Resenha de O Barril de Amontillado, de Edgar Allan Poe1 Ligia Lopes Pereira Pinho2
“Nemo me impune lacessit”3 H. P. Lovecraft diz que a emoção mais forte e antiga no homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga do medo é o medo do desconhecido. O autor também diz que a linhagem dos autênticos artistas do horror cósmico começou com Edgar Allan Poe. O conto resenhado, “O Barril de Amontillado”, foi escrito em 1841 por Poe. É uma narrativa escrita em 1º pessoa, um relato de um crime perfeito ao seu confessor, no qual a vingança levou a personagem a cometer um atroz assassinato. A intenção de cometer o crime sem que o ato tivesse uma única testemunha foi levada a cabo de maneira meticulosamente premeditada. O motivo alegado é a reparação de um insulto à sua honra, que deveria ser atingida com um detalhe absolutamente indispensável: a impunidade. Suportei o melhor que pude injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza de meu caráter, não havereis de supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer ameaça. No fim, eu seria vingado. Este era um ponto definitivamente assentado – mas a própria decisão com que eu assim decidira excluía qualquer idéia de perigo. Não devia apenas castigar, mas castigar impunemente. Uma injúria permanece irreparada, quando o castigo alcança aquele que se vinga. Permanece, igualmente, sem reparação, quando o vingador deixa de fazer com que aquele que o ofendeu compreenda que é ele quem se vinga. (POE, 1981, p. 31)
Um detalhe que chama a atenção em relação ao crime é a clareza da racionalidade de Montresor – o autor do crime – e a sua constante cordialidade em relação à vítima. Essa característica da personagem é que traz a sensação de medo ao leitor. Afastado da insanidade, e do estado de loucura presentes em alguns personagens de Poe, Montresor é racionalmente normal, pertencente a uma família nobre e aparentemente comum. Para Lovecraft (2007, p. 62-3), os “espectros de Poe adquiriram assim uma malignidade convincente que nenhum de seus predecessores possuía e estabeleceram um novo padrão de realismo nos anais do horror literário”. Para ele, Poe foi hábil na capacidade de assombrar a alma humana. Antes dele, a maioria dos autores de horror não compreendia a base psicológica do medo e usava convenções literárias fúteis como o final feliz, lição de moral, aceitação de padrões e valores populares e sentimentalismo exacerbado. A partir de estudos acerca da mente humana, Poe mergulhou fundo no horror psicológico, fazendo uso de uma técnica de composição literária própria: personificação da loucura humana e da perversidade humana. Essa perversidade trazida pelo conto causa a sensação de proximidade com o autor do delito. Ao contrário da loucura mental, das alucinações e dos surtos psicológicos – 1
Texto produzido para a disciplina eletiva “Teoria da Literatura e Filosofia – O Medo como Prazer Estético”, oferecida no segundo semestre de 2010, na UERJ, pelo Prof. Dr. Julio França. 2 Graduanda do Curso de Letras da UERJ. 3 “Ninguém me fere impunemente”.
caráter constante nos personagens de Poe – o protagonista de “O Barril de Amontillado” não parece apresentar anormalidades, possui uma motivação inerente ao ser humano, a defesa da honra através da vingança: (...) não somos louvados ou censurados por causa de nossas emoções (um homem não é louvado por estar atemorizado ou encolerizado, nem é censurado simplesmente por estar encolerizado, mas por estar encolerizado de certa maneira). (...) Quando, porém, uma pessoa age [prejudicando outro] deliberadamente, ela é injusta e é moralmente deficiente. Por isto se considera com razão que os atos devidos à cólera não são premeditados com intenção criminosa, pois quem inicia a ação não é a pessoa que age sob o efeito da cólera, e sim aquela que encoleriza o agente. (Aristóteles, 2001)
Aristóteles vê a ira motivada por uma injustiça como algo positivo e essencial para os homens virtuosos: o sábio jamais deve se aquietar frente ao ato injusto. “A reação colérica frente ao prejuízo deliberado de uma pessoa sobre a outra é vista por Aristóteles como emotivo e justificável” (Meucci, 2010). No fragmento do conto já citado, o personagem deixa demonstrar a sua cólera diante da injustiça, ainda que Poe não tenha revelado o motivo da cólera. Poe não revela completamente a motivação dos personagens do seu conto, deixando a cargo da imaginação do leitor. Mas qual seria o motivo justificável que levaria o personagem a tal ato tão perverso? E se não houvesse tal motivo? No capítulo “O medo e o mal” de seu livro Medo líquido, Zygmunt Bauman aborda a questão do mal sem intenção. Para ele, “o ódio e o desejo de fazer a vítima desaparecer da face do planeta não são condições necessárias para um assassinato” (Bauman, 2008, p. 82) – o que não se aplica ao conto, visto que, o personagem principal tinha a total intenção de eliminar sua vítima, mas traz a reflexão da maldade não mais feita somente por pessoas completamente vis. O capítulo aborda a questão da racionalidade contra a emoção. “As emoções são nervosas e volúveis, perdem rapidamente a energia, tendem a se afastar de seu alvo em função da menos distração. Em suma, são inconstantes e inconfiáveis” (Ibid., p. 83). O criminoso de “O barril de Amontillado” é frio e calculista, a vingança é tratada de maneira técnica e com frieza por parte de Montresor. Psicologicamente, a personagem principal é classificada como perversa: não possui nenhum sentimento de culpa. No conto “O demônio da perversidade”, Poe trouxe a questão do sentimento de perversidade como sendo parte significante no impulso do ser humano colocandoo como um sentimento primitivo e ao mesmo tempo irredutível. Para Poe, a perversidade é uma paixão demoniacamente impaciente e que não a perpetramos por que sentimos que não deveríamos. No conto, a ofensa feita ao assassino pode ter servido de estopim para a liberação da perversidade já inerente na sua condição de ser humano, trazendo a sensação aterrorizante da perversa condição humana contida em cada um de nós. A perversidade atravessa todo o conto, mas ela parece alcançar o ápice na forma do assassinato. A intenção de despertar sentimentos de profunda excitação e ansiedade é exercida com genialidade nos contos de Edgar Allan Poe. No intuito de compor esse clima assustador, Poe lança mão de uma das experiências mais angustiantes do ser humano: o enclausuramento. A constância em torno desse tema caracteriza muitas de suas narrativas, principalmente pela
incitação ao pavor face à possibilidade de ser enterrado vivo. Em “O Barril de Amontillado” há uma sequência de acontecimentos que gera expectativa e tensão, à medida que o vingador descreve seu plano. O espaço nas narrativas de terror/horror é uma espécie de determinante para a história, pois cabe a este a função de construir o painel de fundo onde a trama se desenrola. No que se refere ao conto “O Barril do Amontillado” isso se dá de forma gradativa e o escuro vem paulatinamente consumindo a luz, aprisionando a alma de Fortunato, vítima de uma vingança silenciosa. Fortunato é seduzido pelo protagonista através de suas palavras: Vem – disse-lhe com firmeza. – Vamos embora. A tua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado. É feliz como eu fui em tempos. És uma pessoa de quem se sentiria falta. Não quero que isso aconteça. Vamos embora; não quero ser responsável se adoeceres.
Esse jogo de sedução parece alcançar também o leitor, que, preso à narrativa, embarca cada vez mais fundo do cenário juntamente com os personagens. O porão vai sendo construído cuidadosamente e gradativamente vai ganhando dimensão cada vez mais assustadora, conforme as minúcias da descrição das percepções do narrador. O espaço físico se junta ao psicológico na narrativa, na medida em que a vítima e o algoz penetram cada vez mais no porão. Por fim, o momento crucial chega e a vítima é emparedada, deixada para a morte, o espaço está fechado, não há saída. O desfecho da narrativa compreende o clímax da história, ou seja, o fim de Fortunato, condenado ao sepultamento ainda vivo. A preocupação do narrador em detalhar o sepultamento parece ressaltar a perversidade do protagonista, em que o emparedamento é feito de forma minuciosa entre momentos de silêncio e de reação por parte do emparedado. O conto parece estar cheio de jogos de oposição: a luz que é gradativamente consumida pela escuridão do porão; o já comentado silêncio que se opõe aos gritos do emparedado; e o que parece ser a oposição principal: o jogo entre o instinto, representado pela perversidade, e a razão, representada pela clareza da racionalidade do assassino. O conto “O barril de Amontillado” trouxe a perspectiva do mal – da perversidade – mais do que pertencente à condição humana como forma instintiva, mas também como atuante de forma racional e consciente no homem, este que perdura – como mostra Zygmunt Bauman – entre a razão e emoção até os dias da atualidade. Referências Bibliográficas: ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: Ed. UNB, 2001 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. FAVALLI, Paulo Henrique. Edgar Allan Poe e a estética do claustro, 02/11/2010,
KAPILA, Rosa Maria dos Santos. Os desdobramentos da ficção. Revista UNORP, v1(1):107-127, dezembro 2002. LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. Tradução de Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007. [1927] MEUCCI, Arthur. Os vieses da vingança. Disponível em: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/46/artigo170084-1.asp. Acessado em 16 de outubro de 2010. POE, Edgar Allan. O barril de Amontillado. In:___. Histórias extraordinárias. Trad. B. Silveira et ali. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ______. O Demônio da Perversidade. In:___. Ficção Completa, Poesia & Ensaios. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. P. 344-349.