O primeiro capítulo intitulado de ³O Climatério Urbano

Favelas sem cidade: uma experiência global de superurbanização precária nos limites da condição humana Resenha do livro DAVIS, Mike. Planeta Favela...

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Favelas sem cidade: uma experiência global de superurbanização precária nos limites da condição humana Resenha do livro DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Editora Boitempo, 2006. 270 págs. ISBN: 85-7559-087-1. Por Filipe Souza Corrêa1 O livro Planeta Favela (Planet of Slums na edição original americana) foi escrito pelo urbanista e historiador Mike Davis em 2006, e teve sua edição brasileira lançada no mesmo ano. Fruto de uma extensa pesquisa bibliográfica o livro pretende oferecer ao leitor um panorama global da situação dos assentamentos humanos precários conhecidos por nós brasileiros pelo termo favela. A proposta é interessante, pois nos permite traçar paralelos entre experiências diferentes de moradia nas grandes cidades que, apesar de receberem diferentes nomes e apresentarem características peculiares a cada contexto nacional, têm as suas origem e manutenção enraizadas em causas bastante parecidas, de acordo com o autor. O livro se organiza em oito capítulos e um epílogo intitulado Descendo a rua Vietnã, além dos agradecimentos do autor e de um posfácio da Prof.ª Dra. Ermínia Maricato (FAU/USP), incluído especialmente para a edição brasileira, em que faz uma análise da obra ponderando a partir das especificidades do caso brasileiro e adicionando as transformações e possibilidades no campo da política urbana brasileira vislumbradas por ela naquela época. Os capítulos podem ser lidos de maneira independente sem prejuízo do seu entendimento, no entanto, a idéia de uma humanidade excedente no contexto capitalista atual se constrói durante todo o livro. Os títulos dos capítulos são, pela ordem: O climatério urbano, A generalização das favelas, A traição do estado, As ilusões do construa-você-mesmo, Haussmann nos trópicos, Ecologia da favela, “Desajustando” o Terceiro Mundo, e Humanidade excedente?. O objetivo deste livro de Mike Davis é mostrar como esta experiência de assentamento humano, altamente precária e densa em termos populacionais, se generaliza em todas as regiões do mundo, principalmente nas grandes cidades do Terceiro Mundo onde as taxas de crescimento populacional ainda são elevadas se comparadas com a dos países de primeiro mundo e as taxas de urbanização seguem crescendo vertiginosamente. Esse crescimento e urbanização, segundo o autor, baseado nas projeções da ONU, devem encontrar o seu auge por volta de 2050, e posterior descenso. O primeiro capítulo intitulado de “O Climatério Urbano” chama atenção para este fato. Há que se registrar a intenção por trás do título que é bastante elucidativo dos objetivos do autor, e bastante intrigante num primeiro momento. Ou seja, o termo “climatério” se refere à fase de 1

Filipe Souza Corrêa é cientista social (UFRJ), mestrando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

transição da vida reprodutiva da mulher para o seu período não fértil onde a sua capacidade reprodutiva tende a diminuir até cessar por completo. Esse processo biológico da vida reprodutiva da mulher serve como analogia para a perda de capacidade deste crescimento urbano sem precedentes na história da humanidade de produzir “cidades”. Baseando-se em números impressionantes sobre a situação urbana mundial, Davis chama atenção para a disseminação em países em desenvolvimento da experiência de crescimento urbano chamada de slums, que apesar de suas especificidades quanto ao contexto nacional em que surgem, guardam relação quando as suas causas e suas conseqüências. Neste caso, fica clara para o autor a oposição entre urbano e cidade. Ou, melhor dizendo, a idéia de que cidade é um aglomerado urbano dotado de certo nível de bem-estar urbano como infra-estrutura de saneamento e abastecimento de água, unidades educacionais e de saúde pública, qualidade de vida e etc. As causas do êxodo rural e do inchaço das áreas urbanas se remetem, para Mike Davis, a uma única origem: as políticas de desregulamentação agrícola e de disciplina financeira impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial. E neste sentido, esse fenômeno que Davis chama de “superurbanização” não tem o seu fundamento na oferta de emprego nas grandes cidades, mas sim na reprodução da pobreza urbana, e o crescimento das favelas seria a principal conseqüência dessa conjuntura de ajuste estrutural, desvalorização da moeda e redução do Estado, que têm por conseqüência a redução do emprego urbano ao mesmo tempo em que se intensifica o capital no campo gerando expulsão populacional. E é com esta idéia de crescimento maior das favelas do que da urbanização que Mike Davis encerra o seu primeiro capítulo. No segundo capítulo intitulado de “A generalização das favelas”, baseando-se nas impressões descritas pelo relatório “The Challenge of Slums” (O Desafio das Favelas) do Programa de Assentamentos Humanos da ONU, Mike Davis apresenta a tese de que o modelo de ocupação do solo urbano denominado de favela tende a se tornar a regra e não a exceção do modo de ocupação das áreas urbanas. Apesar da definição formal utilizada pelo relatório da ONU, a qual se baseia em critérios físicos e legais da ocupação do solo sem considerar aspectos sociais, Mike Davis destaca o potencial de crescimento dessa forma de assentamento humano. A moradia em favelas é uma escolha complexa que leva em consideração o custo habitacional, a garantia de posse, a qualidade da moradia, a distância do trabalho, e a segurança, gerando modelos de escolha racional que conformam tipos específicos de assentamento em cada país. Neste capítulo Davis chama atenção para a forma como a pobreza se generaliza no interior da cidade por meio de um adensamento precário e da expansão horizontal irregular, seja em áreas cada vez mais periféricas ou nas áreas de risco no interior das cidades como planícies passíveis de inundação, encostas, pântanos ou antigas instalações industriais. Generalizam-se por todo o mundo os loteamentos irregulares que apesar de apresentar lotes uniformes e ruas traçadas, carece de serviços públicos e sofre com o adensamento crescente que gera por conseqüência uma

quantidade crescente de pobres locatários, ou seja, torna-se comum o uso da propriedade como forma de gerar renda a partir da exploração dos mais pobres, sendo estes os indivíduos mais desprotegidos na irregularidade da favela. Além disso, apesar da ressignificação da periferia consolidada a partir da intensa horizontalização e adensamento das megacidades, é na orla dessa ocupação que se agrupam os párias da sociedade. Independentemente da forma como cada sociedade os identifica, esses grupos sociais são submetidos à condições desumanas de ocupação, e é justamente nesse ponto onde Mike Davis começa a expor o verdadeiro objetivo de seu livro: conscientizar a todos das condições sub-humanas de vida que cada vez afligem os pobres urbanos. A partir da discussão sobre a generalização da favela como forma de assentamento dos pobres urbanos, no terceiro capítulo intitulado de “A traição do Estado”, Davis aborda a questão do porque os Estados são ineficientes em solucionar o problema das ocupações precárias. No entanto, segundo a argumentação apresentada por Mike Davis, o fato da generalização das favelas estaria mais para uma deliberada inação por parte do Estado que opta por se omitir ou se posicionar de maneira cínica em relação aos problemas sociais a que estão submetidos os moradores destas ocupações precárias. Quando a pobreza no campo começou a se tornar insuportável, grandes contingentes humanos se dirigiram para as grandes cidades em busca de oportunidades, no entanto, esse bem-estar urbano lhes foi vedado num primeiro momento, resultado de um “colonialismo europeu” que pode ser tomado como a origem da histórica lógica de segregação das megacidades do chamado Terceiro Mundo, que distingue cidadão de subcidadãos, ou cidadãos de segunda classe. Em parte, a essa clivagem social básica que se expressa também na lógica de ocupação do solo urbano se deve a grande permissividade com que as classes políticas lidam com as condições sub-humanas nos assentamentos precários, dando origens a ideologias de “limpeza” e “embelezamento” como se essas populações fossem, em essência, apenas lixo, isto é, passível de ser descartado quando tornado incômodo. Essa parece ser a resposta padrão, segundo Davis, das sociedades do chamado Terceiro Mundo ao “dilúvio” das favelas. Sem contar que as iniciativas de políticas habitacionais foram captadas pelas classes médias e elites urbanas. Com isso, faz mais sentido falarmos de uma cooptação do que de traição de um Estado que desde o colonialismo tolera acentuadas desigualdades sociais. O auge do cinismo das classes dominantes talvez seja a difusão na década de 90 da ideologia entusiasta em torno da autoconstrução, como tratou Mike Davis no seu quarto capitulo intitulado de “As ilusões do construa-você-mesmo”. Rebatendo as políticas de “lotes urbanizados” do Banco Mundial, baseadas nas idéias de John Turner. Com isso se inicia uma romantização da autoconstrução que desconhece o nível de exploração por trás dessa solução de construção de moradias. Neste caso a lógica de concessão de lotes urbanizados e concessão de títulos de propriedade teve como conseqüência apenas o aumento da espoliação dos mais pobres, a

aceleração do processo de diferenciação social nas favelas e a fragmentação dos movimentos de luta por moradia. Ou seja, o mistério da transubstanciação da propriedade em capital se fez à custa do aprofundamento das desigualdades sociais, num contexto em que o valor da terra se descola do crescimento econômico e do investimento industrial e a especulação imobiliária passa a ser altamente rentável. Alem do discurso que naturaliza a autoconstrução e a propriedade privada, no seu quinto capítulo intitulado “Haussmann nos trópicos”, Mike Davis aponta a capacidade de dominação do espaço urbano por parte de uma elite que tem como objetivo o “embelezamento” e a racionalização da cidade mesmo que ao custo de considerar a população pobre residentes nas áreas de intervenção como “entraves humanos” ao progresso e modernização da cidade. Essa é uma lógica de dominação e produção do espaço que se reedita desde a Paris do Barão Haussmann no século XIX, e se reforça com os chamados megaeventos, onde o centro da cidade e suas principais vias passam a ser objeto de um conflito de classes nas palavras de Mike Davis. E a criminalização da pobreza e banalização do medo na cidade exerce um esforço ideológico fundamental para a reedição desta lógica de dominação do espaço, legitimando desde as remoções forçadas nas áreas centrais aos condomínios fechados da periferia, criando ilhas de cidade (“off worlds”) em meio à ecologia da favela. No sexto capítulo, intitulado “Ecologia de favela”, Mike Davis prossegue na descrição dos aspectos ecológicos deste assentamento precário em grande parte desconhecidas pelo restante da população. As descrições são assustadoras e reforçam o argumento de sub-humanização a que são submetidos os moradores de favelas, principalmente na África e na Ásia. Segundo o autor, são os pobres e miseráveis urbanos os pioneiros em ocupar pântanos, áreas sujeitas a inundações, encostas de vulcões, morros instáveis, montanhas de lixo, depósitos de lixo químico, beiras de estrada e orlas de deserto. Estão sujeitos constantemente a riscos naturais que são controláveis para o restante da população. No entanto, a negligência governamental sistemática faz com que esses riscos passem a ser não naturais, sem contar os riscos provenientes da própria expansão desordenada como a concentração de poluentes no ar e na água, e a infra-estrutura em colapso ou inexistente. O auge da argumentação do capítulo se dá no tópico “Viver na merda”, onde os relatos da inexistência de saneamento básico chocam não só pelos reflexos que tem em outras esferas básicas como qualidade da alimentação e acesso a água potável, mas sim pela desumanidade com que são consideradas essas populações. Às condições precárias da ecologia da favela Mike Davis associa os planos de ajustes estruturais incentivados pelo Banco Mundial e pelo FMI como forma de assegurar o serviço da dívida em países do Terceiro Mundo. No entanto, como o carro chefe destas políticas de ajuste estrutural é a diminuição drástica do gasto público, o que se viu nas últimas décadas foi o

encolhimento das políticas de bem-estar o passo que a diminuição dos investimentos e subseqüente redução do número de empregos formais, empurrou milhares de pessoas para condições de pobreza extrema. Fome, miséria, exploração, trabalho infantil, tornaram-se repertório comum para uma parte considerável da população urbana mundial. No oitavo e último capítulo fica a pergunta: “Humanidade excedente?”. Com essa indagação Mike Davis pretende trazer luz ao fato de como e possível aumentar a riqueza e manter ao mesmo tempo milhões de pessoas na miséria. Essa contradição é possível com base num dos mitos mais comuns nos tempos atuais: o mito da informalidade. Segundo o autor, a visão utópica de que a informalidade torna os indivíduos libertos para o microempreendedorismo não passa de um conjunto de falácias epistemológicas. E a narrativa sobre as bruxinhas de Kinshasa que encera o último capítulo do livro nos fornece um exemplo de como a ideologia do empreendedorismo que sustenta a precariedade do mercado de trabalho informal, para além de culpabilizar os pobres por sua “empregabilidade”, passa a dar sustento também à formas mágicas de explicação da miséria. Neste caso as crianças do Congo que, indefesas em suas acusações de bruxaria, são culpabilizadas pela situação de miséria de seus pais e vizinhos. Talvez a única certeza de integração social por trás da informalidade seja a manutenção de uma expectativa de vida melhor, caso contrário, o desespero seria generalizado. Como reconhece o próprio autor, e o que fica evidente ao final da leitura, é que um esforço comparativo desta magnitude não é fácil, e sua exposição incorre no risco de reducionismo quanto às causas do que chama de uma “superurbanização precária” ou de “favelas sem cidade”; ou mesmo de simplificar em demasiado os diferentes contexto nacionais conforme Ermínia Maricato expõe em seu Posfácio para o caso do Brasil. De todo modo, o livro Planeta Favela é esclarecedor e inquietante (quando não, angustiante), e nos leva a refletir sobre a situação das favelas pelo globo e seu desafio para um planejamento e gestão das cidades que leve em consideração não só o direito à moradia digna, adequada e de qualidade como um direito humano, mas também o direito à vida que tem sido constantemente ameaçado pela persistência de condições tão extremas de sub-humanidade ou nos limites da “condição humana”, para tomar de empréstimo o pensamento de Hannah Arendt2. Não é por menos que o livro Planeta Favela se tornou leitura obrigatória nos cursos de Arquitetura, Urbanismo, e Planejamento Urbano, assim como para os interessados em discutir as condições de vida nas favelas, seja para uma reflexão acadêmica, seja para pensar a atuação sociopolítica em contextos de cidadania escassa.

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ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1997.