A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O MARXISMO: EM DEFESA DO

A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O MARXISMO: EM DEFESA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL. Janaina Cassiano Silva. UFSCar - [email protected]...

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A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O MARXISMO: EM DEFESA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL.

Janaina Cassiano Silva. UFSCar - [email protected] Alessandra Arce Hai. UFSCar - [email protected] Agência financiadora: FAPESP

Introdução

A Psicologia Histórico-Cultural surgiu no início do século XX, no contexto da Revolução Soviética, cujo princípio foi a aplicação do materialismo histórico-dialético à psicologia como forma de superar a crise da psicologia. Esta corrente adota a constituição da criança e sua humanização pela via da concepção de um sujeito concreto. Porém, atualmente diversos pesquisadores desvinculam a obra de Vigotski do marxismo, fazendo a aplicação descontextualizada de sua teoria nos mais diversos contextos. Nesse sentido Duarte (2004, p.02) destaca que há um grande esforço em desvincular a psicologia vigotskiana do universo filosófico marxista, sendo este realizado, principalmente, de duas maneiras, a saber: “1) aproximação entre a teoria vigotskiana e a concepção psicológica e epistemológica interacionista-construtivista de Piaget; 2) interpretação da teoria vigotskiana como uma espécie de relativismo culturalista centrado nas interações linguísticas intersubjetivas”. Ademais, temos como uma das hipóteses para a desvinculação de Vigostki ao pensamento marxista o fato de muitos estudiosos considerarem que esta teoria está ultrapassada. Lombardi (2010, p.23) destaca que um dos argumentos utilizado pela grande imprensa para desqualificar o marxismo esta no fato desta afirmar “que assumir o marxismo é adotar uma perspectiva envelhecida, que não tem mais nada a dizer para o homem globalizado do século XXI”. Desta forma, neste ensaio, fruto de nossa pesquisa de doutorado, em andamento, financiada pela FAPESP, buscaremos resgatar o conceito marxista de homem que embasa a Psicologia Histórico-Cultural, visto que defendemos uma leitura marxista da psicologia vigotskiana. Além disso, apresentaremos como a partir dessa concepção

2 podemos pensar o desenvolvimento humano integral que em muito se difere da perspectiva dominante, a Psicologia Tradicional. Para tal, subdividimos o trabalho em três partes. Na primeira trabalharemos com a vinculação da Psicologia Tradicional ao modo de produção vigente, o capitalismo. Na segunda definiremos a perspectiva teórica da Psicologia Histórico-Cultural e traremos a concepção marxista de homem que embasa esta corrente. Por fim, nos dedicaremos a apresentar a concepção de desenvolvimento infantil presente na Psicologia HistóricoCultural. 1. A Psicologia Tradicional e sua vinculação ao capitalismo

No Brasil, segundo estudos de Mitsuko Antunes, citada por Bock (1999, p. 317318), já no período colonial é possível encontrarmos estudos sobre fenômenos psicológicos “[...] escritos por autores de formação jesuítica, que tinham claramente a finalidade de contribuir para o controle dos indígenas. São estudos sobre emoção, autoconhecimento [...] relacionados diretamente à questão do controle político da população colonial”. Já com a vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, ocorre uma mudança no foco dos conteúdos psicológicos, visto que, com o aumento de pessoas nas cidades, sem condições básicas de higiene, há a proliferação de doenças infecciosas, o que desenvolve o saber médico, “[...] guiado pelas idéias da higienização e saneamento físico e moral da sociedade” (Bock, 1999, p. 318). Desta forma, os conteúdos psicológicos se vinculam a questões médicas para caracterizar as doenças da moral, presentes nas prostitutas, nos pobres e nos loucos. É na Primeira República que a Psicologia começa a se separar como área. Nesta fase, a Psicologia auxilia a defesa da educação, a difusão do ensino, das ideias escolanovistas, ao dar fundamentos e elementos para o desenvolvimento destes ideais. Neste sentido, crescem concepções de diferenciação das pessoas a partir de ideias de capacidades inerentes aos indivíduos. “As influências americanas tornam-se dominantes na Psicologia brasileira. As testagens psicológicas trazem, também, a enorme possibilidade de respondermos adequadamente ao desafio da modernização: o homem certo no lugar certo” (Bock, 1999, p. 318). Em 1962, no Brasil, houve a regulamentação da Psicologia enquanto profissão através da Lei 4119 de 27 de agosto. Podemos considerar, de acordo com Bock (1999, p. 319, grifos do autor) que o foco da Psicologia passou “[...] do controle do período

3 colonial, para a higienização do início do século XIX, para a diferenciação no século XX” (Bock, 1999, p.318, grifo do autor). Bock (2004) sinaliza que, no Brasil, a Psicologia Tradicional se comprometeu com os interesses da elite e enquanto profissão a autora afirma que: [...] a Psicologia esteve comprometida com os interesses das elites brasileiras. Uma profissão que, quando atingiu camadas de baixo poder aquisitivo, nas empresas, nas escolas e na saúde, esteve sempre a serviço do controle, da higienização, da discriminação e da categorização que permitem melhorar a produtividade, o lucro; permitiam melhorar as condições de vida das elites brasileiras, que sempre fizeram política, nesse país, a partir exclusivamente de seus interesses. (p.02).

Após este breve histórico, centremos nosso ensaio em algumas características da

Psicologia

Tradicional.

Segundo

Bock

(2004)

no

capitalismo,

com

o

desenvolvimento da individualização e da noção de eu, vai se tornando necessária uma ciência que estude este sentimento e este fenômeno, ou seja, a Psicologia ganha terreno:

[...] a noção de eu e a individualização nascem e se desenvolvem. A idéia de um mundo interno aos sujeitos, da existência de componentes individuais, singulares ganha força, permitindo o desenvolvimento de um sentimento de eu. Neste sentido, a possibilidade de uma ciência que estude este sentimento e este fenômeno também é resultado deste processo histórico. ‘A Psicologia vai se tornando necessária’ (p.03).

A autora destaca que a concepção de fenômeno psicológico 1 dominante na Psicologia Tradicional baseou-se nas ideias naturalizantes do liberalismo, que se caracterizaram por pensar o homem a partir da noção de natureza humana, que iguala os homens e exige liberdade, como condição para o desenvolvimento das potencialidades que estes possuem enquanto seres humanos. “Frente às enormes desigualdades sociais do mundo moderno, o liberalismo produziu sua própria defesa, construindo a noção de diferenças individuais decorrentes do aproveitamento diferenciado que cada um faz das condições que a sociedade ‘igualitariamente’ lhe oferece” (Bock, 2004, p.04). Ademais, segundo Tuleski (2004) a Psicologia carrega em si as marcas ahistóricas e conservadoras da sociedade que lhe deram origem, visto que se institui como ciência no momento histórico no qual a burguesia, consolidada no poder, converte-se em classe reacionária. A autora também aponta que diversas correntes

1

Cabe salientar, que este fenômeno aparece desvinculado da realidade na qual o indivíduo está inserido.

4 psicológicas permanecem herdeiras de suas raízes, caracterizando-se pelas mesmas contradições e limites, em especial, por negar o homem como ser histórico. Nesse sentido, Bock (2004) afirma que a Psicologia Tradicional traz concepções universalizantes e naturalizantes da subjetividade. O homem e seu mundo psíquico são pensados de forma natural, com capacidades e características da espécie, e o desenvolvimento pode ocorrer caso o indivíduo seja inserido em um meio adequado. Podemos, então, perceber na Psicologia Tradicional cisões como: razão x emoção, objetividade x subjetividade, que tem comprometido a “[...] apreensão gnosiológica do indivíduo real e concreto, alimentando equívocos no tratamento dispensado ao psiquismo humano de nefastas implicações pedagógicas” (Martins, 2007a, p. 118). Diante esse quadro, as pedagogias psicológicas 2 , que representam os ideários pedagógicos contemporâneos, por suas concepções a-históricas e abstratas de homem revelam-se incapazes de contribuir para uma prática pedagógica que, efetivamente, opere de modo positivo junto ao desenvolvimento ominilateral 3 dos indivíduos. A educação brasileira, portanto, necessita urgentemente das contribuições de outra Psicologia, pois, como afirma Saviani (2004, p. 47) “[...] na forma como a Psicologia vem sendo praticada, pondo o foco no indivíduo empírico e não no indivíduo concreto, suas contribuições resultam praticamente neutralizadas”. Saviani (2004) destaca ainda que é necessário conhecer o indivíduo concreto 4 , uma vez que o indivíduo empírico é o imediatamente observável, apreendido por definibilidades exteriores correspondentes à situação empírica imediata, porém, o indivíduo concreto é a síntese das múltiplas determinações, apreendido à luz de sua natureza histórico-social. Tanamachi (2007) afirma que diversos estudos, realizados por várias correntes de pensamento que se desenvolveram na psicologia ocidental, tais como analisadas por Vigotski e o seu grupo, apresentam visões reducionistas sobre o fenômeno humano e,

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Segundo Martins (2007a citada por Miranda, 2000, p. 24) as pedagogias psicológicas estão ancoradas em modelos psicológicos segundo os quais o desenvolvimento e a aprendizagem são conquistas particulares do aluno mediante sua ação e auxiliado pelo professor, num processo pelo qual a educação “adequa-se” cada vez mais às exigências sociais impostas pela globalização da economia. 3 “ [...] um desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade de sua satisfação” (Manacorda, 2000, p. 78-79). 4 Segundo Martins (2007a, p.124) para se conhecer efetivamente o que Saviani denomina indivíduo concreto, é necessária uma psicologia que, superando os limites do pensamento dicotômico lógico-formal, contribua para o conhecimento do homem em sua totalidade, dado próprio à Psicologia Sócio-Histórica.

5 conseqüentemente, não respondem à realidade do ser humano em sua existência concreta, social e historicamente determinada. Segundo Vygotski (1995), a Psicologia Tradicional preocupava-se com a criança e o com o desenvolvimento de suas funções psíquicas in abstracto, ou seja, desconsiderando o seu meio social e cultural; suas formas de pensamento, concepções e ideias produzidas historicamente e predominantes nesse meio. A crítica que Vigotski (2001) fazia à velha psicologia era na forma como esta considerava os processos psíquicos superiores, uma vez que estes eram tratados como soma ou cadeia de processos elementares. Segundo Tuleski (2002) a superação da velha psicologia só seria possível com a elaboração de uma nova Psicologia sustentada em uma perspectiva histórica na relação homem-natureza, de modo que, o homem fosse o produto e produtor de si e da própria natureza. Nesta perspectiva, Vigotski, buscou, então, aprofundar seus estudos em uma Psicologia que se voltasse para o indivíduo como um todo e não fragmentado, que considerasse o histórico e o social num movimento dialético para o desenvolvimento humano. No II Congresso de Psiconeurologia, em Leningrado, no ano de 1924 Vigotski foi convidado para trabalhar no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou. (Shuare, 1990). Segundo Leontiev (1978) uma nova etapa no estudo do problema do determinismo sócio-histórico do psiquismo humano foi marcada pelos trabalhos de L. S. Vigotski. Ele foi o primeiro, em 1927, a exprimir a tese de que a démarche histórica devia se tornar o princípio diretor da edificação da Psicologia do homem. Este autor efetuou a crítica teórica das concepções biológicas naturalistas do homem, opondo-lhes à sua teoria do desenvolvimento histórico e cultural. Além disso, Vigotski introduziu, na investigação psicológica concreta, a idéia da historicidade da natureza do psiquismo humano e a da reorganização dos mecanismos naturais dos processos psíquicos no decurso da evolução sócio-histórica e ontogenética. Com efeito, as investigações de Vigotski partiam de duas hipóteses: as funções psíquicas do homem são de caráter mediatizado e os processos interiores intelectuais provêm de uma atividade inicialmente exterior, interpsicológica. 2.

A Psicologia Histórico-Cultural e o Materialismo Histórico Dialético

6 A Psicologia Histórico-Cultural 5 tem como principais referências 6 Liev Semiónovich Vygotsky (1896-1934), Alexis Nikoláevich Leontiev (1903-1979) e Alexander Románovich Luria (1902-1977), que junto com representantes como Daniíl Borísovich. Elkonin (1904-1984); Vasili Vasílievich Davidov (1930-1998); Alexandr Vladimirovich Zaporozhets (1905-1981); Piotr Iakovlevich Galperin (1902-1988) e Lidia Ilínichna Bozhovich (1908-1981) compõem a chamada Escola de Vigotski. Segundo Tuleski (2002) o nascimento da Psicologia Histórico-Cultural se dá em um contexto no qual a história estabelecia para a sociedade russa pós-revolucionária a necessidade de encontrar os meios para sobreviver, embora estivesse convivendo com ameaças militares, políticas e econômicas do ocidente. [...] Um país enorme em proporções geográficas, com grande atraso econômico e cultural, arrasado pela guerra civil e pela guerra imperialista, deveria transformar-se em um curto espaço de tempo em um país capaz de produzir o suficiente para garantir a sobrevivência e satisfação da população, sob pena de mergulhar na mais profunda barbárie (Tuleski, 2002, p.55).

Vigotski (1991) acentua que se deve buscar nos ícones do marxismo o método para a construção de uma ciência que possibilite investigar o psiquismo humano e não considerar que o marxismo trará a solução do problema da psique. Vygotski (1995) entende que o método e o objeto de investigação devem ser ajustados de forma adequada e por isso, o estudo dos processos psíquicos superiores humanos, principal objeto de estudo da psicologia vigotskiana, exigia a formulação de um método de investigação peculiar. Duarte (2000) demonstra a utilização, na Psicologia Histórico-Cultural, de dois princípios do materialismo histórico-dialético. O primeiro, baseado na metáfora de Marx 7 , é o princípio da análise da forma mais desenvolvida, ou seja, significa o estudo da essência de determinado fenômeno através da análise da forma mais desenvolvida alcançada por este. O autor destaca que Vigotski entendia que o estudo das formas mais desenvolvidas “[...] revelaria aspectos válidos também para formas menos desenvolvidas, sendo que o inverso não seria necessariamente verdadeiro” (Duarte, 5

Esta corrente teórica também tem outras denominações, tais como: Psicologia Sócio-Histórica, Teoria Histórico-Cultural ou Teoria da Atividade. 6 A biografia dos autores da Escola de Vigotski está presente ao final da obra: Davidov, V & Shuare, M. (Org.). (1987) La Psicologia Evolutiva y Pedagógica en la URSS: antologia. Moscou: Editorial Progresso. 7 A metáfora de Marx é referente ao princípio de que a anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco.

7 2000, p.85). O segundo princípio refere-se à concepção de conhecimento humano como reflexo da realidade objetiva no pensamento. Shuare (1990) apresenta outros quatro momentos relevantes da contribuição do materialismo histórico-dialético à psicologia soviética. O primeiro refere-se à concepção materialista da dialética, que por tratar das leis mais gerais do desenvolvimento da natureza, da sociedade e do pensamento humano, devido à sua natureza ontológica e gnosiológica, oferece uma contribuição para a investigação e explicitação dos fenômenos estudados pela psicologia, especialmente se considerarmos a complexidade de seu objeto. O segundo momento, para Shuare (1990), seria a teoria do reflexo, entendida como teoria do conhecimento que permite à Psicologia investigar a consciência e a atividade cognitiva do homem como reflexo psíquico da realidade (a imagem subjetiva da realidade), cujas implicações seriam o reconhecimento da especificidade de tal atividade, a pertinência dessa imagem ao sujeito concreto ou real, a definição da essência ativa no processo de reflexo, a inclusão da atividade do homem particular e sua atividade prática (que é também social) na teoria do conhecimento. No terceiro momento a categoria da atividade, vista como expressão da essência genérica do homem, que possibilita o surgimento e desenvolvimento da cultura, criando o mundo verdadeiramente humano. Esta categoria permite-nos entender tanto a determinação sócio-histórica dos indivíduos, como a objetividade de sua atividade e da realidade concreta, além de assinalar o caráter criador próprio da atividade humana. (Shuare, 1990). Shuare (1990) também destaca que a natureza social do homem, cujo reconhecimento implica tomar este como produto e produtor das relações sociais historicamente construídas pela humanidade que, devido ao fenômeno da alienação, devem ser apropriadas pelos homens individualmente, a fim de se tornarem verdadeiramente humanas. A construção da Psicologia marxista era vista por Vigotski como o processo de construção de uma psicologia verdadeiramente científica, que não seria, contudo, calcada na justaposição de citações extraídas dos clássicos do marxismo a dados de pesquisas empíricas realizadas por métodos fundamentados em pressupostos filosóficos contraditórios ao marxismo. “Vigotski entendia ser necessária uma teoria que realizasse a mediação entre o materialismo dialético, como filosofia de máximo grau de

8 abrangência e universalidade, e os estudos sobre os fenômenos psíquicos concretos”. (Duarte, 2003, p. 40). Por meio da atividade social, os seres humanos se relacionam com a realidade objetiva tendo em vista satisfazer as suas necessidades. E, é justamente para melhor captar e dominar a realidade que processos mentais se complexificam, originando o que Vigotski (1984, p. 61) denominou funções psicológicas superiores 8 . Esse autor assevera que o aparato que se dispõe no nascimento do indivíduo assegura apenas as funções psicológicas primárias, contudo, num processo extremamente rápido, o indivíduo vai apropriando-se de novas atividades e novas formas de relações com o mundo pelas quais desenvolve modelos culturais de comportamento. Portanto, “segundo Vigotski, às características biológicas asseguradas pela evolução da espécie são acrescidas funções produzidas na história de cada indivíduo singular por decorrência das apropriações do patrimônio material e intelectual historicamente construído” (Martins, 2007a, p. 126). Diante do exposto, notamos que Vigotski (2004) defendia a construção de uma nova sociedade (socialista), na qual pudesse ocorrer o desenvolvimento livre e completo do pleno potencial humano. Ademais, o autor buscava apoiado em Marx, o desenvolvimento omnilateral do homem e não o desenvolvimento unilateral e distorcido das capacidades humanas. A tarefa da psicologia soviética consistiu, portanto, segundo Bozhovich (1976), em investigar as particularidades psicológicas da criança segundo sua idade, que não se limitam à característica dos processos psíquicos isolados e sim revelam a estrutura da personalidade integral da criança em seu processo de formação e desenvolvimento. Desta forma, consideramos imprescindível para o entendimento de como o desenvolvimento humano é visto nesta perspectiva, trabalharmos a concepção marxista de homem que embasa essa corrente.

2.1 A Concepção Marxista de Homem

Diferente dos outros animais que necessita apenas se adaptar à natureza para sobreviver; o homem precisa agir sobre a natureza, transformando-a e ajustando-a às suas necessidades. “E esse ato de agir sobre a natureza transformando-a é o que se

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Segundo Vigotski (1984) as funções psicológicas superiores referem-se a processos voluntários, ações conscientes, mecanismos intencionais, sem esquecermos que estas dependem de processos de aprendizagem.

9 chama trabalho [...] Portanto, é pelo trabalho que os homens produzem a si mesmos [...] O trabalho é pois a essência humana” (Saviani, 2008, p.225). Marx (1844) afirma que o animal identifica-se com sua atividade vital; ele é sua atividade. Já o homem faz de sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência. Ele tem uma atividade vital consciente. Ela não é uma prescrição com a qual ele esteja plenamente identificado. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais: só por esta razão ele é um ente-espécie. Ou antes, é apenas um ser auto-consciente, isto é, sua própria vida é um objeto para ele, porque ele é um ente-espécie. Só por isso, a sua atividade é atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, pois o homem, sendo um ser autoconsciente, faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência (Marx, 1844, s/p).

Porém, cabe ressaltar que o trabalho que Marx encontra na existência real, concreta humana é o trabalho alienado. Saviani (2008, p.225) destaca que assim, “a essência humana só se manifesta como essência alienada, isto é, negada nas relações reais que os homens mantem com os produtos de sua atividade, com sua própria atividade e com os outros com que se defronta no processo de trabalho”. Desta forma, podemos inferir que, a concepção marxista de homem se difere da “concepção corrente, de caráter especulativo e metafísico que se contrapõe, portanto, à existência histórica e social dos homens” (Saviani, 2008, p.226). Fazendo um paralelo com o exposto anteriormente acerca da Psicologia Tradicional, vemos que essa concepção se distingue da apresentada, visto que não coincide com a idéia metafísica de uma essência humana abstrata e universal, não cedendo espaço a sua realização histórica e social. Sendo assim, somente é possível descobrir o que o homem é, de fato, na sua existência efetiva, nas contradições de seu movimento real, e não em uma essência pensada de modo externo a sua existência, como é o caso da Psicologia Tradicional. Esta concebe o homem como uma adaptação ao meio, ou seja, desconsidera que o que o homem é coincide com sua produção (Marx & Engels, 1847). Marx (1844) destaca que é pelo trabalho que o homem se afirma como sujeito de sua existência, construindo um mundo humano e humanizando-se nesse processo. Nesse sentido, Martins (2007b, p.45) afirma que quando o homem rompe com as barreiras biológicas de sua espécie, este “rompe também a fusão (animal) necessidade-objeto; o mundo e ele mesmo se lhe surgem como objetos. É na base desse rompimento que se

10 desenvolvem novas funções cognitivas como o pensamento e o raciocínio, condições para a pré-ideação [...] para o seu consciente”. A autora também aponta que a formação dos significados abstratos, dos conceitos se dá pela relação entre apropriação e objetivação9 , cujos “movimentos virão representar a atividade mental interna que, elaborada socialmente, comporá a consciência do homem” (Martins, 2007b, p.46). Nesse sentido, Leontiev (1978) afirma que a produção da consciência, do pensamento e da linguagem está diretamente vinculada na origem à atividade produtiva, à comunicação material dos homens. Ademais, o nascimento da linguagem só pode ser compreendido na relação com a necessidade, nascida do trabalho, que os homens sentem de dizer alguma coisa. Percebemos, portanto, como destaca Martins (2007b, p.48) que Marx rompe com qualquer visão idealista, supra-histórica de consciência, “evidenciando a impossibilidade de sua compreensão na abstração do sujeito real e concreto, historicamente determinado”. Ademais, Leontiev (1978, p.88) destaca que a consciência individual só pode existir nas condições em que existe a consciência social. “A consciência é o reflexo da realidade, refratada através do prisma das significações e dos conceitos lingüísticos, elaborados socialmente”. Leontiev (1978) também salienta a tentativa de introduzir, na corrente históricosocial atual da psicologia, a teoria segundo a qual o trabalho, transformando a natureza exterior e produzindo o mundo dos objetos humanos materiais e intelectuais, transforma ao mesmo tempo a própria natureza do homem e cria a consciência humana. Após essa leitura acerca dos principais pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, com ênfase na concepção marxista de homem, julgamos importante apresentar, então, como o desenvolvimento infantil é visto nesta perspectiva. Diferente das demais correntes da Psicologia que fragmenta o desenvolvimento em físico, cognitivo, emocional, social, etc, a Psicologia Histórico-Cultural calcada no materialismo histórico-dialético por ter uma visão de um sujeito concreto enxerga o desenvolvimento infantil de forma integral. 9

Na obra de Marx, o processo de apropriação surge na relação entre o homem e a natureza. Ou seja, o homem por sua ação transformadora apropria-se da natureza incorporando-a a sua prática social. Concomitante, ocorre o processo de objetivação, uma vez que ao apropriar da natureza o homem produz uma realidade objetiva que adquire características sócio-culturais. E esse processo gera a necessidade de uma outra forma de apropriação, quer seja, apropriação dos produtos culturais da atividade humana (apropriação das objetivações do gênero humano) (Duarte, 1998).

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3. O Desenvolvimento Infantil na Psicologia Histórico-Cultural

Os psicólogos soviéticos traduziram, em condições concretas, o conhecimento filosófico das proposições do Marxismo-Leninismo, apontando que “[...] o desenvolvimento psicológico dos indivíduos segue um caminho de herança social (Engels) ou um caminho de apropriação (Marx) de experiência social” (Zaporozhets & Elkonin, 1971, p. xi, tradução nossa, grifo do autor). As crianças de diferentes idades têm diferenças qualitativas profundas. Segundo Elkonin (1969), elas se interessam, pensam, sentem, atuam e se relacionam com a realidade de modos distintos. O autor ainda acrescenta que as particularidades psicológicas da criança de qualquer idade formam-se se submetendo às leis essenciais do desenvolvimento de sua psique na dependência das condições concretas de sua vida, atividade e educação. De acordo com Pasqualini (2006, p. 117), Vigotski, Leontiev e Elkonin concebiam o desenvolvimento infantil como fenômeno histórico e dialético, que “[...] não é determinado por leis naturais universais, mas encontra-se intimamente ligado às condições objetivas da organização social e não se desenrola de forma meramente linear, progressiva e evolutiva, mas compreende saltos qualitativos, involuções e rupturas”. Blonski (citado por Elkonin, 1987, p. 105) assinala o caráter historicamente variável dos processos de desenvolvimento psíquico e o surgimento, no curso da história, de novos períodos da infância. “[...] a infância não é um fenômeno eterno, invariável: é diferente em cada estágio do desenvolvimento do mundo animal; é diferente também em cada estágio do desenvolvimento histórico da humanidade”. Faz-se necessário superar a visão idealista do desenvolvimento psicológico. Como Vygotsky afirmou nos anos de 1930, segundo Elkonin (1999), é imprescindível estudar a afetividade e o intelecto como unidade dinâmica e não é mais pertinente abordar

o

desenvolvimento

psíquico

como

um

mecanismo

adaptativo

do

comportamento. A concepção de Piaget é clara nesse sentido ao abordar o desenvolvimento intelectual separado da esfera afetiva e das necessidades. A principal deficiência desta concepção é a impossibilidade de explicar as passagens de um estágio de desenvolvimento intelectual a outro. Diante disso, o mais fácil é atribuir à maturação ou outras forças externas com relação ao processo de desenvolvimento psíquico.

12 Segundo Leontiev (1987), a criança no curso de seu desenvolvimento penetra ativamente no mundo das relações humanas que a rodeia, assimilando as funções sociais das pessoas, as normas e regras de comportamento socialmente elaboradas. Esta concreção, inicialmente obrigatória - caráter ativo da forma em que a criança assimila os processos superiores de comportamento humano - exige que as tarefas que o educador lhe sugere tenham conteúdo e que a vinculação entre o que a criança deve fazer e aquilo por que atua e as condições de sua ação não sejam formais nem convencionais. Elkonin (1987) mostra que sem a superação do dualismo e do paralelismo, não se pode compreender o desenvolvimento psíquico como processo único e integral. No fundamento deste dualismo e paralelismo se encontra o enfoque naturalista do desenvolvimento infantil, característico para a maioria das teorias estrangeiras. Com relação à função docente no desenvolvimento infantil, uma evidência da importância do educador neste processo está, segundo Leontiev (1987), na formação da subordinação de motivos, ao começo, na comunicação com o educador, ou seja, na situação imediatamente social, e, posteriormente, torna-se possível, também, em situações nas quais a criança atua de forma autônoma. O autor também destaca que a partir destas ligações, que unem entre si processos orientados a um fim, porém isolados 10 se começa a tecer a trama geral sobre, cujo fundo, paulatinamente, se separam as principais linhas de sentido da atividade do homem, as quais caracterizam sua personalidade. A formação da psique na idade préescolar constitui um processo muito complexo e diverso. Segundo Elkonin (1987), o desenvolvimento da criança é a permanente passagem de uma escala evolutiva a outra, estando esta ligada à mudança e a estruturação da personalidade da criança. Estudar o desenvolvimento infantil significa “[...] estudar a passagem da criança de um período evolutivo a outro e a mudança de sua personalidade dentro de cada período evolutivo que tem lugar em condições históricosociais concretas” (Elkonin, 1987, p. 106). Vygotski (1995) acrescenta que o desenvolvimento infantil é marcado por mudanças bruscas: [...] o desenvolvimento não se produz pela via de mudanças graduais, lentas, por uma acumulação de pequenas peculiaridades que produzem em seu conjunto e ao final alguma mudança importante. (...) observamos a existência de mudanças bruscas e essenciais no próprio 10

Esta união ocorre de tal modo que os processos orientados a um fim entram numa relação de subordinação a outros

13 tipo de desenvolvimento, nas próprias forças motrizes do processo. (p.156).

Blonski (citado por Elkonin, 1987), era contrário às ideias puramente evolucionistas sobre o curso do desenvolvimento infantil. Considerava que este era, sobretudo, um processo de transformações qualitativas acompanhadas de crises 11 e saltos. Sendo que, estas mudanças: [...] podem transcorrer em forma bruscamente crítica ou gradual. Convencionamos em chamar épocas e estágios aos períodos da vida infantil separados por crises, umas mais marcadas (épocas) e outras menos marcadas (estágios). Também convencionamos em chamar fases aos momentos da vida infantil não separados entre si bruscamente (Elkonin, 1987, p. 106).

Acerca da formação da personalidade, para Elkonin (1969), os processos e qualidades psíquicas da personalidade se formam durante a infância e se aperfeiçoam ao longo de toda a vida do indivíduo. A formação da personalidade é um autêntico processo de desenvolvimento da psique e não uma simples manifestação daquilo que parece já existir, no momento do nascimento, de forma encoberta. Este desenvolvimento se efetua sob a influência determinante das condições de vida e da educação, em correspondência com o meio ambiente e sob a influência diretriz dos adultos.

Considerações Preliminares

Verificamos que a Psicologia Histórico-Cultural, assim como apontado por Shuare (1990) diferencia-se de outros sistemas científicos pela relação que mantém com a filosofia, esta busca em sua concepção filosófica - o materialismo histórico dialético os marcos metodológicos para o desenvolvimento da investigação científica. Ademais, a historicidade é o eixo que organiza e sustenta os pressupostos da psicologia soviética, visto que, para Vigotski a verdadeira concepção dialética em psicologia é a compreensão da conduta humana como a história da conduta.

11

Na psicologia infantil soviética e estrangeira se tem acumulado um importante material que dá base para identificar duas bruscas passagens no desenvolvimento psíquico das crianças. Trata-se, em primeiro lugar, da passagem da primeira infância à idade pré-escolar, conhecido na literatura como crise dos três anos. Em segundo lugar, está a passagem da idade escolar jovem a idade adolescente, que na literatura denomina-se crise da maturação sexual (Elkonin, 1987).

14 Diante do exposto, notamos que são esses fundamentos, centrais do marxismo, que determinam as explicações sobre o psiquismo humano na Psicologia HistóricoCultural, uma vez que trazem as relações do mundo psíquico com o mundo material. Segundo Martins (2007b, p 64) o psiquismo é pensado como imagem subjetiva do mundo objetivo, ou seja, um reflexo psíquico da realidade, “o psiquismo e consequentemente o reflexo psíquico resultam de uma relação ativa estabelecida entre o homem e a natureza, são produtos da evolução humana”. A Psicologia necessita, assim como afirma Vigotski (2004, p.393), criar o seu “O Capital- seus conceitos de classe, base, valor, etc – com os quais possa expressar, descrever e estudar seu objeto”. Porém, a questão não está baseada na tentativa de resolver os problemas que se colocam para a Psicologia, substituindo-a por outras ciências ou pela filosofia marxista. Trata-se de buscar, conforme destaca Sève (1979, p. 27, 30), “[...] uma concepção e um uso marxista da psicologia”, que, na sua especificidade enquanto ciência busque explicar o sentido “[...] do que é um homem, aprofundando o conhecimento sobre os homens reais, entendendo-os a partir das contradições gerais de um desenvolvimento histórico-social determinado, contribuindo enfim para explicitar as relações entre uma necessidade histórica e a liberdade individual” (Tanamachi, 2007, p. 64, grifo do autor). Concordamos com Tanamachi (2007) que o marxismo é o fio condutor seguro para auxiliar nos problemas epistemológicos da psicologia, porque define o sentido e as finalidades para o estudo do homem.

Referências:

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