do que isso: nem toda regra jurídica versa, especificamente, sobre algum valor: qual seria o valor, por exemplo, na regra que estabelece que devemos parar no sinal vermelho? A segunda distinção diz respeito à impossibilidade de modificação deliberada das regras e obrigações morais. Elas são criadas, modificadas e extintas apenas em razão do decurso do tempo e do contexto cultural. Regras jurídicas, por sua vez, podem ser criadas, alteradas e extintas em razão de outras regras jurídicas, de acordo com procedimentos específicos disciplinados pelas regras secundárias de modificação. Isso significa que elas podem ser alteradas deliberadamente, de acordo com a vontade dos legisladores. Outra diferença está relacionada com a presença de vontade ou culpa para caracterizar uma infração moral. O elemento volitivo é determinante para dizer que alguém descumpriu alguma obrigação moral. No campo jurídico, entretanto, há regras que determinam deveres e obrigações de modo independente da vontade ou culpa individuais – por exemplo, as regras que versam sobre a responsabilidade objetiva nos 9

contratos de consumo, que estabelecem o dever de indenizar ainda que o fornecedor ou prestador de serviços não tenha agido com dolo ou culpa. A última distinção se relaciona com o tipo de pressão que fundamenta as regras e obrigações morais. Na medida em que regras morais estão diretamente relacionadas com o aspecto volitivo das ações individuais, a coletividade busca o cumprimento destas obrigações asseverando seu valor e importância intrínsecos – em outras palavras, a sociedade exerce uma pressão sobre o indivíduo, ressaltando o valor buscado pela obrigação moral. Regras e obrigações jurídicas, por sua vez, se valem da ideia de sanção ou penalidade como forma de garantir seu adimplemento. Mas o que faz com que o Direito seja algo necessário em nossa vida coletiva? Por que precisamos dele? Para responder esta questão, Hart sugere um conteúdo mínimo de Direito Natural. A ideia é de que a natureza humana é constituída por alguns truísmos, alguns traços gerais e característicos, que tornam a existência de regras e obrigações fundamentais para a garantia de nossa própria subsistência. Dentre estas características, encontramos a ideia de que existe uma igualdade aproximada entre os homens (e.g., ainda que uns sejam mais fortes que outros, todos em algum momento precisam dormir), ou então de que somos dotados de um altruísmo limitado (não seremos solidários e generosos em todas as ocasiões). Diante destas limitações naturais, os homens (enquanto seres racionais) concebem as regras como forma de possibilitar uma coexistência minimamente pacífica e ordenada. Daí a necessidade de se reconhecer um “mínimo” de Direito Natural como forma de se justificar a existência do Direito Positivo. Mas isso não transformaria Hart em um jusnaturalista? A resposta deve ser negativa, pois o reconhecimento destes truísmos em nada altera o seu empreendimento de descrever o Direito enquanto um conjunto de regras primárias e secundária, válidas e obrigatórias nos termos de uma regra secundária de reconhecimento. Seu empreendimento não se pretende crítico, e nem é uma “avaliação” dos diferentes sistemas jurídicos. Se formos analisar sua concepção de Direito, percebemos que sua preocupação maior está em identificar suas características formas e estruturais – aproximando-se, assim, do modelo kelseniano. Mesmo a ideia de validade não se confunde com o “valor” existente nos sistemas morais – assim como Kelsen, Hart não teria problema algum em afirmar que os nazistas tinham um ordenamento jurídico, ainda que este ordenamento fosse injusto e imoral.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 2ª ed. Trad. de Antônio de Oliveira SetteCâmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

MACCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Trad. de Claudia Santana Martins. São Paulo: Elsevier, 2010.

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